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Negócios do vento em Pernambuco e o papel do Iterpe
Por Heitor Scalambrini Costa
O Instituto de Terras e Reforma Agrária do Estado de Pernambuco (Iterpe) é uma autarquia vinculada à Secretaria de Agricultura e Reforma Agrária. Com autonomia administrativa e financeira, usufrui da prerrogativa de controle das terras públicas, da intermediação de conflitos pela posse da terra, da implantação de assentamentos, da reformulação fundiária do território estadual e a da operacionalização do Programa Nacional de Crédito Fundiário.
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Sua área de atuação tem tudo a ver com as questões vinculadas às áreas rurais, onde os conflitos pela terra são constantes e violentos. Nos últimos anos, mais um tema foi adicionado a tantos outros, que permeia os conflitos relacionados com a posse da terra: o da instalação de grandes parques eólicos. Essas instalações afetam diretamente os pequenos imóveis rurais, agricultores familiares que, em sua expressiva maioria, não têm a posse da terra onde vivem, trabalham e dela tiram seu sustento por gerações.
Como é do conhecimento geral, a instalação de aerogeradores, máquinas que transformam a energia do vento em energia elétrica, tem crescido exponencialmente no Brasil, em particular no Nordeste, onde estão localizados mais de 80% da potência eólica total instalada no país, correspondendo a pouco mais de 7.000 aerogeradores. O total dessas instalações em 2021 atingiu uma potência expressiva de 18 GW (em 2011, era menos de 1 GW). Em um cálculo rápido, pode-se considerar que 1 MW ocupa em torno de 1 ha, ou seja, 18.000 ha aproximadamente já foram atingidos por tais equipamentos em todo o território nacional; no Nordeste, aproximadamente 15.000 ha (correspondendo a 15.000 campos de futebol).
Falar da energia eólica em grandes unidades geradoras centralizadas significa falar na ocupação de grandes superfícies contínuas. E, quando essas instalações são no interior, a grande maioria, (outra situação são as instalações em áreas costeiras) ocupa o bioma Caatinga e os brejos de altitude, resultando em desmatamento e destruição ambiental. São nos terrenos de grandes altitudes que as maiores velocidades dos ventos são encontradas, resultando em maior geração de energia elétrica e mais lucros para os investidores dos parques eólicos.
Em Pernambuco, a “bola da vez” dos negócios do vento está apontado para os brejos de altitude (https:// racismoambiental.net.br/2018/04/02/usinas-eolicas-a-bola-da-vez-e-bonito-pe/), também conhecidos como florestas de serra. Esses locais oferecem as melhores condições para o desenvolvimento de uma flora com características da Mata Atlântica e da Caatinga. Comuns nesses territórios são as nascentes de água, que alimentam importantes bacias hidrográficas. Para atender aos interesses dos negócios do vento, o governo estadual não tem medido esforços.
Com relação aos brejos de altitude, a Lei Estadual 15.621 de 2015 alterou a Política Florestal do Estado (Lei 11.206/1995). Anteriormente, era considerado que altitudes superiores a 750 m eram áreas protegidas de preservação permanente. Com a modificação, a proteção passou a ser de áreas superiores a 1.100 m, o que significou a plena abertura para os negócios do vento se instalarem nos brejos de altitude.
Em setembro de 2020, foi sancionada a Lei Estadual 17.041, que também alterou a Política Florestal do Estado, dispensando os empreendimentos eólicos e solares de manter áreas destinadas à manutenção da vegetação nativa, que corresponde a 20% do total da área do imóvel, as Reservas Legais.
Mesmo depois do afrouxamento de sua Política Florestal, o governo de Pernambuco continua a favorecer as empresas eólicas que precisam dos imóveis rurais para instalarem os aerogeradores. Necessitam, para adquirir as terras ou realizar os contratos de arrendamento, que os imóveis estejam regularizados, com a emissão do título de posse. Assim, o morador do imóvel poderá assinar esses contratos, cujo conteúdo contém cláusulas draconianas (https://www.ecodebate.com.br/2021/03/17/ negocios-do-vento-arrendamento-ou-expropriacao-de-terra/), contrárias a seus interesses.
