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Opinião | Mário de Godoy Ramos

JORNALISMO E CIDADANIA | 18 Opinião

Desobediência civil e o novo coronavírus Por Mário de Godoy Ramos

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Em momentos de crise, é interessante que o líder político fale diretamente com a população para acalmar e orientar. Autoridades, como o nome diz, emanam determinações, sejam com leis, seja com palavras a partir da sua influência como líder. Na atual crise, contudo, o Presidente Bolsonaro tem usado as palavras e as leis para confundir e aterrorizar a população.

No dia 22 de março foi publicada uma Medida Provisória que autorizava as empresas a suspender por até 4 (quatro) meses o salário dos seus empregados. Em troca de nada, o empregado ainda tinha mais uma obrigação: de assistir cursos online. Segundo a MP 927, o empregador – se quisesse – poderia dar alguma coisa para o empregado. Se quisesse também não daria nada.

A MP da Fome, como foi apelidada, causou muita polêmica na sociedade. O empregado não teria dinheiro para pagar a internet de casa. Mesmo com estrutura, sem dinheiro não teria concentração para fazer um curso. Bolsonaro então se apressou em ir para as redes sociais dizer que na MP estava prevista uma “ajuda possível para os empregados”. Em livre opção, poderia dar qualquer migalha inclusive nenhuma. Como em poucas vezes desde que foi eleito, Bolsonaro estava sendo derrotado nas redes sociais.

“Tira, porque estou apanhando muito”, com essas palavras de um “verdadeiro” estadista republicano, Bolsonaro determinou a Paulo Guedes que revogasse o artigo 18 da MP. Guedes, que assinou a MP junto com seu chefe e certamente participou de toda essa elaboração desse plano escravocrata, disse que houve uma redação ruim e seu Secretário alegou que houve uma má interpretação.

Tratam de confundir, pois não teve nada de má interpretação. O artigo 18 da MP da Fome é muito claro e foi escrito de caneta com a tinta da morte por inanição. Era bem melhor que o empregado fosse demitido, pelo menos ele ganharia o seguro desemprego. Mas objetivaram claramente proteger o empregador do custo da demissão.

Saiu então a 1ª pesquisa do Datafolha sobre a crise com o resultado que o Presidente tinha uma imagem ruim. A pesquisa revelou que a população 1) aprovava mais o trabalho de Mandetta, Ministro da Saúde, do que a de Bolsonaro; 2) aprovava mais o trabalho dos Governadores do que o do Presidente; e 3) seguia confiando mais do que ouvia na imprensa do que nas redes sociais. Nessa mesma pesquisa foi dito que 35% da população estava achando o trabalho de Bolsonaro na crise bom ou ótimo. Na 2ª pesquisa caiu para 33%.

No dia seguinte, Bolsonaro faria um anúncio à nação brasileira. Muitas críticas foram feitas pela sociedade e pela imprensa sobre a ida à manifestação do dia 15 de março por um Presidente provavelmente infectado e por causa da MP da Fome. Será que Bolsonaro iria falar para esse terço ou iria tentar recuperar sua imagem, assim como Trump fez?

Trump apostou que a pandemia não iria trazer grandes danos. Se arrependeu e já gasta toda sua verborragia e agressividade no combate ao COVID-19. Boris Johnson apostou em isolamento vertical, mas não é um lunático. Após ler estudo encomendado junto ao Imperial College, viu que o isolamento social poderia salvar 250 mil vidas e voltou atrás em sua tática inicial de mitigação. Nessa mesma noite fez um vigoroso discurso pedindo que a população fique em casa para salvar vidas: “Stay home, save lives”. Pediu que a sociedade ajudasse a proteger o NHS – National Health System, o SUS de lá.

Ao invés de falar para a nação, o discurso de Bolsonaro focou em sua facção. Dobrou a aposta no obscurantismo e conclamou as pessoas saírem de casa imediatamente. Fez um corte lógico para dizer que se é mais perigoso a COVID em pessoas acima de 60 anos, então “porque as escolas estão fechadas?”. Chamou a doença de “resfriadinho” e se gabou.

