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Editorial
Por Heitor Rocha
Nessa época de pandemia, faz ainda mais sentido a reflexão proposta por Adorno de que, se fossem seres humanos, a raiva que o leão demonstra em relação ao antílope que ele quer comer seria ideologia. Assim, também pode ser entendida como ideologia a raiva que a elite fascista brasileira faz questão de expressar em relação aos pobres, como uma forma de justificar, mesmo diante da monstruosa desigualdade social existente no país, a sua insistência em continuar sem abrir mão do que lucra sugando os recursos públicos com o desempoderamento dos direitos da grande maioria da população.
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Considerar apenas ruindade e perversidade a procrastinação da contratação para a compra de vacinas, quando o número de brasileiros mortos já ultrapassa os 250 mil, parece não levar em conta a possibilidade disso ser apenas uma estratégia ideológica para camuflar o propósito da iniciativa privada capitalista de lucrar com a pandemia, como agora fica evidente com a iniciativa legislativa de autorizar, além de estados e municípios, empresas privadas a adquirir vacina, a pretexto de que o Governo Federal não tem recursos para isso, quando compromete um volume de centenas de bilhões de reais com renúncia fiscal para beneficiar os grandes capitalistas, especialmente multinacionais, como os do agronegócio.
A mídia noticiosa participa dessa negociata com a saúde pública vendendo a imagem de altruísmo e filantropia da iniciativa privada interessada na compra de vacinas, que doará ao SUS cinquenta por cento do que comprar durante a fase de imunização de grupos prioritários e, na fase posterior, quando a campanha de vacinação chegar ao conjunto da população, mais cinquenta por cento ao ministério da saúde. O cálculo matemático não é explicado. Parece querer fazer crer que as empresas privadas doarão todas as vacinas compradas, sem auferir nenhum lucro com esta aplicação de seu capital. Outro cálculo, contudo, pode entender que, após a vacinação dos grupos prioritários e da doação de metade das vacinas adquiridas, apenas a metade das vacinas restantes mantidas pelas empresas privadas serão novamente repassadas para o poder público, ou seja, garantindo a esse setor econômico a posse de vinte e cinco por cento dos imunizantes comprados para a geração de lucro com a especulação desse recurso extremamente escasso em nossa época de pandemia. Não é preciso ser matemático para perceber que o valor desses vinte cinco por cento das vacinas compradas, certamente, poderão atingir um valor dezenas de vezes maior do que o que foi gasto para a compra de todos os imunizantes, através da especulação financeira de mercado sobre a vida dos cidadãos, beneficiando, com certeza, aqueles que possam pagar mais.
Neste cenário de horror da calamidade sanitária em que o país se encontra, agravada pela descarada irresponsabilidade do governo federal, que abate em mais de setenta e cinco bilhões o valor da Petrobras para aumentar a tomada de assalto do aparelho de estado por de militares desqualificados e fazer demagogia populista eleitoral, a grande mídia faz uma criminosa encenação de propaganda do plano do neoliberalismo para se apropriar do patrimônio público brasileiro, através de privatizações, como as agora pretendidas da Eletrobras e dos Correios. No discurso encenado pela grade mídia, a saída das crises nacionais é agilizar o calendário das “reformas” de privatização das empresas públicas e o “enxugamento” do Estado.
Acreditamos que esse contexto nacional conturbado reveste de um caráter especial a importância da persistência da Revista Jornalismo e Cidadania que chega neste número à 40ª edição, com artigos de Pedro de Souza, Marcos Costa Lima, Rubens Pinto Lyra, João Baltar, Ana Célia de Sá, Inã Candido, Alexandre Zanate Maciel, Luciana Ferreira, Filipe Melo, Maria Cecília M. M. da Rocha, Alexsyane Amanda Silva e Diana de Jesus.
Heitor Costa Lima da Rocha, Editor Geral da Revista Jornalismo e Cidadania, é professor do Departamento de Comunicação Social e do Programa de PósGraduação em Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco – UFPE.
