Revista morashá 94

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ANO ANO

XXIV

edição

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dez DEZ 2016


ANO XXIV - Dezembro 2016 - Nº 94

interior da sinagoga signora, Izmir, Turquia

Conselho de Administração Joseph Yacoub Safra Vicky Safra Clairy Dayan Fortuna Barbara Djmal Esther Safra Dayan

Diretoria Vicky Safra Clairy Dayan Fortuna Barbara Djmal João Inácio Puga Dionysios Emmanuil Inglesis Hiromiti Mizusaki


Carta ao leitor No calendário judaico, há duas festas instituídas por nossos Sábios: Chanucá e Purim. Os eventos que celebramos em Chanucá ocorreram em uma época em que o judaísmo estava ameaçado. Isto é, a guerra dos sírio-gregos não era contra os judeus como povo, mas sim, contra a Torá – a religião judaica e suas leis, valores e ideais. A história de Purim, por outro lado, trata de um homem maligno que visou a exterminar todos os judeus. A guerra de Haman não era contra o judaísmo, e sim, contra o Povo Judeu. Assim, a primeira celebra a continuidade espiritual da nação judaica ao passo que a segunda comemora sua sobrevivência física. Essa diferença se reflete em seus respectivos mandamentos. Chanucá é a festa das luzes: durante oito noites, acendemos azeite de oliva ou velas. No judaísmo, o azeite representa a sabedoria; a vela simboliza a alma; e a luz é a metáfora mais comum utilizada para se referir à Torá e à espiritualidade. O mandamento de acender as velas dessa festa celebra o triunfo da Torá e da alma. Por outro lado, os mandamentos de Purim simbolizam a materialidade: faz-se uma refeição festiva; enviam-se alimentos já prontos para consumo aos amigos; e doa-se dinheiro para que os necessitados também possam alegrar-se nessa data. Já que esta festa celebra a sobrevivência física do nosso povo, observam-se os seus mandamentos por meio de elementos físicos, necessários para a sobrevivência. Aparentemente, o tema central de Chanucá é a alma e o de Purim, o corpo. Contudo, uma reflexão mais profunda nos leva a concluir que Chanucá também celebra a materialidade e que os mandamentos de Purim também possuem um fundo espiritual. Com efeito, o azeite utilizado para acender as luzes da Chanuquiá representa a sabedoria, mas também constitui um alimento rico e saboroso. No que concerne a Purim, inegavelmente se trata de um dia em que se alimenta o corpo, mas a festa é antecedida por um jejum: o Jejum de Esther. Ademais, um dos quatro mandamentos dessa festa é ouvir a leitura da Meguilá, um dos livros do Tanach. Torna-se evidente, portanto, que no judaísmo, o espiritual e o material estão entrelaçados. Chanucá enfatiza a

espiritualidade, mas seus mandamentos e tradições também refletem a materialidade. Já Purim é uma festa cujos mandamentos aparentam ser de cunho materialista, mas, na realidade, contêm um fundo de espiritualidade. Isso nos ensina que tanto o corpo como a alma são sagrados e devem ser muito bem preservados. A Torá revela que a alma, o sopro Divino, é o que dá vida ao corpo, mas que sem um organismo vivo e saudável lhe é praticamente impossível desempenhar sua missão neste mundo. A Cabalá ensina que o ser humano é um microcosmo de todo o universo. Quando ele mantém paz e harmonia entre corpo e alma – quando estes se encontram em equilíbrio e agem em conjunto – unem-se os Céus e a Terra. Neste ano deixaram este mundo dois homens que marcaram a história de nosso povo. Lutaram, de forma diferente, para garantir um futuro melhor para todos nós, judeus. O Rav Joseph Haim Sitruk zt”l, Rabino Chefe da França durante duas décadas, liderou os judeus da França e do mundo de língua francesa em direção à espiritualidade, para que a luz da Torá brilhasse cada vez mais forte. Como outros grandes líderes espirituais do Povo Judeu, o Grão Rabino Sitruk personificou o tema das luzes de Chanucá. Dizia que nós, judeus, “temos uma herança fabulosa, mas infelizmente muitos de nós não a conhecemos”. Portanto, cada judeu tem o dever de receber e transmitir o judaísmo – algo que ele fez durante toda a sua vida. Já Shimon Peres z”l, foi um grande estadista que, seguindo o exemplo de Mordechai e Esther, utilizou seus talentos e sua grande habilidade política para garantir a segurança e o futuro do Estado de Israel e do Povo Judeu. Peres, um dos pais do Estado de Israel, dedicou a vida para assegurar que nenhum inimigo pudesse novamente ameaçar a sobrevivência de nosso povo – para que nós, judeus, pudéssemos ter, após 2.000 anos de exílio e sofrimentos indescritíveis, um Estado Judeu – forte e seguro.


ÍNDICE

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28

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03 carta ao leitor

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06 NOSSAS grandes festas

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As luzes de Chanucá

O dia 10 de Tevet

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personalidade O Grão Rabino Josef Haim Sitruk, zt”l

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história Um evento glorioso

por zevi ghivelder

prêmio nobel Uma lenda: A vida de Bob Dylan escola beit yaacov Vivenciando na prática os valores de Chessed e Tzedaká


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exposição Um Êxodo Judaico para uma nova terra por JOSEPH BERGER

Israel Shimon Peres: Um grande estadista

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comunidades Turquia: há um futuro para os judeus?

49 destaque Os primeiros sinais

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da era Donald Trump por JAIME SPITZCOVSKY

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cartas

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As Luzes de Chanucá Aproximadamente há 2.100 anos, a Terra de Israel estava ocupada pelo império sírio-grego, governado por Antioco. Homem do mal, ele emitiu uma série de decretos com o propósito de forçar o Povo Judeu a abandonar o judaísmo e a adotar a ideologia e os rituais helenistas. Dentre seus esforços para extirpar o judaísmo, ele declarou ilegal o estudo da Torá e o cumprimento de vários de seus principais mandamentos. Ademais, os síriogregos profanaram o Tempo Sagrado de Jerusalém com seus ídolos.

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m resposta à opressão e aos decretos nefastos de Antioco, e percebendo que o futuro do judaísmo estava em jogo, um número pequeno de judeus, os Macabeus, em gritante inferioridade numérica, ergueram contra as forças de ocupação sírio-gregas na Terra de Israel. Ainda que fossem minoria – e de terem o apoio de apenas 10% da população judaica, que já estava se helenizando – os Macabeus derrotaram o poderoso exército sírio-grego, expulsando-os de nossa terra. Quando reconquistaram o Templo Sagrado, em 25 do mês hebraico de Kislev, foram acender a Menorá do Templo – o candelabro de sete braços –, mas se depararam com o azeite de oliva ritualmente puro propositalmente contaminado pelos síriogregos. Encontraram, no entanto, um único frasco que havia escapado aos invasores. Continha apenas o azeite suficiente para acender a Menorá durante um único dia – e levaria oito dias para produzir azeite ritualmente puro. Os Macabeus acenderam a Menorá com aquele pouquinho que, milagrosamente, durou oito dias – o tempo suficiente para a produção de novo azeite ritualmente puro. Para divulgar e celebrar esses milagres – o da vitória e o do azeite – nossos Sábios estabeleceram a festividade de oito dias de Chanucá.

O principal mandamento de Chanucá é o acendimento da Chanuquiá – uma Menorá de oito braços. Este ano, começamos a acendê-la no sábado à noite, após o término do Shabat, na noite de 24 de dezembro de 2016.

A Chanuquiá Os elementos básicos de uma Chanuquiá são oito suportes para azeite ou velas. Adicionalmente, deve haver outro suporte para o Shamash – a vela “auxiliar”. Muitos têm o costume de usar velas de cera de abelha para o Shamash. Este fica um pouco acima ou abaixo do que as demais velas ou suportes para o azeite: é importante distingui-lo dos demais, senão poderia parecer que a Chanuquiá tivesse nove braços. Uma vez acesas as velas de Chanucá, não se deve apagar o Shamash. São duas as razões para tal. Primeiro, o Shamash deve estar pronto para servir, fazendo jus a seu nome: no caso de uma vela ou pavio se apagar, pode ser aceso novamente com o “auxiliar”. Outra razão para deixarmos o Shamash aceso é a proibição de usar as luzes de Chanucá para qualquer outro propósito além de cumprir o mandamento de acender a Chanuquiá. Assim sendo, se alguém necessita de uma fonte de 7

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luz, por alguma razão, pode usar o Shamash, mas não uma das luzes da Chanuquiá. Estas podem ser alimentadas por azeite ou pelas chamas de velas. Mas como o milagre de Chanucá envolveu o azeite de oliva – o suprimento de azeite para um dia que durou oito dias – é preferível acender a Chanuquiá com azeite em vez de velas. Deve-se dar preferência ao azeite de oliva como combustível e ao pavio de algodão porque estes produzem uma chama bem perfeita. É importante notar que não se devem usar Chanuquiot elétricas. Elas podem ser colocadas em locais públicos para divulgar os milagres de Chanucá – mas não para cumprir o mandamento. Para isso, devemos acender as luzes da Chanuquiá com chamas reais, produzidas pela cera ou o azeite – como as chamas da Menorá do Templo Sagrado de Jerusalém. O acender das luzes de Chanucá é um mandamento que cabe tanto a homens quanto a mulheres.

ou uma mesa pequena perto do vão da porta onde está a Mezuzá. Dessa forma, quando as pessoas passam pelo vão da porta, estão rodeados por dois mandamentos – a Mezuzá de um lado e a Chanuquiá de outro. Outra opção é colocá-la no peitoral de uma janela de frente para a rua. Essa opção é preferível se as luzes de Chanucá puderem ser vistas pelo público passante. As luzes de Chanucá são acesas noite após noite nesta festividade de oito dias. Acendemos uma luz na primeira noite, duas na segunda e assim por diante. Na oitava e última noite, acendemos todas as oito luzes. Há diferentes costumes também acerca do horário exato para o acendimento. A maioria das comunidades o faz ao cair da noite – cerca de meia hora após o pôrdo-sol. Outras o fazem logo após o pôr-do-sol. Em qualquer dos casos, as luzes de Chanucá devem arder durante um mínimo de 30 minutos após o cair da noite. Qualquer que

Algumas comunidades têm o costume de que o chefe da casa acenda a Chanuquiá enquanto todos os demais ouvem com atenção as bênçãos e respondem “Amén”. Em outras comunidades, todos os integrantes da casa, inclusive as crianças, acendem sua própria Chanuquiá. Qualquer que seja o costume, é importante que todos os judeus, de todas as idades, estejam presentes e envolvidos quando o mandamento de acender as luzes de Chanucá é cumprido. Há, também, diferentes tradições sobre o local do lar em que se coloca a Chanuquiá. Alguns a colocam em uma entrada central, em uma cadeira 8

seja o costume seguido, na noite de 6a feira, todas as comunidades acendem as velas de Chanucá antes do sol se pôr e, no sábado à noite, após o cair da noite, pois é proibido acender fogo durante o Shabat. Portanto, ao entardecer da 6a feira acendemos a Chanuquiá logo antes de acender as velas do Shabat. Estas últimas tradicionalmente são acesas 18 minutos antes do sol se pôr. Na 6ª feira, devemos usar azeite suficiente ou velas suficientemente grandes para que as luzes de Chanucá fiquem acesas durante meia hora após o cair da noite – cerca de 1 ½ horas após a entrada do Shabat. Uma vez iniciado o Shabat, não podemos reacender chamas apagadas nem mover de lugar a Chanuquiá; tampouco preparar as velas para serem acesas sábado à noite. Isso somente poderá ser feito ao término do Shabat. Sábado à noite, as luzes de Chanucá são acesas após a realização da Havdalá. Deve-se acender a Chanuquiá tão logo seja permitido, porque maior mérito tem aquele que se apressa em cumprir os mandamentos Divinos. Portanto, somente se deve postergar o acendimento das luzes enquanto se espera pela chegada dos familiares que desejam estar presentes nesse momento tão importante. Se alguém perdeu o horário adequado do acendimento da Chanuquiá – por exemplo, por ter chegado muito tarde em casa – essa pessoa pode cumprir o mandamento desde que ainda haja gente na rua ou se outro membro da família estiver acordado para acompanhá-lo. Caso as ruas estiverem vazias e ninguém estiver acordado, ele poderá acender as velas, mas sem dizer as bênçãos que são recitadas antes de cumprir esse mandamento.


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Após acender a Chanuquiá, é costume cantar canções tradicionais da festividade, como HaNerot Halalu e Maoz Tsur, devendo-se ficar em volta do candelabro durante meia hora, pelo menos. Uma das razões para tal é para assegurar que as luzes ardam, no mínimo, pelo tempo de meia hora. Às 6as feiras, quando as pessoas se preparam para ir à sinagoga ou para receber o Shabat, não é necessário sentarse 30 minutos ao redor das luzes da Chanuquiá. Há uma tradição de que as mulheres não devem realizar tarefas domésticas enquanto a Chanuquiá estiver acesa. Desta forma, estão honrando as corajosas mulheres judias que ajudaram a assegurar a vitória militar dos Macabeus. Em Chanucá, é tradição comer alimentos ricos em azeite, como os deliciosos sufganiot (sonhos) e os latkes (panquecas de batata fritas), celebrando também dessa forma o milagre do azeite. Vimos um resumo das leis de Chanucá. Como dissemos, diferentes comunidades guardam diferentes tradições. Para maiores informações ou em caso de dúvidas, deve-se consultar com um rabino ou uma autoridade competente em Halachá, a Lei Judaica.

Celebrando o milagre O mandamento fundamental de Chanucá é o acendimento das velas, ou, o que é ainda melhor, do azeite de oliva. Esse mandamento recorda os dois milagres que celebramos durante essa festividade. O primeiro foi o triunfo dos Macabeus sobre os sírio-gregos – superpotência militar à época, que ocupava a Terra de Israel. A revolta dos Macabeus foi uma resposta às atrocidades

cometidas contra o Povo Judeu pelo exército sírio-grego e por sua campanha para coagir nosso povo a renunciar ao judaísmo e a se assimilar e abraçar as crenças helenísticas, seus ideais e sua cultura. O segundo milagre foi o do azeite. O acendimento da Menorá com azeite de oliva ritualmente puro era um componente importante do serviço diário no Beit HaMikdash – o Templo Sagrado de Jerusalém. Após libertá-lo das mãos do exército invasor, os Macabeus encontraram um único frasco de óleo ritualmente puro, que escapara à profanação proposital pelos sírio-gregos. O frasco continha o azeite suficiente 9

para acender a Menorá durante um único dia. Seriam necessários oito dias para produzir azeite ritualmente puro. Os judeus foram em frente e acenderam a Menorá com o que tinham. Mas uma ocorrência sobrenatural mudou o jogo: o azeite milagrosamente durou o tempo necessário para a produção de novo azeite ritualmente puro. O fenômeno sobrenatural do suprimento de um dia ter queimado durante oito dias não foi apenas um milagre, mas também um sinal Divino de que os Macabeus deviam sua vitória militar à Providência Divina. Haviam lutado brava e valentemente, mas não fosse DEZEMBRO 2016


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Entre todas as festividades de nosso calendário, talvez Chanucá seja a mais conhecida e apreciada pelos não judeus. A Chanuquiá em locais públicos é acesa por muitos governantes e líderes políticos, inclusive aqui no Brasil.

pela Mão Divina, eles não teriam triunfado. Eram um grupo pequeno de homens que se levantaram contra os gigantes militares da época. Tivesse tudo corrido de acordo com as leis da natureza, teria sido uma derrota fragorosa: as possibilidades de terem vencido eram tão remotas quanto o suprimento de um dia de azeite ter durado oito dias – praticamente impossível, não fosse a Ajuda Divina. A festa de Chanucá, de oito dias, celebra milagres porque tudo nessa festividade é milagroso: a vitória militar, o fato de que os sírio-gregos

tenham, de uma forma ou de outra, deixado passar um recipiente de azeite ritualmente puro e o fenômeno sobrenatural de que essa quantidade de azeite tivesse ardido oito dias – exatamente o número de dias necessários para a produção de novo azeite ritualmente puro. Entre todas as festividades de nosso calendário, talvez Chanucá seja a mais conhecida e apreciada pelos não judeus. A Chanuquiá em locais públicos é acesa por muitos governantes e líderes políticos, inclusive aqui no Brasil. É acesa na Casa Branca e até no Kremlin. O motivo para isso é que a mensagem de Chanucá é atemporal e universal – aplica-se a todos os seres humanos, independentemente de religião, nacionalidade e etnia. Os temas da festa ressoam no coração de todas as pessoas boas e decentes e a Festa das Luzes nos ensina que os milagres acontecem. Chanucá nos faz recordar, ano após ano, que, cedo ou tarde, a luz impera sobre a escuridão e, no fim, a bondade acaba triunfando sobre a maldade.

