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Opinião | Pedro de Souza
JORNALISMO E CIDADANIA | 8 Opinião
A natureza nos reclama Por Pedro de Souza
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A relação do homem com a natureza vem sofrendo uma transformação profunda desde o tempo em que João Rodrigues de Sá de Meneses compôs “De Platano” (1527 – 1537) um tratado sobre essa árvore, incensada pela cultura clássica e identificada por ele no norte de Portugal, na vizinhança da igreja matriz de Azurara (“Paisagem e erudição no humanismo português”, A.S. Tarrío, Fund. C. Gulbenkian, Lisboa, 2009). Os portugueses dessa época foram também dos primeiros veículos do conhecimento da natureza em partes remotas do nosso planeta, e da sua “viagem” para outras paragens, e para o nosso prato.
Essa interação do homem com o meio ambiente se dava, no entanto, ainda em reduzida escala, mantendo a harmonia cantada pelos poetas, sublinhada pelas mitologias e religiões, e integrada na vida e cultura dos agricultores e pastores de todo o planeta. Hoje, porém, a realidade é outra.
Com o desenvolvimento da civilização urbana e a proliferação descontrolada da técnica, essa relação foi cortada, e o homem passou a acreditar que entre ele e a natureza, de quem seria dono e senhor, haveria um fosso radical.
Os recentes surtos de epidemias como a SARS, a Ébola e agora a Covid-19 nos recordam oportunamente que não é assim: a natureza não é apenas objeto da fruição mais ou menos vácua de hordas de turistas. O homem, quer tenha consciência disso ou não, continua ligado a ela para o bem e para o mal. O homem não é feito de plástico ou metal, mas de carne. O fato de sempre ter havido epidemias, como a que assolou a Europa no século XIV, e dizimou talvez 25% da população, não pode iludir as mudanças radicais que o homem está introduzindo hoje no meio ambiente. As recentes epidemias são mais uma consequência dessa devastação, junto com a dramática alteração climática de que estamos começando a
tomar consciência, desde há “apenas” 50 anos… (Celso Furtado, “O Mito do Desenvolvimento”, Paz e Terra, Rio de Janeiro, 1974).
Num artigo recente do jornal The Guardian, John Vidal (Band Foundation e Wyss Foundation) avança argumentos muito claros ligando essas recentes epidemias ao tipo de desenvolvimento das sociedades contemporâneas, baseado na destruição da natureza, que é o habitat natural de espécies animais de que esses vírus são endêmicos. Dessas espécies para os animais domésticos que os consomem, e daí para o homem o caminho é fácil. As populações que consomem animais florestais, sobretudo na Ásia e África, onde constituem parte substancial da ementa da população menos favorecida, que antes viviam isoladas, emigram para as grandes metrópoles apinhadas de gente, onde essas epidemias adquirem um volume inédito. As consequências podem se revelar infinitamente mais devastadoras do que as da atual Covid-19. O tráfico de animais silvestres vem ainda agravar esse panorama. Lembremos que a mortalidade induzida pelo Ébola chega a 90%. A devastação produzida pelos herbicidas na agricultura dizima também parte da fauna, desorganizando a cadeia alimentar: é frequente ver animais de grande porte, famintos, procurando comida em grandes metrópoles nas latas de lixo, de noite. Por todo o lado se cavam minas à procura das “terras raras” para alimentar a indústria de telefones e outras bugigangas, se controem barragens para alimentar o perdulário consumo de eletricidade das metrópoles, no desprezo total das populações ribeirinhas, como é o caso com o colonialismo extrativista na Amazônia.
Seria necessário tomar consciência que a preservação da Amazônia é fundamental por várias razões, todas elas de primordial importância: pelos povos da floresta e povos ribeirinhos, pelo clima, pela água. Mas ela é também um extraordinário laboratório, uma biblioteca e uma universidade naturais, de onde pode ser extraído conhecimento crucial para a sustentabilidade da vida na Terra, e da saúde humana. Isso tem alto valor, inclusivamente econômico. Permitir a sua destruição por gente sem educação nem escrúpulos equivale a queimar um tesouro para se aquecer.
A dimensão ecológica deve se tornar uma preocupação constante das nossas democracias, mesmo em meio urbano. A condescendência com a proliferação de percevejos e ratos numa cidade como Paris é inaceitável; da mesma forma em Londres há verdadeiras pragas de esquilos, o governo pagando para quem os caça. Com muitos tipos de peixe em radical extinção no Mar do Norte, hoje há centenas de gaivotas procurando lixo para comer em Paris, a cerca de 200 kms do litoral, o que não acontecia até há 10 anos. A intenção do governo português de construir um novo aeroporto na região urbana de Lisboa, no estuário do Tejo, perto de uma reserva natural de aves, é um erro, como é um erro que o Porto de Lisboa tenha construído no centro da capital um terminal de cruzeiros sem proceder ao devido licenciamento ambiental, requerido por lei.
No caso desses navios de cruzeiros não se trata apenas de danos mais ou menos invisíveis ao meio ambiente, visto que a poluição produzida é equivalente à de vários milhares de carros. É sintomático que vários dentre eles estejam de quarentena em portos do Japão ou EUA, ou procurando um porto que os aceite, devido a Covid-19. Esses navios são vectores de doenças contagiosas dada a promiscuidade dos viajantes. Os milhares de turistas que durante alguns dias eles despejam nos centros das cidades portuárias são, involuntariamente, agentes da desordem global do meio ambiente. O turismo de massa não pode constituir a base de uma política urbana sã.
Esta epidemia vai passar e deixar profundas cicatrizes no tecido econômico mundial, para além dos dramas humanos que está causando.
Outras virão, talvez ainda mais graves, se os responsáveis pelos governos e atividades econômicas não optarem por um tipo de desenvolvimento em que se volte a visar a harmonia com a natureza, e onde a técnica seja empregue na melhoria da vida, e não na sua extinção.
Pedro de Souza é editor, pesquisador e exsuperintendente executivo do Centro Internacional Celso Furtado de Políticas para o Desenvolvimento.