Por Marcos Costa Lima
Conforme o último relatório da Food and Agriculture Organization of the United Nations (FAO, 2020) e cinco anos depois que o mundo se comprometeu a acabar com a fome e a insegurança alimentar e todas as formas de desnutrição, estamos longe de alcançar esse objetivo até 2030. Os dados nos dizem que o mundo não está avançando, nem para os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS), de garantir o acesso seguro, e de comida suficiente para todas as pessoas durante todo o ano, muito menos de erradicar todas as formas de desnutrição. Segundo o mesmo relatório, “é inaceitável que, em um mundo que produz comida suficiente para alimentar toda a sua população, mais do que 1,5 bilhão de pessoas não podem pagar uma dieta que atenda aos níveis necessários de nutrientes essenciais e mais de 3 bilhões de pessoas não podem mesmo pagar a dieta mais barata saudável”. Segundo o relatório, “é inaceitável que, em um mundo que produz comida suficiente para alimentar toda a sua população, mais do que 1,5 bilhão de pessoas não podem pagar uma dieta que atenda aos níveis necessários de nutrientes essenciais e mais de 3 bilhões de pessoas não podem mesmo pagar a dieta mais barata saudável”.
As Nações Unidas estabeleceram um período que vai de 2016 a 2025, intitulada “Década de Ação sobre Nutrição”, onde as recomendações chaves deveriam ser adotadas pelos governos: i) o reequilíbrio das políticas agrícolas, incentivos e investimentos mais sensíveis à nutrição; ii) ações políticas ao longo de toda as cadeias de suprimentos alimentares com foco em alimentos nutritivos para dietas saudáveis, de formas a reduzir as perdas alimentares, criar oportunidades para pequenos produtores vulneráveis que produzem em pequena escala e aumentar a eficiência na produção; iii) políticas de proteção sensíveis à nutrição bem como de proteção social, que serão centrais para aumentar o poder de compra e acessibilidade pelas populações mais vulneráveis; iv) habilitar os pequenos produtores em ambientes que promovam a melhoria da qualidade nutricional, seja com alimentos sem pesticidas, que recebam apoio à comercialização de produtos mais diversos e nutritivos e v) fornecer educação e produzir informações para fomentar a mudança de comportamento individual e coletivo dos produtores e para os consumidores.
As Projeções combinadas de tendências recentes no tamanho e composição da população, da disponibilidade total de alimentos, e no grau de desigualdade no acesso aos alimentos apontam para um aumento da Prevalência de Subnutrição (PoU) em quase 1 ponto percentual. Como resultado, o número global de pessoas desnutridas em 2030 excederá 840 milhões.
O relatório da FAO nos diz ainda que a Insegurança Alimentar Total (IST) (moderada ou grave) tem aumentado consistentemente no nível global desde 2014, principalmente por causa do aumento da insegurança alimentar moderada. E, muito embora a África seja onde os níveis mais altos de IST são observados, é na América Latina e Caribe onde a insegurança alimentar está subindo mais rapidamente: de 22,9% em 2014 para 31,7% em 2019, devido a um aumento acentuado na América do Sul (FAO, xix). O documento dá conta ainda de que o que as pessoas comem, e como o alimento é produzido, não apenas afeta sua saúde, mas também tem grandes ramificações no estado do meio ambiente e nas mudanças climáticas. O sistema de comida que dá sustentação ao padrão alimentar do mundo é responsável por cerca de 21 a 37 % do total de emissões de gases de efeito estufa (GEE), o que revela ser a produção de alimentos um grande condutor da mudança climática.
A FAO adverte que o aumento gradual e continuado no número de famintos e de pessoas vivendo insegurança alimentar na maioria das regiões do mundo é alarmante e que os efeitos do COVID-19 só farão ampliar o problema. As tendências de insegurança alimentar podem vir a ter consequências sistêmicas, tanto para grupos de crianças e idosos, consequências nutricionais, levando a diferentes manifestações de desnutrição e efeitos sobre a crise climática.
Outra publicação que está ligada diretamente à questão ambiental e, mais do que isto, à emergência planetária se intitula Making Peace with Nature: A scientific blueprint to tackle the climate, biodiversity and pollution emergencies (https://www.unep.org/resources/making-peace-nature).
