Revista Jornalismo e Cidadania - Ed. 40

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Eletrônica do Grupo de Pesquisa Jornalismo e Contemporaneidade - PPGCOM/UFPE | 1
| PPGCOM/UFPE | ISSN 2526-2440 | nº
JORNALISMO E
Revista
Revista Eletrônica do Grupo de Pesquisa Jornalismo e Contemporaneidade
40 | Janeiro / Fevereiro | 2021
CIDADANIA

Expediente

Editor Geral | Heitor Rocha

Professor PPGCOM/UFPE

Editor Executivo | Ivo Henrique Dantas Doutor em Comunicação

Editor Internacional | Marcos Costa Lima Pós-Graduação em Ciência Política/UFPE

Revisão | Laís Ferreira / Bruno Marinho Mestre em Comunicação / Mestre em Comunicação

Alunos Voluntários |

Júlia Monteiro Cardouzo

Thomaz Antonio Costa e Alvim Matheus Henrique dos Santos Ramos

Colaboradores |

Alfredo Vizeu

Professor PPGCOM - UFPE

Túlio Velho Barreto

Fundação Joaquim Nabuco

Gustavo Ferreira da Costa Lima

Pós-Graduação em Sociologia/UFPB

Anabela Gradim

Universidade da Beira Interior - Portugal

Ada Cristina Machado Silveira

Professora da Universidade Federal de Santa Maria – UFSM

Antonio Jucá Filho

Pesquisador da Fundação Joaquim Nabuco – FUNDAJ

João Carlos Correia

Universidade da Beira Interior - Portugal

Leonardo Souza Ramos

Professor do Departamento de Relações Internacionais da PUC –Minas Gerais e coordenador do Grupo de Pesquisa sobre Potências Médias (GPPM)

Rubens Pinto Lyra

Professor do Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos, Cidadania e Políticas Públicas  da UFPB

Ana Célia de Sá

Jornalista Doutoranda do PPGCOM/UFPE

Alexandre Zarate Maciel

Professor da UFMA e Doutor em Comunicação pela UFPE

Índice

Editorial | p.3

Fome, Crise do Aquecimento Global e Desigualdade no Campo - Marcos Costa Lima | p.4

Legislação sanitária e produção familiar de alimentos artesanais - Inã Cândido | p.6

O Nacionalismo Oco - Filipe Reis Melo | p.8

O Proto-Fascismo Brasileiro e o Nazi-FascismoRubens Pinto Lyra | p.10

Redes sociais como espaços relacionais na internetAna Célia de Sá | p.14

As Mídias, as Representações e a RealidadeLuciana Gomes Ferreira | p.16

As armadilhas do deslumbramento digital - Pedro de Souza | p.18

A Teleducação e o Projeto Saúde Indígena do NTES/IMIP - Maria Cecília M M da Rocha | p.20

Escritores nordestinos: desafios do mercado de livro-reportagem - Alexandre Zarate Maciel | p.22

Bong Joon-Ho, transnacionalidade e o mercado cinematográfico dos EUA - Alexsyane Amanda Silva e Diana de Jesus | p.24

Mudanças Climáticas - João Baltar | p.26

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JORNALISMO E CIDADANIA | 2

Editorial

Por Heitor Rocha

Nessa época de pandemia, faz ainda mais sentido a reflexão proposta por Adorno de que, se fossem seres humanos, a raiva que o leão demonstra em relação ao antílope que ele quer comer seria ideologia. Assim, também pode ser entendida como ideologia a raiva que a elite fascista brasileira faz questão de expressar em relação aos pobres, como uma forma de justificar, mesmo diante da monstruosa desigualdade social existente no país, a sua insistência em continuar sem abrir mão do que lucra sugando os recursos públicos com o desempoderamento dos direitos da grande maioria da população.

Considerar apenas ruindade e perversidade a procrastinação da contratação para a compra de vacinas, quando o número de brasileiros mortos já ultrapassa os 250 mil, parece não levar em conta a possibilidade disso ser apenas uma estratégia ideológica para camuflar o propósito da iniciativa privada capitalista de lucrar com a pandemia, como agora fica evidente com a iniciativa legislativa de autorizar, além de estados e municípios, empresas privadas a adquirir vacina, a pretexto de que o Governo Federal não tem recursos para isso, quando compromete um volume de centenas de bilhões de reais com renúncia fiscal para beneficiar os grandes capitalistas, especialmente multinacionais, como os do agronegócio.

A mídia noticiosa participa dessa negociata com a saúde pública vendendo a imagem de altruísmo e filantropia da iniciativa privada interessada na compra de vacinas, que doará ao SUS cinquenta por cento do que comprar durante a fase de imunização de grupos prioritários e, na fase posterior, quando a campanha de vacinação chegar ao conjunto da população, mais cinquenta por cento ao ministério da saúde. O cálculo matemático não é explicado. Parece querer fazer crer que as empresas privadas doarão todas as vacinas compradas, sem auferir nenhum lucro com esta aplicação de seu capital. Outro cálculo, contudo, pode entender que, após a vacinação dos grupos prioritários e da doação de metade das vacinas adquiridas, apenas a metade das vacinas restantes mantidas pelas empresas privadas serão novamente repassadas para o poder público, ou seja, garantindo a esse setor econômico a posse de vinte e cinco por cento dos imunizantes comprados para a geração de lucro com a especulação desse recurso extremamente escasso em nossa

época de pandemia. Não é preciso ser matemático para perceber que o valor desses vinte cinco por cento das vacinas compradas, certamente, poderão atingir um valor dezenas de vezes maior do que o que foi gasto para a compra de todos os imunizantes, através da especulação financeira de mercado sobre a vida dos cidadãos, beneficiando, com certeza, aqueles que possam pagar mais.

Neste cenário de horror da calamidade sanitária em que o país se encontra, agravada pela descarada irresponsabilidade do governo federal, que abate em mais de setenta e cinco bilhões o valor da Petrobras para aumentar a tomada de assalto do aparelho de estado por de militares desqualificados e fazer demagogia populista eleitoral, a grande mídia faz uma criminosa encenação de propaganda do plano do neoliberalismo para se apropriar do patrimônio público brasileiro, através de privatizações, como as agora pretendidas da Eletrobras e dos Correios. No discurso encenado pela grade mídia, a saída das crises nacionais é agilizar o calendário das “reformas” de privatização das empresas públicas e o “enxugamento” do Estado.

Acreditamos que esse contexto nacional conturbado reveste de um caráter especial a importância da persistência da Revista Jornalismo e Cidadania que chega neste número à 40ª edição, com artigos de Pedro de Souza, Marcos Costa Lima, Rubens Pinto Lyra, João Baltar, Ana Célia de Sá, Inã Candido, Alexandre Zanate Maciel, Luciana Ferreira, Filipe Melo, Maria Cecília M. M. da Rocha, Alexsyane Amanda Silva e Diana de Jesus.

Heitor Costa Lima da Rocha, Editor Geral da Revista Jornalismo e Cidadania, é professor do Departamento de Comunicação Social e do Programa de PósGraduação em Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco – UFPE.

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Fome, Crise do Aquecimento Global e Desigualdade no Campo

Conforme o último relatório da Food and Agriculture Organization of the United Nations (FAO, 2020) e cinco anos depois que o mundo se comprometeu a acabar com a fome e a insegurança alimentar e todas as formas de desnutrição, estamos longe de alcançar esse objetivo até 2030. Os dados nos dizem que o mundo não está avançando, nem para os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS), de garantir o acesso seguro, e de comida suficiente para todas as pessoas durante todo o ano, muito menos de erradicar todas as formas de desnutrição. Segundo o mesmo relatório, “é inaceitável que, em um mundo que produz comida suficiente para alimentar toda a sua população, mais do que 1,5 bilhão de pessoas não podem pagar uma dieta que atenda aos níveis necessários de nutrientes essenciais e mais de 3 bilhões de pessoas não podem mesmo pagar a dieta mais barata saudável”. Segundo o relatório, “é inaceitável que, em um mundo que produz comida suficiente para alimentar toda a sua população, mais do que 1,5 bilhão de pessoas não podem pagar uma dieta que atenda aos níveis necessários de nutrientes essenciais e mais de 3 bilhões de pessoas não podem mesmo pagar a dieta mais barata saudável”.

As Nações Unidas estabeleceram um período que vai de 2016 a 2025, intitulada “Década de Ação sobre Nutrição”, onde as recomendações chaves deveriam ser adotadas pelos governos: i) o reequilíbrio das políticas agrícolas, incentivos e investimentos mais sensíveis à nutrição; ii) ações políticas ao longo de toda as cadeias de suprimentos alimentares com foco em alimentos nutritivos para dietas saudáveis, de formas a reduzir as perdas alimentares, criar oportunidades para pequenos produtores vulneráveis que produzem em pequena escala e aumentar a eficiência na produção; iii) políticas de proteção sensíveis à nutrição bem como de proteção social, que serão centrais para aumentar o poder de compra e acessibilidade pelas populações mais vulneráveis; iv) habilitar os pequenos produtores em ambientes que promovam a melhoria da qualidade nutricional, seja com alimentos sem pesticidas, que recebam apoio à comercialização de produtos mais diversos e nutritivos e v) fornecer educação e produzir informações para fomentar a mudança de comportamento individual e coletivo dos produtores e para os consumidores.

As Projeções combinadas de tendências recentes no tamanho e composição da população, da disponibilidade total de alimentos, e no grau de desigualdade no acesso aos alimentos apontam para um aumento da Prevalência de Subnutrição (PoU) em quase 1 ponto percentual.

Como resultado, o número global de pessoas desnutridas em 2030 excederá 840 milhões.

O relatório da FAO nos diz ainda que a Insegurança Alimentar Total (IST) (moderada ou grave) tem aumentado consistentemente no nível global desde 2014, principalmente por causa do aumento da insegurança alimentar moderada. E, muito embora a África seja onde os níveis mais altos de IST são observados, é na América Latina e Caribe onde a insegurança alimentar está subindo mais rapidamente: de 22,9% em 2014 para 31,7% em 2019, devido a um aumento acentuado na América do Sul (FAO, xix). O documento dá conta ainda de que o que as pessoas comem, e como o alimento é produzido, não apenas afeta sua saúde, mas também tem grandes ramificações no estado do meio ambiente e nas mudanças climáticas. O sistema de comida que dá sustentação ao padrão alimentar do mundo é responsável por cerca de 21 a 37 % do total de emissões de gases de efeito estufa (GEE), o que revela ser a produção de alimentos um grande condutor da mudança climática.

A FAO adverte que o aumento gradual e continuado no número de famintos e de pessoas vivendo insegurança alimentar na maioria das regiões do mundo é alarmante e que os efeitos do COVID-19 só farão ampliar o problema. As tendências de insegurança alimentar podem vir a ter consequências sistêmicas, tanto para grupos de crianças e idosos, consequências nutricionais, levando a diferentes manifestações de desnutrição e efeitos sobre a crise climática.

Outra publicação que está ligada diretamente à questão ambiental e, mais do que isto, à emergência planetária se intitula Making Peace with Nature: A scientific blueprint to tackle the climate, biodiversity and pollution emergencies (https://www.unep.org/resources/making-peace-nature).

O Relatório aponta cinco pontos centrais que resumiriam esse esforço, a saber:

1. As mudanças ambientais estão prejudicando os ganhos de desenvolvimento conquistados, causando custos econômicos e milhões de mortes prematuras anualmente. Elas estão impedindo os esforços para acabar com a pobreza e fome, a redução das desigualdades e a promoção do crescimento econômico sustentável, trabalho para todos e sociedades inclusivas e pacíficas.

2. O bem-estar da juventude atual e das gerações futuras depende de uma ruptura urgente e clara com tendências atuais de declínio ambiental. A próxima década é

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crucial. A sociedade precisa reduzir o carbono nas emissões de dióxido em 45% até 2030 em comparação com os níveis de 2010 e atingir emissões líquidas zero por volta de 2050 para limitar a advertência a 1,5 °C sugerida no Acordo de Paris, ao mesmo tempo em que conservar e restaurar a biodiversidade e minimizar a poluição e o desperdício.

3. As emergências ambientais da Terra e o bem-estar humano precisam ser abordadas em conjunto para alcançar a Sustentabilidade. O desenvolvimento das metas, compromissos e mecanismos sob a chave das convenções ambientais e sua implementação precisam estar alinhados para se tornar mais sinérgicos e eficazes.

4. Os sistemas econômicos, financeiros e produtivos podem e devem ser transformados e capazes de liderar e gerar poder na mudança de direção para a sustentabilidade. A sociedade precisa eliminar ambientalmente subsídios prejudiciais e investir na transição para um futuro sustentável.

5. Todos têm um papel a desempenhar na garantia de que o conhecimento humano, a engenhosidade, a tecnologia e a cooperação serão reimplantados na transformação da natureza para alterar a relação da humanidade com a natureza.

O documento alerta para o grave comprometimento das metas globais acordadas para a proteção da vida no planeta, para estancar a degradação da terra e oceanos, pois nenhuma delas foi total ou parcialmente cumprida. Três quartos da terra e dois terços dos oceanos são agora impactados pelos humanos. Um milhão das estimadas 8 milhões de espécies do mundo, plantas e animais estão ameaçados de extinção, e muitos dos serviços ecossistêmicos essenciais para o bem-estar humano estão erodindo. A sociedade tem projetos para restaurar a proteção da camada de ozônio. No entanto, há muito a ser feito para reduzir a poluição do ar e da água, gerenciar com segurança produtos químicos, e reduzir e gerenciar com segurança os resíduos.

