LiteraLivre Vl. 5 - nº 27– mai/jun. de 2021
Clarice de Assis Rosa Ituiutaba/MG
Saudades da Minha Infância Sinto saudades da minha infância, de tudo o que eu podia fazer e hoje não posso mais. Não por ter crescido, mas porque os tempos são outros. Eu podia chamar meu vizinho de pretinho, que ele ria, com diversão e inocência, podia chamar meu colega de gay, sem estar ofendendo-o, somente por brincadeira mesmo. Corria pelas ruas, andava de bicicleta, com menor risco de vir um desvairado correndo de carro e atropelar-me ou vir uma pessoa de má fé e abordar-me. Brincava de biloca, de bandeirinha; os motoristas, quando passavam de carro, diminuíam a velocidade, esperando que nós saíssemos da rua, como se estivessem recordando-se de terem passado por essa fase um dia. Muitas vezes, inclusive, sorriam das nossas peraltices. Tocávamos campainhas nas casas e saíamos correndo; alguns moradores ficavam muito bravos, aliás, essa era nossa intenção, mas via olhares de idosos, nas sacadas destas casas, sorrindo, como se a pensar: “eu também já fiz isso”. Gostávamos de brincar com as figuras históricas da cidade. Conhecíamos suas particularidades e excentricidades. Era nossa diversão favorita. Gritávamos: — Maria da tosse! Maria da tosse! (sabíamos que ela não gostava deste apelido). E tossíamos até não aguentarmos mais.
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Devido ao fato de ela odiar quando alguém tossia perto dela, corria atrás de nós. E isso nos divertia muito; subíamos nas árvores para nos esconder. — Zé cagão, vou contar pra sua mãe que você fez arte na rua! E lá vinha ele, com suas calças sempre mais abaixadas que o normal, erguendo-as e jogando pedra em nós. Hoje tudo é desrespeito, é discriminação, é bullying e já não podemos deixar que nossos filhos brinquem como brincávamos, pois o mundo e as pessoas mudaram, estão mais violentas e maliciosas. Eu tinha em mim, desde cedo, certa maldade adquirida dos mais velhos, que gostavam de usar-me para atingir outras pessoas. Tinha comigo mágoas e rancores que não deveriam existir no coração de uma criança. Eu me sentia diferente. Mas bastava eu chegar à casa da minha avó, embalar-me em seus braços, ser acolhida pelo seu carinho, que já voltava a ser criança, com toda a minha pureza e inocência. E juntas aprontávamos muito: botávamos os meninos, que teimavam em subir no pé de goiaba de sua casa, para correr, assustávamos os que tentavam roubar jabuticaba, e nos acabávamos de tanto rir do susto que esses moleques levavam. Fazia também as minhas maldades, sob a proteção da minha avó. Pegava uma