O Relatório aponta cinco pontos centrais que resumiriam esse esforço, a saber: 1. As mudanças ambientais estão prejudicando os ganhos de desenvolvimento conquistados, causando custos econômicos e milhões de mortes prematuras anualmente. Elas estão impedindo os esforços para acabar com a pobreza e fome, a redução das desigualdades e a promoção do crescimento econômico sustentável, trabalho para todos e sociedades inclusivas e pacíficas. 2. O bem-estar da juventude atual e das gerações futuras depende de uma ruptura urgente e clara com tendências atuais de declínio ambiental. A próxima década é
crucial. A sociedade precisa reduzir o carbono nas emissões de dióxido em 45% até 2030 em comparação com os níveis de 2010 e atingir emissões líquidas zero por volta de 2050 para limitar a advertência a 1,5 °C sugerida no Acordo de Paris, ao mesmo tempo em que conservar e restaurar a biodiversidade e minimizar a poluição e o desperdício. 3. As emergências ambientais da Terra e o bem-estar humano precisam ser abordadas em conjunto para alcançar a Sustentabilidade. O desenvolvimento das metas, compromissos e mecanismos sob a chave das convenções ambientais e sua implementação precisam estar alinhados para se tornar mais sinérgicos e eficazes. 4. Os sistemas econômicos, financeiros e produtivos podem e devem ser transformados e capazes de liderar e gerar poder na mudança de direção para a sustentabilidade. A sociedade precisa eliminar ambientalmente subsídios prejudiciais e investir na transição para um futuro sustentável. 5. Todos têm um papel a desempenhar na garantia de que o conhecimento humano, a engenhosidade, a tecnologia e a cooperação serão reimplantados na transformação da natureza para alterar a relação da humanidade com a natureza.
O documento alerta para o grave comprometimento das metas globais acordadas para a proteção da vida no planeta, para estancar a degradação da terra e oceanos, pois nenhuma delas foi total ou parcialmente cumprida. Três quartos da terra e dois terços dos oceanos são agora impactados pelos humanos. Um milhão das estimadas 8 milhões de espécies do mundo, plantas e animais estão ameaçados de extinção, e muitos dos serviços ecossistêmicos essenciais para o bem-estar humano estão erodindo. A sociedade tem projetos para restaurar a proteção da camada de ozônio. No entanto, há muito a ser feito para reduzir a poluição do ar e da água, gerenciar com segurança produtos químicos, e reduzir e gerenciar com segurança os resíduos.
A desigualdade extrema tem múltiplas origens e traz sérias consequências negativas para a garantia de direitos e o desenvolvimento sustentável. Entre as causas estruturais está a concentração da terra. No Brasil, segundo o Relatório da OXFAN-2016, a concentração de terras “está ligada ao êxodo rural, à captura de recursos naturais e bens comuns, à degradação do meio ambiente e à formação de uma poderosa elite associada a um modelo agrícola baseado no latifúndio de monocultivo, voltado à produção de commodities para exportação e não para a produção de alimentos”.
Trata-se de um processo histórico secular em que a legislação só era aplicada aos segmentos sociais empobrecidos, uma vez que, em geral, as terras públicas continuaram sendo ilegalmente apropriadas pelas oligarquias, como nos processos denominados de “grilagem”. Assim, o Estado Brasileiro relegou dezenas de milhares de camponeses livres e milhões de escravos, que efetivamente trabalhavam na terra, em favor da aristocracia agrária. Na década de 1950, o surgimento de organizações e ligas camponesas, sobretudo no Nordeste e no Norte de Minas Gerais, apoiados pelos primeiros sindicatos do campo, Igreja Católica e o Partido Comunista Brasileiro (PCB), colocaram em pauta a demanda e a urgência de uma reforma agrária. Ao estudarmos esse processo verificamos que uma boa parte dos conspiradores da Ditadura Militar (1964) foi motivada pela explosão das demandas camponesas.