A desigualdade extrema tem múltiplas origens e traz sérias consequências negativas para a garantia de direitos e o desenvolvimento sustentável. Entre as causas estruturais está a concentração da terra. No Brasil, segundo o Relatório da OXFAN-2016, a concentração de terras “está ligada ao êxodo rural, à captura de recursos naturais e bens comuns, à degradação do meio ambiente e à formação de uma poderosa elite associada a um modelo agrícola baseado no latifúndio de monocultivo, voltado à produção de commodities para exportação e não para a produção de alimentos”.

Trata-se de um processo histórico secular em que a legislação só era aplicada aos segmentos sociais empobrecidos, uma vez que, em geral, as terras públicas continuaram sendo ilegalmente apropriadas pelas oligarquias, como nos processos denominados de “grilagem”. Assim, o Estado Brasileiro relegou dezenas de milhares de cam-

poneses livres e milhões de escravos, que efetivamente trabalhavam na terra, em favor da aristocracia agrária. Na década de 1950, o surgimento de organizações e ligas camponesas, sobretudo no Nordeste e no Norte de Minas Gerais, apoiados pelos primeiros sindicatos do campo, Igreja Católica e o Partido Comunista Brasileiro (PCB), colocaram em pauta a demanda e a urgência de uma reforma agrária. Ao estudarmos esse processo verificamos que uma boa parte dos conspiradores da Ditadura Militar (1964) foi motivada pela explosão das demandas camponesas.

A profunda desigualdade na propriedade de terras entre classes sociais, segundo Dados do Censo Agropecuário de 2006, revelam as expressivas diferenças entre grandes e pequenas propriedades em número de estabelecimentos e no percentual que representam no total das áreas rurais do país. Os grandes estabelecimentos somam apenas 0,91% do total dos estabelecimentos rurais brasileiros, mas concentram 45% de toda a área rural do país. Por outro lado, os estabelecimentos com área inferior a 10 hectares representam mais de 47% do total de estabelecimentos do país, mas ocupam menos de 2,3% da área total. Há pouca mudança nas camadas intermediárias, de áreas entre 10 e 100 hectares e entre 100 e 1.000 hectares. Nessas faixas, tanto a área ocupada quanto o número de estabelecimentos permanecem os mesmos, o que remete à baixa mobilidade no perfil fundiário do país. Muito embora seja importante distinguir entre áreas que vão de 100 a 500 e de 500 a 1000 hectares.

Essas abordagens sobre Fome e Desnutrição, Crise do Aquecimento Global e Desigualdade no Campo, portanto, não podem vir dissociadas. São todas fruto de uma questão mais geral que intitulamos de capitalismo.

Marcos Costa Lima é Professor do Programa de PósGraduação em Ciência Política da Universidade Federal de Pernambuco.

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Legislação sanitária e produção familiar de alimentos artesanais

Por Inã Cândido

A produção alimentícia está inserida em um capítulo vital da história mundial. Somente nas últimas décadas, ocorreu uma difusão sem precedentes de novos alimentos e de sistemas de distribuição e controle global. Junto a isso, diversos problemas relacionados à (in)segurança dos alimentos (abastecimento, produção e comercialização, consumo) passaram a fazer cada vez mais parte do cotidiano de grande parcela da população mundial.

Conforme o surgimento de novos riscos e preocupações com a saúde em escala global (vaca louca, gripe suína e, atualmente, o novo conoravírus) que expõem grupos humanos a ameaças advindas dos fluxos de produtos e serviços, diversas orientações sanitárias, antes restritas a determinadas localidades, começam a atuar muito além das fronteiras nacionais. Em vários países, normas e regras sanitárias passam a referenciar legislações que regulam mercados internos e de proximidade, com fortes implicações nos territórios rurais, na diversidade de culturas alimentares e nos saberes e fazeres artesanais (DUPIN; CINTRÃO, 2018). Como resultado, as restrições legais estabelecidas no sistema agroalimentar, em diversos momentos, desconsideram os modos de vida das populações rurais, especialmente das mulheres do campo, guardiãs de saberes e sabores locais.

No Brasil, muito anterior aos impasses envolvendo a pandemia do novo coronavírus, foi estabelecida uma legislação (Lei n. 1.283, editada em 1950 e aprovada pelo Decreto 30.691 de 1952), que estabeleceu diretrizes sobre a inspeção industrial e sanitária dos produtos de origem animal e aplicou regras higienistas severas, sobretudo para os agricultores familiares (https://ojoioeotrigo.com.br/2020/08/e-se-nossas-leis-sanitarias-estiverem-profundamente-erradas/). Em termos legais, produtos elaborados artesanalmente, muitas vezes devido a noções hegemônicas de qualidade e risco alimentar, não atendem aos critérios necessários para o consumo das populações (CINTRÂO, 2016). De forma agravante, impedimentos para a produção e comercialização desses produtos artesanais e tradicionais fazem parte da rotina de várias famílias

agricultoras.

Nesse contexto, vários desses produtos (queijos, méis, farinhas e doces) correm o risco de desaparecer do mercado formal por motivos que variam desde a queda do consumo, a desestruturação de comunidades produtoras e a diluição de costumes culturais de cultivo. Daí “esse quadro de fragilidade pode levar à ruptura dos sistemas tradicionais e à perda de práticas artesanais” (SANTOS et al, 2016, p.17).

A inadequação do código sanitário coloca na informalidade muitos agricultores familiares que produzem alimentos que contribuem para a nossa sociobiodiversidade, com valor cultural e nutricional para todo o país. Essas experiências de adequação aos padrões industriais não foram bem-sucedidas por sacrificarem características principais da artesanalidade, do modo de saber, do fazer, do sabor e da identidade com o território local.

Esses parâmetros sanitário-industriais, por sua vez, acabam conflitando com o próprio Guia Alimentar para a População Brasileira (2014). Conforme alerta Monteiro (2010), a recomendação é evitar o consumo de ultraprocessados, como embutidos, preparações instantâneas e produtos industrializados que contêm gordura vegetal hidrogenada, amido modificado, emulsificantes, realçadores de sabor e corantes. Para Michael Pollan (2007), os ultraprocessados não podem ser considerados alimentos, mas produtos alimentícios que se caracterizam pela praticidade, podendo ser consumidos em qualquer lugar e a qualquer hora; e pela hiperpalatabilidade, obtida pela adição exagerada de açúcar, sódio e gorduras.

A dicotomia de produção industrial/artesanal, presente nos textos legais, representa um reconhecimento empírico dos flagrantes resultados de diferenciação em cada um desses setores. A produção de alimentos artesanais, por sua vez, está embasada em métodos que operam em escalas de processamento incomparavelmente menores que as das empregadas pela indústria convencional (CRUZ; SCHNEIDER, 2010).

Como consequência, diversas famílias produtoras enfrentam inúmeros desafios para pro -

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duzirem e viverem em suas comunidades rurais. Em diversos momentos, como no caso dos produtores de queijo, por exemplo, seus produtos são apreendidos – principalmente nas estradas próximas a centros urbanos. Vários desses casos vêm sendo noticiados nos últimos anos pelos meios de comunicação locais (Diversos casos de apreensões são frequentemente veiculados na imprensa pernambucana: https://pernambuconoticias.com.br/2018/05/11/mais-de-700-quilos-de-queijo-foi-apreendido-no-interior-do-estado-material-seria-vendido-em-caruaru/).

De tal modo, as fiscalizações sanitárias causam prejuízos aos produtores familiares de diversas regiões do país ao dificultarem tanto o acesso aos mercados formais como a permanência desses no campo. Mesmo assim, as famílias produtoras, ao manterem suas atividades na informalidade, seguem desafiando a vigilância sanitária e os ordenamentos legais no país.

Diante dessas controvérsias, a legislação sanitária deve considerar, ao ser elaborada, as especificidades da produção artesanal das famílias agricultoras (WILKINSON, 2008). Então, o controle dos riscos e as proteções sanitárias – que talvez, em algum nível, sejam necessários – precisam levar em consideração a importância da diversidade dos saberes e fazeres em um dado território, relacionando-os a valores identitários, éticos, socioambientais e históricos vinculados aos variados modos de vida das populações locais. Muito além de uma questão técnica, a qualidade alimentar precisa ser compreendida com base nos elementos materiais, socioculturais e simbólicos que compõem os saberes, fazeres e práticas constituídos nas comunidades tradicionais.

REFERÊNCIAS

BRASIL. MINISTÉRIO DA SAUDE. Guia Alimentar da População Brasileira. Brasília: Ministério da Saúde, 2014. Disponível em: <http:// dab.saude.gov.br/portaldab/biblioteca.php?conteudo=publicacoes/guia_alimentar2014&gt;. Acesso em: 23 fev. 2018.

DUPIN, Leonardo Vilaça; CINTRÃO, Rosângela Pezza. Entre bactérias e lobos: o cerco biopolítico à produção do queijo Canastra. Revista de Antropologia da Ufscar, São Carlos/SP, v. 10, n. 1, p. 53-79, jun. 2018.

CRUZ, Fabiana; SCHNEIDER, Sergio. 2010. “Qualidade dos alimentos, escalas de produção e valorização de produtos tradicionais”. Revista

Brasileira de Agroecologia, 5(2): 22-38.

MONTEIRO, Carlos. Nutrition and health. The issue is not food, nor nutrients, so much as processing. Public Health Nutrition, v. 12, n. 5, p. 729–773, 2010.

POLLAN, Michael. O Dilema do Onívoro. Rio de Janeiro. Editora Intrínseca, 2007.

SANTOS, Jaqueline Sgarbi et al. Dilemas e desafios para circulação de queijos artesanais no Brasil. Vigilância Sanitária em Debate, [s.l.], v. 4, n. 4, p.13-22, 25 nov. 2016. Vigilância Sanitária em Debate: Sociedade, Ciência y e Tecnologia. http://dx.doi.org/10.22239/2317-269x.00617.

WILKINSON, John. Mercados, Redes e Valores. 1. Ed. Porto Alegre: UFRGS, Editora, 2008, V1, 213p.

Inã Cândido é Doutorando pelo Programa de PósGraduação em Sociologia (PPGS) da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).

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O Nacionalismo Oco

O nacionalismo está ligado à ideia de que os interesses nacionais devem ter precedência sobre quaisquer outros para se garantir o desenvolvimento de um país. As atividades econômicas estratégicas devem estar subordinadas ao fortalecimento da nação. É fundamental que a noção de soberania esteja clara para os cidadãos, especialmente para os políticos que tomam as principais decisões na administração pública. Sem soberania, os rumos da política nacional são tomados por grupos privados, muitas vezes estrangeiros, cujos interesses opõem-se aos da maioria da população de um país.

Se observarmos a história dos países desenvolvidos, todos construíram o seu desenvolvimento a partir da defesa dos seus interesses nacionais, pondo-os à frente de interesses de grupos privados ou estrangeiros. O livro do investigador e professor coreano da Universidade de Cambridge Ha-Joon Chang (1) deixa patente esse entendimento. No caso do Brasil, os saltos qualitativos no desenvolvimento nacional também se deram em momentos em que os tomadores de decisão tinham a noção da necessidade de defender a soberania e o interesse nacional, seja na política interna seja na externa. Foi assim em 1941, com a criação da Companhia Siderúrgica Nacional; em 1954, com a proposta da criação da Eletrobras, finalmente concluída em 1962; em 1948, com a campanha “O petróleo é nosso”, que resultou na fundação da Petrobras, em 1953. Durante o regime militar, a noção de que a defesa da soberania nacional estava ligada diretamente ao desenvolvimento do país esteve sempre presente. As empresas estratégicas foram mantidas sob a administração pública, como a Petrobras, a Embraer, e outras foram criadas para fortalecer o desenvolvimento nacional, como a Telebras, a Embratel, a Embrapa, a Imbel, os Correios, o Serpro, o BNDES e a Caixa Econômica Federal. Sem essas empresas estatais, o Brasil nunca teria alcançado o nível de desenvolvimento que alcançou e teria hoje uma economia muito mais dependente dos interesses das grandes corporações internacionais e um mercado interno ainda mais incipiente. Apesar do alinhamento ideológico com Washington, o ditador Ernesto Geisel (1974-1979) não submeteu nem a política externa brasileira, nem os interesses dos militares à vontade de países estrangeiros: estabe -

leceu as relações diplomáticas entre Brasil e China, reconheceu imediatamente a independência de ex-colônias portuguesas como Angola e Moçambique, e assinou o Acordo Nuclear Brasil-Alemanha, só para citar alguns exemplos.

O governo Bolsonaro quer fazer crer que levanta a bandeira do nacionalismo. Mesmo antes de iniciar o governo, ainda na campanha eleitoral, o então candidato já se apoderara dos símbolos nacionais, a bandeira do Brasil e suas cores; e, com a propagação do bordão “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”, parecia indicar, para um olhar desatento, que os interesses nacionais teriam prioridade em seu governo. No entanto, tudo isso não passa de um nacionalismo oco, que se resume a uma estratégia puramente eleitoreira que só engana os tolos. Com o Ministério da Economia sob a batuta de um extremista neoliberal como Paulo Guedes, temos o governo mais entreguista e mais antinacional da história do Brasil. Senão vejamos.

