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Opinião | Rômulo Santos de Almeida

JORNALISMO E CIDADANIA | 26 Opinião

A questão indígena e ambiental numa era de catástrofes Por Rômulo Santos de Almeida

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Tais leituras implícitas ao Coringa leva o colunista da CNN Jeff Yang a afirmar que o filme é uma parábola poDiante das agressões aos povos indígenas e dos imensos retrocessos ambientais, aprofundados pelo neoliberalismo e pelo discurso negacionista que permeia o cenário político atual, dois assuntos parecem ressurgir com mais evidência: a questão indígena e ambiental. É notável e internacionalmente conhecida a ligação do governo brasileiro com os interesses ruralistas e sua cumplicidade na violência contra os indígenas e o meio ambiente, que sofrem com a intervenção de mineradoras, garimpeiros e madeireiros. Mais uma vez os povos originários são encarados como um entrave ao desenvolvimento econômico, incapazes de explorarem de maneira “eficiente” a biodiversidade que os cerca. Para o governo, o índio deve se transformar em um “empreendedor” e explorar a floresta com uma única finalidade, qual seja, o lucro. Tal visão preconceituosa demonstra um total desconhecimento e desprezo da diversidade cultural indígena, suas formas de organização social, política e econômica, assim como a existência de cosmovisões bastante distintas do ocidente capitalista. É necessário salientar, diferente da perspectiva eurocêntrica, que os povos que aqui viviam antes da chegada dos colonizadores já possuíam história, cultura complexa e senso de territorialidade. Antes de 1500, milhões de habitantes povoavam o Brasil, formando um aglomerado humano com uma imensa variedade de línguas e culturas. Schaden (1974, p. 1) afirma, por exemplo, que a maioria dos indígenas encontrados pelos “desbravadores quinhentistas em terras da bacia platina falava dialetos do idioma Guaraní, estreitamente afim ao linguajar das chamadas tribos Tupí, que dominavam quase todo o litoral brasileiro e grandes extensões do interior”. Para Ribeiro (2006), durante milênios a costa atlântica foi percorrida e ocupada por inumeráveis povos indígenas, surpreendidos por um grupelho recém- -chegado de além-mar super agressivo e capaz de atuar destrutivamente de muitas formas. Esse conflito se deu em todos os níveis: no biótico, com a guerra bacteriológica travada pelas pestes que o branco trazia no corpo; no econômico e social, através da disputa pelo território e riquezas naturais; no étnico-cultural e antropológico pela gestação de uma etnia nova. Como enfatiza Galeano (2000, p. 26), “a epopéia dos espanhóis e portugueses na América combinou a propagação da fé cristã com a usurpação e o saqueio das riquezas nativas. O poder europeu estendia-se para abarcar o mundo”.

Ao chegarem às costas brasileiras, os europeus pensaram ter atingido o paraíso terreal, isto é, uma região de eterna primavera, onde se vivia por mais de cem anos de perpétua inocência. Logo, porém, eles passaram a observar os índios, sobretudo os Tupí, por verem neles, ou animais úteis, ou homens europeus e cristãos em potência, enquanto os índios viam os europeus como uma possibilidade de autotransfiguração, um signo da reunião do que havia sido separado na origem da cultura. A maior armadilha, entretanto, foi talvez a ilusão de “primitivismo”, especialmente na segunda metade do século XIX, época de triunfo do evolucionismo e do darwinismo social, quando prosperou a ideia de que certas sociedades teriam ficado na estaca zero da evolução. Foi quando, na teoria ocidental, as sociedades sem Estado se tornaram sociedades “primitivas”, condenadas a uma eterna infância (CARNEIRO DA CUNHA, 1992; ORTIZ, 2006; SCHWARCZ, 1993; VIVEIROS DE CASTRO, 2002). A antiga tese evolucionista foi duramente criticada por autores como Clastres (1990), que destacou o potencial anárquico e a ausência de necessidade por parte das sociedades ameríndias de construírem sistemas políticos piramidais e hierarquias rígidas. Nelas, embora importante, o poder do chefe depende da boa vontade do grupo.

Hoje, segundo dados da FUNAI (Fundação Nacional do Índio) e do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), há no território nacional cerca de 305 povos indígenas, somando um total de 896, 9 mil pessoas e 274 línguas. O povo Tikuna, residente no Amazonas, representa a maior população. Em seguida aparece o povo Guarani Kaiowá, do Mato Grosso do Sul, e os Kaingang, da região Sul do Brasil. Além disso, 63,8% dos índios brasileiros vivem em áreas rurais e 36,2% em áreas urbanas. Espacialmente, a região Norte concentra o maior contingente, com cerca de 342,8 mil, enquanto a região Sul possui o menor, com apenas 78,8 mil. A composição por gênero também revela algo interessante: existe uma proporção de 100,5 homens para cada 100 mulheres. Por fim, ao se considerar a residência, verifica-se que mais mulheres habitam as áreas urbanas e os homens as rurais. Não obstante, na acepção de Cardoso de Oliveira (1978), é preciso rigor na classificação das etnias indígenas, evitando o reducionismo de conceber povos tão diversos numa categoria abstrata denominada de “índio”.