A Chanuquiá e a Menorá Como vimos acima, acendemos as luzes de Chanucá para celebrar o milagre do azeite usado para acender a Menorá do Templo Sagrado. Há, no entanto, claras diferenças entre a Chanuquiá – a Menorá de Chanucá – e a Menorá do Templo Sagrado, além do fato de que uma tem oito braços e a outra tinha sete. Uma das diferenças é que o número de luzes acesas na Menorá do Templo era constante. Diariamente, todos os sete braços eram acesos. Já em Chanucá, acendemos uma luz na primeira noite, duas na segunda noite e assim por diante. 10


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Na oitava e última noite, acendemos todas as oito luzes festivas. Outra diferença é o fato de que no Templo Sagrado, a Menorá era acesa durante o dia – ao passo que, excetuando-se a tarde de 6a feira devido ao Shabat, as luzes de Chanucá são acesas quando cai a noite e a escuridão. Ademais, a Menorá ficava acesa dentro do Templo Sagrado, enquanto que a Chanuquiá deve ficar, idealmente, próxima a uma janela, para que suas luzes possam ser vistas pelo público de fora, divulgando assim os milagres que celebramos durante a festividade. Há ainda outra diferença, bem acentuada, entre o acendimento da Menorá e da Chanuquiá. A Menorá, construída por Moshé, simboliza a independência e a autossuficiência do Povo Judeu. No deserto, fomos liderados pelo maior líder judeu e profeta de todos os tempos, e todas as necessidades materiais da nação estavam providas: o maná que caía dos Céus e o poço de Miriam que lhes fornecia água em abundância. Foram anos de abundância espiritual para o Povo Judeu, pois quando o ser humano está livre de preocupações, ele pode melhor dedicar-se aos assuntos Divinos. Quando o maná caía dos Céus, havia mais tempo e tranquilidade para se dedicar a estudar a Palavra de D’us. Quando há paz e prosperidade, as pessoas geralmente têm mais tempo para se dedicar a cumprir os mandamentos da Torá.

gregos, que profanaram o segundo Templo Sagrado de Jerusalém. O Povo Judeu sofria terrível opressão, seu exército era pequeno e muitos judeus se estavam assimilando. Essas limitações físicas e dificuldades refletiam o frágil estado espiritual da nação judaica. Isso explica porque apenas 10% do Povo Judeu apoiou a revolta dos Macabeus. A falta de

Diferentemente da Menorá de sete braços, a Chanuquiá nos faz lembrar incidentes que foram milagrosos, mas que ocorreram em tempos difíceis para o Povo Judeu. A Terra de Israel estava sob o domínio dos tirânicos sírio11

azeite ritualmente puro para acender a Menorá simbolizou a falta de espiritualidade dos judeus à época.

Chanucá e a necessidade de luz adicional Em tempos de abundância material e espiritual, quando reina a paz e a prosperidade, o Povo Judeu não é compelido a executar atos de extremo auto sacrifício. Quando tudo corre bem, não há necessidade urgente de luz adicional: falando por metáforas, pode-se acender o mesmo número de luzes a cada dia e não é necessário fazer grandes esforços para iluminar o mundo que nos cerca. Mas quando reinam a escuridão e a opressão, como na época em que os Macabeus tiveram que ir à guerra, não basta que as pessoas vivam dentro de sua zona de conforto. Em tais circunstâncias, é necessário muito auto sacrifício para aumentar a luz do mundo. Essa é uma das principais mensagens das luzes de DEZEMBRO 2016


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nobre não se deve permitir ser intimidado. Pelo contrário. Os desafios devem incitá-lo à ação. Como os Macabeus, que foram a uma guerra que parecia invencível, e, assim como nossos antepassados, que insistiram em acender a Menorá com o azeite sagrado que só bastaria para um dia, nós nunca devemos recuar nem desistir de nada, especialmente quando a luta for por uma causa digna. O ser humano que assim age, que está disposto a se sacrificar em benefício dos demais e que quer aperfeiçoar-se, e que não se satisfaz com as conquistas passadas, esse ser humano pode contar com a ajuda de D’us para ser vitorioso e bem sucedido. D’us o ajudará como Ele ajudou aos Macabeus. Em outras palavras, quando vivermos uma vida sobrenatural e não permitirmos que o mundo natural nos dite como devemos viver, D’us fará milagres para nós. Viver uma vida sobrenatural significa produzir luz adicional para que a mesma possa vencer a escuridão e vencer todas as formas do mal. Chanucá. Elas nos ensinam que não é suficiente que um judeu ilumine sua casa – ou seja, seu domínio privado. Apesar do grande esforço envolvido, cada ser humano consciencioso precisa se empenhar em iluminar o mundo. Diferente da Menorá, que era acesa de dia e no interior do Templo Sagrado, nós acendemos a Chanuquiá quando a noite cai, e a colocamos onde suas luzes possam ficar visíveis àqueles que passem pela rua. Isso nos ensina que a luz é especialmente necessária quando está escuro do lado de fora. Diferentemente da Menorá, cujo número de luzes

era constante, a Chanuquiá nos ensina que em épocas de desafios espirituais, não é suficiente gerar a mesma quantidade de luz como no passado. Cada dia que passa, precisamos constantemente avançar em tudo o que se refere à espiritualidade, santidade e bondade. Nunca devemos nos dar por satisfeitos com nossas conquistas, não importa quão sensacionais sejam. Pelo contrário, sempre devemos nos esforçar para conquistar mais, gerando assim mais luz para o mundo. As luzes de Chanucá também nos ensinam que em tempos de grande escuridão espiritual, um ser humano 12

Todos os seres humanos que produzem luz estão transformando o mundo: eles estão ajudando a frui-lo por completo – até o dia em que o mundo todo será de luz. Quando isso acontecer, o azeite de oliva ritualmente puro será levado para acender a Menorá do terceiro Templo Sagrado de Jerusalém – que será eterno e que, com a ajuda de D’us, será construído muito em breve, em nossos dias. Amén, ken yehi ratsón.

Bibliografia

Rabi Menachem Mendel Schneerson – Likutei Sichot, volume 1, pg. 89


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acendendo a Chanuquiá Todas as noites, antes de acender as velas pronunciam-se as seguintes bênçãos:

Baruch Atá A-do-nai, E-lo-hê-nu Mêlech haolam, asher kideshánu bemitsvotav, vetsivánu lehadlic ner Chanucá.

A cada noite, após recitar as bênçãos, acendem-se as velas da Chanuquiá com o shamash, que é colocado na Chanuquiá de modo a ficar mais alto do que as demais chamas. Após acender as velas, recita-se em seguida Hanerot halálu:

Bendito és Tu, Eterno, nosso D’us, Rei do Universo, que nos santificaste com Teus mandamentos, e nos ordenaste acender a vela de Chanucá.

Baruch Atá A-do-nai, E-lo-hê-nu Mêlech haolam, sheassá nissim laavotênu, bayamim hahêm, bazeman hazê.

Bendito és Tu, Eterno, nosso D’us, Rei do Universo, que fizeste milagres para nossos antepassados, naqueles dias, nesta época. Apenas na primeira noite, depois de recitar as duas bênçãos, recita-se o shehecheyánu:

Baruch Atá A-do-nai, E-lo-hê-nu Mêlech haolam, shehecheyánu vekiyemánu vehiguiyánu lazeman hazê.

Bendito és Tu, Eterno, nosso D’us, Rei do Universo, que nos deste vida, nos mantiveste e nos fizeste chegar até a presente época.

Costuma-se colocar a Chanuquiá sobre uma mesa no lado esquerdo da porta de entrada, em frente à mezuzá, ou na janela que dá para a via pública. Os seguintes horários são referentes apenas a São Paulo. 1ª noite 25 de Kislev Sábado, 24 de dezembro, a partir de 20:32 horas, após a Havdalá 2ª noite 26 de Kislev Domingo, 25 de dezembro, a partir de 20:25 horas 3ª noite 27 de Kislev Segunda-feira, 26 de dezembro, a partir de 20:25 horas

Hanerot halálu ánu madlikim, al hanissim veal hapurkan, veal haguevurot veal hateshuot, veal haniflaot, sheassita laavotênu, bayamim hahêm, bazeman hazê, al yedê cohanêcha hakedoshim. Vechol shemonat yemê Chanucá, hanerot halálu côdesh hem, veen lánu reshut lehishtamesh bahem êla lir’otan bilvad, kedê lehodot lishmêcha, al nissêcha, veal nifleotêcha, veal yeshuotêcha.

Acendemos estas luzes em virtude dos milagres, redenções, bravuras, salvações, feitos maravilhosos e auxílios que realizaste para nossos antepassados, naqueles dias, nesta época, por intermédio de Teus sagrados sacerdotes. Durante todos os oito dias de Chanucá, estas luzes são sagradas, não nos sendo permitido fazer qualquer uso delas, apenas mirálas, a fim de que possamos agradecer e louvar Teu grande nome, por Teus milagres, Teus feitos maravilhosos e Tuas salvações. 13

4ª noite 28 de Kislev Terça-feira, 27 de dezembro, a partir de 20:26 horas 5ª noite 29 de Kislev Quarta-feira, 28 de dezembro, a partir de 20:26 horas 6ª noite 30 de Kislev Quinta-feira, 29 de dezembro, a partir de 20:26 horas 7ª noite 1 de Tevet Sexta-feira 30 de dezembro, às 19:38 horas, antes de

acender as velas de Shabat

8ª noite 2 de Tevet Sábado, 31 de dezembro, a partir de 20:35 horas, após a Havdalá

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O Dia 10 de Tevet O dia 10 do mês hebraico de Tevet é um dia de jejum e de luto nacional para o Povo Judeu, pois marca o início do sítio a Jerusalém pelos exércitos de Nabucodonozor, no ano de 425 A.E.C, e a subsequente destruição do Primeiro Templo Sagrado. Essa data é considerada o início da dispersão de nosso povo e de todas as provações e tragédias que se seguiram.

O

10o dia do mês hebraico de Tevet é um dos quatro jejuns de menor importância no ano judaico. Dizemos um jejum de menor importância, comparando-o a Yom Kipur e Tisha b’Av, dias em que jejuamos durante 24 horas ou mais, e por se tratar de um jejum em que nos abstemos de ingerir alimentos e bebidas apenas desde um pouco antes do nascer do sol até o anoitecer.

inclusive seus líderes, caçoavam dos profetas, acusando-os de “falsas profecias de um destino cruel” e alegando que eles tinham o hábito de desmoralizar o povo. Chegaram, mesmo, a assassinar um dos profetas. Até que, em 10 de Tevet do ano de 3336 (425 a.E.C.) os exércitos do imperador Nabucodonozor, da Babilônia, sitiaram Jerusalém. D’us retardou a destruição para dar aos judeus a oportunidade de se arrependerem. Enviou o profeta Jeremias para reprovar e advertir o Povo Judeu, mas em vez de ouvir seu chamado, eles o aprisionaram. Assim, 30 meses depois, no 9o dia do mês hebraico de Tamuz de 3338, os exércitos babilônicos romperam os muros de Jerusalém e, em Tishá b’Av, o nono dia do mês de Menachem Av, destruíram o Templo Sagrado de Jerusalém e exilaram o Povo Judeu.

Além do jejum, o dia 10 de Tevet é guardado como um dia de luto e arrependimento. Nas rezas matinais, incluem-se as Selichot - preces de penitência. Em tempos recentes, essa data passou a ser o dia em que se diz Kadish em memória das vítimas do Holocausto, muitos dos quais têm seu dia de martírio desconhecido. Este ano, o dia 10 de Tevet cairá no dia 8 de janeiro de 2017.

Por que jejuamos em 10 de Tevet?

De certa forma, o jejum de 10 de Tevet é extremamente duro, pois, diferentemente dos demais jejuns de menor importância, é cumprido mesmo quando cai em uma sexta-feira. Geralmente, é proibido jejuar nas sextas-feiras porque isso interferiria com os preparativos para o Shabat e não é adequado entrar em um dia sagrado sentindo-se faminto. Por esse

Essa data marca o início da queda de Jerusalém e o subsequente exílio do Povo Judeu. Durante muitos anos, à época do primeiro Tempo Sagrado de Jerusalém, D’us enviava Seus profetas para alertar o Povo Judeu que se não melhorassem seu comportamento, Jerusalém e o Templo Sagrado seriam destruídos. Muitos judeus, 14


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reconstrução da cidade de david, no início do período do primeiro templo, com base nas eScavações em shiló

motivo, quando os demais jejuns menores caem na sexta-feira, eles são antecipados para a quinta-feira. No entanto, o jejum de 10 de Tevet, como dissemos, deve ser cumprido mesmo em Erev Shabat, a véspera de Shabat. Há uma opinião que defende que se essa data caísse no Shabat, jejuar-se-ia nesse dia. Isso comprova a dureza desse dia de jejum, pois mesmo o de Tishá b’Av – que dura uma noite e um dia inteiros - nunca é realizado no Shabat. Quando acontece de cair no Shabat, o jejum é adiado para o dia seguinte. O jejum do dia 10 de Tevet é tão severo pelo fato de ser visto como o início da cadeia de eventos que culminaram com a queda de Jerusalém e a destruição do Templo Sagrado, e o subsequente exílio do Povo Judeu. Apesar do seu retorno à Terra de Israel após os 70 anos de exílio na Babilônia e

apesar da construção do segundo Templo Sagrado, a nação nunca se recuperou, de fato, da queda do primeiro Reino de Israel. O sítio a Jerusalém ocorrido em 10 de Tevet foi, portanto, a origem de todas as calamidades na História Judaica. E foi aí que começaram a dispersão de nosso povo e todas as provações e atribulações e tragédias que se seguiram. Essa data é também o dia da recordação de dois eventos trágicos que ocorreram nos dias que antecederam o 10 de Tevet. O primeiro deles ocorreu em 8 desse mês e foi a tradução da Torá para o grego. Ptolomeu, o imperador egípcio-grego que estava no poder, reuniu 72 sábios da Torá, isolando-os em 72 aposentos separados e lhes ordenando que traduzissem a Torá para o grego. No 8º dia de Tevet do ano 3515 15

(246 a.E.C.) eles produziram 72 traduções idênticas! Foi um feito milagroso, particularmente porque havia 13 pontos onde os tradutores divergiram intencionalmente da tradução literal, para evitar que a Torá fosse mal interpretada por não judeus ao ler a tradução. Todos os 72 sábios traduziram essas 13 passagens da mesmíssima maneira! Apesar desse grande milagre, nossos Sábios viram essa tradução da Torá como um dos dias mais trágicos na História Judaica. Chegaram, mesmo, a compará-lo com o dia em que os judeus fizeram o Bezerro de Ouro. Aparentemente, a tradução da Torá não deveria ser considerada um evento negativo. O próprio Moshé traduziu a Torá para 70 idiomas. No entanto, diferentemente dessa tradução e das traduções de nossos textos sagrados feitas ao longo dos tempos, especialmente em anos DEZEMBRO 2016


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Homem verdadeiramente incorruptível, Ezra era também um ser de grande compaixão, profunda visão, carisma e erudição quase sem paralelo. Pode-se dizer que Ezra HaSofer é o responsável pela sobrevivência do judaísmo até nossos dias. Por esse motivo, marcamos o dia de seu falecimento como um dia muito triste no calendário judaico.

recentes, a tradução ordenada pelo imperador egípcio-grego não era uma empreitada sagrada nem Divina, mas um projeto humano motivado por uma intenção maldosa. Portanto, era como um bezerro de ouro – um receptáculo definido pelo homem para a Verdade Divina. O propósito do imperador ao ordenar a tradução não era disseminar o estudo da Palavra de D’us, mas permitir uma distorção do significado original da Torá. E, de fato, a tradução grega da Torá ajudou os judeus helenistas a introduzir a cultura grega na vida judaica e a modificar o judaísmo de modo a adaptá-lo aos valores gregos e seu estilo de vida. O uso do idioma grego para traduzir a Torá teve amplas ramificações na sociedade judaica: minou alguns dos esforços dos rabinos no combate ao fascínio que os gregos exerciam sobre os judeus.