Porém, os idosos costumam não morar sozinhos. Em muitas famílias, dentre mais de 11 milhões de brasileiros, moram todos na mesma casa: a avó, os pais e os netos. Se os pais saírem para trabalhar e os netos se saírem para a escola e trouxerem, de forma assintomática, o vírus para casa, ao voltar para casa eles têm uma grande chance de matar a avó. Muitas vezes os pais saem para trabalhar e deixam as crianças na casa

dos... avós! Depois a criança vai perguntar: papai, cadê a vovó? E ele responderá: tivemos que escolher entre ela e a economia.

Esse terço bolsonarista parece não ter família, não ter uma mãe ou avó idosa. De uma hora para a outra, os “velhinhos” se tornaram descartáveis no fascismo brasileiro. É assim, pela alcunha nada carinhosa de “velhinhos” que são chamados pelo dono do Madero e por Roberto Justus. Acho que se eles virem um velhinho sendo espancado na rua não vão chamar a polícia. Afinal, para eles, é só um velhinho que não tem problema nenhum em morrer. Talvez até se morrer logo podem ajudar patrioticamente na reforma da Previdência: menos velhos, menos gasto com previdência.

Ao invés de acalmar a população, o Presidente aterrorizou. Criticou Governadores e Prefeitos por estarem trabalhando heroicamente, sem apoio do Presidente, para salvar vidas no Brasil. Aliás, se tem uma coisa boa nessa crise é mostrar o porquê de sermos uma Federação. Ainda bem que o Brasil não é um Estado Unitário, como é Portugal, sob a liderança única do Presidente. Ainda bem que a Constituição da República é FEDERATIVA e concedeu ampla autonomia para os Estados, os Municípios e o Distrito Federal. Essa bagunça de ter 27 Governadores e mais de 5 mil prefeitos enfim mostra uma bela utilidade.

Ao chegar no STF reclamações sobre a autonomia dos governadores e prefeitos, decidiram que eles sim têm autonomia. Ufa, especificamente deve salvar 1 milhão de vidas, segundo o estudo do Imperial College. O estudo afirmou que uma tática frouxa de isolamento causaria essa monta de mortos.

Bolsonaro tirou essa tática para fugir da responsabilidade de qualquer problema, seja de saúde, seja econômico. Simplesmente não há país que adotou com eficácia essa tática. Alguns tentaram, mas deu errado e tiveram que correr atrás do prejuízo. O caso mais emblemático é o da Itália.

A prefeitura de Milão, que fica na província da Lombardia, quando apenas contavam 17 mortos lançou a campanha “Milão Não Para”. Uma peça publicitária energética, daquelas que faz você vestir a roupa e ir para a guerra, ou seja, para a rua. Posteriormente, com mais de 9 mil mortos nessa Província e com o cenário caótico que se tornou a Itália, o Prefeito admitiu que errou. Potencialmente mais que isso: um crime genocida.

A Itália tem um dos melhores sistemas de saúde pública da Europa, é um país de primeiro mundo e compõe a União Europeia. Já o Brasil é um país sem saneamento básico e com estruturas precárias habitacionais, com grande densidade populacional em metrópoles, como nas favelas. Aqui o vírus pode matar muito mais.

Bolsonaro ainda se gabou no discurso. Sem demonstrar qualquer empatia com os familiares dos mortos, disse que, com seu histórico de atleta, se pegasse a COVID não seria nada além de uma “gripezinha” ou um “resfriadinho”. É muito autorreferente. A noção de realidade dele não passa da visão de um espelho. Todavia, seu discurso deve servir aos cidadãos, aos outros, não a si.

Inclusive não importa se o idoso é saudável ou não. A COVID-19 é perigosa a partir da idade clínica de 60 anos. Também não é verdade que o perigo só está concentrado nessa classe de cidadãos que o Presidente diz ser de segunda categoria e, portanto, merece estar preso e confinado para não atrapalhar o governo dele. Nos EUA, 40% dos pacientes hospitalizados têm entre 20 e 54 anos. No mundo há casos de mortes de menores por COVID-19.

Vários não-idosos também são do grupo de risco porque têm asma, diabetes ou problemas cardíacos. As crianças, assintomáticas muitas vezes, são vetores de transmissão do vírus. Por isso não adianta isolar apenas parte da sociedade. A transmissão se dá de pessoa para pessoa. Enquanto não existir evidências que se transmite o novo coronavírus por Netflix, a melhor solução segue sendo o isolamento.