A profunda desigualdade na propriedade de terras entre classes sociais, segundo Dados do Censo Agropecuário de 2006, revelam as expressivas diferenças entre grandes e pequenas propriedades em número de estabelecimentos e no percentual que representam no total das áreas rurais do país. Os grandes estabelecimentos somam apenas 0,91% do total dos estabelecimentos rurais brasileiros, mas concentram 45% de toda a área rural do país. Por outro lado, os estabelecimentos com área inferior a 10 hectares representam mais de 47% do total de estabelecimentos do país, mas ocupam menos de 2,3% da área total. Há pouca mudança nas camadas intermediárias, de áreas entre 10 e 100 hectares e entre 100 e 1.000 hectares. Nessas faixas, tanto a área ocupada quanto o número de estabelecimentos permanecem os mesmos, o que remete à baixa mobilidade no perfil fundiário do país. Muito embora seja importante distinguir entre áreas que vão de 100 a 500 e de 500 a 1000 hectares.
Essas abordagens sobre Fome e Desnutrição, Crise do Aquecimento Global e Desigualdade no Campo, portanto, não podem vir dissociadas. São todas fruto de uma questão mais geral que intitulamos de capitalismo.
Marcos Costa Lima é Professor do Programa de PósGraduação em Ciência Política da Universidade Federal de Pernambuco.
Legislação sanitária e produção familiar de alimentos artesanais
Por Inã Cândido
A produção alimentícia está inserida em um capítulo vital da história mundial. Somente nas últimas décadas, ocorreu uma difusão sem precedentes de novos alimentos e de sistemas de distribuição e controle global. Junto a isso, diversos problemas relacionados à (in)segurança dos alimentos (abastecimento, produção e comercialização, consumo) passaram a fazer cada vez mais parte do cotidiano de grande parcela da população mundial.
Conforme o surgimento de novos riscos e preocupações com a saúde em escala global (vaca louca, gripe suína e, atualmente, o novo conoravírus) que expõem grupos humanos a ameaças advindas dos fluxos de produtos e serviços, diversas orientações sanitárias, antes restritas a determinadas localidades, começam a atuar muito além das fronteiras nacionais. Em vários países, normas e regras sanitárias passam a referenciar legislações que regulam mercados internos e de proximidade, com fortes implicações nos territórios rurais, na diversidade de culturas alimentares e nos saberes e fazeres artesanais (DUPIN; CINTRÃO, 2018). Como resultado, as restrições legais estabelecidas no sistema agroalimentar, em diversos momentos, desconsideram os modos de vida das populações rurais, especialmente das mulheres do campo, guardiãs de saberes e sabores locais.
No Brasil, muito anterior aos impasses envolvendo a pandemia do novo coronavírus, foi estabelecida uma legislação (Lei n. 1.283, editada em 1950 e aprovada pelo Decreto 30.691 de 1952), que estabeleceu diretrizes sobre a inspeção industrial e sanitária dos produtos de origem animal e aplicou regras higienistas severas, sobretudo para os agricultores familiares (https://ojoioeotrigo.com.br/2020/08/e-se-nossas-leis-sanitarias-estiverem-profundamente-erradas/). Em termos legais, produtos elaborados artesanalmente, muitas vezes devido a noções hegemônicas de qualidade e risco alimentar, não atendem aos critérios necessários para o consumo das populações (CINTRÂO, 2016). De forma agravante, impedimentos para a produção e comercialização desses produtos artesanais e tradicionais fazem parte da rotina de várias famílias agricultoras.
Nesse contexto, vários desses produtos (queijos, méis, farinhas e doces) correm o risco de desaparecer do mercado formal por motivos que variam desde a queda do consumo, a desestruturação de comunidades produtoras e a diluição de costumes culturais de cultivo. Daí “esse quadro de fragilidade pode levar à ruptura dos sistemas tradicionais e à perda de práticas artesanais” (SANTOS et al, 2016, p.17).
A inadequação do código sanitário coloca na informalidade muitos agricultores familiares que produzem alimentos que contribuem para a nossa sociobiodiversidade, com valor cultural e nutricional para todo o país. Essas experiências de adequação aos padrões industriais não foram bem-sucedidas por sacrificarem características principais da artesanalidade, do modo de saber, do fazer, do sabor e da identidade com o território local.