A Petrobras, a principal empresa brasileira, tem sido desmontada, e o seu conglomerado tem sido vendido aos pedaços, com a ajuda do Supremo Tribunal Federal, que permitiu, em 2020, que a Petrobras vendesse as refinarias, os gasodutos e as empresas subsidiárias sem o aval do Congresso, como foi o caso da BR Distribuidora. A política de desinvestimento empreendida pela diretoria da Petrobras tem dissociado a Petrobras dos setores de refino, de transporte, de distribuição e de derivados de petróleo, na contramão da tendência das principais empresas produtoras de petróleo do mundo. O Brasil perde a possibilidade de fortalecer a sua economia nacional, através da capilaridade de empresas fornecedoras da Petrobras, que criam milhares de empregos. Enquanto a Petrobras vende as refinarias, a China tem feito um grande esforço para aumentar a sua capacidade de refino e, assim, garantir a sua soberania energética. Segundo o portal de notícias Oilprice.com, em 2023 a China vai se tornar o país número um do mundo em capacidade de refino. A Índia segue o exemplo chinês (2).

A Embraer, a terceira maior empresa fabricante de jatos comerciais do mundo, com cerca de 18 mil empregados e mais de 8 mil aeronaves entregues, só não foi vendida para a gigante Boeing porque esta desistiu. Enquanto a China investe, há anos, para

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conseguir ter uma empresa com a capacidade tecnológica da Embraer, o governo Bolsonaro autorizou a venda, desmerecendo a importância geopolítica de uma empresa como essa. Foi essa miopia que fez com que, em julho de 2020, a Embraer perdesse a oportunidade de fechar um negócio com o Irã e vender 150 aeronaves (3).

O orçamento da Ciência e Tecnologia, setor-chave para o desenvolvimento de qualquer país, tem sido reduzido ano a ano. No primeiro ano de mandato, o governo Bolsonaro reduziu em 15% os recursos dessa área. Em 2021, propôs um corte de 34%. O Brasil passa a ter um orçamento que equivale a um terço do que foi 10 anos antes (4). Um dos maiores centros de pesquisa em semicondutores, o Centro Nacional de Tecnologia Eletrônica Avançada (Ceitec) está na lista de empresas a serem privatizadas. É uma empresa estratégica que fabrica e comercializa circuitos integrados no segmento de semicondutores. A Ceitec cresce aproximadamente 17% ao ano e movimenta 1 trilhão de reais (5). Atua na área de microeletrônica, agrega valor e competitividade à economia nacional, propiciando a substituição seletiva de importação, que hoje apresenta déficit na balança comercial brasileira.

Na política externa, o Itamaraty deu as costas para as duas plataformas de política internacional mais promissoras já integradas pelo Brasil e que lhe davam respeito e projeção internacionais: Brics e Unasul. Em plena pandemia do coronavírus, a cooperação dentro do Brics com a China, a Rússia e a Índia, grandes produtores mundiais de vacinas, seria essencial. Ao se retirar da Unasul, o Brasil abandonou a liderança que exercia no Conselho de Defesa Sul-Americano. Para que o leitor entenda o significado dessa decisão, é como se os Estados Unidos decidissem abandonar a Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan).

Portanto, a ideia de nacionalismo é completamente desconhecida e ignorada pelo Executivo brasileiro, pela chancelaria e pelo banqueiro Paulo Guedes, que administra a economia brasileira em função dos interesses das grandes corporações privadas e de seus interesses pessoais, garantindo fabulosos lucros às suas empresas.

NOTAS

1 CHANG, Há-Joon. Chutando a escada: a estratégia do desenvolvimento em perspectiva histórica. São Paulo: Unesp, 2004.

2 SLAV, Irina. China looks to surpass the U.S. as the world’s biggest oil refiner. OilPrice, 23/11/2020. Disponível em: https://oilprice.com/Energy/Energy-General/China-Looks-To-Surpass-The-US-As -

-The-Worlds-Biggest-Oil-Refiner.html.

3 MURAKAWA, Fábio. Sanções e alinhamento aos EUA dificultam vendas da Embraer ao Irã. Valor Econômico, 21/07/2020. Disponível em: https:// valor.globo.com/brasil/noticia/2020/07/21/sancoes-e-alinhamento-aos-eua-dificultam-vendas-da-embraer-ao-ira.ghtml.

4 THUSWOHL, Maurício. A ciência no Brasil está a beira do colapso, avalia ex-ministro. Carta Capital, 03/01/2021. Disponível em: https://www. cartacapital.com.br/politica/a-ciencia-no-brasil-esta-a-beira-do-colapso-avalia-ex-ministro/.

5 RUSCHEL, René. Opção pelo atraso. Carta Capital, 22/07/2020, p.32-33.

Artigo publicado originalmente na Carta FoMerco, em 01/02/2021. https://www.fomerco.com. br/informativo/view?TIPO=2&ID_INFORMATIVO=182.

Filipe Reis Melo é professor da Universidade Estadual da Paraíba (UEPB/FoMerco).

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O Proto-Fascismo Brasileiro e o Nazi-Fascismo

Conforme assinala Umberto Eco, consagrado romancista italiano, o proto-fascismo “trocou a violência aberta, característica dos seguidores de Hitler e Mussolini, por uma retórica agressiva” (1998, p. 16). É o que ocorre no Brasil. Essa retórica, utilizada por Bolsonaro, se traduz em constantes ameaças, como a de “fuzilar a petralhada” (RIBEIRO, 2018), que ele combina com atuação “normal”, a nível institucional. O presidente militar joga com essa dubiedade com objetivo de manter a fidelidade de seus militantes e, ao mesmo tempo, assegurar apoio político para governar. Como não pode atacar diretamente as instituições democráticas, se manifesta com frequência por pessoa interposta – como o fez através do Deputado Federal Daniel Silveira - atacando, através dela, instituições como o STF e pregando o retorno ao AI 5. Existe também crescente, embora dissimulada, presença de representantes do aparato de segurança pública e da Justiça em ações que reforçam as estratégias utilizadas por lideranças autoritárias do executivo federal.

Segundo Carvalho, “a mais comum é a intimidação, deturpando instrumentos legais, com objetivo de calar, destruir a imagem e desestabilizar emocionalmente aqueles que se manifestam contra as propostas e ações da atual administração” (CARVALHO, 2020). Foi o caso do mais importante influenciador digital do país, Filipe Neto, indiciado por um delegado por corrupção de menores, sob a alegação que divulgava material impróprio para esses menores. Mas também têm aumentado significativamente ameaças e ataques violentos e machistas, de procedência não assumida, claramente voltados contra integrantes do espectro político institucional mais à esquerda, ligados ao movimento LGBT, todas mulheres parlamentares filiadas ao PSOL. Acuada, uma delas afirmou que tem sido preciso se esconder no seu próprio gabinete e outra que se trata de crimes “transfóbico e político”.

No Brasil, a extrema direita não conta com milícias organizadas, como os fascistas, mas com milícias virtuais, verdadeiras falanges que atuam nas redes sociais através

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do marketing religioso e político, manipulando os desejos e as carências de incautos. Ela também não dispõe, como Goebbels, na Alemanha, da máquina estatal para divulgar inverdades. Mas utiliza o mesmo método do dirigente nazista e dos fascistas: a propagação massiva de mentiras. Esta, sob a forma de fake news, ocorreu em larga escala nas eleições presidenciais, com a difamação sistemática do candidato Fernando Haddad para, com sua repetição exaustiva, tentar fazê-las passar por verdadeira. A divulgação incessante dessas fake news é capitaneada por uma militância engajada e profissionalizada na fabricação de mentiras, que tem servido para difundir múltiplas expressões do negacionismo, legitimando um poder legalmente institucionalizado, porém destruidor, a partir da desinformação e do falseamento do real (SANTOS, 2019).

Umberto Eco ressalta um outro aspecto do proto-facista: ele é “um conservador dos valores tradicionais, do ideário militar e do machismo. Transfere sua vontade de poder para questões sexuais, o que implica desdém pelas mulheres e uma condenação intolerante a hábitos sexuais não conformistas, como a homossexualidade” (ECO, 1998, p.17). No caso brasileiro, a defesa dos valores tradicionais tem especial relevância, manifestando-se em ultra-conservadorismo caricato, como comprovam as inacreditáveis declarações do novo Presidente da Fundação de Artes – FUNARTE, Dante Mantovani. Para esse dirigente, terraplanista e aluno de Olavo de Carvalho: “O rock ativa a droga, que ativa o sexo, que ativa a indústria do aborto. Esta, por sua vez, alimenta uma coisa muito mais pesada que é o satanismo. O próprio John Lennon disse que fez um pacto com o diabo” (AZEVEDO, 20020).

A ideologia obscurantista dos bolsonaristas, se não considera, como os nazistas, uma determinada raça inferior, tem uma concepção que se aproxima desta. Com efeito, o jornalista de extrema direita Sérgio Nascimento de Camargo, Presidente da Fundação Palmares, destinada à promoção e ao resgate da cultura negra, considera que “a escravidão foi horrível, mas benéfica para os descendentes dos escravos”. Suas opiniões justificadoras do escravismo estão em consonância com as do “Príncipe”, o deputado federal Philippe de Orléans e Bragança (PSL-SP), de quem Bolsonaro confessa ser grande admirador. Esse deputado afirma que a “escra -

vidão faz parte da natureza humana”. Mas talvez a mais chocante dessas declarações tenha sido a de Victor Batista, coordenador de articulação às comunidades quilombolas. Ele usou as redes sociais para proferir a seguinte barbaridade: “o escravo brasileiro levava, nos meados do século XIX, vida quase de anjo, se compararmos a sua sorte com a dos operários ingleses do século XIX”. Há uma notória afinidade entre essas concepções e a dos donos de escravos, os quais, durante a campanha abolicionista, alegavam não sentir entusiasmo por ela porque sabia “o país sem preparo, sem meios de utilizar uma raça ignorante e eivada de princípios perniciosos” (BARBOSA, 1985, p.49). No Estado fascista não havia lugar para as liberdades individuais e para a livre expressão do pensamento. No Brasil elas continuam em vigor, mas os proto-fascistas tupiniquins estão em campanha permanente para liquidá-las. Ressalte-se, a esse respeito, a contribuição pessoal dada por Bolsonaro. Segundo a Federação Nacional dos Jornalistas (FENAJ), a sua ascensão à Presidência aumentou em cinqüenta em quatro por cento os ataques contra jornalistas e imprensa em geral, sendo mais da metade provenientes do atual presidente (FENAJ, 2020). Em 2020, o número de ataques foi 106% superior ao registrado em 2019, sendo que Bolsonaro foi mais uma vez o principal responsável (41%, dos casos). “Na Alemanha das décadas de “vinte e trinta do século XX, os nazistas chamavam a imprensa de Lugenpresse (imprensa mentirosa) e Hitler se referia aos políticos como ‘galinhas carcarejantes’. Qualquer semelhança com Trump e Bolsonaro não é mera coincidência”. A ideologia proto-fascista, no Brasil, não é associada, como no nazismo e no fascismo, a partido político, ou embasada em texto supostamente científico, como é o caso do nazismo, cuja Bíblia era Mein Kanft. Bolsonaro sequer é filiado a um partido. Seu traço característico é a colagem de idéias sem consistência teórica, mas com retórica, intimidadora ou sedutora, conforme o caso.

Nas palavras de Janio de Freitas: “O governo Bolsonaro não tem a direcioná-lo uma doutrina, nem de arremedo, que lhe dê fisionomia como razão de ser e propósito. O nível médio de ignorância entre os que o habitam não permitiria lidar com idéias, rasas que fossem, nem com noções de ordem cultural, simplista embora (FREITAS, 2019).

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No fascismo, sublinha Eco (1998, p. 18), “o irracionalismo depende também do culto da ação pela ação. A ação é boa em si. Portanto, deve ser realizada antes de e sem nenhuma reflexão”. Como dizia o próprio Mussolini: L’azione há seppellito la filosofia. “O fascismo adotou a solução de um pragmatismo radical, servindo-se de uma teoria que emasculava a teoria em geral” (KONDER, 1977, p.5 -7). No discurso ou na ação, para ele, interessam apenas os resultados. As declarações de Bolsonaro sobre o coronavírus, expressas em rede nacional de televisão, remetem às concepções acima referidas. Elas foram qualificadas de “estarrecedoras”, “desonestas” e “criminosas” pelas entidades mais representativas da área da saúde e pelas sociedades médicas, por minimizarem a importância desse vírus, ao qualificá-lo de “gripezinha”, desdenhando das medidas adotadas pelo Ministério da Saúde de seu próprio governo, como o isolamento social. Esse “pragmatismo radical” colidiu frontalmente com as evidências científicas que pautam a atuação da Organização Mundial de Sáude (OMS).