Outro aspecto não menos relevante é a difícil situ-

ação vivenciada por esses povos para garantir a proteção dos seus territórios e sua existência física e cultural. Esse, inclusive, é um desafio enfrentado pelos indígenas desde a colonização das Américas. Eles continuam lidando com problemas concretos, tais como invasões, genocídios, exploração do trabalho infantil e sexual, degradações ambientais, missões de evangelização, entre tantos outros. Tal fato tende a se agravar quando, em plena corrida eleitoral, o presidente eleito afirmou que não teria um centímetro demarcado para reserva indígena ou quilombola, num discurso que agradou os grandes produtores rurais, representantes do agronegócio e mineradoras. Sua declaração ignora a soberania dessas populações e fere o § 3º do art. 231 da Constituição Federal de 1988. O texto constitucional estabelece que o aproveitamento dos recursos hídricos, a pesquisa e a lavra das riquezas minerais em terras indígenas só são viáveis quando ouvidas as comunidades afetadas. Similarmente, o art. 5º, inciso XXXVI, entende que as demarcações já homologadas e registradas não podem ser desfeitas. Desse modo, os povos indígenas possuem o direito originário para viverem em seus territórios, cabendo ao Estado realizar a demarcação.

Ações contrárias aos interesses das populações nativas ganham força no Congresso com a incessante atuação de parlamentares ruralistas ou ligados ao agronegócio. É o caso da PEC 187, que prevê a exploração pecuária e agrícola em terras indígenas e abre precedentes para a alteração do art. 231 da Constituição. Do mesmo modo, a PEC 343 motiva a parceria agrícola e arrendamento em terras indígenas. Também é necessário frisar o PL 191/2020, que nega o poder de veto dos povos indígenas, autoriza o plantio de sementes transgênicas em suas terras, propõe a construção de hidrelétricas, exploração de petróleo e gás, pecuária e turismo. Em suma, as terras indígenas estarão sujeitas ao saque legalizado por parte de empresários e trabalhadores não índios. Tais medidas, além de atentarem contra a autodeterminação desses povos, podem aumentar o já elevadíssimo uso de agrotóxicos, resultando na produção de alimentos impróprios ao consumo humano e estimular outros crimes ambientais como desmatamentos e queimadas. Conforme dados do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais), até o dia 18 de agosto de 2019, o número de queimadas cresceu 70% na comparação com o mesmo período de 2018, com registro de 66,9 mil pontos atingidos, contabilizando o maior índice desde 2013. O bioma amazônico foi o mais afetado, com 51,9% dos casos. No mesmo mês de 2019, o incêndio que atingiu a floresta amazônica chegou a levar “rios de fumaça” para o Centro-Oeste, Sudeste e Sul do Brasil, culminando numa crise diplomática entre o Brasil, a França, a Alemanha e a Noruega.

Apesar dos entraves, os índios e militantes da causa indigenista e ambiental continuam resistindo e denunciando a existência de genocídios, ecocídios e demais crimes perpetrados por agentes do Estado. Segundo dados da Comissão Pastoral da Terra o número de assassinatos de lideranças indígenas em 2019 foi o maior em 11 anos, o que demonstra a intensificação dos conflitos no campo e a inoperância do poder público em assegurar uma vida digna aos povos originários. Pela via institucional, desde a redemocratização do país, em 1988, novas lideranças ganharam mais visibilidade na luta pelo reconhecimento de seus territórios. Entre algumas delas estão Mário Dzuruna Butsé (o falecido Cacique Juruna), Davi Kopenawa, Joênia Wapichana, Ailton Krenak, Sonia Guajajara e o Cacique Raoni Metuktire, líder do povo Kayapó. As questões indígena e ambiental se coadunam, portanto, na compreensão da simbiose entre os povos originários e a biodiversidade florestal para o Brasil e o mundo.

REFERÊNCIAS:

CARDOSO DE OLIVEIRA, Roberto. A sociologia do Brasil indígena. Rio de Janeiro: Editora Universidade de Brasília, 1978. (Biblioteca Tempo Universitário, 31). CARNEIRO DA CUNHA, Manuela. Introdução a uma história indígena. In: História dos índios no Brasil (org.). CARNEIRO DA CUNHA, Manuela. São Paulo: Companhia das Letras: Secretaria Municipal de Cultura: FAPESP, 1992. CLASTRES, Pierre. A sociedade contra o Estado. 5 ed. Brasil: Editora Francisco Alves, 1990. GALEANO, Eduardo. As veias abertas da América Latina. 39ª Edição. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2000. (Estudos latino-americanos, v.12). ORTIZ, Renato. Cultura brasileira e identidade nacional. São Paulo: Brasiliense, 2006. RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. SCHADEN, Egon. Aspectos fundamentais da cultura Guaraní. 3.ª Edição. São Paulo: E.P.U, EDUSP, 1974. SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil – 1870 – 1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. A inconstância da alma selvagem e outros ensaios de antropologia. São Paulo: COSACNAIFY, 2002.

Rômulo Santos de Almeida é Graduado (2013), Mestre (2017) e Doutorando em Sociologia pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). PE (2013).

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