O segundo evento trágico que antecedeu o dia 10 de Tevet foi o falecimento de Ezra HaSofer, Ezra, o Escriba, que morreu no dia 9 desse mês, do ano de 3448 (313 a.E.C.) – 1000 anos após a entrega da Torá no Monte Sinai. Nossos Sábios ensinam que se D’us não nos tivesse dado a Torá por intermédio de Moshé, Ele o teria feito através de Ezra. Este conduziu o retorno do Povo Judeu à Terra de Israel após o Exílio da Babilônia. Ele supervisionou a construção do Segundo Templo, fortaleceu o cumprimento das leis do Shabat e ajudou a pôr fim à onda de casamentos mistos que dizimava o Povo Judeu à época. Como chefe da Grande Assembleia de Sábios e Profetas, a Anshei Knesset HaGuedolá, Ezra compilou os 24 livros do Tanach (Torá, Profetas e Escritos – Torá, Neviim e Ketuvim) e, ao instituir uma série de práticas judaicas, assegurou a continuação do judaísmo autêntico entre o Povo Judeu. 16

Como jejuar nos três dias – 8, 9 e 10 de Tevet – seria fora de propósito, os eventos tristes dos outros dois dias são incluídos no jejum do dia 10. Isso condiz com a política rabínica de reunir as comemorações tristes aos dias já consagrados ao jejum para evitar povoar o calendário judaico com tantos dias de recordações trágicas. Aliás, essa é a razão pela qual a celebração que homenageia a destruição das comunidades judaicas de Worms, Speyers e Mainz pelos Cruzados, em 1096, é marcada pelo jejum de Tishá b’Av, ainda que essas destruições tenham ocorrido em outros meses do nosso calendário. A política de minimização do número de dias de celebração de eventos tristes se tornou prática aceita em toda a História Judaica, até o Holocausto. Como a Shoá não teve paralelo na história do Povo Judeu na Diáspora, como a enormidade da tragédia supera todas as demais, o Estado de Israel designou uma data especial apenas para o Dia da Recordação do Holocausto. Os rabinos, contudo, também atribuem a recordação do Holocausto ao dia 10 de Tevet. Esse dia, como mencionamos acima, é quando recitamos o Kadish por aqueles que foram mortos no Holocausto, mas cuja data de falecimento é desconhecida. Assim, nessa data, não apenas recordamos nossos 7 milhões de mártires; também jejuamos e choramos por eles.


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Um dia de arrependimento Há um antigo costume de se proferir palavras inspiradoras que despertem a alma para o arrependimento nos dias de jejum, como o 10 de Tevet. Há vários temas sobre os quais nós, judeus, devemos refletir nesse dia. Primeiro, devemos ter em mente que quando o imperador da Babilônia e suas tropas tomaram Jerusalém, nenhum judeu podia entrar na cidade ou deixá-la. Todos os seus habitantes foram forçados a viver em comunidade. O Talmud ensina que: “D’us envia a cura antes da doença”. O sítio à Jerusalém foi um exemplo desse ensinamento talmúdico: D’us deu aos judeus da cidade a oportunidade de se unirem. Se assim o tivessem feito, teriam saído vitoriosos sobre o exército babilônico. Mas os judeus não se uniram e o resultado foi destruição e exílio. O exílio que se seguiu à queda do primeiro Templo Sagrado durou apenas 70 anos, mas a História Judaica nunca mais foi a mesma. Um segundo Templo foi construído, mas era desprovido dos inúmeros milagres que ocorreram no primeiro. Os judeus retornaram à Terra de Israel liderados por Ezra, o Escriba, mas eles nunca mais desfrutaram do mesmo grau de independência que tinham antes. A queda do primeiro Templo Sagrado foi, portanto, o início de nosso atual exílio, que durou cerca de 2000 anos.

O jejum de 10 de Tevet, bem como os de 17 de Tamuz e 9 de Av, nos recordam que quando os exércitos inimigos quiseram destruir o Reino de Israel, eles atacaram Jerusalém.

E o início da queda do primeiro Templo ocorreu em 10 de Tevet. Isso foi a origem de todos os problemas e tragédias que se seguiram ao longo da história de 17

nosso povo. Por esta razão, o jejum de 10 de Tevet é tão especialmente severo, que não pode ser adiado nem antecipado nem mesmo quando cai na véspera do Shabat. Desde a queda do segundo Templo, vivemos no exílio já há quase dois milênios. O Talmud nos ensina que a principal causa desse exílio foi o ódio entre os judeus. Quando há harmonia e unidade entre nós, judeus, somos invencíveis. Não precisamos voltar atrás, às histórias do Tanach para o corroborar. A história de Israel demonstra que quando o Povo Judeu está unido, o Estado e suas forças armadas são imbatíveis. Mas, quando há, e que D’us não o permita, ressentimento e ódio entre nós, o resultado é derrota e exílio. O sítio de Jerusalém no dia 10 de Tevet deu ao Povo Judeu a oportunidade de remediar a causa do exílio antes que tivesse DEZEMBRO 2016


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começado. Infelizmente, o povo não se apercebeu nem se utilizou da cura antes e nem mesmo depois da doença se ter instalado... Assim como ocorreu da primeira vez, todos os anos o dia 10 de Tevet é um dia auspicioso para que todos os judeus se empenhem em curar a causa primária de nosso exílio. Isso se faz criando harmonia e paz entre nós e nossos irmãos, o Povo Judeu.

Quer em Israel ou na Diáspora, nós enquanto povo devemos esforçarnos para admitir que apesar de nossas diferenças religiosas ou políticas, o que nos une é muito maior do que o que nos separa. Não importa quão grande a distância política ou religiosa entre nós; é muito, mas muito melhor viver em paz com nossos irmãos judeus do que enfrentar a derrota, o exílio e a destruição.

A defesa de Jerusalém Há outra questão sobre a qual devemos refletir no dia 10 de Tevet – o nosso vínculo com a cidade sagrada de Jerusalém. Essa cidade foi, é e será para sempre a Capital do Povo Judeu. Jerusalém não é apenas a capital política do Estado de Israel – é também a capital espiritual de nossa nação. O jejum de 10 de Tevet, bem como os de 17 de Tamuz e 9 de Av, nos recordam que quando os exércitos inimigos quiseram destruir o Reino de Israel, eles atacaram Jerusalém. Perceberam que se a Cidade Santa caísse, o Povo Judeu cairia. Jerusalém é o coração da Terra de Israel. Um Reino de Israel sem Jerusalém é como um organismo humano sem coração. Portanto, precisamos reconhecer Jerusalém pelo que a cidade é. Devemos promovê-la e protegê-la. Jerusalém é o centro espiritual do mundo e a chave de sua redenção. Hoje, os inimigos do nosso povo, como os antigos babilônios e

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romanos, atacam nossa nação indo atrás de Jerusalém. Seu desejo supremo é extirpar os judeus da única Pátria Judaica para que novamente estejamos indefesos, como estivemos durante 2000 anos, quando não tínhamos país nem exército. Sua estratégia para executar esse plano nefasto é tentar criar uma cisão entre o Povo Judeu e sua cidade, Jerusalém. Em outubro deste ano, uma proposta de Resolução aprovada pela UNESCO, organismo das Nações Unidas encarregado da preservação da cultura e história, negou os vínculos do judaísmo a Jerusalém e seus lugares santos. Essa Resolução não apenas zombou da história – fato irônico já que a UNESCO é a encarregada de preservar a história –, mas o que talvez seja bem pior: trata-se de uma campanha vil dirigida ao coração da nação judaica. A Resolução recebeu ríspidas censuras por parte de Israel e dos Estados Unidos. O Primeiro Ministro de Israel, Binyamin

Netanyahu, criticou-a duramente chamando-a de “absurdo”: “Dizer que Israel não tem vínculos com o Monte do Templo e o Muro Ocidental é como dizer que a China não tem vínculos com a Grande Muralha ou que o Egito não tem vínculos com as Pirâmides. Com essa decisão absurda, a UNESCO perdeu a pouca legitimidade que lhe restava”. Quem perpetra uma negação tão grosseira da História – a ideia de que se contarmos uma mentira muitas vezes ela se tornará verdade – segue os passos de Goebbels, Stalin e Hitler – inimigos dos judeus e da humanidade. Esses ataques contra Jerusalém não apenas negam a História Judaica, mas também a História do Cristianismo. Negar a conexão indissolúvel do Povo Judeu com Jerusalém é declarar não só que o Tanach, mas também a Bíblia Cristã, são falsidades. A Resolução da UNESCO e atitudes semelhantes das Nações Unidas e de certos países é um ataque contra o Judaísmo e contra o Cristianismo – contra todos 19

os judeus e cristãos de fé, no mundo todo. É também um ataque contra a História, a verdade e a decência. O dia 10 de Tevet, que marca o sítio a Jerusalém, deve inspirar todos os judeus a fortalecer seus laços com a Cidade Sagrada e com a Terra de Israel. E o fazemos estudando e ensinando o Judaísmo, a História Judaica, o passado e o presente de nossa Pátria e nossa Capital. Nós o fazemos defendendo a verdade e combatendo as falsidades, defendendo nosso direito à Terra de Israel e aos Lugares Santos de todas as cidades. Acima de tudo, fortalecemos Israel e Jerusalém quando promovemos a paz e a unidade entre nós, judeus, onde quer que estejamos, seja em Israel ou na Diáspora.

Bibliografia

10 Tevet - Jerusalem Under Siege - www.chabad.org The Tenth of Tevet - Rabbi Berel Wein - www.aish.com

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O GRÃO RABINO Joseph Haim SitruK, ZT’L No dia 25 de setembro deste ano de 2016, aos 72 anos, Rav Joseph Haim Sitruk zt”l, Rabino Chefe da França durante duas décadas, deixou este mundo. Homem de reflexão e ação, dedicou a vida a servir nosso povo, lutando para a difusão do judaísmo e para que as especificidades do judaísmo fossem respeitadas pela sociedade maior: “Exijo o direito de praticar a religião judaica no seio da República Francesa!”

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legante e extremamente carismático, o Rabino Chefe Sitruk ztl 1 encantava os que o ouviam, conseguindo encontrar as palavras certas para cada situação e para cada pessoa. Exímio orador, seu senso de humor servia de contraponto ao seu imenso conhecimento e à sua ortodoxia religiosa. As anedotas que pontuavam cada um de seus discursos, seus cursos da Torá e as entrevistas eram ferramentas que ele utilizava para capturar a atenção do público e melhor transmitir sua mensagem. Ele queria que tanto judeus como não judeus apreendessem a “herança fabulosa e pouco conhecida dos judeus”. Acreditava que “cada judeu tem uma obrigação: receber e transmitir nossa herança espiritual” .

Seus pensamentos e ensinamentos, suas aulas gravadas em fitas cassetes, circularam durante anos entre judeus que viviam na França e os francoparlantes espalhados pelo mundo. “Sou um caminhante”, costumava dizer, “um homem na estrada, na tensão entre dois mundos tão diferentes. Do universo laico que era o meu, no início do caminho, passei para o da prática religiosa”. E revelou a longa caminhada que o jovem judeu tunisino laico fez para chegar ao cargo de Rabino Chefe da França no livro Chemin Faisant, Entretiens avec Claude Askolovitch et Bertrand Dicale Broché (Ao longo do caminho, conversa com Claude Askolovitch e Bertrand Dicale Broché).

Em 2001, aos 57 anos, sofreu um devastador Acidente Vascular Cerebral (AVC). Sua fé, sua força espiritual e sua perseverança permitiram que se recuperasse. Autodenominando-se um “sobrevivente da oração”, voltou a lutar para a divulgação do judaísmo, contra a aculturação e a assimilação dos judeus franceses.

“Jo” Sitruk nasceu em 16 de outubro de 1944 na cidade de Túnis, capital da República da Tunísia, na África do Norte.

Os primeiros anos

Tanto ele como seus 4 irmãos – dois meninos e duas meninas, tiveram uma infância feliz. Sua mãe, uma típica mãe judia tunisina era uma mulher otimista, cheia de vitalidade. Quando o pai a conheceu ela era professora de ginástica, algo inusitado na época. O pai era um advogado de renome, “um judeu temente a D’us,

Zecher Tzadik Livrachá - Que a memória de um Tzadik seja uma bênção. Expressão usada após a menção do nome de um tzadik falecido.

1

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rabino joseph sitruk na grande sinagoga de paris, 2008

grande admirador da França e um excelente orador”. Homem de vasta cultura, falava um francês perfeito e era apaixonado pela História. Ele ensinara aos filhos que deviam procurar fazer tudo da melhor forma possível. Seus pais não eram judeus praticantes, em casa falava-se apenas o francês e mandaram os filhos estudar no Lycée Carnot, o liceu francês. Mas, revelou Rav Sitruk em Chemin Faisant, que os pais “nos transmitiram uma forte conexão com o judaísmo. A religião nos foi transmitida como um ponto de referência, uma parte essencial de nossa vida, incontornável e necessária de nossa identidade (...). Éramos judeus franceses da Tunísia, franceses e judeus, sem que isso fosse algum problema ou nos trouxesse qualquer contradição”. Na sextafeira, faziam o Kidush, respeitavam

as festas. E sua avó paterna, mais religiosa, lhe “ensinou que D’us é parte da vida, e podemos falar com Ele”. Esse ensinamento, escreve Rav Sitruk, “marcou meu espírito para sempre”. Em 1958, dois anos após a Tunísia ter conseguido sua independência da França, a família Sitruk decide deixar o país. Com o fim do domínio francês, iniciado em 1881, e o crescimento do nacionalismo tunisino, alastram-se os distúrbios contra os judeus. Há temores entre a população judaica sobre seu futuro no país, pois, disfarçada sob o manto de uma convivência pacífica, sempre existira uma latente intolerância em relação aos judeus. Antes de partir, Rav Sitruk celebra apressadamente seu Bar Mitzvá. Não podendo levar seus bens, o 21

pai do futuro Rabino Chefe será forçado a recomeçar do zero na França.

A vida em Nice Os Sitruk se estabelecem em Nice. Assim como outros tunisinos, possuíam cidadania francesa. É nessa cidade que a vida do jovem Jo Sitruk mudaria, pois, como ele mesmo revela, “lá conheci minha esposa, minha religião e minha comunidade”. Em fevereiro de 1959, entra na organização dos escoteiros judeus, os Éclaireurs Israélites de France. Na época, ele era um “jovem interessado no futebol e que tinha paixão por carros”. Suas atividades no grupo de escoteiros o ajudaram a consolidar sua identidade judaica, pois, em suas palavras, “descobri uma nova dimensão de DEZEMBRO 2016


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meu judaísmo, que não tinha nada de religioso. Era minha identidade como judeu. A reflexão veio apenas mais tarde”. Em pouco tempo ele se sobressai. Um líder nato, carismático, realizava as tarefas rapidamente e com eficiência, pois acreditava que a pessoa não podia descansar “até que o que está bom esteja melhor, e o que está melhor, esteja melhor ainda”. Essa crença irá guiá-lo durante toda a vida. Foi nomeado “chef de patrouille” (chefe de patrulha dos escoteiros) e para ocupar esse posto decide ser imprescindível aprender a ler e escrever o hebraico. A vida de Jo Sitruk deu uma reviravolta quando ele conheceu e se apaixonou por uma jovem que também frequentava os Éclaireurs Israélites, Danielle Azoulay. Ela seria sua esposa e mãe de seus 9 filhos, a companheira fiel que o apoiaria e incentivaria suas escolhas e que o ajudou a superar os momentos mais difíceis de sua vida. Com Danielle, que vinha de um lar mais religioso, Jo Sitruk deu os primeiros passos que o levariam a ocupar o posto de Rabino Chefe da França.

