3 minute read
Editorial
Revista Eletrônica do Grupo de Pesquisa Jornalismo e Contemporaneidade - PPGCOM/UFPE | 3 Editorial
É lamentável que o conflito entre a oposição do presidente Bolsonaro ao isolamento social adotado para combater a disseminação da Covid-19 e a atitude do ex-ministro da Saúde de alinhamento com a conduta defendida consensualmente pela comunidade médica mundial tenha absorvido por tantos dias o espaço público brasileiro. Porém, acredito que esse conflito não pode ser considerado como expressão de uma dicotomia entre Ciência e Política.
Advertisement
Antes pode-se observar o contraste entre a racionalidade da postura recomendada pela Organização Mundial de Saúde e a irracionalidade das atitudes tresloucadas de leviandade populista eleitoral do presidente. Constitui um ridículo espetáculo a insistência de se manter em exposição midiática/ pública defendendo, mesmo sem ser médico, a indicação de medicação ainda não reconhecida como recomendável para o combate ao coronavírus ou de pretender menosprezar a ameaça da pandemia classificando-a de ser apenas uma “gripezinha” ou, ainda mais grave, considerar que não acontece nada quando as crianças brasileiras brincam no esgoto. Antes esse humor cafajeste evidencia, como ato falho, a completa falta de responsabilidade que a classe dominante mantém em relação ao contingente de brasileiros vitimados por doenças provocadas pela situação de calamidade sanitária que atinge a maioria da população.
Neste sentido, a aparente filantropia da ajuda aos informais que compõem mais da metade da força de trabalho no Brasil, na verdade, serve mais para evitar que as empresas quebrem por falta de consumidores para seus produtos. Com isso, a pandemia desmascara o estelionato da política liberal da austeridade de precarizar o trabalho e desidratar poder aquisitivo da população. Vale notar, além disso, que esse repasse do “voucher” dos informais representa um volume de recursos muito inferior ao que vem sendo destinado ao sistema financeiro e às grandes corporações (cerca de 1 trilhão e 200 bilhões de reais), segundo Márcio Pochmann, ex-presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), a pretexto de evitar demissão de trabalhadores.
Parece-me que toda esta postura de achincalhe com a consciência coletiva da nação segue uma lógica, aliás verificada em outras partes do mundo onde a extrema direita chegou ao poder, caracterizada pelo esforço de desautorizar e desmoralizar a dimensão maior da Política de se comprometer com o interesse público e com o bem-estar da coletividade.
Esta usurpação do espaço público comprova o compromisso patrimonialista de satisfazer os interesses particulares/ privados, através de um exercício de poder semelhante ao de um monarca absolutista ou mandarim, que acredita não ter que prestar contas a ninguém.
Por Heitor Rocha
Portanto, não faz justiça à concepção digna de política a classificação da questão sobre a governança da administração da saúde do País como representando uma polaridade entre estes interesses políticos menores e a ciência médica. A verdadeira questão está na distinção da forma de deliberar sobre as questões coletivas: a forma autocrática de exercício do poder que caracterizava os regimes medievais e a etiqueta da forma moderna das decisões marcada pelo compromisso com a legitimidade democrática do consenso majoritário da comunidade de comunicação/opinião pública, inclusive quanto à validação das proposições científicas pelo colegiado dos investigadores científicos.
Nesta mudança histórica, a Ciência só veio a ser concebida como possível pelo pensamento antropocêntrico na modernidade, quando formou, ao lado do direito e da arte, os três âmbitos de legitimação própria do conhecimento resultantes do processo de dessacralização das imagens religiosas do mundo. Apesar disso, como as rupturas históricas não acontecem de uma só vez, a Ciência só se tornou uma instituição genuinamente moderna quando se viu livre das amarras medievais do positivismo, que a mantinham encastelada na torre de marfim do cientificismo com a sua presunção do monopólio do conhecimento completo e acabado, bem como do acesso privilegiado à verdade absoluta, com o que pretendia justificar a sua pretensão de uma autoridade inquestionável refletindo as características residuais do pensamento teocêntrico.
A emancipação do obscurantismo, com que o selo metafísico transcendental mitificava a possibilidade de a representação da realidade corresponder/espelhar perfeitamente a própria realidade, significou o reconhecimento do conhecimento produzido pela comunidade de comunicação dos investigadores científicos de forma sempre provisória e humanizada, pois também permanentemente passível de revisão pelo consenso deste colegiado, o que reveste a Ciência com esta condição construtivista que fundamenta a consideraçã o civilizatória e democrática do dissenso consentido, ou seja, do diálogo intersubjetivo como imprescindível ao que se pode considerar racional.
Heitor Costa Lima da Rocha, Editor Geral da Revista Jornalismo e Cidadania, é professor do Departamento de Comunicação Social e do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco – UFPE.