O Diretor da OMS Tedros Ghebreyesus, no mesmo dia dessa inacreditável declaração de Bolsonaro, qualificou o coronavírus de “inimigo da Humanidade”, deixando claro o radical descompasso das declarações do Presidente com as evidências científicas, unanimemente proclamadas pelos especialistas na matéria. Fiel ao seu negacionismo, mesmo com o Brasil ultrapassando a casa dos duzentos e cinquenta mil mortos pelo Covid-19, Bolsonaro diz que a pandemia “pode ter sido fabricada” (FOLHA Uol, 2021). Comporta-se, pois, o militar-presidente, como os fascistas, que extraem de seu fundamentalismo “um gozo sádico de mal estar entre as pessoas, semeando a confusão entre elas, fazendo da contradição e do paroxismo um empreendimento de efeitos hipnóticos” (LIMA, 2013). “O gozo perverso do negacionista”, enfatiza Bocayuva (2021), “alimenta a barbárie e intensifica a resistência ao registro do ódio crítico da ciência e da constituição de práticas republicanas”. Outra manifestação proto-fascista diz respeito à intolerância e à perseguição aos diferentes, aos seus modos de ser, agir e pensar. Os simpatizantes do fascismo desqualificam os que não se adequam a sua camisa-de-força ideológica. Afirmam que as universidades são “um ninho de comunis -

tas”, fonte de “balbúrdia”, incompetência e pouca produtividade. Com a proposta “Escola sem Partido”, pretendem incriminar os que se consideram de esquerda, estimular o denuncismo, utilizando práticas policialescas, como a gravação de aulas de professores tidos como “socialistas” e “partidários”. Essa hostilidade em relação ao mundo intelectual e à cultura “sempre foi sintoma de fascismo” (ECO, 2002, p.16). O bolsonarismo, na esteira de Hitler e de Mussolini, estimula o militarismo, disseminando as escolas militares, ou militarizadas, para, supostamente, melhorar a sua qualidade “garantindo que o professor possa exercer a sua autoridade na sala de aula” (EXAME, 2019). Jânio de Freitas lembra, a esse respeito, o papel decisivo que tiveram as escolas militares na Alemanha, ao longo dos anos trinta, para a infiltração do nazismo e do culto ao ditador (FREITAS, 2019). Em fevereiro de 2021, Bolsonaro editou quatro decretos, diminuindo o controle do Exército no acesso a armas de fogo e permitindo a certas categorias a compra de mais de uma arma de uso restrito, colocando ao alcance dos interessados um verdadeiro arsenal. Em carta aberta dirigida ao Supremo Tribunal Federal, o Ministro da Defesa e de Segurança Pública do governo de Michel Temer, Raul Jungmann, insuspeito de quaisquer simpatias para com a esquerda, produziu o mais forte libelo até agora dirigido contra os aspectos belicistas do bolsonarismo. Para Jungmann,“é inafastável a constatação de que o armamento da cidadania para a ‘defesa da liberdade’ evoca o terrível flagelo de guerra civil e de massacre de brasileiros por brasileiros, pois ainda não se vislumbra outra motivação para tão nefasto projeto”. E argumenta: “ao longo da história, o armamento da população serviu a interesses, golpes de Estado, massacre e eliminação de raças e etnias, separatismos, genocídios e de ovo da serpente do fascismo italiano e do nazismo alemão”.

Nesse mesmo diapasão, também preocupa a ideologização intensa da parte podre das polícias militares, a rebelião armada e quase assassina em quartéis e a pressão perigosa das tropas. Nesse contexto, apresentador muito popular da TV disse que “sonha que um general no Brasil diga a todos os ‘denunciados’ que eles têm 24 horas para deixar o pais ou serão fuzilados” (DEMORI, 2021). Os proto-fascistas são agenciadores

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de intrigas, de fofocas inventadas para prejudicar supostos adversários e desafetos. É precisamente o caso do demiurgo saído das urnas. Ele sempre pretendeu que a facada de que foi vítima teria sido resultante de um complot da esquerda, apesar do laudo pericial acatado pelo juiz que apreciou o caso atestar a insanidade do seu agressor. No caso dos nazistas, exemplo desse comportamento foi difusão de teoria fantasiosa, baseada em uma suposta conspiração mundial urdida por uma aliança entre os judeus, a finança internacional e a Rússia Soviética, destinada à destruição da Alemanha (INGRAO, 2019, p.182-185; EVANS,2018, p.267). A versão tupiniquim dessa teoria se traduz na extensão, pelo bolsonarismo, do conceito de “comunista” a quase todos os seus opositores que, supostamente, pretendem trocar o verde-amarelo da bandeira brasileira pela cor vermelha, com a colaboração da mídia. Não podemos deixar de sublinhar algo que nos parece essencial: os diferentes aspectos em que se manifesta a ideologia ultra-conservadora do governo Bolsonaro estão interligados. Estão subsumidos ao entendimento de que o Estado deve patrocinar uma revolução na área cultural, de modo a liberá-la da influência nefasta de um suposto “marxismo cultural”. Essa expressão tem significado semelhante ao de “bolchevismo cultural”, tendo sido cunhada por Hitler para designar a produção artística e cultural alemã, abominada pelos nazistas que a consideravam influenciada pelos comunistas (à época, chamados de bolcheviques) e pela “judiaria internacional”. Até a Teoria da Relatividade foi considerada mera “especulação judaica” (HOFER, s/d, p, 81-82). Em harmonia com essas concepções, o então Secretário Especial de Cultura do governo federal, Roberto Alvim, qualificou a cultura brasileira de “doente” e “degenerada”, praticamente reproduzindo, nas linhas abaixo, o discurso de Goebbels, nº 2 do regime nazista: “a arte brasileira da próxima década será heróica e será nacional, dotada de capacidade de envolvimento emocional e será também imperativa, posto que profundamente vinculada às aspirações de nosso povo”.

Posicionamento em consonância com o pedido do Presidente para que “faça uma cultura que não destrua, mas salve nossa juventude”. Essa “revolução cultural”, traduzindo uma política de Estado, resgataria,

“imperativamente” uma visão conservadora da família, do patriotismo e da religião, invocando a “profunda ligação de Deus” com esses supostos pilares da nacionalidade.

Trata-se, inequivocamente, de uma concepção totalitária, na qual – à diferença do nazi-facismo - o fundamentalismo cristão, sobretudo neo pentecostal, desempenha um papel essencial.

Marcelo Zero sintetiza o quadro comum que perpassam momentos históricos diferentes em sociedades distintas, como a Alemanha na época pré-hitleriana e o Brasil atual, sendo alguns de seus principais componentes : “A mobilização de milícias armadas; o recurso “goebeliano” às reiteradas e sistemáticas mentiras; a estratégia de enfrentamento permanente; a identificação de adversários como inimigos internos a serem eliminados; o moralismo conservador expresso na luta contra corruptos; o racismo; o darwinismo social; o culto à anti política e, sobretudo, a valorização da força como instrumento da ação política, e mesmo, da “jurídica” (2021).

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Rubens Pinto Lyra é Doutor em Ciência Política e Professor Emérito da UFPB.

Redes sociais como espaços relacionais na internet

Por Ana Célia de Sá | Coluna Comunicação na Web

As plataformas de redes sociais on-line são, por natureza, espaços relacionais. Elas estão baseadas nas conexões (interações e laços) entre os seus atores, formando uma estrutura social que coloca as relações no centro de sua existência. Em linhas gerais, essa caracterização também pode ser associada às redes sociais off-line, mas é na internet que elas ganham velocidade e amplitude jamais vistas, graças a fatores como a instantaneidade do tempo real, o espaço digital desterritorializado e os recursos que viabilizam conversações síncronas e assíncronas.

O entendimento sobre redes sociais evidencia a horizontalidade entre os participantes, o dinamismo das interações e a flexibilidade organizacional. “O conceito de rede social é focado na descrição e na compreensão das estruturas sociais. Trata-se de uma metáfora para observar essas estruturas, cujo foco principal está nos modos de conexão entre os atores sociais. Uma rede social, assim, é definida como um conjunto de atores (podendo ser percebidos como pessoas ou instituições) e suas conexões (frequentemen -

te apontadas como os laços sociais que unem os agrupamentos)” (RECUERO, 2014, p. 403).

Primo (2007) sublinha os aspectos humanos das redes sociais on-line perante a tecnologia pura e simples. Para ele, a rede social conectada se mantém viva por meio das interações entre os envolvidos, indo além da conexão de terminais. “Certamente, a Web 2.0 tem um aspecto tecnológico fundamental. Mas não se reduz a isso. De fato, as interações sociais são sensíveis a certos condicionamentos trazidos pelo aparato tecnológico em jogo. Porém, a dinâmica social não pode ser explicada pela mediação informática” (PRIMO, 2007, p. 7).

Percebe-se, assim, a necessidade de combinar a tecnologia e a atuação humana para possibilitar a formação de um verdadeiro ambiente comunicacional direcionado a uma estruturação social na internet. Isso afasta o determinismo tecnológico e põe o ser humano na liderança das transformações no contexto do ambiente digital, legitimando processos como a convergência midiática, a cultura da participação e o conheci -

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mento compartilhado.

As conexões entre atores da rede social servem às trocas de informação, opinião e conteúdo. Elas abarcam a interação, as relações e os laços sociais – a primeira funciona como matéria-prima dos demais e representa um processo comunicacional com reflexos entre os atores. Com suporte na reciprocidade, a interação gera as relações e ajuda a estabelecer os laços sociais. Na internet, o processo é mediado por computador, com uso de ferramentas habilitadas a proporcionar interações em tempo real ou em temporalidades diferentes (RECUERO, 2011).

Ao conectar atores no ciberespaço, a interação remete aos laços sociais, que podem ser fracos ou fortes, a depender do grau de intimidade, da durabilidade e da força; e simétricos ou assimétricos, de acordo com o nível de mutualidade. Para Recuero (2011), todos eles – inclusive os laços associativos, também identificados por estudiosos do assunto – derivam de situações relacionais, edificadas via comunicação mediada por computador, e é a observação sistemática das interações e das mensagens que permite identificar seus elementos e sua robustez, cada qual com seu papel na estruturação das redes.

Os sites de redes sociais geraram novas percepções e práticas sociais, modificando as conexões e os fluxos de informação. É o que explica Recuero (2014, p. 409): “[...] esses sites não apenas permitiram a representação individualizada dos atores, mas também a publicização de suas conexões. Assim, constituíram-se em suportes das redes, passando por apropriações sociais e emergentes, gerando novas práticas sociais com impacto na interconexão entre os indivíduos e no capital social construído. Esses sites, portanto, não apenas publicam redes, mas as modificam. E, modificando suas conexões, alteram também os fluxos de informação, gerando impactos nos processos comunicativos”.

As mudanças nos fluxos informativos podem ser observadas na difusão do produto midiático. No ambiente multidirecional da internet, em particular das plataformas de redes sociais, o jornalismo deixa de ser o único emissor de conteúdo, embora ainda concentre um grande número de conexões e, com isso, tenha exposição privilegiada junto aos usuários. De qualquer maneira, pode-se afirmar que houve uma quebra do padrão de distribuição unidirecional característico da mídia tradicional, reposicionando o papel do público, tornado mais ativo no processo de construção e fruição da notícia.

Esse cenário digital contribui para driblar os fluxos de conteúdo da mídia corporativa, esti -

mular os processos interativos e participativos entre jornalismo e público, oxigenar a produção noticiosa e fortalecer as redes informativas. Mesmo que não se configure de forma plena, essa atualização pode promover um despertar da consciência pública em prol de relações comunicacionais mais transparentes e polifônicas.

REFERÊNCIAS:

PRIMO, Alex. O aspecto relacional das interações na Web 2.0. E-Compós, Brasília, v. 9, p. 1-21, 2007. Disponível em: <http://www.e-compos.org.br/e-compos/article/view/153>. Acesso em: 13 ago. 2018.

RECUERO, Raquel. Redes Sociais na Internet. 2. ed. Porto Alegre: Sulina, 2011. (Coleção Cibercultura)

________________. Redes Sociais. In: CITELLI, Adilson et al. (Orgs.). Dicionário de Comunicação: escolas, teorias e autores. São Paulo: Contexto, 2014.

Ana Célia de Sá é jornalista e doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco (PPGCOM-UFPE).

Ana Célia de Sá é jornalista e doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco (PPGCOM-UFPE).

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As Mídias, as Representações e a Realidade

Os meios de comunicação são “instituições” que não podem ser ignoradas quando se trata de construções sociais. E, ao falarmos em construir a realidade, o jornalismo e, mais recente, as redes sociais têm papel importante nesse processo, pois desempenham a função de tornar público temas sobre os quais os atores sociais deliberam, decidindo questões políticas, econômicas, sociais etc.

Sabe-se que parte dessa realidade mediada e articulada pelas mídias é publicizada e interpretada pelo público num processo contínuo de enquadramentos (framing) do mundo, que se torna mais abrangente e distante à medida que se afasta das interações face a face, como é o caso das transmissões broadcast (Macquail, 2003) e das redes sociais.

Por isso, resgatamos, nas teorias da comunicação, as hipóteses do framing, que descortinam e elucidam a relação entre a informação, o público e as mídias, numa articulação importante entre as instâncias de emissão e recepção de informações. Esses processos, juntos, interferem na construção social da realidade, que se mostra distópica neste início de século XXI.