O Grão Rabino de Nice, Saül Naouri, que percebera suas habilidades de liderança e seu interesse no judaísmo, sugere-lhe estudar no Séminaire Israélite de France, dirigido então por seu sogro, o rabino Henri Schilli. Mas, Jo Sitruk estava-se preparando para entrar na Universidade e se tornar engenheiro. Nada acontece por acaso e seu caminho será traçado quando, após passar no extremamente difícil exame de admissão para o Institut National des Sciences Appliquées, não consegue ser aprovado no exame de Baccalauréat, prova realizada ao final do Ensino Médio, da primeira vez, sendo aprovado só na segunda tentativa. Na época, em suas palavras, “Estava apaixonado pela Torá e o Talmud... A vontade de aprender me consumia e eu sabia que se tratava do investimento de toda uma vida...”. Se ele fosse cursar

“Ela própria me ensinou o alfabeto hebraico, e a ler o hebraico e a descobrir a beleza dos textos das orações”. Em casa, passou a rezar secretamente. “Tinha receio que minha família fosse rir de mim”. “Juntos, frequentamos os cursos dados nos movimentos juvenis pelo Rabino Saül Naouri”. Esses cursos lhe deram suas primeiras noções sobre filosofia e história judaica. Apaixonou-se pelo estudo da Torá e, aos 17 anos, escreve dirigindo-se a D’us: “Ajuda-me a ser digno de Ti. Gostaria de me elevar... Ajuda-me a agir segundo a Tua Vontade...”.

foto de 6/11/1998. mostra o rabino chefe deixando o palácio presidencial dos eliseus, em paris

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engenharia só poderia estudar Torá duas horas por dia. E isso não daria para nada... Ele então decide ir para Paris e estudar no Séminaire Israélite. Comunica ao pai que não seguiria a carreira de engenheiro, mas sim o Rabinato, e, para sua surpresa, não encontrou oposição. O pai lhe diz: “O que fizeres, tens que fazê-lo bem feito. Isto é o essencial”. Foi naquele momento que Rav Sitruk fez a si mesmo uma promessa, que iria nortear o resto de sua vida: fazer o possível e o impossível, com todos os meios que estavam a seu alcance, para propagar a mensagem do Judaísmo.

Paris Em outubro de 1964 Rav Sitruk chega a Paris e entra para o Séminaire Israélite de France. Único no gênero, o instituto não era uma ieshivá, tampouco uma universidade, mas uma espécie de síntese das duas. “As aulas eram, evidentemente, dedicadas na maioria aos assuntos judaicos, e eram de altíssimo nível tanto no plano do Judaísmo quanto universitário. Estudavamos o Talmud, Torá e Filosofia Judaica, mas tínhamos, também, cursos de francês, filosofia, pedagogia”. No primeiro ano, estando as instalações do Seminário em reforma, Rav Sitruk ficou alojado na École d’Orsay Gilbert Bloch. Criada após a guerra por intelectuais judeus, era uma escola para alunos de nível universitário, que não dominavam o hebraico. As aulas eram principalmente sobre filosofia e pensamento judaico. Decidido a aprender tudo o que pudesse, o jovem Sitruk ia de manhã para o seminário e à noite assistia as aulas em Orsay.


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Continuou a atuar nos Escoteiros, pois assim que a liderança nacional soube que ele estava em Paris, foi encarregado de treinar líderes em nível nacional. Em dezembro de 1965 ele se casa com Danielle. Para se sustentar, ele passa a dar aulas de preparação de meninos para o Bar Mitzvá e Danielle, que abandonara sua carreira de concertista, dava aulas de piano. Dois dos filhos nasceram durante o período que ficou em Paris. Na época, a comunidade judaica parisiense estava se reestruturando. A 2ª Guerra deixara duras marcas e precisavam integrar um grande número de judeus do Norte da África. Ademais, “Havia certa reserva em relação à prática religiosa; o judaísmo “consistorial” (pregado pelo Consistoire – a Confederação Judaica da França) era, em princípio, ortodoxo, mas era uma ortodoxia aberta, “à la française”. Formado, em março de 1969, Rav Sitruk aceita o posto de rabino em Estrasburgo. Mas pede à comunidade permissão de estudar por alguns meses em Israel. Rav Sitruk e sua família vão para Israel. Foi em Bnei Brak que ele descobriu o mundo das ieshivot lituanas. Ele passa a estudar na ieshivá Cheerit Yossef, em Be’er Ya’akov, a uns 30 km de Bnei Brak. A ieshivá é dirigida por Rav Nissim Toledano, que se torna seu mestre. Lá o futuro Rabino Chefe da França vive em uma atmosfera de estudo 24h por dia.

Estrasburgo O Rabino Sitruk e sua família voltam à França em abril de 1970 e se estabelecem em Estrasburgo,

onde ele é encarregado de cuidar da juventude. Logo a seguir se torna assistente do Grão Rabino da cidade, Max Warchawski. Rav Sitruk, um rabino sefaradi, iria trabalhar em meio a uma importante comunidade asquenazi. Nessa cidade ele vai aprender, na prática, qual o trabalho de um rabino. “Em Paris, aprendi a teoria... Em Estrasburgo, estava, como se diz, ‘em campo’ ”. Rav Sitruk acreditava que “se os homens ocupados não têm a oportunidade de se aproximar da beleza dos Textos Sagrados, de se aproximar sozinhos da Torá, então cabe a mim me tornar um dos mensageiros que permitirão que a Torá chegue até eles. Esta crença será minha bússola”. Em Estrasburgo o rabino prova ser um formidável catalisador da juventude judaica. Ademais, ele institui o Yom Ha-Limud, um 23

dia de estudos que cai no dia 7 do mês de Adar, dia do aniversário de nascimento e morte de Moshé Rabeinu. No ano seguinte à sua chegada, o Rabino Sitruk e sua esposa passam por uma tragédia pessoal: seu filho, que nascera com uma malformação no coração, morre depois de alguns meses. “Depois de ter vivido essa dolorosa experiência, eu compreendo melhor as pessoas. A dor nos afasta e eu acredito que a melhor maneira de se aproximar dos que sofrem é tendo empatia, dividindo a dor com eles”. Foi também em Estrasburgo que o Rabino Sitruk testemunhou o ódio antissemita. Ele tinha ido assistir, com um grupo de jovens da comunidade, a uma partida de futebol. Um dos jogadores, judeu, perdeu um pênalti e, de repente, Rav Sitruk viu “duzentas, trezentas pessoas que berravam de todos os lados, “morte aos judeus”, “judeus DEZEMBRO 2016


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– e continuo tendo – a vontade de desenvolver o estudo, a educação e a proximidade com a Torá”. Sua primeira eleição ocorreu num contexto histórico específico. Os judeus do Norte da África, que haviam revitalizado numericamente e espiritualmente a comunidade judaica na França, sentiam-se afastados dos grandes cargos comunitários de tomada de decisão.

nos fornos” e outras barbaridades e ninguém no estádio conseguia fazê-las se calar. “E ali, de repente, eu entendi o que se esconde na sombra, agachado como um animal que, de um instante para outro, pode ressuscitar – é o ódio ao judeu, vítima expiatória que permite às vezes cristalizarem-se sobre ela todas as frustrações ou os erros”...

Grão Rabino de Marselha Em 1975, os líderes comunitários de Marselha queriam contratar um rabino jovem, ativo, que pudesse dar um novo ânimo à comunidade. Convidaram Rav Sitruk que decide assumir o desafio, contanto que levasse consigo outros dois rabinos jovens. Era uma Kehilá desestruturada e nenhum rabino queria ir para lá. Entre outros, a comunidade de Marselha precisava acomodar judeus do Norte da África. Lembra o Rabino: “Era preciso começar do zero, reunir todos os judeus da comunidade. A população judaica tinha-se multiplicado por doze. Foi uma verdadeira epopeia”...

Durante os 13 anos que ficou em Marselha, Rav Sitruk e sua equipe do Rabinato restruturam a comunidade e a elevaram aos pontos mais altos da espiritualidade e de atividades comunitárias. Foram abertas novas sinagogas e escolas judaicas. Cursos foram criados, ampliando o estudo da Torá. Criaram-se inúmeras atividades para os jovens. “Na sinagoga, uns 20 fieis vinham em Erev Shabat, apenas o dobro no sábado pela manhã. Quando eu os deixei, eram praticamente 400”... Na década de 1980, a reputação do Rabino Jo Sitruk já se espalhara por toda a França, e a escolha de seu nome para Rabino Chefe do país não surpreendeu.

Rabino Chefe da França Em 1987, Rav Sitruk é eleito para o cargo de Rabino Chefe. Foi reeleito por outros dois mandatos de 7 anos cada. Ele afirmava que sua ambição era “rejudaizar os judeus”. Ele lembra em Chemin Faisant que o “programa que expus ao me candidatar, em maio de 1987, não mudou.Tinha 24

Surgem preocupações, em alguns meios comunitários, com a ortodoxia do Rabino Jo Sitruk. É o presidente do Consistório à época, Jean Paul Elkann, judeu secular, quem responderá a esses temores: “Tendo o contexto religioso da França evoluído, o Rabino Chefe deve seguir uma ortodoxia absoluta. Ele deve ser ortodoxo mas aberto aos demais, sem ter uma atitude de exclusão dos judeus seculares... Era necessário dar aos judeus da França outras razões, além do Caso Dreyfus, da lembrança da Shoá ou da defesa de Israel, para serem judeus no presente”. Rav Sitruk era a escolha certa. Ele vinha da vida laica. Apesar de ter se tornado um rabino ortodoxo era ainda ligado às “trivialidades” da vida secular – uma descoberta científica, o futebol, os automóveis. Ele não tinha nada para “assustar” os judeus mais afastados – ele os seduzia, simplesmente. Ao examinar seu papel de Rabino Chefe, Sitruk escreveu: “Tornarme uma personagem pública com tudo o que isso implica de impessoal. Reconheço que esse é o lado mais ingrato do papel de Grão Rabino da França, e é contrário a meu temperamento de homem de consenso”. Durante seu mandato, ele manteve um contato ainda mais


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direto com os judeus da França. “Esforço-me de visitar o maior número possível de comunidades, de participar de eventos familiares, de ensinar o Talmud e o pensamento judaico. Em uma palavra, de continuar sendo simplesmente um rabino”. Representante oficial dos judeus da França, ele manteve boas relações com autoridades francesas e com os governantes do país, de modo a solucionar as necessidades da comunidade judaico-francesa. Eram principalmente estreitas com os presidentes François Mitterrand e Jacques Chirac, sendo amigo pessoal de Valéry Giscard d’Estaing. Recebeu das mãos de Mitterand a comenda da Legião de Honra, em dezembro de 1992. Em 2007, foi elevado ao grau de Comendador da Legião da Honra. Suas relações com a Igreja Católica na França também foram boas. Autoridades francesas seculares e religiosas lhe agradeceram por sua atuação no ato de arrependimento realizado em Darcy, em 1997, quando os bispos franceses leram uma declaração de arrependimento e pedido de desculpas por terem permanecido em silêncio durante o Holocausto.

com joseph safra na sinagoga beit yaacov - veiga filho

decide dar uma palestra, todas as segundas-feiras, à noite. Mais de 1.500 pessoas compareciam. Essas palestras e outros cursos eram gravados em fitas cassetes. Há mais de 150 temas gravados e 300 mil cópias foram distribuídas em todas as comunidades judaicas de língua francesa. E nos últimos anos, eram gravadas em vídeo e transmitidas

pela televisão de Quebec e podiam ser assistidas no YouTube. O Rabino Chefe era incansável. Deslocava-se a todos os lugares na França e até mesmo no exterior para transmitir sua mensagem. Veio ao Brasil nos dias 7, 8 e 9 de março de 1995. E também 18 e 19 de novembro de 1996. Dois anos após sua posse organizou um dia dedicado à Torá, o Yom Hatorá, em Le Bourget no Parque Floral de Paris, ao qual convidou toda a comunidade para um tipo de “quermesse de fé”. Era uma das primeiras vezes que a comunidade judaica francesa saía da discrição auto-imposta que a caracterizava, após a 2ª Guerra, para assumir abertamente seu judaísmo. Contrariamente às expectativas pessimistas dos líderes comunitários, 35 mil pessoas compareceram ao evento. Foi o primeiro de vários Yom HaTorá que se seguiriam nos anos seguintes, com igual sucesso.

Durante seu mandato, procurou aproximar e unir os judeus da França. Seu principal objetivo sempre foi levar o judaísmo aos judeus. “Somos os fiadores da mensagem da Torá”. Quando assumiu o primeiro mandato como Rabino Chefe, a grande Sinagoga de la Victoire era praticamente deserta. Ele lhe dará um novo élan quando

A juventude logo se sentiu cativada por esse rabino ortodoxo, um líder carismático que fala sua língua, entende seus problemas e não hesita 25

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o presidente Jacques Chirac, à esq., condecora o rabino chefe da frança com a medalha de comandante da legião de honra, no palácio dos eliseus, em 16/03/2007

em pontuar seu ensinamento com humor. São eles que vão alavancar o judaísmo francês. Em poucos anos Sitruk havia realmente revolucionado o judaísmo da França. Ele não era contra os judeus seculares, mas pedia que fossem respeitados os judeus praticantes. Para ele, “o secularismo não é outra coisa senão o reconhecimento da liberdade

cultural e religiosa das diferentes comunidades”. Ele queria que a sociedade francesa reconhecesse e respeitasse as especificidades do judaísmo, que fosse permitido aos judeus respeitar seus feriados religiosos. Conseguiu que nas escolas não fossem marcados exames no Shabat e nas festas religiosas. Com isto, permitiu que um número muito grande de estudantes judeus respeitassem a Lei Judaica e suas tradições. O Grão Rabino Sitruk amava Eretz Israel e nunca se dissociava do Estado de Israel. Sobre as acusações de dupla lealdade, ele considerava que os judeus franceses “não tinham nenhum problema na questão França e Israel. Eles os amam como a um pai e uma mãe, como dois amores muito diferentes e não contraditórios, desejando ainda que esses dois países se amem muito...”. Ele não cansava de repetir que na França “a comunidade judia é perfeitamente integrada; vive na França há mais de 2 mil anos, antes da época galo-romana. Os 26

judeus inspiraram os ideais dos direitos humanos da Revolução Francesa. A religião judaica respeita o secularismo, que representa um grande progresso para a sociedade”.