Esses parâmetros sanitário-industriais, por sua vez, acabam conflitando com o próprio Guia Alimentar para a População Brasileira (2014). Conforme alerta Monteiro (2010), a recomendação é evitar o consumo de ultraprocessados, como embutidos, preparações instantâneas e produtos industrializados que contêm gordura vegetal hidrogenada, amido modificado, emulsificantes, realçadores de sabor e corantes. Para Michael Pollan (2007), os ultraprocessados não podem ser considerados alimentos, mas produtos alimentícios que se caracterizam pela praticidade, podendo ser consumidos em qualquer lugar e a qualquer hora; e pela hiperpalatabilidade, obtida pela adição exagerada de açúcar, sódio e gorduras.
A dicotomia de produção industrial/artesanal, presente nos textos legais, representa um reconhecimento empírico dos flagrantes resultados de diferenciação em cada um desses setores. A produção de alimentos artesanais, por sua vez, está embasada em métodos que operam em escalas de processamento incomparavelmente menores que as das empregadas pela indústria convencional (CRUZ; SCHNEIDER, 2010).
Como consequência, diversas famílias produtoras enfrentam inúmeros desafios para pro-
duzirem e viverem em suas comunidades rurais. Em diversos momentos, como no caso dos produtores de queijo, por exemplo, seus produtos são apreendidos – principalmente nas estradas próximas a centros urbanos. Vários desses casos vêm sendo noticiados nos últimos anos pelos meios de comunicação locais (Diversos casos de apreensões são frequentemente veiculados na imprensa pernambucana: https://pernambuconoticias.com.br/2018/05/11/mais-de-700-quilos-de-queijo-foi-apreendido-no-interior-do-estado-material-seria-vendido-em-caruaru/). De tal modo, as fiscalizações sanitárias causam prejuízos aos produtores familiares de diversas regiões do país ao dificultarem tanto o acesso aos mercados formais como a permanência desses no campo. Mesmo assim, as famílias produtoras, ao manterem suas atividades na informalidade, seguem desafiando a vigilância sanitária e os ordenamentos legais no país.
Diante dessas controvérsias, a legislação sanitária deve considerar, ao ser elaborada, as especificidades da produção artesanal das famílias agricultoras (WILKINSON, 2008). Então, o controle dos riscos e as proteções sanitárias – que talvez, em algum nível, sejam necessários – precisam levar em consideração a importância da diversidade dos saberes e fazeres em um dado território, relacionando-os a valores identitários, éticos, socioambientais e históricos vinculados aos variados modos de vida das populações locais. Muito além de uma questão técnica, a qualidade alimentar precisa ser compreendida com base nos elementos materiais, socioculturais e simbólicos que compõem os saberes, fazeres e práticas constituídos nas comunidades tradicionais.
REFERÊNCIAS
BRASIL. MINISTÉRIO DA SAUDE. Guia Alimentar da População Brasileira. Brasília: Ministério da Saúde, 2014. Disponível em: <http:// dab.saude.gov.br/portaldab/biblioteca.php?conteudo=publicacoes/guia_alimentar2014>. Acesso em: 23 fev. 2018.
DUPIN, Leonardo Vilaça; CINTRÃO, Rosângela Pezza. Entre bactérias e lobos: o cerco biopolítico à produção do queijo Canastra. Revista de Antropologia da Ufscar, São Carlos/SP, v. 10, n. 1, p. 53-79, jun. 2018.
CRUZ, Fabiana; SCHNEIDER, Sergio. 2010. “Qualidade dos alimentos, escalas de produção e valorização de produtos tradicionais”. Revista Brasileira de Agroecologia, 5(2): 22-38.
MONTEIRO, Carlos. Nutrition and health. The issue is not food, nor nutrients, so much as processing. Public Health Nutrition, v. 12, n. 5, p. 729–773, 2010.
POLLAN, Michael. O Dilema do Onívoro. Rio de Janeiro. Editora Intrínseca, 2007.
SANTOS, Jaqueline Sgarbi et al. Dilemas e desafios para circulação de queijos artesanais no Brasil. Vigilância Sanitária em Debate, [s.l.], v. 4, n. 4, p.13-22, 25 nov. 2016. Vigilância Sanitária em Debate: Sociedade, Ciência y e Tecnologia. http://dx.doi.org/10.22239/2317-269x.00617.
WILKINSON, John. Mercados, Redes e Valores. 1. Ed. Porto Alegre: UFRGS, Editora, 2008, V1, 213p.
