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Fabi Marciele

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Roberto Schima

Roberto Schima

Fabi Marciele Extrema/MG

O Paiero

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Alguém fumou um cigarro muito característico na minha frente, o cheiro era tão forte que mesmo na distância que foi o assopro, ele veio parar no meu campo respiratório. Era fumo de corda, o clássico fumo sertanejo. As casas de todos os meus parentes da roça tinham cheiro de fumo de corda, mas na verdade nunca vi nenhum parente fumar. Quem fumava bastante era a benzedeira. Ela morava pertinho de casa. Lembro da casa dela muito vagamente, era pequena um só cômodo. O terreno era na ladeira e tinha um espação de campo verde, mas não tinha bicho não, talvez galinha. A porteirinha era miúda, passava uma pessoa só. Era uma casa de roça na cidade urbana. Eu ia lá pra ser benzida, não sei de que, mas toda vez que estava ruim minha mãe me levava pra velha. Uma vez ela ficou girando por mim, fez um círculo em minha volta e, enquanto rezava baixinho alguma coisa, também fumava. Antes de começar qualquer ritual ela punha um bocado de fumo na mão, desfiava com a faca, pegava palha e fazia o cigarrinho. Teve uma outra vez que tive que tomar uma bebida amarga, acho que era para o estômago, não lembro. Ela deu num pote para minha mãe, que levou para a casa e me fez tomar todo dia. Eu não gostava muito da velha porque ela me dava coisa ruim pra beber. Não lembro do rosto dela, mas lembro das roupas, ela usava aqueles paninhos de florzinha na cabeça e um saião colorido rodado. Hoje ela me faz lembrar as Cholas da Bolívia, inclusive o cabelo trançado. A madrinha usava cabelo trançado, ela morava na roça e seu cabelo ia até a bunda quando solto, assim, para manter mais tempo o cabelo sem sujar ela fazia a trança. O cabelo dava volta, ela fazia uma ponta juntar

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na outra, usava resto de pano para enlaçar. Era muito bonito toda a delicadeza que isso tinha. Trançar o cabelo é muito feminino, assim como a benzedeira. Nunca vi uma benzedeira homem, é substantivo da mulher mesmo. Minha mãe não sabia trançar cabelo, acho que por isso que quando eu era criança sempre tive cabelo bem curto. Minha mãe não trançava cabelo, mas trançava alho. Os alhos vêm do sítio grudadinhos por uma grande trança feita a partir do seu pé, eles chamam de réstia. Madrinha parecia réstia de alho de costas. A benzedeira não, era uma trança diferente, fazia coque, não lembro bem, só lembro que ela fumava muito e na minha cara. Achava que a benzedeira era bruxa, isso me dava muito medo quando criança, mas hoje não tenho medo e certeza que ela era bruxa. Nada de místico nisso, ela era bruxa porque sabia curar qualquer um com ervas que tinha no quintal. Minha família é católica fervorosa, mas acredita em benzedeira e não acho mal não. Isso aí é sincretismo religioso e tem muito na nossa terra. Gosto de como a gente mistura tudo até virar uma grande religião brasileira. No terreiro que ia, Oxalá era representado por um Jesus Americano (sabe, é aquele Jesus branco, loiro, de olho azul, cabelo liso), mas na porta Oxalá era um Guerreiro Negro. Era tudo assim misturadão, agradava todo o tipo de público, menos os vizinhos que reclamavam do barulho do atabaque. Eles eram como eu criança com a benzedeira: com medo do que tem lá dentro. A porta nunca estava fechada, eles poderiam entrar e descobrir que não havia nada de mal naquilo, mas é mais fácil propagar o preconceito do que entender que é uma religião como qualquer outra. Quando criança eu costumava criticar as religiões que não conhecia, me arrependo muito disso, mas foi assim que aprendi. Também não culpo quem me educou, eles não tiveram estudos suficientes para conseguir entender. Viver no microcosmos que a roça propunha resultava em uma vida atrelada ao preconceito. Claro, é importante educar, inclusive hoje todos ao meu redor são pessoas muito mais livres de preconceitos do que antes, tirando alguns parentes que optaram por se manter nesse

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microcosmo e usarem cabrestos para os posicionamentos que são diferentes aos seus. O fumo de corda faz cigarro de palha e ele é parte desse microcosmo, hoje a gente encontra em qualquer lugar até na cidade grande, inclusive com sabor de menta. Assim ele atrai um público mais jovem, descolado, hipster. No interior ainda não chegou desse modelo, para fumar é mais comum comprar o fumo de corda ainda úmido, nas vendinhas velhas. A palha é a mesma coisa, vende tudo separado e você monta em casa. Assim, só consegue fumar desse tipo quem tem um histórico familiar (ou procura na internet como faz para desfiar o fumo). Os velhos da roça sempre estão desfiando seu fumo no facão, eu cresci vendo isso de perto, um patrimônio imaterial que existe na minha memória e que me foi retomado depois que esse cheiro retornou ao meu nariz. A pessoa que passou na minha frente baforando fumo na verdade era eu. Eu queria fumar corda porque lembrei da benzedeira, do cabelo com trança enrolada, ele não parecia a réstia de alho, que vinha da roça. A roça é um microcosmo cheio de cultura, mas preconceituoso com aquilo que não conhece. A madrinha tinha trança e morava na roça. Minha madrinha morreu.

@shucrutt

https://marcielefabi.medium.com/

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