Um sobrevivente da oração O Grão Rabino não se poupou, indo de um canto a outro para dar palestras, cursos, procurando resolver os problemas comunitários; era incansável. E essa atividade intensa teria um preço doloroso. Em dezembro de 2001, com 57 anos, enquanto estava celebrando em Sarcelles o casamento da filha de sua secretária, sofreu um Acidente Vascular Cerebal (AVC) muito grave. A hemorragia cerebral foi muito séria e o estado de saúde de Sitruk era gravíssimo. Os médicos alertaram a família de que ele tinha apenas 1% de chance de sobreviver à primeira noite após o ataque. O Grão Rabino conta em sua obra Rien ne vaut la vie (Nada vale mais


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do que a vida) que “não é o homem quem cura, mas D’us. O homem é apenas Seu emissário. E, sem prestar mais atenção às recomendações dos médicos, minha esposa deu a palavra de ordem: orar”. Ela toma a iniciativa e pede a toda a comunidade para rezar pela vida e saúde de Yossef ‘Haïm’ ben Emma Sim’ha. Segundo a tradição judaica, é permitido modificar o nome de uma pessoa para afastar uma doença grave. Foi, portanto, adicionado o nome Haim, que significa “vida” ao seu. Relata ainda o Grão Rabino que o grande cabalista Rav Kadouri pediu, contrariamente ao procedimento comum, que o novo prenome antecedesse o antigo, para que o novo nome – Yossef Haim – significasse “que acrescenta vida”. Depois de 26 dias Rav Sitruk acorda. Pouco a pouco, volta a si. Claro que estava fisicamente muito fraco, mas recupera a fala, todas suas faculdades mentais, e credita esse milagre às milhares de orações recitadas em prol de sua cura. Definindo-se como um “sobrevivente da oração”, ele inicia uma segunda vida. O Grão Rabino da França volta às suas funções, mas não é mais o mesmo homem. “Sem dúvida adquiri um sentido mais agudo deste dom Divino que é a vida...”.

na cerimônia de 40 anos da fundação do movimento beit chabad-lubavitch de paris. fev. 2008

aos Cristãos”: “Para nós, ser judeu, é crer em D’us, amar o homem e respeitar a Terra de Israel. Esconder qualquer um destes aspectos é diminuir a mensagem judaica”. Face ao ressurgimento do antissemitismo na França, o Rabino Sitruk multiplica seus apelos à Aliá. Nos últimos anos, ele lutou bravamente contra a doença que afetou seu rosto.

Em 2008, Joseph Haim Sitruk deixou o cargo de Rabino Chefe, após perder uma eleição muito disputada para Gilles Bernheim. Ele volta a se dedicar ainda mais ao estudo, ao ensino e às orações. Aproxima-se, agora, consideravelmente, da comunidade francoparlante de Israel e passa mais tempo nesse país. Manteve-se sempre fiel ao que afirmou em 1998 no programa de entrevistas “Face 27

Desde o anúncio de seu falecimento, as reações se multiplicaram. Com seu prematuro desaparecimento, a comunidade judaica da França perdeu sua figura de proa. Raramente um desaparecimento teria suscitado tanta emoção. “É como se tivéssemos perdido um pai, um amigo, um confidente”. O ex-chefe de Estado francês, Nicolas Sarkozy, escreveu: “Com a morte do Grão Rabino da França, Joseph Haim Sitruk, a República perde uma grande figura, que marcou duradouramente o judaísmo francês”. Milhares de pessoas se reuniram em redor da sinagoga Bet Halevi em Jerusalém para prestar sua última homenagem e despedidas àquele que foi seu verdadeiro pastor espiritual, encaminhando ao seio da Torá milhares e milhares de judeus. Que D’us possa consolar sua esposa, Rabanit Danielle Sitruk, seus filhos, e toda a sua grande família, os judeus da França. E, que sua alma descanse em paz. Amén. DEZEMBRO 2016


HISTÓRIA

um evento glorioso POR Zevi Ghivelder

O ano de 2017 assinalará o 120o aniversário da realização do Primeiro Congresso Sionista Mundial, ocorrido a partir do dia 25 de agosto de 1897 na cidade de Basileia, Suíça. Este evento, um dos mais impactantes na vida judaica em todos os tempos, deveu-se à visão, talento, audácia e perseverança de um jovem, então com 37 anos, húngaro de nascimento e vienense de formação, chamado Theodor Herzl.

S

e ele não tivesse morrido tão moço, em 1904, apenas sete anos depois do formidável êxito do Congresso, seria viável que viesse a presenciar em Tel Aviv, aos 88 anos de idade, a concretização de seu ideal: o renascimento da pátria judaica em sua terra ancestral.

de tal natureza e a partir da qual a vida judaica perderia estabilidade em toda a diáspora. Os adversários do sionismo consideravam o nascente movimento uma utopia e uma loucura. Dois dias depois de desembarcar na Basileia, Herzl fez a seguinte anotação em seu Diário, que tinha começado a escrever em Paris, dois anos antes.

A pequena cidade de Ischl é uma estância mineral e turística localizada no distrito de Gmuden, na Áustria. Ali Theodor pretendia repousar por algum tempo e ganhar forças para comandar o Congresso Sionista que teria início dentro de poucos dias. Entretanto, em vez de descansar, aborreceu-se por causa das cartas que havia trocado com sua mulher, Julie, que se recusava a acompanhá-lo na viagem à Suíça. Ela dizia que se havia casado com um rapaz elegante e mundano, escritor e intelectual, e não com o líder de uma causa étnica cujo desfecho nem ele mesmo conhecia. Sentindo-se profundamente solitário, Theodor Herzl embarcou num trem rumo à Basileia. Durante a viagem com certeza lembrou-se dos violentos ataques sofridos por parte dos antissionistas e que inclusive se avolumaram quando foi anunciada a realização do Primeiro Congresso. Diziam que jamais, em dois mil anos, os judeus se haviam reunido numa assembleia

Basileia, 27 de agosto. Dias de Congresso! Quando aqui cheguei, anteontem, fui direto para o escritório que a prefeitura da cidade colocou à nossa disposição. Era a loja vazia de um alfaiate e mandei cobrir o letreiro na porta para evitar possíveis piadas de mau gosto. Fui comer no restaurante Braunschweig onde a comida é bem ruim. Os trens trazem delegados vindos de todas as partes, salpicados de carvão por causa de suas longas jornadas, a maioria com boas intenções, poucos com más. Em seguida, Herzl foi inspecionar o local reservado para o Congresso. As pessoas que o haviam precedido, encarregados dos preparativos do Congresso, tinham reservado um salão localizado num primeiro andar, em cima de uma cervejaria, transformado em academia de ginástica. Herzl ficou furioso. No seu entender, um 28


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Theodor Herzl abre o 2o Congresso Sionista, na Basileia, 1898

evento da magnitude que pretendia, tinha, antes de tudo, que se destacar pela imponência. Assim, conseguiu alugar o belo salão principal do Cassino Municipal da Basileia. Ancorado em seu senso performático, apaixonado que era pelo teatro, mandou forrar o chão com um tapete verde e erguer um elevado, coberto por um feltro da mesma cor, no qual seria colocada a mesa principal do conclave. Seu companheiro de jornada desde os primórdios do movimento sionista, David Wolfsohn, ponderou-lhe que na entrada do recinto deveria haver uma bandeira. Sugeriu um ponto de partida: “Algo semelhante aos nossos talitim (xales de oração) com fundo branco e listras na cor azul às quais poderemos acrescentar uma Estrela de David”. Assim nasceu o esboço da futura bandeira do estado judaico.

Aos poucos, os delegados começaram a desembarcar na estação de trem da Basileia, muitos cobertos por fagulhas de carvão, porque aquele ainda era o tempo das marias-fumaças e eles tinham viajado com as janelas abertas da segunda-classe. Os mais abastados usufruíam do conforto das cabines fechadas. Eram 208 delegados, a maioria homens, vindos de 16 países. Eles ficaram surpresos com a primeira recomendação de Herzl: todos deveriam comparecer às sessões com traje escuro, de preferência fraque, camisa e gravata branca, de preferência do tipo borboleta, tudo coroado por uma cartola. Claro que a maioria dos delegados não tinha recursos para tanto 29

capricho, mas assim mesmo houve uma correria em busca das lojas de aluguel de roupas na cidade para a alegria dos comerciantes locais. Nas vésperas da abertura do Congresso, as ruas estreitas da Basileia continham uma ruidosa e inusitada paisagem humana: jovens estudantes de Kiev, Estocolmo, Montpellier, Berlim, Viena e muitas outras localidades; rabinos sisudos dedicados aos estudos bíblicos e talmúdicos com seus trajes característicos; judeus seculares vestidos de acordo com a última moda ocidental; ricos homens de negócios da Romênia e da Hungria; professores universitários de Heidelberg e de CONVITE PARA O PRIMEIRO congresso SIONISTA.

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HISTÓRIA

um consagrado estadista. Seguindo o mesmo modo de agir, qualquer delegado que quisesse falar-lhe pessoalmente deveria agendar uma audiência com hora marcada. Certa tarde, Herzl recebeu um grupo de rabinos que saíram radiantes e sorridentes da dita audiência. Um de seus auxiliares ficou surpreso com aquela cena inesperada e indagou a um dos rabinos: “O que aconteceu? Ele por acaso prometeu que de hoje em diante só vai comer casher e que vai respeitar o Shabat?” O rabino respondeu: “Nada disso, muito pelo contrário. Se ele nos tivesse dito que, de súbito, se havia tornado um judeu observante, nós temeríamos que ele poderia querer se apresentar e se impor como um Messias”. Mas, tais momentos de descontração eram raros. Herzl fazia questão de adotar desde a manhã até a noite um comportamento solene.

Sofia; editores de jornais em iídiche de Varsóvia, Cracóvia e Odessa; médicos, advogados e engenheiros ao lado de pequenos lojistas do leste europeu; um grupo seleto de advogados vienenses e dezenas de jornalistas de publicações judaicas do mundo inteiro que faziam do sionismo uma devoção sagrada. Dentre todos avultava a figura do filósofo Max Nordau, com sua vasta cabeleira grisalha, o único judeu de verdadeira fama internacional. Em meio àquele caleidoscópio humano, Theodor Herzl era o único que tinha um claro objetivo traçado em sua mente. Com o maior empenho e boa vontade, os delegados discutiam e se impregnavam de ideias. Herzl focava exclusivamente o poder. Ele estava convencido de que tudo dependia dele e que ele deveria assumir a responsabilidade por tudo. Antes ainda do início dos trabalhos do Congresso, entrou em contato com as autoridades suíças, perante as quais compareceu com postura impecável, como se fosse

A verdade é que ele estava preocupado com o impacto que o Congresso poderia causar junto aos judeus religiosos porque o sionismo era, até então, um movimento de caráter estritamente secular. Foi no sentido de demonstrar sua abrangência de comprometimento que decidiu comparecer à sinagoga da Basileia, no sábado pela manhã, véspera da abertura dos trabalhos do Congresso. Durante o serviço foi chamado para recitar um trecho da Torá. (Depois confidenciou a um amigo que ficou mais nervoso do que por ocasião de todos os discursos que havia pronunciado na vida). Contudo, saiu-se bem, sem cometer um só erro. No mesmo dia, esclareceu aos delegados que os fraques e cartolas só seriam obrigatórios no primeiro dia. Depois poderiam comparecer com ternos escuros. Max Nordau ficou uma fera.

cassino na basileia, sede dos 1OS congressos sionistas

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Disse que não aceitava aquilo de jeito nenhum porque se tratava de uma das “mentiras da civilização” contra as quais ele sempre se insurgira. Mas, depois de discutir com Herzl, acabou concordando em vestir o controvertido fraque. Isto porque Herzl o convenceu com o seguinte argumento: “Eu tenho esse Congresso desenhado na minha cabeça assim como um empresário de teatro antecipa um espetáculo. Quero tudo muito solene e muito formal, não por causa da importância que o mundo exterior possa nos dar, mas para que os delegados deem importância a si mesmos”. Era enorme a expectativa na manhã de domingo, dia 25 de agosto. O salão estava arrumado conforme as instruções de Herzl: ao fundo, sobre uma plataforma, a mesa da presidência; do lado direito, mesas para as estenógrafas; do lado esquerdo, mesas para a imprensa. A curiosidade na cidade era tão grande que centenas de cidadãos suíços superlotaram o salão do Cassino Municipal, obrigando a colocação de cadeiras extras. Faziam questão de assistir a um acontecimento que lhes era tão bizarro quanto inusitado: um pomposo congresso só de judeus. O século 19 jamais havia presenciado algo parecido. Os trabalhos foram abertos pelo Dr. Karl Lippe, da Romênia, veterano líder do movimento Hovevei Sion (Amantes de Sion), que havia sido criado antes ainda que Herzl tivesse escrito O Estado Judeu e dado início ao movimento sionista. Ele falou por trinta minutos, contrariando o regulamento que destinava apenas dez minutos a cada orador. Herzl ficou irritado e estava pronto

para interrompê-lo quando Lippe começou a recitar em hebraico a prece do Shehecheianu: “Bendito Sejas Tu, Ad’nai, Rei do Universo, que nos deste vida, nos mantiveste e nos fizeste chegar até este dia”. Um frêmito de emoção inundou todo o salão. Em seguida, Lippe pegou o martelo presidencial e o estendeu na direção de Herzl, que havia sido eleito presidente do Congresso por aclamação, dizendo: “Tudo o que precisamos, é de uma pátria”. Os delegados o aplaudiram de pé e ficaram batendo palmas por incríveis quinze minutos, impedindo que Herzl, ao centro da mesa e de posse do martelo, pudesse iniciar seu discurso. Finalmente, conseguiu falar: “Nós estamos aqui colocando a pedra fundamental de uma construção que no futuro há de abrigar a nação judaica. É uma tarefa tão grandiosa que a ela não devemos nos referir com termos comuns. Nos dias de hoje, com tantos progressos em tantos respeitos, constatamos que continuamos assolados pelo velho ódio. O antissemitismo primeiro causou aos judeus do nosso tempo

Max Nordau

O antissemitismo primeiro causou aos judeus do nosso tempo uma impressão de espanto. O espanto deu lugar à dor e ao ressentimento.

Nahum Sokolow com os participantes do Primeiro Congresso Sionista Mundial em Eretz Israel, na Herschel Farbsteins House, Jerusalém, 1938

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HISTÓRIA

uma impressão de espanto. O espanto deu lugar à dor e ao ressentimento. Talvez os nossos inimigos nem saibam de que forma tão profunda feriram as nossas sensibilidades. Desde tempos imemoriais o mundo tem sido mal informado a nosso respeito. O antissemitismo sempre nos fortaleceu. O sionismo é o retorno ao judaísmo, antes mesmo do nosso retorno à pátria judaica”. Em seguida, a palavra coube a Max Nordau. “Aqueles que nos odeiam, não nos vêm na condição de seres humanos. Nos odeiam porque têm ódio aos judeus. Os países que emanciparam os judeus acabaram se arrependendo e voltaram às velhas práticas. A única exceção é a Inglaterra, onde os postulados em papel se tornaram efetivos na vida real. Mas, quantos judeus vivem na Inglaterra? Se amanhã milhares de judeus do leste europeu emigrarem para a Inglaterra, não tenho dúvida de que esta se comportará como a França e a Alemanha se comportam hoje em dia”. Quando concluiu, Herzl o abraçou e disse em latim, na maior sofisticação: “Momentum aere perenius, um monumento mais sólido do que o bronze!” No dia seguinte, tornou a escrever em seu Diário. Basileia, 30 de agosto Não preciso contar a história de ontem. Já está sendo escrita por outros. Eu estava calmo e anotei os mínimos pormenores ocorridos ontem. Agora tenho que interromper para comparecer a uma sessão durante a qual não anotarei os detalhes até que embarque no trem que me conduzirá de volta. Max Nordau está de mau humor porque na conferência preliminar não foi eleito presidente. Mas, aos poucos, consegui animálo. Fiquei mobilizado quando fui aclamado para a presidência e ocupei