A quarentena que a China fez foi estudada por pesquisadores das Universidades de Harvard, Oxford e do Instituto Pasteur que concluíram pela sua eficácia. Além de não existir precedente científico, não há plano: o Governo Federal admitiu não ter plano nenhum sobre esse tal de isolamento vertical.

Só que infelizmente ele é o Presidente do Brasil e tem grande capacidade de influenciar a opinião da população. Logo, no dia seguinte, muitos estavam ecoando esse discurso, fingindo que estavam preocupados com o povo pobre. O discurso é contraditório uma vez que se os pobres forem às ruas, morrerão.

De forma verdadeira temos que se preocupar com o povo quarentenado. Na Índia, 1,3 bilhões de pessoas de maioria miseráveis estão em quarentena. Só que lá, após 36h do anúncio da quarentena, o Governo anunciou socorro à população pobre. Aqui Paulo Guedes demorou muito até mesmo para enviar o Projeto de Lei para conceder o Corona-voucher.

Não é de se estranhar o porquê de que parte da população tenha começado a “comprar” o dis

curso de Bolsonaro. É compreensível na medida em que até então os autônomos e pobres do país não tinham conhecimento de qualquer ajuda digna do Governo. O que havia sido ventilado era uma ajuda de míseros R$200 reais que não resolvia a vida de ninguém. Essa parte da população começou a ficar desesperada.

O empresário também. O Governo anunciou medidas para prorrogar o vencimento do pagamento de tributos, mas não tinha oferecido nenhuma outra ajuda financeira às empresas. É compreensível que os empresários tenham começado a ficar desesperados. Então a demora de Guedes não é só um indício de incompetência: ajuda de sobremaneira o discurso de Bolsonaro.

Estimulados pelo anúncio do Presidente, muitos empresários então em seus carrões marcaram carreatas para apoiar o mote de Bolsonaro de que o Brasil não pode parar. Não compreendemos porque não foi uma passeata, mas deixa pra lá. O importante é pontuar que o discurso do Presidente é incendiário, pois estimula as pessoas a violarem recomendações sanitárias.

No dia 27/03 o Governo anunciou um tímido socorro: linha de crédito para micro e pequenas empresas pagarem parte de salários. Mas isso não representa um gasto definitivo do governo, é empréstimo, um negócio bancário. Com muita demora, enviaram ao Congresso medidas de pagar parte do salário reduzido de empregados e o Projeto ainda tramita. Demorou para o dinheiro chegar “na ponta”: na conta bancária das empresas e de trabalhadores informais.

Os governos no mundo inteiro, apoiado por respeitados economistas, já perceberam que devem deixar de lado um pouco o tema da dívida pública para salvarem vidas e a economia. A lógica é: primeiro salvar vidas, depois saldar dívidas. Se muitos forem demitidos ou tiverem o salário cortado pela metade, simplesmente o consumo diminuirá na mesma proporção, a pobreza aumentará e as empresas vão falir porque não têm a quem vender. É importante que o Governo atue para diminuir o número de desempregados e tente manter o nível de renda da população. Quando passar a crise, a economia tem muito mais condição de se recuperar com estabilidade, como já revelou estudo sobre a gripe espanhola nos Estados Unidos: as cidades que melhores se preparam para combater a doença, melhor a economia se recuperou na sequência.

Se todos obedecerem Bolsonaro e forem às ruas, ao trabalho, em pouco tempo as empresas terão que fechar as portas de qualquer maneira até porque todos vão se infectar naquele estabelecimento e terão que se cuidar, no hospital ou em casa. Ou mesmo estarão em casa cuidando de seus familiares. Enquanto o vírus permanecer se espalhando, o empresário não terá segurança de realizar novos investimentos e os chefes de famílias vão gastar menos já que não têm certeza sobre suas finanças, se vão permanecer empregado ganhando o mesmo.

Quando o vírus parar de se espalhar, quando o número de mortos for cada vez menor do que no dia anterior, a quarentena deverá ir afrouxando gradualmente. Com base em dados científicos e orientações médicas, as pessoas voltam a rua para levar uma vida normal, trabalhando e gastando normalmente.

É por isso que a tática de isolamento social precisa ser feita, a fim de parar o quanto antes o espalhamento do vírus. A fim de que o número de mortos não seja tão grande quanto na Itália, nos EUA e na Espanha. É com desobediência civil, desrespeitando o que o Presidente fala, que o quanto antes vamos ganhar a guerra contra o vírus.

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