Inã Cândido é Doutorando pelo Programa de PósGraduação em Sociologia (PPGS) da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).
O Nacionalismo Oco
Por Filipe Reis Melo
O nacionalismo está ligado à ideia de que os interesses nacionais devem ter precedência sobre quaisquer outros para se garantir o desenvolvimento de um país. As atividades econômicas estratégicas devem estar subordinadas ao fortalecimento da nação. É fundamental que a noção de soberania esteja clara para os cidadãos, especialmente para os políticos que tomam as principais decisões na administração pública. Sem soberania, os rumos da política nacional são tomados por grupos privados, muitas vezes estrangeiros, cujos interesses opõem-se aos da maioria da população de um país.
Se observarmos a história dos países desenvolvidos, todos construíram o seu desenvolvimento a partir da defesa dos seus interesses nacionais, pondo-os à frente de interesses de grupos privados ou estrangeiros. O livro do investigador e professor coreano da Universidade de Cambridge Ha-Joon Chang (1) deixa patente esse entendimento. No caso do Brasil, os saltos qualitativos no desenvolvimento nacional também se deram em momentos em que os tomadores de decisão tinham a noção da necessidade de defender a soberania e o interesse nacional, seja na política interna seja na externa. Foi assim em 1941, com a criação da Companhia Siderúrgica Nacional; em 1954, com a proposta da criação da Eletrobras, finalmente concluída em 1962; em 1948, com a campanha “O petróleo é nosso”, que resultou na fundação da Petrobras, em 1953. Durante o regime militar, a noção de que a defesa da soberania nacional estava ligada diretamente ao desenvolvimento do país esteve sempre presente. As empresas estratégicas foram mantidas sob a administração pública, como a Petrobras, a Embraer, e outras foram criadas para fortalecer o desenvolvimento nacional, como a Telebras, a Embratel, a Embrapa, a Imbel, os Correios, o Serpro, o BNDES e a Caixa Econômica Federal. Sem essas empresas estatais, o Brasil nunca teria alcançado o nível de desenvolvimento que alcançou e teria hoje uma economia muito mais dependente dos interesses das grandes corporações internacionais e um mercado interno ainda mais incipiente. Apesar do alinhamento ideológico com Washington, o ditador Ernesto Geisel (1974-1979) não submeteu nem a política externa brasileira, nem os interesses dos militares à vontade de países estrangeiros: estabeleceu as relações diplomáticas entre Brasil e China, reconheceu imediatamente a independência de ex-colônias portuguesas como Angola e Moçambique, e assinou o Acordo Nuclear Brasil-Alemanha, só para citar alguns exemplos.
O governo Bolsonaro quer fazer crer que levanta a bandeira do nacionalismo. Mesmo antes de iniciar o governo, ainda na campanha eleitoral, o então candidato já se apoderara dos símbolos nacionais, a bandeira do Brasil e suas cores; e, com a propagação do bordão “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”, parecia indicar, para um olhar desatento, que os interesses nacionais teriam prioridade em seu governo. No entanto, tudo isso não passa de um nacionalismo oco, que se resume a uma estratégia puramente eleitoreira que só engana os tolos. Com o Ministério da Economia sob a batuta de um extremista neoliberal como Paulo Guedes, temos o governo mais entreguista e mais antinacional da história do Brasil. Senão vejamos.
A Petrobras, a principal empresa brasileira, tem sido desmontada, e o seu conglomerado tem sido vendido aos pedaços, com a ajuda do Supremo Tribunal Federal, que permitiu, em 2020, que a Petrobras vendesse as refinarias, os gasodutos e as empresas subsidiárias sem o aval do Congresso, como foi o caso da BR Distribuidora. A política de desinvestimento empreendida pela diretoria da Petrobras tem dissociado a Petrobras dos setores de refino, de transporte, de distribuição e de derivados de petróleo, na contramão da tendência das principais empresas produtoras de petróleo do mundo. O Brasil perde a possibilidade de fortalecer a sua economia nacional, através da capilaridade de empresas fornecedoras da Petrobras, que criam milhares de empregos. Enquanto a Petrobras vende as refinarias, a China tem feito um grande esforço para aumentar a sua capacidade de refino e, assim, garantir a sua soberania energética. Segundo o portal de notícias Oilprice.com, em 2023 a China vai se tornar o país número um do mundo em capacidade de refino. A Índia segue o exemplo chinês (2).