Com o Kaiser Guilherme

meu lugar na mesa presidencial. Mandei cartões postais do Congresso para meus pais, minha mulher, e para cada um de meus filhos, Pauline, Hans e Trude. Talvez essa tenha sido a minha única infantilidade desde que o movimento teve início, há dois anos. No segundo dia dos trabalhos, Herzl preocupou-se em dividir os delegados em diferentes comissões que tratariam dos temas mais diversificados. Seguia, assim, os procedimentos que tinha acompanhado durante bastante tempo no parlamento da França quando ali atuara como correspondente do jornal austríaco Neue Freie Presse. (Ficou muito desgostoso pelo fato de a Presse não ter enviado um jornalista para fazer a cobertura do Primeiro Congresso Sionista Mundial). Minucioso como sempre, acompanhou de perto os trabalhos de todas as comissões: “Parecia que eu estava 32

disputando uma simultânea de xadrez com 32 oponentes”. Antes ainda que as comissões concluíssem suas tarefas, Max Nordau foi incumbido de redigir um documento que se tornou conhecido como o Programa da Basileia. Alguns delegados julgavam que o referido texto deveria ser assertivo e até mesmo formular algumas exigências junto às grandes potências da época. Outros preferiam uma declaração mais diplomática e envolvente. Nordau optou pela segunda corrente, circunscrevendo-se a um tom moderado. Num dos parágrafos, por exemplo, escreveu: “O objetivo do sionismo é criar um lar para o povo judeu na Palestina, assegurado pela lei pública”. De propósito não havia escrito Lar Nacional porque a Palestina pertencia ao império turco e seu Sultão poderia interpretar o sionismo como um movimento subversivo. Houve quem mencionasse que, em vez de lei pública, o mais correto seria fixar o conceito de lei internacional. Herzl contra-argumentou dizendo que a expressão lei internacional poderia dar ao Sultão a impressão de que o sionismo visava ao desmembramento do império otomano. Ao que Nordau acrescentou: “Os judeus que lerem nosso Programa vão entender muito bem o que estamos dizendo”. Os relatórios apresentados pelas comissões surpreenderam Herzl por suas visões realistas e factíveis. Os delegados haviam concordado que deveria haver um fluxo de trabalhadores agrícolas e de trabalhadores de um modo geral para a Palestina; que o movimento sionista deveria estender-se em forma de organizações formais no maior número possível de países e


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sempre respeitando as leis de cada um deles; que houvesse grande empenho para incutir nos judeus de todo o mundo consciência e sentimento de caráter nacionais; que os mais diferentes governos do mundo reconhecessem os objetivos do sionismo. (Para Herzl este era um ponto fundamental porque somente através dele poderia continuar atuando em nível diplomático conforme já vinha fazendo no decorrer dos últimos dois anos, ou seja, desde a publicação de seu livro, O Estado Judeu, que tinha incendiado as massas judaicas). Encerrado o Primeiro Congresso, Theodor Herzl embarcou rumo a Viena e ali escreveu um texto extraordinário em seu Diário. Viena, 3 de setembro. Na Basileia e no percurso para casa, eu estava muito exausto para fazer anotações embora elas sejam mais necessárias do que nunca e porque outras pessoas decerto já fizeram registros de que o nosso movimento ingressou na corrente da história. Se eu tiver que resumir em uma palavra da qual eu vou me restringir de pronunciá-la em público - é a seguinte: na Basileia eu fundei o Estado Judeu. Se eu disser isso hoje em voz alta, serei alvo de uma gargalhada universal. Talvez em cinco anos, e certamente em cinquenta, o mundo inteiro tomará conhecimento disso. Porque a fundação de um estado depende da vontade do povo de ter um estado. Na Basileia, portanto, eu gradualmente me empenhei para que as pessoas absorvessem a vontade de ter um estado e fiz com que sentissem que estavam numa assembleia nacional.

Tal como Herzl pretendia, as grandes potências não ficaram indiferentes ao Primeiro Congresso Sionista Mundial. A legação da Áustria em Berna mandou um relatório para Viena dizendo que a intenção de ser criado um estado judaico na Palestina tinha como origem a ação de um grupo de socialistas radicais da Alemanha. O cônsul da França na Basileia mandou para Paris uma mensagem irônica segundo a qual os judeus tinham enlouquecido com a perspectiva de recriar o reino de Sion e acrescentou: “Claro que não vão conseguir o que imaginam porque o sionismo não passa de uma invenção des juifs du journalisme”. A legação alemã em Berna foi a que deu maior importância e produziu para Berlim o mais longo relatório sobre o Congresso. Quando o recebeu, o Kaiser escreveu na margem da página: “Estou inteiramente de acordo com que esses judeuzinhos sigam para a Palestina. Quanto antes forem, melhor. Não colocarei qualquer

obstáculo no seu caminho”. De qualquer maneira, e a despeito das animosidades, uma simples conta revela o insondável dom profético de Theodor Herzl: o que ele anotou no Diário em 1897 tornou-se realidade em 1947, ou seja, exatamente 50 anos depois do que escrevera no seu Diário e guardara para si mesmo. No dia 29 de novembro daquele ano, a Assembleia Geral das Nações Unidas aprovou o plano de partilha da antiga Palestina, dando origem à criação do Estado de Israel. A par disso, é necessário destacar que a inigualável trajetória pública de Theodor Herzl teve a duração de apenas nove anos, desde a publicação de O Estado Judeu até sua morte precoce, aos 44 anos de idade. Em termos da ação de um estadista, mesmo sem ter tido um estado, esse tempo corresponde a um ínfimo grão no curso da história. Para citar somente um exemplo recente, a carreira política de Shimon Peres, outro admirável judeu, se estendeu por 70 anos.

Theodor Herzl a bordo do Imperator Nikolaus II com Max Bodenheimer, Moritz Schnirer e David Wolfssohn (esq. para dir.)

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HISTÓRIA

De tudo que li, pesquisei e refleti sobre este Primeiro Congresso, há duas passagens que me tocam de forma muito intensa. A primeira foi quando Herzl caminhou entre os assentos dos delegados, rumo à mesa da presidência, e ouviuse uma voz forte que ecoou no salão: “Temos um rei!”. A segunda tem como foco o encerramento do Congresso. Herzl assumiu a palavra e pediu desculpas por algum deslize que pudesse ter cometido no decorrer do andamento dos trabalhos, acrescentando: “De qualquer forma, alcançamos algo muito importante”. Em seguida os delegados lhe dedicaram um voto de louvor e Herzl proclamou: “Está encerrado o Primeiro Congresso Sionista Mundial!”. Mas mal foi possível ouvir sua voz porque suas palavras foram sufocadas por estrondosos aplausos. O que aconteceu em seguida, o prestigiado jornal austríaco Die Welt admitiu que era impossível descrever com simples palavras. Durante longo tempo os homens se beijavam e se abraçavam enquanto as mulheres agitavam lenços brancos. Algumas pessoas começaram a cantar e outras a dançar em cima das mesas, até que todos exclamaram em uníssono: “No ano que vem em Jerusalém!”

PENSAMENTOS DE HERZL

Bibliografia

Elon, Amos, Herzl, editora Holt, Rinehart e Winston, EUA, 1975. Chouraki, Andre, A Man Alone, The Life of Theodor Herzl, editora Ketter Books, Israel, 1970. Herzl, Theodor, The Complete Diaries vol. 2, editoras Herzl Press e Thomas Yoseloff, Reino Unido, 1960.

ZEVI GHIVELDER é escritor E JORNALISTA

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Uma lenda: A vida de Bob Dylan Cantor e compositor e pioneiro da canção de protesto, Dylan é um dos maiores nomes da música do século 20. Aclamado sobretudo pelo lirismo de suas letras, tornou-se, este ano, o primeiro músico a ganhar o Prêmio Nobel de Literatura. Suas letras e músicas são atemporais.

B

ob Dylan, uma das figuras mais influentes na história do rock and roll, é o maior roqueiro judeu de todos os tempos. Com seu folk-rock de letras inspiradas e sua voz rouca, ele foi o ícone musical de movimentos de contestação dos anos 1960, e da luta contra segregação racial. O artista compõe músicas e letras há mais de 50 anos. Ele é o autor de mais de 500 canções gravadas por mais de 2 mil artistas e se apresentou praticamente em todo o mundo. Algumas se tornaram “imortais”, como “Blowin’ in the wind”, “Mr. tambourine man” e “Like a rolling stone”. O maior mistério das criações de Dylan é como, década após década, cada uma delas se adapta a um novo contexto. Hoje, aos 75 anos, tanto ele como suas músicas, ainda atraem o interesse das novas gerações

A secretária-geral da instituição, Sara Danius, declarou que Dylan foi escolhido “por criar novas expressões poéticas dentro da grande tradição da música americana”. A nota biográfica do prêmio afirma que “Dylan gravou um grande número de álbuns de música que giram em torno de temas como a condição humana, religião, política e amor”. A Academia citou ainda que “Dylan tem o status de ícone” e que “sua influência na música contemporânea é profunda”. “Ele é provavelmente o maior poeta vivo”, declarou Per Walter, membro da instituição.

Infância e juventude Robert Allen Zimmerman, que adotaria o nome artístico de Bob Dylan, nasceu em Duluth, Minnesota, em 24 de maio de 1941. É o mais velho dos dois filhos de Abram (Abe) e Beatrice (Beatty) Zimmerman. O segundo filho, David, só nasceria em 1946.

Fechado e enigmático, Dylan tem sido simultaneamente glorificado e vilipendiado pela mídia, mas todos reconhecem que ele é um gênio musical, um poeta. Ele é o único artista a ganhar, além do Prêmio Nobel de Literatura, os principais prêmios do mundo das artes. A opção de escolherem um músico, e não um escritor, parece ser incomum por parte da Academia Sueca, mas há vários anos o nome de Dylan vinha sendo cogitado.

O pai de Bob, era um homem reservado, tranquilo, mas autoritário. Ele era filho de imigrantes do leste europeu, que deixaram Odessa para refazer a vida nos Estados Unidos, em Duluth, após os terríveis pogroms que, em 1905, se abateram sobre as 35

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comunidades judaicas que viviam no Império Russo. A mãe, uma mulher quieta, mas muito amorosa, fazia parte de uma proeminente família judaica de Minnesota. Abe e Beatty se casaram em 1934, muito jovens e com poucos recursos. Por isso esperaram seis anos para ter o primeiro filho, Robert Allen. Na circuncisão, o menino recebeu o nome hebraico de Shabtai Zisel ben Avraham. Bob, como passou a ser chamado, era um bebê lindo. Os Zimmerman, família judaica de classe média, faziam parte da pequena, mas coesa, comunidade judaica de Duluth. Seguiam a religião, frequentavam a sinagoga e, em casa, eram respeitadas as leis alimentares da Cashrut. Desde a infância, Bob e o irmão receberam uma educação judaica e um profundo código de ética. Dylan estudou a Torá e os salmos, que,

posteriormente, se tornaram fonte de inspiração para várias das letras de suas canções. Com cinco anos, Bob começa a frequentar a escola primária Nettleton. Foi nessa época que durante uma festa familiar o futuro músico cantou pela primeira vez em público. As crianças presentes haviam sido encorajadas pelos adultos a dar um show. Quando foi

Abe e Beatty Zimmerman, 1939

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a vez de Bob, ele bateu o pé para chamar atenção: “Se todos nesta sala ficarem em silêncio, vou cantar para minha avó”. A apresentação foi um sucesso. Pouco tempo depois, Abe Zimmerman foi vítima da poliomielite. Sua recuperação foi difícil e longa, obrigando-o a permanecer seis meses em casa. Isso causou sua demissão do cargo que ocupava na Standard Oil. “Meu pai nunca mais voltou a andar como antes e teve muitas dores durante toda a vida”, revelou Dylan numa entrevista. Com o chefe da família desempregado e o dinheiro curto, os Zimmerman mudaram-se para Hibbing, também em Minnesota, onde vivia a família de Beatty. Lá viviam também dois irmãos de Abe que haviam montado uma empresa, Micka Electric Supply, da qual ele se tornou sócio. A empresa prosperou


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e os Zimmermann voltaram a ter uma vida confortável. Abe e Beatty passaram a participar ativamente na vida da comunidade judaica: o pai como presidente da B’nai B’rith local; a mãe como presidente do grupo Hadassa. Como em outros lugares dos Estados Unidos, lá havia um latente antissemitismo. Entre outros, os judeus não podiam ser sócios do Country Club local. E, não há dúvidas de que seu judaísmo era um fator que o separava dos demais. O artista cresceu em um lar estável e harmonioso. A relação de Bob com sua mãe era mais estreita e calorosa do que com o pai. Ele tinha 10 anos quando escreveu um poema para o Dia das Mães falando de seu amor por ela. Escreveu que esperava que ela “jamais envelhecesse e que sem seu amor ele estaria morto e enterrado...”. Apesar do bom relacionamento que tinha com os pais, Bob fugiu de casa sete vezes entre os 10 e 17 anos. Era seu lado rebelde e sua vontade de ter experiências novas o que o impeliam a deixar sua casa e ir perambulando até ser encontrado e trazido de volta.

Era um rabino ortodoxo idoso e todos os dias Dylan o encontrava após a escola para estudar. Em maio de 1954, Bob subiu à Torá pela primeira vez. Nas férias de verão daquele ano, os pais o mandaram para Camp Herz, uma colônia de férias sionistareligiosa em Webster, Wisconsin. Inicialmente ele relutou em ir, mas sua mãe estava decidida. “Ela queria que ele conhecesse jovens judeus, e, quem sabe, alguma menina”, afirmou Howard Rutman, um dos amigos que Bob fez na colônia. Dylan dedicava grande parte de seu tempo à música, sua forma preferida de expressão. Ele era um jovem quieto, mas quando cantava e tocava transformava-se em alguém muito diferente, totalmente extrovertido. Durante o ensino médio, organizou várias bandas. Em setembro de 1959, mudou-se para Minneapolis, para estudar na Universidade de Minnesota. Apesar de ser um jovem brilhante, cursou

Os pais de Dylan compraram um piano quando ele tinha 10 anos e uma prima foi chamada para dar aulas para os dois irmãos. Bob, impaciente e frustrado com as aulas, dispensou a ajuda da prima, afirmando: “Eu vou tocar piano da minha maneira”. Mesmo não sabendo ler música, começou a aprender por conta própria. A guitarra acústica e a harmônica vieram a seguir.

apenas três semestres. Enquanto cursava a faculdade, tocava numa cafeteria a poucas quadras do campus universitário, sob o nome com o qual viria a se tornar famoso: Bob Dylan. Nessa mesma época, apaixona-se pelo nascente movimento folk, um gênero musical que combinava elementos de música folclórica e rock. Em 1985, em uma entrevista, Dylan diz que se sentiu atraído pela música folk por ser “mais séria, (.....) transmitia mais desespero, mais tristeza, sentimentos mais profundos”.

Os anos 1960 A década de 1960, os Anos Rebeldes, marcaram a História do mundo ocidental. Foi um período de mudanças sociais e de comportamento, uma época de engajamento. Nos EUA o período foi marcados por protestos contra a Guerra do Vietnã, de debates sobre a Guerra Fria e o poderio nuclear, e de demonstrações a favor dos direitos civis e do fim da segregação racial. Milhares de pessoas, principalmente jovens, saíram às ruas demandando mudanças. Em janeiro de 1961, pegando carona, Dylan foi para Nova York. Queria se encontrar com seu ídolo, o compositor Woody Guthrie, então hospitalizado com a Doença de Huntington. Uma vez estabelecido no Greenwich Village, ele passa a tocar em casas de shows e cafés e, no final daquele ano, já tinha um contrato de gravação com a Columbia Records. Seu primeiro disco, lançado em março de 1962, não fez sucesso. Nada indicava que

A comunidade judaica local era pequena e não tinha rabino. Quando chegou a hora de Dylan estudar para o Bar Mitzvá, seus pais trouxeram um de Nova York para prepará-lo. 37

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A popularidade do cantor ia crescendo, assim como os números de apresentações que ele dava. Bob Dylan tornara-se a voz de sua geração. Ele participava de protestos e manifestações, entre as quais a Marcha pelos Direitos Civis, liderada por Martin Luther King, no verão de 1963.

a gravadora acabara de contratar aquele que se tornaria o mais famoso compositor e letrista da América. Naquele mesmo ano, em agosto de 1962, ele mudou seu nome legalmente para Bob Dylan. As razões para esta mudança não são claras, pois mudam constantemente quando recontadas, fazendo parte do imaginário que o cantor criara para si mesmo O seu segundo disco – The Freewheelin’, lançado em 1963 – foi um sucesso. Todas as canções eram de sua autoria, entre elas “Masters of War”, uma crítica à corrida armamentista, à Guerra do Vietnã, e “Hard Rain’s a-Gonna Fall”, uma metáfora da crise dos mísseis em Cuba e da ameaça de uma guerra nuclear, e “Blowin’ in the Wind”. A música é uma sequência de perguntas sobre a paz e a liberdade, cujas respostas estão sendo levadas pelo vento (blowing in the wind). Esta canção se tornaria um dos maiores sucessos do séc. 20, um ícone dos

O álbum “The Times They Are a-Changin”, lançado em janeiro de 1964, trazia uma mescla de canções de protesto com outras de temas pessoais. A música que deu nome ao álbum, “Times They Are a-Changin”, tornou-se uma das canções de protesto mais populares da história. movimentos pelos direitos civis e dos protestos contra a Guerra do Vietnã, mas sua letra pode ser aplicada a qualquer tema relacionado à liberdade. “Blowin’ in the Wind”, que tornou Dylan mundialmente famoso, figura no 14º lugar da lista das “500 Maiores Músicas de todos os Tempos” da revista da revista Rolling Stones.

com joan Baez durante a “marcha a Washington por emprego e liberdade”, 28 de agosto de 1963

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Em 1965 ele se casou secretamente com a modelo judia Sara Lownds, nascida Shirley Martin Noznisky. A união é geralmente citada como sendo a inspiração de muitas das canções que ele criou entre os anos 1960 e 1970. Tiveram quatro filhos – Jesse, Anna, Samuel e Jakob. O casal se divorciou em 1977. Apesar do sucesso, Dylan estava descontente, inquieto e cada vez mais pessimista sobre a eficácia das canções de protesto. Ele deu a primeira surpreendente reviravolta em 1965, no Newport Folk Festival. Ele subiu ao palco, ligou seu violão a um amplificador elétrico e colocou uma banda de rock completa no palco. A transformação de ícone do folk em artista de rock rendeu os melhores álbuns da carreira de Dylan. São dessa fase “Bringing it all Back Home”, “Highway 61 Revisited”, “Blonde on Blonde” e a famosíssima “Like a Rolling Stone”. Na lista da revista Rolling Stones das “500 Maiores Músicas de Todos os Tempos”, esta última está em 1º lugar. As letras de suas canções


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eram analisadas, debatidas e citadas, algo inusitado no mundo das músicas pop.

