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Marcos Nunes Loiola
Marcos Nunes Loiola Botuporã/BA
Gado solto
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Tirou a camisa, fez menção em abaixar o calção, mas a vergonha das meninas presentes o fez recuar. Entrava nos doze, tornava-se um rapazinho. Tomou distância, preparou o passo. Um, dois, três e... Já! Arrojou-se no meio das “farturentas” águas do rio. Repetia o processo dezenas de vezes, até o sol descer.
Todos os dias, ao chegar da escola, Adriano se reunia com a meninada para brincar na beira do rio. Contavam-se bem umas dez crianças, todas viventes das terras geraizeiras. Sem que soubessem o significado da palavra, elas experimentavam, naquelas tardes, a plenitude da vida. A felicidade era maior que o rio, era maior que o Cerrado. Naqueles fechos de pastos, há muitas e muitas gerações, famílias fincaram raízes e estabeleceram vivências peculiares. As terras sem cercas, que se perdiam de vista no horizonte, não pertenciam a ninguém, mas eram de todo mundo e todo mundo queria bem — com sua licença, Tribalistas.
Valdir e Ana, pais de Adriano, Mauro e Fernanda, viviam numa singela casa a poucos metros do rio, cujas águas sustentavam as pequenas plantações e matavam as sedes das gentes e dos gados. Para ajudar no sustento, Ana fazia rapadura, doces de leite, de goiaba e de umbu para serem vendidos na feirinha da cidade, todos os sábados. Ela adorava seu ofício. O ponto alto ocorria quando D. Gildete, uma velha amiga, chegava na barraquinha e sentava num caixote velho, desses de frutas. Pedia seu doce de umbu, tirava uma faca da bolsa, arrancava um pedaço, cruzava as pernas e o levava à boca. Só saía depois de horas de muita conversa — das intimidades femininas a casos de política. Era um prazer danado naquele dia de sociabilidade para além dos fechos de pastos! Quando as chuvas iam embora daquelas terras, Valdir e os demais criadores da vila montavam em seus alazões e levavam o gado para aproveitar a pastagem revigorada. Gado solto, gado forte! Os homens ficavam meses longe da família, vivendo em cabanas de palhas. Viravam os donos dos lares. Preparavam o café com beiju,
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fritavam a mandioca, cozinhavam o feijão, o arroz tropeiro e o frango caipira. À noite, na beira da fogueira, cantorias e contação de causos. Adriano sonhava em se aventurar com o pai pelos gerais, mas de volta ouvia que era novo demais. O trabalho era pesado. “Você tem de estudar” — dizia. Mas de tanto choro e insistência, Valdir acabou se rendendo. “Os meninos não iriam para a escola, mas isso não significaria ficar sem aprender” — pensava. Certa vez, partiu a família toda pelas vastas estradas. As crianças, entusiasmadas, conheciam e se encantavam com os detalhes das paisagens que, para seus pais, seus avós e bisavós, eram como imagens sacras de beira de cama: cuidadas, veneradas e amadas! Numa certa ocasião, Adriano e os irmãos, sentados em tocos de madeira na beira da fogueira, ouviram de um vaqueiro uma estória macabra: — Vocês conhecem o causo do Olheiro? Eu ainda era um menino quando vi esse cabra pela primeira vez. Ele não tinha corpo, só se via a branquidão dos olhos. Fui urinar no quintal antes de ir dormir e ouvi um barulho na beira do rio. Fiquei parado observando e quase não consegui me mover quando dei fé dos olhos brancos me encarando. Contei a meus pais e eles disseram que era o tal do Olheiro, protetor do rio, e não fazia mal a ninguém. Só aparecia de noite. De dia ficava no fundo do leito d'água. Suei frio adoidado até pegar no sono, tarde da madrugada. O caso jamais saiu da memória de Adriano. Isso porque, tempos depois, enquanto brincava na beira do rio, avistou a chegada de alguns homens bem arrumados. Levavam nas mãos alguns papéis e conversaram por cerca de meia hora, apontando o dedo para os vários cantos das terras. Alguns outros dias depois, a notícia: as terras, agora, tinham donos. Uma parcela do terreno fora vendida (cof! cof!). Não tardou a aparecerem as máquinas desmatando os gerais, a plantação em círculo, as cercas, o esvaziamento dos riachos, as falsas promessas de progresso e as limitações. Não tardou também a emergir a resistência. Associações de moradores foram criadas em defesa das terras e do rio. Por muitas noites, Adriano e os irmãos rezaram para o Olheiro aparecer e sumir com aquela gente, mas quando caíram em si, viviam xingando o vaqueiro: — Cabra mentiroso! Conversa sem futuro!
As crianças das comunidades escreviam cartas para o prefeito, para o governador e também para a polícia reclamando da situação, mas
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não eram ouvidas. A justiça parecia cega, literalmente. Foi quando Adriano, já rapaz, entendeu que precisaria encarnar o Olheiro. Com esforço e dedicação, partiu para a Capital. Sonhava em ser doutor, homem da lei e da Justiça (aquela, com jota maiúsculo). Formou-se advogado. Voltou para sua terra e se dedicou à luta pelo seu povo e seus costumes. Sabedor dos direitos dos povos tradicionais, ameaçou levar o caso até mesmo à ONU.
Todavia, numa tarde contemplando o rio e a paisagem já mudada, recordando-se das travessuras de menino, quis voltar a ser criança. Tirou a camisa, tomou distância, preparou o passo. Um, dois, três e...Bang! Bang! Bang! Foi arrojar-se, cambaleando, no meio das (já não tão) “farturentas” águas do rio. Adriano nunca mais viu o sol descer. O rio sangrava. Revolta. Medo. Seus pais pensaram em ir embora. Mas para onde? Abandonar aquelas terras e a comunidade, além de inviável, significava rejeitar a vida que fazia sentido, a vida que tanto amavam. A resistência, pois, tornou-se a única saída. Fernanda, a caçula, e Mauro, o do meio, com muita dedicação, partiram para a Capital. Inspirados na trajetória do irmão, formaram-se advogados. Corajosos, continuavam a luta do seu povo. Nunca foi só pelo gado solto...