Segundo Serge Moscovici (2007), psicólogo social precursor da Teoria da Representação Social, as informações que circulam nos meios de comunicação entram para o mundo comum e cotidiano em que as pessoas habitam e discutem com amigos, colegas e familiares, conectadas em redes e retornando ao campo da comunicação num interminável sistema de representações sustentadas pelos próprios meios.

Certamente que as representações adquiridas por uma pessoa não se definem apenas pelos conteúdos das informações “selecionadas” pelo campo do Jornalismo, ou mesmo das redes sociais. A teoria defende que a base das representações sociais também é constituída por dois subsistemas cognitivos presentes nos indivíduos, denominados de sistema “central” e “periférico”. Esses subsistemas têm papel importante na reverberação, ou não, do que os meios de comunicação informam. Isso porque as relações que os sujeitos vão ter, ao longo da vida, com outras instituições e pessoas compõem a sua representação “final”.

Vamos destacar, neste artigo, a apropriação que o público faz das mensagens veiculadas pelas mídias, seja através dos enquadramentos jornalísticos ou das redes sociais, e centramos a análise a partir do ponto de vista da Teoria das Representações Sociais, que, segundo Moscovici (2007), é uma preparação para ação do sujeito no mundo, não somente à medida que guia o comportamento, mas,

sobretudo, porque remodela e reconstitui os elementos do meio onde esse comportamento deve acontecer.

É através da representação social que se consegue dar sentido aos enquadramentos informativos, por exemplo, e integrá-los numa rede de relações ligada a seu objeto. Para entender melhor, são pontos de balizamento: fornecem uma perspectiva a partir da qual um indivíduo ou grupo observa e interpreta os acontecimentos, as situações, os enquadramentos das mídias e fornecem pontos de referência para uma pessoa se comunicar com outra, permitindo-lhe situar-se e situar seu mundo.

As mídias influenciam as representações sociais?

As mídias se tornaram imprescindíveis para a apropriação das representações sociais na contemporaneidade e, mesmo que façam suas próprias regras e práticas, dependem da sociedade para existir (MACQUAIL, 2003). Por essa relação de interdependência e importância na construção das sociedades, muitas têm sido as investigações sobre as informações produzidas e disseminadas nas diversas mídias. Os pesquisadores em comunicação já se debruçaram, por exemplo, sobre os temas “efeitos de media”, “agendamento” e “enquadramento” de forma bastante minuciosa e identificaram como essas comunicações afetam o público (SCHEUFELE, 1999). O intuito era saber como os públicos apreendem essas informações e a influência que elas deixam para as representações sociais.

Muitas dessas pesquisas tratam de como as informações são disponibilizadas pelas mídias através de diversos mecanismos de filtragem, e um deles muito usado no jornalismo é o enquadramento da notícia (“pesquisas de media framing”). Os enquadramentos são fragmentados e geralmente mostrados por tópicos e temas. O resultado é que se espera um acúmulo de informação por parte do público na forma de recortes, e que estes sejam empregados na tomada de decisões. Assim, algumas definições de framing enfatizam caminhos pelos quais esses “quadros” organizam matérias, informações e discursos, geralmente através de padrões de seleção, ênfase, interpretação e exclusão. Seguindo este parâmetro, Scheufele e Tewksbury (2007) afirmam que um efeito de framing ocorre quando o público presta substancial atenção a determinadas notícias, em detrimento de outras. É o caso, por exemplo, das polêmicas das vacinas no Brasil de 2020, criada artificialmente pelo governo Bolsonaro. Esse tema inunda, em determinado momento, as mídias e redes sociais, em detrimento de qualquer outra informação, seja ela importante ou não.

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Já Entmann (1993) define framing como um processo de seleção de alguns elementos da realidade percebida, em seguida reunidos para se criar uma narrativa que destaca certas conexões entre esses elementos, de forma a promover uma interpretação particular. O framing molda e transforma as interpretações e preferências do público introduzindo ou incrementando a relevância ou a aparente importância de certas ideias já presentes no público (GOFFMAN, 1974). No caso das vacinas, por sua relevância histórica para as questões sanitárias de um país, esse tema já tem, no público, valores e ideias conjugadas e desencadeia a representação social baseada nos enquadramentos atuais a partir das informações disponíveis ao público. Mas, mesmo que a ideia de enquadramento seja atrativa, não é tão fácil de se entender como atua enquanto processo de efeito.

As formas como os jornalistas enquadram uma notícia e como o público as enquadram podem não coincidir, isso porque existem quatro processos de framing inter-relacionados que envolvem os atores. Um diz respeito à construção e ao uso dos enquadramentos midiáticos por quem trabalha nas organizações jornalísticas e que lidam constantemente com fontes, valores-notícias e ângulos noticiosos no reportar dos acontecimentos.

Num segundo processo, existe a transmissão de informações apresentadas para o público por meio de “quadros”, que comunicam superficialmente, por exemplo, o que seja vacina. Em terceiro, existe a aceitação de certos enquadramentos por parte do público, oriundos de redes sociais, com consequências para suas atitudes, seus pontos de vista e seu comportamento; a exemplo da negação da eficácia da vacina e seu suposto poder contaminante. O quarto processo se dá onde as percepções das mídias e as respostas do público podem reforçar as tendências, positivas ou negativas, e levar à transmissão repetitiva do mesmo tipo de conteúdo (MCQUAIL, 2003).

Ora, mas o que determina a preferência do público por um enquadramento em detrimento de outro? O típico estudo de efeitos de framing é um experimento que emprega um desenho em que os indivíduos são escolhidos aleatoriamente para receber uma de duas ou mais alternativas de representação de um problema. Vejamos a pesquisa de James Druckman (2001), da Universidade de Minnesota, que estudou pessoas expostas a dois enquadramentos noticiosos sobre a Ku Klux Klan. Um enquadramento era para tratar da aceitação dos pesquisados (estudantes universitários) de que a Ku Klux Klan realizasse comícios em praça pública, a partir da premissa de que eles têm o direito ao livre discurso, e o outro enquadramento abordava se tal ato não afetaria a segurança pública. A questão central tratada na pesquisa foi entender se, para os inquiridos, a aceitação de que o grupo realize comício em praça pública é uma questão de liberdade de expressão ou uma ameaça à segurança pública, e a comparação relevante se há diferença de opinião dos indivíduos nas duas questões (DRUCKMAN, 2001).

Como resultado, ficou claro que o público foi “manipulado” a ser favorável ao que o pesquisador chamou de framing da elite, pois os pesquisados “aceitaram” os enquadramentos dados pela opinião expressa pelas elites acerca do tema. Uma segunda constatação da pesquisa demonstrou que os efeitos dos quadros midiáticos, por seu turno, são limitados, pois, segundo Druckman (2001), os resultados indicaram que os pesquisados primeiro “delegaram credibilidade” à elite para que esta pudesse guiá-los na escolha da tomada de decisão sobre as questões postas no caso da Ku Klux Kan.

Então, se o tema vacina pode ser representado através dos meios de comunicação em vários enquadramentos, sendo um deles o movimento antivacina, é necessário um trabalho mais elaborado para desenvolver a credibilidade das vacinas e, assim, poder estabelecer uma representação positiva para a questão. O fato é que os seres humanos se relacionam dupla¬mente com o mundo: pela experiência dire¬ta dos acontecimentos, ou seja, pela observação da realidade, e, simultaneamente, pela sua representação (SOARES, 2007).

O interessante é que nem sempre os modelos de representações impostos pelas mídias são as mesmas representações do público. Stuart Hall (2006) descreve três possibilidades de recepção que se alinham ao conjunto de atitudes e crenças dos indivíduos sobre assuntos veiculados pelas mídias: resistir, aceitar ou negociar conteúdos e significados. Assim, ao partilhar o mundo com os outros, as representações servem de apoio para a sua compreensão, administração ou enfrentamento.

Luciana Gomes Ferreira é Doutora em Ciências da Comunicação pela Faculdade de Artes e Letras da Universidade da Beira Interior (Portugal).

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As armadilhas do deslumbramento digital

É habitual comparar o atual processo de digitalização com a invenção da imprensa. Foi a invenção da imprensa que permitiu a divulgação da cultura religiosa e erudita em larga escala, e o consequente aprendizado da leitura que haveria de ter uma influência determinante no processo que culminaria com a declaração dos direitos do homem e do cidadão de 1789, um dos fundamentos maiores da democracia. Por mais tosca que possa ser a invenção da Imprensa, comparada com a sofisticação do Informática, elas partilham algumas características fundamentais: ambas são invenções tecnológicas que põem à disposição trechos substanciais dos tesouros do conhecimento humano. Nisso são certamente fenômenos comparáveis. Porém um aspecto as distingue: enquanto a imprensa é algo compreensível por qualquer mortal, a digitalização aparece como uma vertente da ciência e da tecnologia atuais que exige um longo processo de aprendizado aos seus criadores, e mesmo a alguns de seus usuários, ou seja um alto capital prévio de conhecimentos, e disponibilidade financeira. Ao invés de unir, a digitalização introduz desigualdade na sociedade tal com ela é.

Por outro lado, se a “mundialização” relativa da imprensa a manteve de certa forma dentro dos quadros preexistentes, dando azo a uma “mundialização” incipiente, (daí aspectos como a censura que a travaram em muitos pontos do globo – por exemplo no Brasil, onde a coroa portuguesa a interditou, ou na Índia onde a escrita era considerada uma “excrecência” da sabedoria, baseada na oralidade e memória), a digitalização de agora conhece menos fronteiras geográficas, ou sociais. Digitalização e mundialização parecem hoje dois processos inseparáveis.

O processo de digitalização começou nas forças armadas durante a Segunda Guerra mundial, e depois nas grandes empresas, onde nos anos 60 se aplicava sobretudo ao cálculo dos salários e prestações sociais. Daí foi se espalhando para outras áreas como a das finanças, e nos processos industriais, com bons e maus resultados. Bons quando facilitavam operações complexas e demoradas, maus quando eram usados com o mero intuito de favorecer a especulação. A in -

fluência da velocidade proporcionada pela informática nas operações financeiras foi importante na especulação que envolveu a crise financeira de 2008. Mas não podemos esquecer por outro lado que com a sua qualidade de linguagem universal a digitalização torna possível fazer conversar máquinas em pontos distantes do globo, com aplicações de grande mérito em áreas como a medicina.

O grande incremento e popularidade da informática chegou com os PC (Personal Computer), a internet e as redes sociais: com estas inovações não eram mais máquinas que conversavam, mas pessoas. Não vamos entrar na discussão das vantagens e desvantagens dos hábitos criados pelas redes sociais. Trata-se hoje de um fenômeno de tal modo onipresente que criticá-lo equivale a condenar o ar que respiramos, pelo menos quando se trata de comunicações interpessoais. Digamos apenas que vários indícios apontam para que, de uma cultura da palavra escrita e da leitura, estaríamos passando a uma cultura do oral e do visual.

Mas o caso é diferente quando se trata de comunicações onde numa ponta temos uma corporação e na outra um indivíduo. Isso já acontecia com a publicidade, hoje porém existe a possibilidade de não mais se dirigir a um indivíduo genérico, definível grosseiramente pelo tipo de publicação que comprava, mas a indivíduos específicos, de que se conhecem muitos traços definidores, desde os seus gostos e aspirações (pelos sites e serviços na internet que visita), aos lugares que frequenta (através dos celulares), à suas operações financeiras (pelo menos em parte pelos pagamentos que faz pela internet), às doenças de que padece (através dos resultados das análises de sangue que recebe por email) e, com o reconhecimento facial, conhecer até as suas origens.

As consequências deste estado de coisas são sabidas: promoção comercial agressiva e constante difusão de “fake news”. Do ponto de vista político, as implicações destes sistemas são graves. Habituado a opinar através das redes sociais sobre qualquer assunto, o indivíduo desvaloriza o sistema representativo em que se baseia a de -

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mocracia que temos - que implica em delegar em alguém os direitos cívicos. Por outro lado, como se viu no caso do Brexit (e também nas últimas eleições presidenciais americanas e brasileiras), esses recursos permitem endereçar mensagens específicas a públicos determinados, muitas vezes contendo mentiras, ou meias verdades exacerbadas, que, ao invés de contribuírem para uma discussão pública responsável sobre os assuntos em apreço, acirram as divergências e criam hostilidade entre os cidadãos. Diante destes problemas os Estados tendem a entregar cibersegurança a organizações para-militares que tentam bloquear as agressões vindas do exterior numa lógica bélica de Estado contra Estado.

Recentemente dois hospitais públicos franceses (Dax e Villefranche-sur-Saône) tiveram seus sistemas bloqueados, e pirateados os dados de seus pacientes. Segundo as informações do jornal Le Monde, o ataque teria vindo de hackers baseados em países do leste europeu, que pediriam avultadas quantias ao governo francês para devolverem ou desbloquearem os sistemas desses hospitais. A política do governo francês consiste em não pagar o resgate pedido, mas muitos particulares, diante do mesmo problema, acabam pagando. Alguns dias depois se soube que cada dossiê de paciente (contendo toda a espécie de dados pessoais e não apenas médicos: financeiros, seguros, telefones, endereços etc.) estava à venda por 2.000 euros cada. E que, em consequência, o real objetivo dos hackers não era negociar com o Estado, mas responder à demanda interna, francesa, de empresas atuando no negócio de compra e venda de bases de dados.