A Embraer, a terceira maior empresa fabricante de jatos comerciais do mundo, com cerca de 18 mil empregados e mais de 8 mil aeronaves entregues, só não foi vendida para a gigante Boeing porque esta desistiu. Enquanto a China investe, há anos, para
conseguir ter uma empresa com a capacidade tecnológica da Embraer, o governo Bolsonaro autorizou a venda, desmerecendo a importância geopolítica de uma empresa como essa. Foi essa miopia que fez com que, em julho de 2020, a Embraer perdesse a oportunidade de fechar um negócio com o Irã e vender 150 aeronaves (3).
O orçamento da Ciência e Tecnologia, setor-chave para o desenvolvimento de qualquer país, tem sido reduzido ano a ano. No primeiro ano de mandato, o governo Bolsonaro reduziu em 15% os recursos dessa área. Em 2021, propôs um corte de 34%. O Brasil passa a ter um orçamento que equivale a um terço do que foi 10 anos antes (4). Um dos maiores centros de pesquisa em semicondutores, o Centro Nacional de Tecnologia Eletrônica Avançada (Ceitec) está na lista de empresas a serem privatizadas. É uma empresa estratégica que fabrica e comercializa circuitos integrados no segmento de semicondutores. A Ceitec cresce aproximadamente 17% ao ano e movimenta 1 trilhão de reais (5). Atua na área de microeletrônica, agrega valor e competitividade à economia nacional, propiciando a substituição seletiva de importação, que hoje apresenta déficit na balança comercial brasileira.
Na política externa, o Itamaraty deu as costas para as duas plataformas de política internacional mais promissoras já integradas pelo Brasil e que lhe davam respeito e projeção internacionais: Brics e Unasul. Em plena pandemia do coronavírus, a cooperação dentro do Brics com a China, a Rússia e a Índia, grandes produtores mundiais de vacinas, seria essencial. Ao se retirar da Unasul, o Brasil abandonou a liderança que exercia no Conselho de Defesa Sul-Americano. Para que o leitor entenda o significado dessa decisão, é como se os Estados Unidos decidissem abandonar a Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan).
Portanto, a ideia de nacionalismo é completamente desconhecida e ignorada pelo Executivo brasileiro, pela chancelaria e pelo banqueiro Paulo Guedes, que administra a economia brasileira em função dos interesses das grandes corporações privadas e de seus interesses pessoais, garantindo fabulosos lucros às suas empresas.
NOTAS
1 CHANG, Há-Joon. Chutando a escada: a estratégia do desenvolvimento em perspectiva histórica. São Paulo: Unesp, 2004.
2 SLAV, Irina. China looks to surpass the U.S. as the world’s biggest oil refiner. OilPrice, 23/11/2020. Disponível em: https://oilprice.com/Energy/Energy-General/China-Looks-To-Surpass-The-US-As-The-Worlds-Biggest-Oil-Refiner.html.
3 MURAKAWA, Fábio. Sanções e alinhamento aos EUA dificultam vendas da Embraer ao Irã. Valor Econômico, 21/07/2020. Disponível em: https:// valor.globo.com/brasil/noticia/2020/07/21/sancoes-e-alinhamento-aos-eua-dificultam-vendas-da-embraer-ao-ira.ghtml.
4 THUSWOHL, Maurício. A ciência no Brasil está a beira do colapso, avalia ex-ministro. Carta Capital, 03/01/2021. Disponível em: https://www. cartacapital.com.br/politica/a-ciencia-no-brasil-esta-a-beira-do-colapso-avalia-ex-ministro/.
5 RUSCHEL, René. Opção pelo atraso. Carta Capital, 22/07/2020, p.32-33.
Artigo publicado originalmente na Carta FoMerco, em 01/02/2021. https://www.fomerco.com. br/informativo/view?TIPO=2&ID_INFORMATIVO=182.
Filipe Reis Melo é professor da Universidade Estadual da Paraíba (UEPB/FoMerco).