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Jordão Pablo de Pão
Jordão Pablo de Pão Niterói/RJ
Arrebois
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No esvair-se da fina renda do tempo, então minha inquestionável franqueza de existir. Miseravelmente, asas de borboleta minhas não envergam frente ao obsequioso fulgor do sentido gélido desta tarde. Ruflo-as como quem tem sede urgente. Do líquido transparente do termômetro da consciência coletiva, leem as antigas adivinhas da borra de café - na crise, água apenas: serei spo em meio a tantos sós. Paro diante da casa minhas primeiras anuidades. Sob a goiabeira com bichos dependurados ainda está enterrado meu Tobias menino, irmão do ventre de Mercedes, a quem o tempo ceifou cedo demais. Será dele esses bichos infestados na árvore de mamãe? De seiva em seiva, seria o sangue nosso, demasiado humano, um continuum do espermatódico testemunho de existência em caule? Penso que sim. Gosto de pensar que sim. O terreno íngreme de ser pertence a cada um, é coisa tão pessoal e não selecionada. O Tobias agora é um verme ou em seu transporte. Parece melhor assim. Não sou adepto dessa sensação novidadeira que tudo é e o corpo para nada presta. Corpo humano é testemunho - em morte, para os bons de amores, testamento. Tobias - quem sabe - queira me dizer algo… Eu agora uma instável consciência de tempo ilimitado. Ele todo ilimitado. Não sei os tropeços de Tobias e não posso parar de borboletear minhas asas. O chão de nossa convivência está cheio de folhas mortas colo ele, um dia vivos como eu. Os veios da copa desfraldada, sustentada por caule rugoso do centenário fincar, trazem em céu uma sofisticada obra artística do agora: Tobias, para mim, é memória - e eu para ele? Será que, estando ante meus olhos, conseguiria reconhecer o delicado tear que os traz juntos? Seria Mercedes, se em páginas se escrevesse, tinta espessa de inspiração célere? Seria apenas o rabisco entremeante da celulose de algum tempo sendo? Vez ou outra me pego a pensar no conteúdo dessa contingência: em que medida somos? Com o arrastar dos ponteiros na pesada cristaleira de jacarandá, minha agoressência não suporta o misterioso inquérito de estar. Trago muitas perguntas para um corpo tão diminuto. into, por vezes, que o ar é furtado de mim e ao vaguear da estrutura aérea se desfacela em proposta. Resolvo pousar em um ramo da árvore de outrora. Já não temos goiabas boas. Vertem apenas
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os frutos imaturos de um vegetativo sentido de viver. Vermifugam a madeira de parasitária ocupação para a retomada da saúde da goiabeira. Em cada vinco, gotículas inequívocas de extermínio. Quedam existências aliadas. Em cada vinco, futuros posterizados pela dificuldade de relativização. Vão ao terreno folhoso, originam outros seus. Mais bichos do desencantado exercício de ser abreviam a sua temporada. Cada um cuida de uma parte da entranha de Tobias - será? Como fazem viver os órgãos mais mirrados, ácidos por conceito? A morte é especulação também para eles. Toda vida é essencial - ensinaram-nos aos domingos de genuflexório na igrejinha central. Mas também os vermes? Também os funestos? Tobias gostava de correr nesse quintal, sob gritos histéricos de Mercedes. Sedenta de prole, laboriava bolos nas tardes de domingos - dias enfadonhos de engenhos e de convivência. Tinha vó no primeiro dos dias. Mercedes não gostava. Mas a geleia de goiaba era fato: no arrabalde diário, arrastava correntes do prenúncio da semana. Sofria calada a cada sete. O embate, inevitável; o desconforto, sofrido. Quem salvava a manhã era Tobias. A criança circundava a mesa, os acordos, os falatórios como quem exige resolução. Levinha, vovó dizia com olhos entortados: “Mercedes, veja esse seu enteado… Ter de aguentar aqui, nem sangue comunga…”. Reconhecia em vovó esse orgulho besta de quem calhou em nascer aqui ou acolá. Acontece que a idosa mulher não sabia de tudo. Ela não era árvore boa, goiabeira enraizada da infância. Prestava-se ao espaço autoconcedido de fingir raízes. Tudo demasiadamente consolidado. Tudo irrefutável. Tudo absoluto. Família era extinção - Mercedes que o diga. A gestar, fugiu. Jamais aceitariam a mácula da honra. Galhos de censura perfurariam sua carne alva demais para aquele sobrenome. Vovó também tinha segredos e pazes fizeram. Hoje, borboleta, sei, entendo a migração, admiro o intervalo. Tobias também sabia que útero é matéria de ideia. O cérebro semeia no espaço curto de estar o suspiro de registro. Em verdade, meu mano nem se preocupava com isso. Era em trânsito, em testemunho de alegria. Ainda vejo nas folhas os rastros dos nossos tênis pequeninos, ainda que bagunçados - quantas vezes sorteio? quantas vezes Compostela? Abrimos caminhos, escrevemos memórias. Todavia, nem vovó nem Mercedes sabiam - e eu, no âmago, sempre soube… aquela cor… aqueles olhos… aqueles sinais… Tobias era minha única e verdadeira família. Jaz Tobias sob minhas asas.
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