Por coincidência esse caso coincidiu com a disputa entre o Facebook e a imprensa australiana, que exigia pagamento pelo uso das informações que esse serviço veicula gratuitamente entre os seus clientes. Não chegando a acordo, o Facebook simplesmente tirou do ar o elo com os jornais e outras instituições, algumas delas públicas, na Austrália. Pergunta-se: existe uma real diferença entre a retenção de dados por parte de hackers europeus, ou de nerds americanos? Claro que num caso os dados são cedidos voluntariamente, enquanto no outro são subtraídos ilegalmente. Mas a retenção de dados é a mesma, o abuso de poder é o mesmo, os inimigos não estão apenas no exterior, mas no interior, “com loja na rua”. Este é apenas um exemplo dos problemas que têm de ser enfrentados com uma visão clara e não com as ideias da guerra fria.

Uma das diretivas aprovadas pela União Europeia para a reconstrução pós-pandemia na UE é precisamente o investimento na digitalização

nos 27 países que a compõem. Com efeito, é de opinião geral que, diante de fenômenos como a pandemia, a digitalização é indispensável, sobretudo nas finanças, na saúde e na educação. Só através da digitalização, com boa parte dos trabalhadores confinados, é que empresas, hospitais e escolas poderiam continuar fornecendo os seus serviços.

Ainda há pouco tempo era lei entre educadores que a presença horas a fio dos jovens diante de computadores, era nociva. Hoje isso é considerado indispensável. Não esqueçamos, porém, que a transmissão do conhecimento é apenas uma das funções da escola, porventura não a mais importante, e que já está sendo suprida em parte pela internet, sem intervenção das escolas. Contudo, a função socializante das escolas, sobretudo em países onde o ensino é majoritariamante público, é algo que a internet não pode suprir. Muito pelo contrário, todo o desenvolvimento da internet tem consistido na individualização, não na socialização, não no fortalecimento daquilo que é comum a todos os membros da sociedade.

Não há progresso técnico que não provoque problemas e oposição. No entanto, pressupõe-se que esse progresso não subsistiria, se o balanço final não fosse positivo, descontando o deslumbramento que uma nova tecnologia sempre suscita. Hoje convém olhar essa ideia com cuidado, compará-la com a questão climática que nos leva a concluir que a técnica, fruto do progresso, também pode se voltar contra o homem. Até que este dê mostras de poder reverter os seus inconvenientes, e voltar a ser não o objeto, mas o sujeito do seu destino.

Pedro de Souza é editor, pesquisador e ex-superintendente executivo do Centro Internacional Celso Furtado de Políticas para o Desenvolvimento.

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A Teleducação e o Projeto Saúde Indígena do NTES/IMIP

A partir de uma parceria firmada entre o Instituto de Medicina Integral Prof. Fernando Figueira (IMIP) e o Ministério da Saúde, em 2011, foi iniciado um programa voltado às comunidades indígenas do nordeste do Brasil, situadas nos estados de Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte, Maranhão, Bahia, Ceará, Alagoas e Sergipe. Para atender a essas comunidades, são treinados aproximadamente 2 mil profissionais de saúde que lidam diariamente com as diversidades do contexto indígena, uma população de quase 135 mil índios de etnias distintas.

O Núcleo de Telessaúde do Instituto de Medicina Integral Prof. Fernando Figueira (NTES/IMIP), instituído em 2010, é integrante da Rede Universitária de Telemedicina (RUTE/RNP/MCTic) e faz parte do Programa Nacional de Telessaúde Brasil Redes do Ministério da Saúde como Núcleo Regional de Telessaúde Indígena. O NTES tem como prioridade desenvolver ações que atendam à Teleassistência, Teleconsulta e Teleducação, promovendo o atendimento, a consultoria e a qualificação profissional dos que trabalham na saúde indígena. Em 2013, firmou-se uma parceria entre o IMIP e o Ministério da Saúde, por intermédio do NTES, para apoiar a qualificação das Equipes Multidisciplinares de Saúde Indígena que trabalham nas comunidades indígenas da região Nordeste do Brasil, através do Programa Telessaúde Brasil Redes. O Projeto Saúde Indígena, atualmente na etapa de expansão, tem o objetivo contribuir para a melhor qualificação das equipes de saúde que atuam nas comunidades indígenas da região nordeste do Brasil, no contexto da teleducação, planejando, desenvolvendo e ofertando cursos de qualificação a distância – síncronos e assíncronos - a partir da demanda das equipes de saúde indígena.

Os Cursos em Ead do NTES/IMIP atuam na perspectiva de mediar a prática profissional daqueles que trabalham na ponta, muitas vezes aldeados, com o que há de mais recente na literatura, contribuindo efetivamente com sua qualificação e, consequentemente, com o melhor atendimento. Os módulos educacionais na modalidade à distância são planejados para que, através da utilização das Tecnologias da Informação e Comunicação (TICs), colaborem com a formação desses profissionais.

No seu formato mais simples é conhecida desde o século XIX, mas somente nas últimas décadas adquiriu importância que a coloca no alto das atenções pedagó-

gicas. Na sua evolução, podemos ir muito atrás, na história na Grécia antiga, onde alguns autores supõem que a troca de correspondências entre os cavaleiros configurava-se nos primeiros passos da EaD. Ou até mesmo no século I, Paulo, o apóstolo de Cristo, teria sido o primeiro “tutor” da educação a distância (GOMES, 2016). Na metade do século 19, nos processos de educação por correspondência, a tecnologia utilizada era os correios. Nos últimos anos, com a evolução da tecnologia e o advento da internet, sobretudo a partir da implantação do protocolo www (world wide web), os processos online foram alavancados à estratosfera. A educação a distância online vem se firmando como uma estratégia de ensino que objetiva atender a um público diversificado, desconstruindo tempo e espaço. No cenário atual global, com a pandemia da Covid 19, se estabeleceu não somente como modalidade possível de dar continuidade aos processos de aprendizagem, mas, especialmente, instituiu-se como única ferramenta facilitadora à educação, em razão da sua capacidade de interação, facilitando e viabilizando os processos de aprendizagem no contexto atual de distanciamento imposto pela pandemia do corona vírus.

São inúmeros os desafios subjacentes aos processos de construção do conhecimento, no cenário de imperativo tecnológico, de avalanches informacionais. Faz-se urgente querer buscar o sentido, o significado e a relevância da informação e suas inúmeras possibilidades de ser transformada em conhecimento. A rapidez com que as informações se tornam obsoletas traz a reflexão sobre a relação de significados entre informação e conhecimento, fazendo emergir o pensamento de que informação não é sinônimo de conhecimento. A construção do conhecimento é um processo complexo desenvolvido na mente dos sujeitos a partir da seleção, armazenamento, assimilação e, sobretudo, do sentido que se atribui à informação, para que os sujeitos, em um processo ativo, possam transformar a informação em conhecimento. No que tange à aprendizagem, de acordo com Freire (2000, p. 40), “não é possível ser gente senão por meio de práticas educativas. Esse processo de formação perdura ao longo da vida toda, o homem não para de educar-se, sua formação é permanente e se funda na dialética entre teoria e prática”. Aprender deve ser um processo sem interrupção, contínuo, contextualizado, movido pela curiosidade epistêmica, embasado no esforço compartilhado. Com as tecnologias digitais cada vez mais presentes em todos os segmentos da sociedade, não poderia ser di-

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ferente nos contextos educacionais. A tecnologia quando utilizada de forma pedagógica aprofundada, estruturada a partir de fundamentos epistêmicos que confirmem o pensamento de educação como prática de liberdade, e não somente instrumento para o mercado, pode expandir as possibilidades de construção de conhecimento dos sujeitos através da oferta de um material didático interativo e contextualizado disponibilizado nos ambientes virtuais de aprendizagem (AVA). Estes materiais são ofertados para despertar novos desafios e alternativas nos processos formativos e de capacitação, que, diante deste cenário de atrativos tecnológicos, fazem com que tais estratégias transcendam a aprendizagem e sedimentem o processo de educar, desfocando a estratégia da Educação a Distância do seu perfil neoliberal para que, através de novas dimensões e significados, seja compreendida não como uma modalidade, mas como um processo de educação que pode ter muito a contribuir com o enriquecimento e a melhoria da educação na sua integralidade e amplitude, uma vez que, na incompletude dos processos, “pode-se continuar a aprender até o fim da vida sem, no entanto, jamais se educar” (ARENDT, 1972. p.37).

Neste sentido de entender educação como processo inacabado e em permanente construção, a Teleducação do NTES/IMIP desenvolve cursos que colaboram na qualificação e atualização profissional, utilizando a modalidade à distância de acordo com os princípios da educação permanente numa perspectiva dialógica, na execução de “ações de saúde em rede para o aperfeiçoamento de recursos humanos para atuação em contextos interculturais” (IMIP/Nucleoead, s/d).

A estratégia de construção da teleducação está fundamentada no enfoque pedagógico dos cursos, com a elaboração de material instrucional de e-learning em ambiente virtual. Como os cursos da teleducação são voltados para capacitar profissionais que trabalham na ponta; precisam capacitar o profissional a otimizar o atendimento através da perspectiva da educação emancipatória. A proposta de cursos em EaD exige inovação em abordagens pedagógicas e a incorporação de práticas mais ativas, em ambientes virtuais de aprendizagem (AVA) mais informais, e a participação intensa do aluno. Mesmo nos processos à distância, com atores separados fisicamente (espaço e tempo), espera-se que haja interação, não somente pela utilização das tecnologias de informação e comunicação (TIC’s), mas, sobretudo, pela oferta do material didático planejado para facilitar a aprendizagem autônoma, como elemento mediador no processo de construção de conhecimento.

A Teleducação do NTES, com foco no Projeto Saúde Indígena, estruturou os seguintes cursos para atender a demanda dos profissionais de saúde: Curso Introdutório à Antropologia Indígena do Nordeste; Curso Cuidado Integral à Gestante e ao Recém-Nascido Indígena; Curso Dermatologia Pediátrica; Curso Doenças Exantemá-

ticas na Infância. A produção de cursos para o Projeto Saúde Indígena envolve as desafiadoras etapas de estudo do público-alvo, formatação, transposição da riqueza do conteúdo contextualizado ao ambiente virtual, a formação dos autores na linguagem EAD e a definição de estratégias para implantação de sistemas de educação permanente à distância. Assim, a EaD é concebida como capaz de desenvolver processos formativos para profissionais do SUS e incrementar a Rede de Atenção Básica de Saúde.

No caso do Saúde Indígena estes desafios revestem-se de um caráter especial, pois lidar com realidades distintas e contextos diferenciados de crenças e outras condutas é o elemento mais complexo. Como ofertar uma medicina de qualidade sem extrapolar ou invadir crenças? Como lidar com os limites tênues no cuidado? Todos estes elementos constituem a riqueza do universo da estruturação e desenvolvimento dos Cursos da Teleducação do Projeto Saúde Indígena, com o compromisso de pensar conteúdos e objetos de aprendizagem como elementos de interação e dialogicidade.

Neste sentido, entendemos com Serra (2003, p. 251) que, numa sociedade em que é agravada a desproporção entre o conhecimento sempre limitado de cada indivíduo e a informação praticamente ilimitada posta a sua disposição, “um dos principais problemas que se coloca é, sem dúvida, a transformação da informação em conhecimento, a partir da seleção da informação relevante”. Sabemos que o volume de informações proporcionado pela web é inimaginável, porém, não é possível ninguém saber tudo, sobre tudo. A habilidade em selecionar a informação cresce no sentido inverso ao da sua explosão. A equidade de acesso à informação não determina a mesma igualdade na sua utilização. Quanto maior o número de informações, maior será a necessidade de mediadores que as selecionem, as organizem, as filtrem.

Assim, a Teleducação, através de cursos para atender a demanda dos profissionais de saúde, contribui com a capacitação profissional e o melhoramento do SUS, beneficiando milhares de usuários com um atendimento de qualidade na Atenção Básica. Podemos pressupor que, no sentido mais amplo, as iniciativas educacionais da Teleducação são voltadas à construção de um processo complexo, envolvendo múltiplos saberes voltados para a formação dos sujeitos através de processo de educação permanente que repercuta e possibilite melhoria na qualidade de vida da população.

Maria Cecília M M da Rocha é Mestre em Educação Matemática e Tecnológica pela Universidade Federal de Pernambuco e Doutora em Educação pela Universidade da Beira Interior (Portugal).

