4 minute read
Clarice de Assis Rosa
Clarice de Assis Rosa Ituiutaba/MG
Saudades da Minha Infância
Advertisement
Sinto saudades da minha infância, de tudo o que eu podia fazer e hoje não posso mais. Não por ter crescido, mas porque os tempos são outros.
Eu podia chamar meu vizinho de pretinho, que ele ria, com diversão e inocência, podia chamar meu colega de gay, sem estar ofendendo-o, somente por brincadeira mesmo.
Corria pelas ruas, andava de bicicleta, com menor risco de vir um desvairado correndo de carro e atropelar-me ou vir uma pessoa de má fé e abordar-me.
Brincava de biloca, de bandeirinha; os motoristas, quando passavam de carro, diminuíam a velocidade, esperando que nós saíssemos da rua, como se estivessem recordando-se de terem passado por essa fase um dia. Muitas vezes, inclusive, sorriam das nossas peraltices.
Tocávamos campainhas nas casas e saíamos correndo; alguns moradores ficavam muito bravos, aliás, essa era nossa intenção, mas via olhares de idosos, nas sacadas destas casas, sorrindo, como se a pensar: “eu também já fiz isso”.
Gostávamos de brincar com as figuras históricas da cidade. Conhecíamos suas particularidades e excentricidades. Era nossa diversão favorita. Gritávamos: — Maria da tosse! Maria da tosse! (sabíamos que ela não gostava deste apelido). E tossíamos até não aguentarmos mais.
Devido ao fato de ela odiar quando alguém tossia perto dela, corria atrás de nós. E isso nos divertia muito; subíamos nas árvores para nos esconder. — Zé cagão, vou contar pra sua mãe que você fez arte na rua!
E lá vinha ele, com suas calças sempre mais abaixadas que o normal, erguendo-as e jogando pedra em nós.
Hoje tudo é desrespeito, é discriminação, é bullying e já não podemos deixar que nossos filhos brinquem como brincávamos, pois o mundo e as pessoas mudaram, estão mais violentas e maliciosas.
Eu tinha em mim, desde cedo, certa maldade adquirida dos mais velhos, que gostavam de usar-me para atingir outras pessoas. Tinha comigo mágoas e rancores que não deveriam existir no coração de uma criança. Eu me sentia diferente.
Mas bastava eu chegar à casa da minha avó, embalar-me em seus braços, ser acolhida pelo seu carinho, que já voltava a ser criança, com toda a minha pureza e inocência. E juntas aprontávamos muito: botávamos os meninos, que teimavam em subir no pé de goiaba de sua casa, para correr, assustávamos os que tentavam roubar jabuticaba, e nos acabávamos de tanto rir do susto que esses moleques levavam.
Fazia também as minhas maldades, sob a proteção da minha avó. Pegava uma
66
vassoura e tocava todos os amigos do meu irmão, que iam para casa jogar videogame –ela não gostava de barulho e bagunça - e corria para perto dela, que já me esperava de braços abertos para defender-me de tudo e todos.
Eu podia tudo. Furtava mexericas na casa do vizinho, juntamente com a turma, atentava os velhinhos pedindo para que eles tirassem suas dentaduras. Eles riam muito. Imagino, hoje, que era como se estivessem lembrando-se de quando tinham a nossa idade e, querendo ou não, éramos suas únicas companhias. E não os ofendíamos, só brincávamos. Mas hoje seria considerado ofensa.
No momento em que a coisa ficava complicada para o nosso lado, quando, às vezes, jogando bola, quebrávamos a janela do vizinho ou arranhávamos carros, passeando com nossas bicicletas, temíamos e corríamos.
Cada qual sabia onde deveria esconderse. Era sempre para casa da minha avó que eu ia e, prontamente, ela dizia, quando alguém batia em sua porta: — Minha neta? Vocês estão enganados, nenhum dos meus netos sequer saiu de casa hoje.
E quando eu pensava “ixi, agora ela vai brigar comigo”, ela me pedia para contar detalhes e ria, ria muito, ria gostoso.
Todo ano tínhamos festa de aniversário, organizada pela minha avó. Ela fazia questão de preparar tudo, desde os docinhos até o bolo. Enquanto ela viveu, nunca ficamos sem festa de aniversário. E, às escondidas, eu dava doces, bolo, balas, que ela pegava, furtivamente, e guardava onde coubesse; dentro dos paletós no guarda-roupas, nas gavetas, pois era diabética e os filhos não a deixavam comer doces. Eu não sabia das consequências de tal ato, apenas queria agradá-la.
Quando chegava a minha casa, eu já não era mais a criança inocente e travessa. Tinha que ouvir conversas de gente grande, ser alvo de discórdias, usavam-me para isso e eu, sem saber do que se tratava, apenas fazia o que me mandavam. E mesmo sem saber o significado de muitas palavras ditas por mim, era comigo que brigavam. O culpado é sempre quem diz e não quem manda dizer.
Quando chegava ansiosa da escola, lugar em que também não me sentia confortável, pois eu gostava mesmo era de brincar com meus colegas do bairro, corria para a casa da minha avó, que já estava a minha espera. Cantava músicas, contava piadas, histórias de sua infância, causos da família.
Toda a minha infância, as minhas alegrias e travessuras foram vividas com ela ou sob os olhares e aprovação dela.
Um dia ela se foi, eu tinha apenas dez anos. Com ela foi também toda a minha infância, a minha alegria, foi um pedaço de mim que só era mostrado quando estávamos juntas.
Amadureci precocemente. Com dez anos já não era mais uma criança, não podia ser.