Anos difíceis e o renascimento criativo Em 1966 Dylan sofreu um acidente de motocicleta que interrompeu sua carreira por quase dois anos. Foi morar com a esposa e os filhos de Woodstock, no estado de Nova York. Dylan ficou sete anos afastado dos palcos, mas não deixou de gravar e lançar discos. Voltou a fazer uma turnê em janeiro de 1974. Na época, seu casamento já estava no fim. A separação do casal rendeu um dos melhores discos da carreira de Dylan, “Blood on the Tracks”, lançado no final daquele ano. O disco tinha sido citado como sendo a narrativa da desintegração de seu casamento. De acordo com o filho, Jakob Dylan, as letras das músicas do álbum são “meus pais conversando”. Ele revela ainda que, em uma entrevista, o pai teria dito: “Falhamos como marido e mulher, mas não como mãe e pai; não”. Ele retornou ao gênero de músicas de protesto em 1975, quando tomou as dores do boxeador Rubin “Hurricane” Carter, e compôs a canção “Hurricane”, considerada um de seus grandes sucessos. Dylan

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estava entre os que acreditavam que Carter havia ter sido injustamente condenado por três assassinatos, em Paterson, Nova Jersey. (Carter foi libertado em 1985, após a defesa provar que não podia ter cometido o crime). De um modo geral, porém, a década de 1970 foram anos difíceis, que culminaram numa certa estagnação criativa a partir do fim da década e em sua conversão ao cristianismo. Em retrospectiva, também a década de 1980 não foi fácil. Em 1985, Dylan casou-se novamente, com Carolyn Dennis, uma cantora de backup e, em 1986, nasce seu quinto filho. Eles se divorciaram seis anos depois. Para o 30º aniversário do lançamento do primeiro álbum de músicas de Dylan, em outubro de 1992, a gravadora Columbia organizou um show no Madison Square Garden, em Nova York. Milhares de pessoas compareceram ao evento, que reuniu mais de 30 artistas famosos. Para muitos fãs e críticos, o marasmo artístico só acabou mesmo com “Time Out of Mind”, lançado em 1997, considerado um dos melhores discos de Dylan. Em maio de 1998 Dylan chegou bem perto da morte.

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Foi diagnosticado com uma grave infecção no coração. Como resultado do seu estado de saúde, cancelou uma turnê na Europa. No entanto, recuperou-se por completo e pôde apresentar-se perante o Papa João Paulo II na Conferência Mundial da Eucaristia, em Bolonha, na Itália. Nos últimos anos ele tem se apresentado reservado e, querendo manter sua privacidade, ele se esforça ao máximo para que as pessoas saibam muito pouco sobre o seu verdadeiro “eu” e faz o impossível para evitar ser fotografado, exceto quando faz seus shows. Em função da sua carreira, Bob Dylan passa dez meses por ano viajando e apenas um com seus filhos e netos em Malibu, em sua fazenda com vista para o Oceano Pacífico. Desde que comprou o local, na década de 1970, comprou inúmeras casas que rodeavam sua propriedade.

Retorno ao judaísmo e sua ligação com Israel Dylan sempre fez de tudo para que se soubesse o menos possível sobre quem ele era de verdade. Ao longo dos anos, no entanto, o homem por trás da lenda começou a aparecer e se tornou gradativamente claro não apenas que ele tinha profundas

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1. Bob e Sara brincando com o filho, Jesse 2. Bob e o filho Jesse, 1968 3. Bob e a filha Ana, 1969

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raízes judaicas, mas que jamais se distanciara muito delas, como inicialmente dera a parecer.

todos os seus males. Dylan descreve Israel como tendo sido injustamente estereotipado de bully, valentão, um intimidador, por rechaçar os constantes ataques de seus vizinhos. Ele fala sobre a habilidade do Estado judeu de sobreviver, sobre nosso exílio, o sofrimento do Povo Judeu e as críticas injustas feitas a Israel: “criticado e condenado simplesmente por estar vivo”...

Sua conversão ao cristianismo não durou muito e, na década de 1980, ele retornou às suas raízes judaicas. Decidiu realizar o bar mitzvá de seu primogênito, Jesse, em Jerusalém, no Kotel. Dylan visitou o Rebe de Lubavitch inúmeras vezes e passou a estudar com rabinos do Chabad. Seus vínculos com o movimento Chabad se fortaleceram ao longo de décadas e, ele participa de serviços religiosos, nas Grandes Festas, em sinagogas do movimento. Sua aparição na campanha de arrecadação de fundos do Chabad, em 1989, (e também em 1991) não foi seu primeiro apoio público ao movimento. Dylan, acompanhou o cantor e compositor Harry Dean Stanton e seu genro Peter Himmelman na execução de “Hava Nagila”. O músico Peter Himmelman é um judeu ortodoxo que não se apresenta no Shabat e que tem profunda ligação espiritual com o Lubavitcher Rebe. Dylan tem sido visto rezar com seu tefilin no Kotel, em Jerusalém, e, durante suas turnês pelos Estados Unidos, em várias sinagogas e ieshivot ortodoxas. Algumas das letras das canções de Dylan se originam de sua rica tradição judaica e nos dão uma ideia de seu judaísmo, mais do que qualquer de suas declarações. Algumas contêm mesmo referências bíblicas. As palavras de “Highway 61 Revisited” falam diretamente do sacrifício de Itzhak. Já a canção “Forever Young” foi escrita por Dylan para seu filho mais jovem, Jacob. Trata-se de uma adaptação da bênção que os pais judeus

Bob Dylan no Kotel, setembro de 1983

tradicionalmente dão aos seus filhos nas sextas-feiras à noite e nas festividades. A letra da música começa com um verso extraído da Bênção dos Sacerdotes (Bênção dos Cohanim): “Possa D’us abençoá-lo e protegê-lo sempre”: “May God’s bless and keep you always; May your wishes all come true; May you always do for others, and let others do for you”… Há também uma referência direta à história do sonho de Jacob, “May you build a ladder to the stars and climb on every rung, may you stay forever young”... Em 1983, Dylan lançou uma canção sobre Israel e o Povo Judeu, “Neighborhood Bully”, sem dúvida alguma uma das canções de rock mais a favor dos judeus que já foi gravada. A música foi lançada um ano depois da primeira Guerra do Líbano, em 1982. Não é uma de suas melhores músicas, mas suas palavras apaixonadas são uma resposta aos críticos tanto de Israel quanto do Povo Judeu. A canção é toda ela um comentário sútil sobre a forma como o mundo responsabiliza Israel por 40

Dylan mantém fortes vínculos com Israel. Visitou o país várias vezes nas décadas de 1960 e 1970. E fez três grandes shows em 1987, 1993 e 2011. O movimento Boycott, Divestment and Sanctions (BDS) pressionou-o inutilmente para que cancelasse seu show. É a ele que os israelenses devem agradecer pela primeira apresentação dos Rolling Stones, em 2014. Segundo o guitarrista da banda, Ronnie Wood, foi Dylan quem lhes deu a ideia de fazer o show.

Uma carreira de sucessos Dylan passou por várias fases, desde o início de sua carreira como músico do folk até o renascimento criativo, no fim dos anos 1990. Em mais de meio século, ele compôs músicas de quase todos os gêneros possíveis – exceto a música clássica. Dylan se reinventa antes que os críticos consigam categorizá-lo em algum tipo de gênero musical. Quanto mais ele muda, mais define sua identidade. “Não há nada tão estável quanto a mudança”, costuma afirmar. É incontestável sua criatividade e sua facilidade de se expressar em verso e na música. Dylan reformulou o conceito do que é uma grande canção, reinventou o gênero cantorcompositor forçando o mundo a aceitar a fusão dessas duas funções,


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cantor e compositor, mesmo que o cantor em questão tivesse o tipo de voz que nem sempre era considerada bonita. Ao mudar seu interesse de um gênero para outro, ele conseguiu influenciar e modificar cada um dos gêneros que tocou. É dele o crédito de expandir a narrativa na música popular. Foi além dos temas rapazconquista-moça e cantou sobre política, figuras históricas, eventos atuais questões sociais e filosofia. Juntamente com James Brown, ele é considerado o mais influente músico americano que o rock’n’ roll já produziu. Alguém que nas palavras de Bruce Springsteen “mudou, para sempre, a face do rock’n’roll”. Ao longo de seus mais de 50 anos de carreira, Dylan recebeu inúmeros prêmios e láureas. Além de 10 Grammy’s, em 1991 recebeu um Grammy por toda sua contribuição à música “Lifetime Achievement Award”, além de um Oscar e um Globo de Ouro, em 2001. Em 1975, foi nomeado pela revista Rolling Stone o “Artista do Ano” e, em 1989, foi incluído no Hall da Fama do Rock and Roll. Em 1990 recebeu a Ordem das Artes e das Letras do Ministério das Relações Exteriores da França. Em dezembro de 1997 tornou-se o primeiro músico de rock a receber o Prêmio Kennedy em reconhecido a sua contribuição de toda a vida ao mundo das artes. O prêmio lhe foi entregue pelo então presidente Bill Clinton na Casa Branca.

grandes apresentações: bob dylan, no concerto pelos 30 anos de carreira no madison square garden

Nesse ano de 2016 se tornou o primeiro músico a ganhar o Nobel de Literatura desde que foi criado, em 1901. A Academia Sueca explicou que, ao lhe conceder a láurea, o júri considerou a amplitude e profundidade de todo o seu trabalho como compositor. O prêmio é uma celebração à toda a sua carreira.

No decorrer de sua vida Bob pode parecer ao público como tendo sido egocêntrico – especialmente durante os primeiros anos quando chovia adulação e dinheiro – mas na realidade ele manteve muitos dos valores que seu pai lhe ensinou. Ele é, em muitos aspectos, uma pessoa de princípios morais: dificilmente usa uma linguagem imprópria, sempre foi próximo de seus pais e leal com seus amigos. De trovador folk dos bares do Greenwich Village, em Nova York, no início dos anos 1960, até a superestrela condecorada, Robert Allen Zimmerman sempre seguiu o próprio caminho musical, rebelde e imprevisível. Bibliografia

Em 2008, foi premiado com a Citação Especial do Prêmio Pullitzer. Em novembro de 2012, Dylan recebeu a Medalha Presidencial da Liberdade outorgada pelo presidente americano Barack Obama (na foto, ao lado).

Charles River Editors, American Legends: The Life of Bob Dylan, 2014 - kindle edition McDouga, Dennis, Bob Dylan: The Biography, 2014 kindle edition Beck, Tony, Understanding Bob Dylan: Making Sense of the Songs That Changed Modern Music, 2016 - kindle edition

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EXPOSIÇÃO

Um Êxodo Judaico para uma Nova Terra POR JOSEPH BERGER

Se é que se pode dizer que um evento de tal magnitude teve um lado positivo, a Inquisição o teve para os judeus da Espanha e Portugal: o fato de empurrá-los para as Américas, onde, de modo geral, encontraram tolerância e oportunidades que lhes tinham sido negadas na Europa.

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história dos judeus refugiados estabelecidos no Novo Mundo é o foco de uma exposição inaugurada em 28 de outubro de 2016 na New-York Historical Society. Com manuscritos raros, Bíblias, livros de oração, pinturas, mapas e objetos do culto, a mostra “Os Primeiros Judeus Americanos: Liberdade e Cultura no Novo Mundo” registra como os judeus, expulsos da Espanha e de Portugal após serem expelidos, em séculos anteriores, da Inglaterra e França, fundaram comunidades prósperas em Nova York, Filadélfia, Charleston, Newport e, ainda mais cedo, nas ilhas do Caribe e na América do Sul. Nos Estados Unidos, eles, como seus compatriotas americanos, foram atirados nas correntes históricas, encontrando-se nos dois lados durante a Revolução Americana, o movimento para abolir a escravidão e a Guerra Civil. E sua aceitação foi, por vezes, efêmera ou ilusória.

De Carvajal era um converso, forçado a adotar o Catolicismo, mas suspeito de prática clandestina dos rituais judaicos. Durante seu julgamento, foi pressionado a denunciar 120 judeus que secretamente seguiam sua fé, até mesmo seus parentes. A seguir, foi queimado na fogueira. “Eles o dobraram”, diz Debra Schmidt Bach, uma das curadoras da exposição. O livrinho de Luís de Carvajal desapareceu misteriosamente do Arquivo Nacional do México na década de 1930. No entanto, há pouco tempo, Leonard L. Milberg, um empresário americano, dono de uma importante coleção de Judaica, tomou conhecimento de que a tal maravilha estava à venda na casa de leilões Swann Auction Galleries, em Manhattan, e conseguiu fazer com que fosse devolvido ao México. No momento, está emprestado para a exposição.

O objeto mais impressionante da exposição é um livro de oração e de memórias muito gasto, de 180 páginas, de 10 cm x 7,5 cm, totalmente manuscrito por Luís de Carvajal, o Jovem, no México Colonial, em 1595, até onde a Inquisição havia estendido suas sinistras garras de tortura e execução.

A exposição apresenta documentos que narram excentricidades dos primeiros assentamentos judaicos: um édito expulsando os judeus das colônias americanas da França; um documento rabínico atestando a Casherut de alimentos enviados a Barbados; um serviço do século 46


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1. jacob franks circa 1740: marido de abigail franks, um dos mais ricos mercadores de seu tempo na cidade de nova york. 2. bil’hah abigail levy franks, circa 1740: esposa de jacob franks

18 para a circuncisão de escravos, obrigatória pela Bíblia, e uma lista de oficiantes de circuncisão em Curaçao e no Suriname; e uma pesquisa de um missionário cristão especulando se os Índios americanos eram as Tribos Perdidas de Israel. Há duas pinturas nostálgicas de cenas caribenhas feitas por Camille Pissarro, pintor francês impressionista nascido em St. Thomas de mãe judia. Setenta e dois dentre os 170 itens expostos pertencem à coleção do Sr. Milberg. Apesar de a colônia holandesa de Nova Amsterdã, hoje Nova York, se ter tornado um refúgio importante, sua aceitação de judeus foi limitada. O cruel governador do posto avançado, Peter Stuyvesant, recuou quando 23 refugiados do Brasil, governado por portugueses, chegaram em 1654. Mas a Companhia das Índias Ocidentais

Holandesas disse a Stuyvesant que business era business e os judeus deveriam lá permanecer desde que pudessem contribuir para o bemestar comercial do posto avançado. Aqueles judeus fundaram a primeira congregação da América do Norte, Shearith Israel – Remanescentes de Israel – e construíram uma sinagoga em 1730 onde é hoje a South William Street, em Lower Manhattan. A congregação segue atuante no Central Park West, para onde se mudou em 1897. A Congregação Shearith Israel emprestou à exposição um rolo de Torá queimada, resgatado de um incêndio provocado pelos soldados britânicos, em 1776, e um par de rimonim ricamente trabalhados em prata – ornamentos com pequenos sinos para a Torá – criação do conceituado prateiro Myer Myers. 47

uriah phillips levy, circa 1815. primeiro judeu a obter a patente de comodoro na marinha americana. lutou na guerra de 1812

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EXPOSIÇÃO

A Sra. Rosengarten foi curadora dessa exposição em Princeton. “Não surgiu de nossa imaginação, mas brotou em nosso solo nativo”, disse.