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Escritores nordestinos: desafios do mercado de livro-reportagem

O universo do livro-reportagem não se finda quando o repórter-escritor conclui a sua obra, mas pelo contrário, neste momento é que surgem os maiores desafios: a publicação e, por consequência, a divulgação da obra, o lançamento, o sustento do escritor e a própria inserção no mercado editorial. Em mais uma coluna especial, divulgamos os resultados finais da pesquisa “Jornalistas escritores do Nordeste”, desenvolvida pelo Grupo de Pesquisa Jornalismo de Fôlego, do curso de Jornalismo da UFMA de Imperatriz. Desta vez, o foco é o universo das editoras e as formas de divulgação, que contempla o espaço no qual os escritores de livros-reportagem nordestinos entrevistados argumentam sobre as suas angústias e dificuldades de encarar um mercado editorial brasileiro que sofre com um número baixo de vendas e com o fechamento de grandes e pequenas livrarias. Um dos escritores entrevistados, Bruno Araújo, do Rio Grande do Norte, e autor da biografia de um jogador de futebol, Moura, o príncipe negro, afirmou que tem a impressão de que

mais livros estão sendo publicados, porém, alega não perceber as pessoas lendo. Por isso, acrescenta: “A gente se vê publicando para um nicho específico, e isso é ruim. Porque livro é caro. Eu acho que um dos grandes problemas do acesso à literatura é porque o livro é caro. A gente sabe que a maior parte da população não tem como pagar pelo básico.” Foi perceptível, de acordo com as entrevistas, que o mercado editorial nordestino funciona um pouco diferente do sul do país, onde estão concentradas as grandes editoras. Ao invés de ser uma publicação tradicional, em que todo o trato do livro (edição, correção, publicação e divulgação) fica a cargo das editoras, no Nordeste a autopublicação ganha força, como relata a jornalista e escritora pernambucana Jaqueline Fraga, autora do livro Negra Sou- a ascensão da mulher negra no mercado de trabalho: “Custeei a edição do livro, mas depois que eu recebo a edição desses livros, aí são meus. Porque como a gente tá num processo comum em que a editora é grande responsável pela edição do livro, por todo processo, ela fica com boa parte do valor de venda dos livros também.” Ou seja, além do autor pagar por todo o serviço, por vezes, a editora ainda fica com alguma porcentagem das vendas.

“Se você passa pelo crivo, a editora publica o seu livro”

O jornalista e escritor alagoano Jorge Oliveira, autor de Curral da Morte (2010), explica melhor como se dá a relação com as editoras. “O escritor submete o tema à editora e elas têm um conselho editorial. Ou seja, todos passam a ler o livro para ver se é viável no quesito econômico, se é uma boa história e se ela é bem contada. Se você passa por esse crivo, a editora publica o seu livro.” Sergio Maggio, jornalista e escritor baiano, foi um dos poucos entrevistados que contou com um apoio total de sua editora, sendo que o seu livro, Conversas de Cafetinas (2009), recebeu o prêmio Jabuti. “A divulgação ficou toda em cima da editora. A editora tem toda uma estrutura de divulgação, você realmente não entra nesse lugar nem na divulgação e nem dos lançamentos. Eu lancei em diversas capitais, tudo planejado, divulgado pela editora.” Para ele, esse foi um dos motivos para o grande sucesso da obra. Já o jornalista escritor maranhense Elbio Carvalho, autor de Centro de Lançamento de Alcântara-Tecnologia Der-

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retida, apontou um dos contrapontos mais comuns nas publicações: “A maioria dos autores do Maranhão são publicações independentes, porque nós não temos um Paulo Coelho no Maranhão. Não é menosprezando os escritores maranhenses. É que eixo mais forte é o Rio/São Paulo e lá é que estão as editoras. O mercado, de fato, funciona lá.”

“Sabemos que aqui no Brasil é muito complicado patrocínio para a questão cultural”

Persiste uma certa resistência com autores que ainda não são conhecidos. Um reflexo disso é a quantidade imensa de literatura estrangeira preenchendo as estantes nas livrarias, fato que limita as oportunidades, como relata a jornalista e escritora cearense Maggie Paiva, autora de Perpétua: “Sendo uma escritora desconhecida, não tem muitas editoras no Brasil dispostas a publicar um autor desconhecido, muito menos livro-reportagem.” Outro aspecto a ser observado é que nenhum dos autores entrevistados afirma que consegue se sustentar financeiramente apenas com o livro-reportagem, sempre mantendo a produção dessas obras como prática secundária. Alguns dos livros foram produtos experimentais para a concluir a graduação, ou nasceram a partir da prática jornalística, porém, todos os entrevistados afirmam que não vivem exclusivamente da rentabilidade de suas obras. O autor baiano Joaldo Cavalcante, que escreveu 17 de julho - a gameleira, as lembranças e a história decidida à bala, assevera que nenhuma de suas publicações foi o suficiente para seu sustento financeiro, comprovando, assim, a dificuldade do repórter-escritor de se manter no mercado editorial, publicando ainda mais livros, visto que a produção, além de demorada, é cara. A realidade, é claro, muda no caso de cada escritor. Nelson Melo, do Maranhão, custeou toda a produção dos seus dois livros, Guerra urbana – O homem vida loka e Guerra Urbana - Morrendo pela vida loka e assevera: “Sabemos que aqui no Brasil é muito complicado patrocínio para a questão cultural”. Por conta dessas dificuldades financeiras, a única forma viável é tentar se destacar no mercado, seja com o texto ou com o projeto gráfico. A escritora da biografia do cantor e compositor João do Vale, Andrea Oliveira, também do Maranhão, vê a crise como algo inevitável, que vem se estendendo desde 2018. Porém ela acredita, de forma otimista, que “sempre vai ter leitor para boas histórias. [...] O livro é um produto, não dá pra gente sair disso, então, não é só você ter um bom texto, uma boa história, você precisa de uma capa, não é qualquer capa.”

REFERÊNCIAS:

ARAÚJO, Bruno. João Marcos dos Santos Silva. João Lisboa: entrevista via Google Meet. [08/07/2020] 1 arquivo. Mp3 (45min)

CARVALHO, Elbio. Entrevistador: João Marcos dos Santos Silva.João Lisboa: entrevista via WhatsApp Video Chamada. [19/05/2020] 1 arquivo. Mp3 (1h29min)

CAVALCANTE, Joaldo. Entrevistador: Ana Carolina Campos Sales. Imperatriz: entrevista por e-mail [10/09/2019]. 1 arquivo .doc.

FRAGA, Jaqueline. Entrevistador: Viviane Reis Silva. Imperatriz: entrevista por WhatsApp. [08/02/2020]. 1 arquivo .doc.

MAGGIO, Sérgio. Entrevistador: Viviane Reis Silva. Imperatriz: entrevista por WhatsApp Áudio. [08/02/2020]. 1 arquivo .mp3. (12min57s).

MELO, Nelson. Entrevistador: João Marcos dos Santos Silva. João Lisboa: entrevista por Whatsapp chamada de vídeo [25/02/2019]. 1 arquivo .mp3 (40min).

OLIVEIRA, Andrea. Entrevistador: João Marcos dos Santos Silva. João Lisboa: entrevista presencial [11/10/2019]. 1 arquivo. Mp3 (53min53s).

OLIVEIRA, Jorge. Entrevistador: Ana Carolina Campos Sales Imperatriz: entrevista por WhatsApp Chamada de Áudio. [29/04/2020]. 1 arquivo .mp3. (59min)

PAIVA, Maggie. Entrevistador: Yanna Duarte Arrais. Imperatriz: entrevista por Google Meet. Em parceria com: Ana Carolina Campos dos Santos, Gislei Nayra Soares Moura, João Marcos dos Santos Silva, Viviane Reis Silva, Yanna Duarte Arrais.

Elaborada pelo professor do curso de Jornalismo da Universidade Federal do Maranhão (UFMA) – campus de Imperatriz e doutor em Comunicação pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) Alexandre Zarate Maciel, a coluna Prosa Real traz, todos os meses, uma perspectiva dos estudos acadêmicos sobre a área do livro-reportagem e também um olhar sobre o mercado editorial para esse tipo de produto, seus principais autores, títulos e a visão do leitor.

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Bong Joon-Ho, transnacionalidade e o mercado cinematográfico dos EUA

Por Alexsyane Amanda Silva e Diana de Jesus

Há 10 anos, o diretor Bong Joon-ho dava início à sua chegada na indústria cinematográfica de Hollywood. Dentro desse período, três filmes foram lançados, destacando-se principalmente o último, Parasita (2019), que, na cerimônia do Oscar de 2020, obteve seis estatuetas: Melhor Filme, Melhor Filme Internacional, Melhor Roteiro Original, Melhor Direção de Arte, Melhor Diretor e Melhor Montagem.

A obra cinematográfica vencedora possui origem sul-coreana e o seu reconhecimento na categoria de Melhor Filme - e não Melhor Filme Estrangeiro, como seria costumeiro - tornou-a a primeira obra de língua não inglesa a levar esta principal estatueta. Esta é considerada uma vitória histórica por diversos motivos: pelo cenário de resistência norte-americana a filmes em outros idiomas, por serem as primeiras vitórias da Coreia do Sul na cerimônia do Oscar e pelo destaque que a academia deu a filmes estrangeiros em sua 92ª edição.

A vitória do filme em língua não-inglesa, indiscutivelmente vista como um diferencial para a “rotina” Hollywoodiana de quase um século, foi semelhantemente replicada em outros prêmios: Parasita foi também o primeiro filme que, desde os anos 1950, ganha o Oscar e a Palma de Ouro de Cannes, e o primeiro longa de língua estrangeira a vencer a principal categoria do SAG Awards (Melhor Elenco de Filme), entregue pelo Sindicato dos Atores dos EUA.

Para melhor compreender esta inovação cinematográfica, é preciso abordar a trajetória transnacional dos filmes de Bong Joon-ho nos cenários explorados em Snowpiercer (2014), Okja (2017), e, por fim, Parasita (2019), os três filmes da década de entrada do diretor no mercado de cinema norte-americano.

O conceito da transnacionalidade de Ye Dam Yi verifica a existência dos elementos tanto norte-americanos quanto sul-coreanos nos filmes de Bong Joon-ho, uma adaptação necessária para inserir-se no cinema norte-americano e chegar até a vitória na cerimônia do Oscar: em Snowpiercer, o idioma é inglês e há características acentuadamente hollywoodianas com apenas dois atores sul-coreanos; em Okja, o diretor constrói um cenário de mistura entre solo sul-coreano e norte-americano e, por fim, em Parasita, o primeiro filme de língua não-inglesa a ganhar o Oscar de Melhor Filme.

Snowpiercer: um blockbuster hollywoodiano - O Expresso do Amanhã, ou Snowpiercer (2013), é um filme de ação e ficção científica com fortes mensagens de cunho

social baseado na HQ francesa Le Transperceneige (Lob & Rochette, 1982). Na obra, é notável a constante referência à manobra histórica de manipulação e domínio de massa através da política do medo (COELHO, 2015, p.1) e à pobreza e desigualdade social. A história é sobre um trem onde, após o apocalipse, uma pouca quantidade populacional vive - os pobres nos vagões de trás, os ricos nos vagões da frente. Em dado momento, por causa da má qualidade de vida e violências sofridas, a população dos vagões de trás começa uma rebelião.

O cenário escatológico por si mesmo já traz enraizada a crítica da sobrevivência da espécie em troca de aceitação do tolhimento da liberdade e de outros direitos humanos, quando tempos de crise enfraquecem o processo de desenvolvimento e facilitam o domínio (COELHO, 2015, p. 5).

O “Expresso do Amanhã” é possivelmente o ponto de partida de Bong Joon-ho para chegar ao Oscar. O diretor traz em seu primeiro filme em inglês todo um cenário que remete a clássicos hollywoodianos, com direito inclusive ao típico galã super-herói Chris Evans como destaqueator que também interpreta o famoso Capitão América dos estúdios Marvel, personagem símbolo norte-americano. Como define Brandon Taylor (2016, p. 1), Snowpiercer “está totalmente saturado com o resíduo cultural do cinema americano, especificamente o filme blockbuster”.

Todos os critérios de tamanho de elenco, pré-anúncio em marketing massivo, alto orçamento e grande liberação estão presentes em Snowpiercer como blockbuster, tendo acumulado “o maior orçamento de produção de todos os tempos na indústria cinematográfica da Coreia - equivalente a US $ 39.200.000” (YI, 2017, p. 2 a 3).

Na obra que seria talvez a sua formatação até então mais hollywoodiana, Bong Joon-ho utiliza-se do cinema norte-americano, do idioma norte-americano e de atores norte-americanos em uma relação tão ambivalente quanto a do próprio cinema coreano com os Estados Unidos (TAYLOR, 2016, p. 1, apud KLEIN) para falar sobre desigualdade e controle governamental.

Dado a dificuldade de ligar a obra ao seu seio nacional, embora a carreira de Bong Joon-ho esteja tão “inextricavelmente entrelaçada com a história do cinema coreano” (TAYLOR, 2016, p. 2), classificá-la como transnacional torna-se mais fácil do que tentar desvendá-la sob uma ótica do seu país, principalmente quando foi negligenciada nos discursos acadêmicos da Coreia (YI, 2017, p. 2).

Okja: a obra da Netflix que concorreu ao Cannes

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Okja foi produção da rede de streaming Netflix, não tendo passado em nenhum cinema. Como uma obra sem distribuição regular poderia concorrer no Festival de Cannes? Apesar das controvérsias, o filme foi exibido mesmo assim, tendo a logo da Netflix aparecido pela primeira vez na história na tela do Grande Teatro Lumière do Palácio de Festivais.

Okja traz uma antítese entre a cultura ocidental de produção em massa e a valorização das raízes orientais, sendo a própria principal sul-coreana Ahn Seo-hyun (Mija) e seu cenário de nascença natural e pacífico na Coreia do Sul.