O que se tem verificado em Pernambuco é a ação espúria, antiética e imoral dos representantes dos negócios dos ventos (https://www.ecodebate.com.br/2018/03/23/ negocios-do-vento-no-nordeste-brasileiro-caso-a-investigar-artigo-de-heitor-scalambrini-costa/), aliados ao Iterpe, para que os moradores dos imóveis tenham o título de posse dos mesmos (sonho acalentado pelos moradores) para poderem assinar o contrato de arrendamento. Assim, o que é um pleito, uma reivindicação dos moradores e das suas famílias, acaba se tornando um pesadelo, pois, com os contratos de arrendamento assinados, os arrendatários permitem que, durante 30 a 40 anos, essas terras sejam utilizadas pela empresa eólica. Faz parte das cláusulas contratuais, que obedecem à lógica da expropriação da terra, a renovação automática
do período de arrendamento quantas vezes a empresa quiser, sem a aprovação dos proprietários.
O escandaloso nesse processo é a ligação umbilical e promíscua do interesse público com o interesse privado. A incompatibilidade dessa relação simbiótica tem a ver com as ações conflitantes e contraditórias do governo estadual. Por um lado, o Iterpe promove reuniões com a empresa Mundo dos Ventos (atual PEC Energia) para a assinatura de um Acordo de Cooperação Técnica para a regularização fundiária de imóveis rurais de interesse da empresa, nos municípios de Belo Jardim, Sanharó e Brejo da Madre de Deus. Por outro lado, o Conselho Estadual de Meio Ambiente de Pernambuco (Consema) aprovou, em novembro de 2020, durante a sua 56ª reunião extraordinária, a criação de três novas Unidades de Conservação (UCs): a Área de Proteção Ambiental (APA) Serras e Brejos do Capibaribe, com 73.781,65 hectares, entre os municípios de Brejo da Madre de Deus, Santa Cruz do Capibaribe, Belo Jardim, Vertentes e Taquaritinga do Norte; e o Refúgio de Vida Silvestre (RVS) Cabeceiras do Rio Capibaribe, com área de 6.926,25 hectares, localizada nos municípios de Jataúba e Poção; além do Refúgio de Vida Silvestre Mata do Bitury, localizado entre os municípios de Brejo da Madre de Deus e Belo Jardim, que deve proteger 888,25 hectares remanescentes de floresta de brejos de altitude. Lembrando que esses territórios são os mesmos ambicionados pelas empresas eólicas.
Tal mancomunação entre o Iterpe e representantes dos negócios do vento é nocivo aos interesses das populações rurais e das reservas naturais que vão sofrer inúmeros impactos (desmatamento, destruição das nascentes e a devastação do meio ambiente) decorrentes da implantação de parques eólicos ocupando grandes áreas contínuas. Essa ação coordenada entre a iniciativa privada e o setor público, contrária aos interesses do homem do campo, exige explicações e maior transparência.
Esse favorecimento de empreendimentos que, comprovadamente, provocam danos ao meio ambiente, faz parte de uma política deliberada do governo estadual, na ânsia de trazer para o estado novos empreendimentos, todavia, menosprezando a questão ambiental (o atual governo federal está fazendo escola).
O que ocorre em Pernambuco também acontece em outros estados da Federação onde se vale da presença da autoridade de instituições governamentais para agilizar a regularização fundiária (o que, geralmente, é um processo longo e penoso), com o intuito de atender interesses de grandes empresas, contando, muitas vezes, com recursos fornecidos pelas próprias empresas através de acordos de cooperação.
Associados à ignorância, à pobreza, à falta de políticas públicas e ao desconhecimento dos reais impactos dos parques eólicos, os moradores das áreas rurais ficam completamente à mercê da ganância dos negócios do vento, verdadeiros “vendedores de ilusão”. Assim, a regularização fundiária das terras dos pequenos imóveis rurais, que deveria ser comemorada, torna-se um pesadelo.
A pergunta que não quer calar é: “o Iterpe está a serviço de quem?” Deixo a resposta para os leitores.
Heitor Scalambrini Costa é Professor aposentado da Universidade Federal de Pernambuco.