Em uma síntese de sua história, o filme mostra a exploração econômica de uma raça de “super porcos” para a indústria da carne. Quando Mija, a dona de um dos super porcos, vê-se prestes a separar-se do seu animal, vai em frente em uma tentativa de resgate em conjunto com um grupo de “foras da lei”. Ao expor o amor da menina pelo animal que é desejado como alimento por uma população, o filme explora o “ativismo intervencionista” para realizar justiça (CARDOSO apud RITCHIE, 2017, p. 3).

A obra é capaz de despertar amplos debates, desde o especismo presente na noção de um caráter biológico para determinar se um ser é “merecedor” de ter direitos até o quanto seria “valoroso” o desrespeito de tais direitos perante uma “vantagem para o maior número de humanos” (CARDOSO, 2017, p. 9 e 10), dado que a carne dos super porcos possui diferenciais muito benéficos para a saúde humana.

O filme tem em seu caráter a mesma aparente ambiguidade que compôs Snowpiercer: identidade sul-coreana-americana, sendo co-escrito por Jon Ronson (galês-americano) e interpretado em seu âmago por atores norte-americanos e sul-coreanos, encaixando-se no caráter da transnacionalidade reconhecida por Ye Dam Yi.

Parasita: um filme histórico e sul-coreano

O amplo resultado de Parasita é marcante por conservar-se em idioma sul-coreano, ter atores sul-coreanos e galgar caminhos tão brilhantes. A resistência da linguagem ainda é um peso no cinema, quando o obstáculo das legendas faz com que “raramente obtenham bilheterias similares aos filmes falados em inglês nos EUA”. Por razões sociais, culturais e políticas, o público norte-americano teria ficado cada vez mais resistente em assistir filmes vindos de contextos diferentes dos seus (Nexo Jornal, 2020).

A entrada anterior de Bong Joon-ho no mercado do cinema norte-americano, preparada por Snowpiercer e Okja, adaptando-se e reunindo as características dos seus filmes em prol de uma estabilidade, parece ter sido determinante para o resultado mostrado no Oscar. Em Parasita, é o momento em que Bong Joon-ho tem mais liberdade dentro da indústria americana em uma década.

Por esse caminho do despedaço e da descostura do elemento evolutivo profissional de Bong Joon-ho observado a partir de sua atuação como diretor, verificamos a desunião e destaque de uma sequência de filmes dirigidos

(Snowpiercer, Okja e Parasita) por Bong Joon-ho estabelecendo, entre eles, o que seria o caminho diante de uma cinematografia sul-coreana e norte-americana - transnacional - necessária para adentrar no mercado norte-americano e obter, por fim, as vitórias notáveis do filme Parasita.

REFERÊNCIAS

CARDOSO, Waleska. Ativismo do tipo interventivo em favor dos animais: a justiça dos “fora da lei” em Okja. Grupo de Pesquisa em Direitos dos Animais (GPDA) (UFSM), Núcleo de Estudos Filosóficos (NEFIL) (UFPR).

COELHO, A.; e FOLLIS, Rodrigo. Snowpiercer: Uma análise da obra de Joon-ho Bong e o uso de crises como método de dominação. Centro Universitário adventista de São Paulo (Unasp), 2015.

JU, Young Jin. Making the global visible: Charting the uneven development of global monsters in Bong Joon Ho’s Okja Nacho Vigalondo’s Colossal. CLC Web, Purdue University, v. 21, 2019.

POR QUE a vitória de ‘Parasita’ no Oscar é histórica, em 4 pontos. Nexo Jornal, 10 fev. 2020.

POR QUE o público dos EUA é tão resistente a filmes estrangeiros. Nexo Jornal, 6 jan. 2020.

TAYLOR, Brandon. The Ideological train to Globalization: Bong Joon-ho’s The Host and Snowpiercer. Cineaction, Toronto, Ontario, Canadá. 2016.

YI, Dam Ye. Locating a transnational film between korean cinema and american cinema: A case study of Snowpiercer. Plaridel, vol. 14, nº 1. Jun, 2017.

Alexsyane Amanda Ribeiro da Silva é graduanda no curso de Licenciatura em Ciências da Comunicação: Jornalismo, Assessoria e Multimédia da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, em Portugal.

Diana Bispo de Jesus é graduada em Jornalismo na Universidade Católica de Brasília (UCB), no Brasil.

Revista Eletrônica do Grupo de Pesquisa Jornalismo e Contemporaneidade - PPGCOM/UFPE | 25

Mudanças climáticas

O planeta Terra está passando por mudanças climáticas rápidas em termos geológicos. (1) A temperatura média na superfície da Terra e na água do mar aumentou 0,8 °C depois do começo da revolução industrial (0,11 °C por década). (2) As geleiras estão derretendo. (3) O gelo no Polo Norte está diminuindo (de 1978 a 2008, diminuição de 1,8 m da espessura do gelo por década, de 3,8% da superfície coberta pelo gelo e de 11% da superfície do gelo no fim do verão. (4) O nível do mar, de 1993 a 2013, aumentou entre 2,8 e 3,6 mm por ano, duas vezes mais rápido que no século XX; (5) A frequência e a intensidade de fenômenos extremos (frio, calor, inundações, secas) estão aumentando.

Para tratar dessa questão, a Organização das Nações Unidas (ONU) criou, em 1988, o International Panel on Climate Changing (IPCC). No passado, a Terra passou por mudanças climáticas importantes, com períodos glaciais e períodos interglaciais, mas elas se deram de maneira muito mais lenta, com ciclos de mais de 100 mil anos.

A temperatura média na superfície da Terra depende de vários parâmetros, como a radiação recebida do Sol; as atividades vulcânicas na Terra; a inclinação do eixo de rotação da Terra em torno de si mesma com relação ao plano de sua órbita em torno do Sol; o efeito estufa. Analisemos cada um desses quatro parâmetros. A intensidade da radiação solar depende da atividade do Sol e varia menos que 0,1% com um ciclo de aproximadamente 11 anos. As mudanças climáticas observadas depois do começo da revolução industrial não são cíclicas. Além disso, se a variação da radiação solar fosse uma causa importante das mudanças climáticas, a temperatura da estratosfera também estaria aumentando, e isso não está acontecendo. A troposfera está ficando mais quente, mas a estratosfera está esfriando. Assim, as variações da radiação solar não podem explicar as rápidas mudanças climáticas observadas. Também não houve variação nas atividades vulcânicas que possam explicar essas mudanças. A inclinação do eixo de rotação da Terra varia de maneira muito lenta, segundo o ciclo de Milankovich, entre 22,1 e 24,5°, com um período de aproximadamente 26 mil anos. Assim, isso também não pode explicar as rápidas mudanças climáticas observadas. Mas a concentração dos

gases do efeito estufa (GEE) na atmosfera tem aumentado consideravelmente depois do começo da revolução industrial. A concentração de CO2 passou de 280 partículas por milhão (ppm) para mais de 410 ppm (1). A do metano (CH4) passou de 660 partículas por bilhão (ppb) para mais de 1.890 ppb (2). O CO2 não é um poluente. Ele é essencial à vida na Terra. Sem ele, os vegetais não cresceriam. Sem CO2 e os outros GEE, a temperatura média na superfície da Terra seria -18°C (3), e, nessas condições, a vida, como nós a conhecemos, seria impossível na superfície da Terra. Mas o CO2 se torna um problema maior quando sua concentração na atmosfera ultrapassa certos limites.

Segundo o IPCC, a probabilidade de que o aumento da temperatura média na superfície da Terra seja principalmente devido às atividades humanas é maior que 0,95 (4). Essa posição recebeu o apoio das principais Academias Nacionais de Ciência do mundo; entre elas, as dos Estados Unidos, da Alemanha, da França, da Inglaterra, do Canadá, da Rússia, da China, etc.

Combustíveis fósseis - Os combustíveis fósseis são o gás natural, o petróleo e o carvão mineral. Eles se formaram a partir do carbono contido na matéria orgânica (vegetal ou animal) que ficou no subsolo da Terra por centenas de milhões de anos, em condições anaeróbicas e sob altas temperatura e pressão. Pela respiração dos animais e dos vegetais, durante centenas de milhões de anos, o CO2 foi retirado da atmosfera. Agora, com a queima do combustível fóssil, ele está sendo restituído à atmosfera, provocando um aumento de sua concentração.

Evolução do clima da Terra - Pode-se considerar que a Terra tem quatro componentes distintos: a atmosfera (gasosa), a litosfera (sólidos minerais), a hidrosfera (líquidos) e a biosfera (matéria viva). Esses quatro elementos evoluem juntos há quatro bilhões de anos, em condições de equilíbrio dinâmico regido por retroações negativas (quando um parâmetro se afasta de seu valor original, o sistema tende a forçá-lo a voltar). Isso é chamado homeostasia climática. Aproximadamente a cada 100 mil anos, a Terra teve reaquecimentos que duraram dezenas de milhares de anos, os chamados períodos interglaciais. A sequência de períodos glaciais e períodos interglaciais é explicada pelo Ciclo de Mi -

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lankovich. Segundo esse ciclo, foram os aumentos da inclinação do eixo de rotação da Terra em torno de si mesma com relação ao plano de sua trajetória em torno do Sol que iniciaram esfriamentos que foram amplificados por retroações positivas e puderam levar a períodos de glaciação.

Essas retroações positivas são: 1- Clima esfria → menos evaporação oceânica → menos chuva → mais superfícies desérticas → mais poeira no ar → maior produtividade vegetal nos oceanos devido a mais poeira → mais fitoplânctons → mais carbono absorvido pelos fitoplânctons → menos carbono na atmosfera → menos efeito estufa → mais frio. 2Clima esfria → menos neve derretendo no verão → maior reflexão da radiação solar → mais frio.

Impacto - Durante o último período glacial, que começou há pouco mais de 100 mil anos e terminou há 10 mil anos, a temperatura média na superfície da Terra chegou a entre 4 e 5 °C abaixo do valor atual. Essa diferença pode parecer pequena, mas não é. Por exemplo, a região onde eu vivo (Montreal, Canadá) estava coberta por uma camada de gelo de 3 mil metros de espessura.

Aquecimento depois do começo da revolução industrial - Nos últimos pouco mais de 150 anos, a temperatura média na superfície da Terra aumentou aproximadamente 0,8 °C. Um aumento muito rápido comparado com o que ocorreu depois do último período de glaciação, que foi de 4 ou 5 °C em dezenas de milhares de anos. Se a tendência atual continuar, os especialistas calculam que, em 2100, o nível médio do mar aumentará entre 45 e 90 centímetros (5). Isso inundaria inúmeras regiões habitadas ou cultivadas, criando várias dezenas de milhões de refugiados climáticos, e geraria uma crise econômica e social imensa.

Os céticos climáticos - Um pequeno grupo de climatologistas discorda do ponto de vista do IPCC ao pretender que essas mudanças climáticas são de origem natural, sem nenhuma relação com atividades humanas. Segundo eles, o CO2 que esta está sendo acrescentado à atmosfera vem dos oceanos, devido ao aquecimento de sua água. Mas, depois de 1990, medidas mostram que o CO2 que está sendo acrescentado à atmosfera não vem dos oceanos. Elas mostram uma diminuição da presença de 14C no CO2 da atmosfera. Isso significa que o aumento da concentração do CO2 na atmosfera vem da queima de combustíveis fosseis, que é o único reservatório de CO2 conhecido onde não há 14C (6).

Urgência - Mesmo se conseguirmos parar completamente de emitir GEE, a temperatura média na superfície da Terra vai continuar aumentando por certo tempo. O efeito estufa é provocado pelo conjunto de GEE que está na atmosfera, inclusive

o que foi emitido há centenas de anos atrás e ainda está lá. O CO2 permanece milhares de anos na atmosfera. Daí a importância de, desde agora, reduzir a concentração de CO2 na atmosfera. Mas a luta sera árdua. A indústria de combustíveis fósseis é muito poderosa. No mundo, ela recebe anualmente 400 bilhões de dólares em subvenções e benefícios fiscais (7 e 8).

REFERÊNCIAS

1) https://www.climate.gov/news-features/understanding-climate/climate-change-atmospheric-carbon-dioxide.

2) https://www.esrl.noaa.gov/gmd/ccgg/ trends_ch4/.

3) https://www.canada.ca/fr/environnement-changement-climatique/services/changements-climatiques/effet-serre.html.

4) https://www.ipcc.ch/site/assets/uploads/2018/02/WG1AR5_Chapter08_FINAL.pd4).

5) https://www.ipcc.ch/report/ar5/wg1/, página 49.

6) https://royalsociety.org/~/media/royal_society_content/policy/projects/climate-evidence-causes/climate-change-evidence-causes.pdf, página 6.

7) Scientific American, Climate Change, What’s happening to our planet? Special Collector’s Edition Summer 2020, página 92.

8) Why Fossil Fuel Producer Subsidies Matter Peter Erickson et al. In Nature, Vol. 578, pages E1-E4; February 6, 2020.

João Mauricio de Andrade Baltar é engenheiro eletricista (UFPE, 1968), Mestre em Física (Université de Montréal, 1974). Hoje aposentado, trabalhou 37 anos na Hydro Québec na Central Nuclear de Gentilly, no Ireq (Instituto de Pesquisas) e no Planejamento da Rede de Geração.

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