Rimonim em prata E portraits da família Levy-Franks, da exposição “Os primeiros judeus americanos”,na New-York Historical Society. (Mark Kauzlarich, para o The New York Times)

Há também uma ketubá – um contrato de casamento – ilustrado com uma noiva e um noivo sob a chupá, o pálio nupcial. Abigaill Levy Franks, destacada senhora da Nova York àquela época, é saudada com um portrait. Suas cartas, segundo informa o texto dos murais, transmitem seu descontentamento com o casamento de sua filha com um cristão, Oliver Delancey. Interessante notar que o rapaz era descendente da família que deu nome à Delancey Street – a rua que mais tarde se tornaria a espinha dorsal da parte judaica do Lower East Side. Como outros colonos, os judeus tinham sentimentos ambivalentes acerca do fim do domínio britânico. Haym Salomon, imigrante polonês, ajudou a financiar a Revolução. Mas Abraham Gomez e outros 15 judeus estavam entre os 932 signatários da lealdade ao Rei George III. Outros documentos relatam a difícil disputa sobre a escravidão. Livros de contabilidade registram a compra de cinco escravos por Matthias Lopez em 1787, ao passo que Jacob Levy Jr. é mencionado em documentos de uma sociedade

abolicionista como tendo libertado quatro escravos em 1817. Há, também, partes da exposição dedicadas às comunidades judaicas na Filadélfia; Nova Orleans; Charleston, S.C.; e Newport, R.I. A mostra não traz a famosa carta de George Washington à congregação de Newport expressando a esperança de que todos “sentemse em segurança sob sua videira e sua figueira”. Mas exibe cartas de congregação em Newport e Savannah, Ga., agradecendo ao novo Presidente por ser tão hospitaleiro. Alexander Hamilton, o celebrado fundador da atual Broadway, também aparece. A exposição conta que sua mãe tinha esposado um judeu e que, por isso, ele era fluente em hebraico e tinha vínculos profissionais muito próximos com judeus. Vários documentos comprovam que foi na Congregação Kahal Kadosh Beth Elohim, em Charleston, que a versão americana do Judaísmo Reformista teve suas raízes, em 1824, através de jovens dissidentes que “queriam modernizar o judaísmo para que não morresse”, disse Dale Rosengarten, diretora do Centro Sulista de Cultura Judaica no College of Charleston. 48

Os judeus fizeram importantes contribuições às ciências e cultura no século 19, bem como a outros campos; mas, como ensina a exposição, “apesar do ostensivo comprometimento da nação com a tolerância religiosa, os estereótipos dos judeus persistiam na cena americana. “Uma galeria tem um retrato e a espada e bainha do Comodoro Uriah Phillips Levy, herói naval da Guerra de of 1812, e quadros pintados por Solomon Nunes Carvalho, que acompanhou John C. Frémont, o explorador, em uma expedição cross-country”. Inevitavelmente, segundo Louise Mirrer, presidente da New-York Historical Society, a história dos judeus do Novo Mundo tem ressonância para os imigrantes, refugiados e minorias, atualmente. “As sementes foram plantadas, há muito tempo, em um lugar onde cada um pudesse praticar sua religião, livremente”, disse a Sra. Mirrer, explicando por que o Novo Mundo atraiu europeus – como os puritanos – em busca de liberdade religiosa. Mas, às vezes, houve anomalias, Mirrer continuou: “Na exposição, vemos o tipo de fervor religioso que promove um tipo de violência contra certos grupos”.

POR JOSEPH BERGER é Escritor de vários livros e editor do New York Times

O artigo traduzido por Lilia Wachsmann foi publicado no The New York Times em 27 de outubro de 2016


DESTAQUE

Os primeiros sinais da era Donald Trump POR jaime spitzcovsky

A vitória do republicano Donald Trump na eleição presidencial de novembro, após a mais corrosiva campanha da história recente dos EUA, gerou polêmicas e reações diversas na comunidade judaica norte-americana e no governo de Israel.

O

ministro da Educação, Naftali Bennett, comemorou o resultado, e o primeiroministro Binyamin Netanyahu reagiu de forma mais discreta, embora suas posições políticas se aproximem mais de Trump, em comparação, e Netanyahu, por telefone, tenha parabenizado Trump pela vitória já na quarta-feira, dia seguinte à votação, descrevendo-o como “um verdadeiro amigo de Israel”. O republicano, na troca de gentilezas, convidou o premiê para um encontro “na primeira oportunidade”.

que o governo Trump abandonará a política de criticar a construção de assentamentos judaicos em territórios conquistados por Israel na Guerra dos Seis Dias, em 1967. Outros ministros e deputados de partidos direitistas, como o Likud, também demonstraram otimismo em relação a Trump, na expectativa, por exemplo, da ruptura do acordo nuclear com o Irã, um dos pilares da política externa de Barack Obama, e do reconhecimento formal de Jerusalém como capital israelense, já que a embaixada norte-americana se localiza em Tel Aviv.

Durante a campanha, Netanyahu sinalizou uma estratégia de equilíbrio entre os dois candidatos, apesar de sua conhecida simpatia pelos republicanos e das tensões vividas no relacionamento com o presidente Barack Obama. Em Nova York, em setembro, para a abertura anual da Assembleia Geral da ONU, Netanyahu se reuniu com Trump e Hillary, num esforço para preservar equidistância entre os adversários na corrida eleitoral.

Trump falou sobre a questão de Jerusalém no encontro com Netanyahu, em setembro. Repetiu promessa já feita por outros candidatos, democratas ou republicanos, como George W. Bush. Ao longo da campanha, rica em ataques pessoais entre os candidatos, foram escassos os debates substanciais sobre política externa, o que resultou, no caso de Donald Trump, numa bússola pouco definida sobre suas posições a respeito de temas ligados a Israel e ao Oriente Médio.

Após a vitória republicana, Naftali Bennett, líder do partido governista Casa Judaica, opinou: “A era do Estado palestino terminou”. O ministro israelense avalia

Naftali Bennett, de acordo com o “The New York Times”, admitiu que as posições de Trump não estão 49

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DESTAQUE

desmantelar o pacto com Teerã seria sua “prioridade número um”.

Donald Trump, Mike Pence e suas respectivas famílias durante coletiva à imprensa em 16/07/2016, n. york

totalmente claras, mas observou: “Primeiro, devemos dizer o que desejamos”. A reação do ministro da Educação, no entanto, se apoiou em declarações do advogado Jason Greenblatt, um dos principais dirigentes da campanha republicana. Segundo Greenblatt, Trump não considera os assentamentos “um obstáculo à paz”. As reações mais cautelosas de Netanyahu, em comparação com as de Bennet, se devem provavelmente à espera de posições mais claras de Trump sobre os rumos da política norte-americana para o Oriente Médio, já que, ao longo da campanha, o candidato republicano ziguezagueou.

campanha, o slogan “America First”, que sinalizaria uma política mais isolacionista e empenhada em diminuir o envolvimento de Washington em temas da agenda internacional. Nos embates com Hillary Clinton, Donald Trump descreveu o entendimento nuclear com o Irã, assinado também por países como Rússia, China, Alemanha, França e Reino Unido, como um “desastre” e o “pior acordo jamais negociado”. O republicano afirmou, em março, num discurso ao AIPAC, que

Em fevereiro, Trump defendeu assumir uma postura “neutra” no conflito israelo-palestino, para, segundo ele, obter confiança dos dois lados envolvidos numa eventual negociação. Dias depois da vitória nas urnas em novembro, num resultado que desafiou a maioria esmagadora das previsões, o republicano declarou ao The Wall Street Journal que gostaria de alcançar um acordo de paz entre israelenses e palestinos, embora tenha sustentado, ao longo da

O megaempresário, em outras ocasiões, apontou para o combate ao Estado Islâmico como tarefa urgente e prioritária, sugerindo a aproximação com o presidente Vladimir Putin como fórmula para aumentar a pressão sobre o grupo terrorista, por meio de ações militares conjuntas em solo sírio. Trump também insistiu, durante a campanha, na importância de promover uma melhoria nas deterioradas relações entre Washington e Moscou. O desafio de decifrar os rumos do governo Trump recorre, entre outras ferramentas, a mapear as pessoas com mais acesso e eventual influência sobre o futuro presidente. A filha Ivanka desempenhou um papel de destaque na reta final da disputa, como importante conselheira nos rumos da campanha. A ex-modelo se converteu ao judaísmo, segue o rito ortodoxo e é casada com o judeu Jared Kushner. Trump costuma falar com orgulho de seus “netos judeus”. Entre os mais próximos assessores do futuro presidente, estão, além de Jason Greenblatt, o advogado David Friedman, cuja família cultiva laços históricos com o Partido Republicano. Em 1984, seus familiares receberam Ronald Reagan para uma refeição de Shabat. No entanto, a comunidade judaica norte-americana apresenta uma tradição de alinhamento com o Partido Democrata, historicamente apoiado em minorias étnicas e religiosas, como negros, hispânicos, católicos e judeus. Segundo cálculos iniciais, Hillary Clinton amealhou 71% do

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Presidente Barack Obama cumprimenta o presidente eleito, Donald Trump, no Salão Oval da Casa Branca, em Washington, no dia 10 de novembro (Foto: Reuters/Kevin Lamarque)

voto judaico, índice próximo à média histórica. Trump conquistou o apoio dos setores mais conservadores e religiosos da comunidade judaica norte-americana, que rejeitam posições democratas em temas sociais ou na política em relação a Israel.

Branca Stephen Bannon. A Liga Antidifamação (ADL) condenou a indicação, apontando o Breitbart, site criado por Bannon, como espaço frequentado por “nacionalistas brancos e racistas”.

A derrota de Hillary, portanto, gerou uma onda de preocupação em partes da comunidade judaica, preocupadas com o fato de forças antissemitas apoiarem a candidatura Trump, ainda que o candidato republicano tenha rejeitado o apoio de grupos extremistas, que defendem, por exemplo, “a supremacia branca” nos Estados Unidos. No início da montagem de sua equipe de governo, Trump alimentou polêmica ao nomear como estrategista-chefe da Casa

Morton Klein, presidente da Organização Sionista dos EUA (ZOA), saiu em defesa de Bannon: “Uma vez que a plataforma do presidente-eleito é a mais fortemente pró-Israel jamais vista, seria um antissemita indicado para implementar tal plataforma”? Para Klein, Bannon corresponde a “um amigo de Israel e não a um antissemita”. A era Trump, em seus primeiros passos, alimenta controvérsias e deixa várias perguntas no ar. Os próximos meses e anos, certamente, se encarregarão de jogar mais luzes sobre os rumos que nortearão o novo governo da maior potência política, econômica e militar do planeta.

O Primeiro Ministro Binyamin Netanyahu com o ainda candidato republicano, Donald Trump, em NY, em 25/9/2016 (Kobi Gideon/GPO)

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JAIME SPITZCOVSKY foi editor internacional e correspondente da folha de s. paulo em moscou e em pequim

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ISRAEL

shimon peres: um grande estadista Shimon Peres poderia traçar sua própria história em paralelo à de seu país, o Estado de Israel, ao qual dedicou sua vida e alma. Lutou incansavelmente para fortalecer a segurança militar dO PAÍS e, com o mesmo ardor, para trazer a paz sempre que esta lhe parecia factível. “Quando éramos atacados, eu fui um falcão. Quando poderíamos fazer a paz, me tornei uma pomba”.

S

himon Peres, falecido em 28 de setembro de 2016 aos 93 anos, foi um maiores estadistas mundiais. Sua morte marca o fim de uma era. Ele foi o último dos fundadores do Estado de Israel – homens que, apesar de ideias políticas diferentes, acreditaram no sonho de ter uma Pátria Judaica e dedicaram a vida para que nós, judeus, após 2000 anos de exilio e sofrimentos indescritíveis, pudéssemos ter um Estado Judeu forte e seguro.

Ao longo de sua vida, serviu seu país de todas as formas: foi kibutznik, líder juvenil, parlamentar e ocupou vários ministérios: Defesa, Transportes, Comunicações, Absorção de Imigrantes, Informação, Relações Exteriores e do Tesouro, além de ter ocupado o cargo de Primeiro Ministro e Presidente. Sua trajetória de homem público foi impressionante. Vivenciou momentos de triunfo e admiração mundial e outros de grandes perdas e fracassos. Foi cercado por fervorosos admiradores e adversários ferrenhos; foi igualmente amado e odiado. Chegou, mesmo, a conquistar o relutante afeto de muitos de seus próprios concidadãos – que chegaram a odiá-lo por suas etéreas promessas de um novo Oriente Médio, que rapidamente se afogaram em sangue.

Quem era Shimon Peres? Sem dúvida, um homem de mente brilhante, intrigante, complexo. Dominava com maestria o hebraico, porém ainda o falava com sotaque polonês; era o especialista na defesa de Israel, comprou armamentos secretamente sem nunca ter usado um uniforme; era um dos idealizadores da política dos assentamentos israelenses na Margem Ocidental, o idealizador do programa nuclear de Israel e o homem que negociou os Acordos de Oslo. Era um exímio intelectual sem ter tido educação formal; um político medíocre que se tornou um grande estadista; um poeta tímido, romântico, que se tornou um orador carismático, que arrebatava as plateias.

Shimon Peres era, acima de tudo, um otimista, um humanista, um judeu de corpo e alma. Ele acreditava que “a singularidade real do Povo Judeu é a base moral, a preferência pela moralidade”. Sua teimosa busca pela paz bem ilustra seu idealismo e sua visão e amor pelo Estado de Israel e por nosso povo. 52


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Yeshivá Volozhin. Cada dia ele ensinava ao neto algumas linhas do Talmud. “Ele era um rabino, mas também lia Tolstoi e Dostoievsky e sempre me dizia que eu também devia lê-los. Ele me ensinou que a maior riqueza de um homem é seu conhecimento, seu saber.”

Sua vida Shimon Peres (nascido Szymon Persky) nasceu em 15 de agosto de 1923 (no dia 20 de Av), na pequena cidade polonesa de Vieniava (atualmente Vishniev, na Bielorrússia). Era o filho mais velho de Yitzhak Getzel e Sarah Persky. Seu irmão, Gershon (Gigi), era dois anos mais novo. Shimon cresceu em Vishniev, um shtetl onde viviam cerca de 1.500 judeus. “Tinha apenas uma rua, casas de madeira sem eletricidade, duas sinagogas e uma escola de orientação sionista”. Shimon costumava dizer: “Em minha casa falava-se três línguas: iídiche, hebraico e russo. Durante as duas guerras mundiais o lugar no qual nasci estava sob domínio polonês, mas antes era parte da Bielorrússia”. Desde seus primeiros anos de vida seus pais perceberam que ele possuía

O JOVEM SHIMON PERES NA POLÔNIA

uma mente excepcional; para eles a testa saliente de Shimon era sinal de grande inteligência. As duas pessoas que mais o influenciaram foram seu avô materno e sua mãe. O avô, Rabi Zvi Meltzer, possuía uma oficina de fabricação de botas. Ele era um homem profundamente religioso que estudara na famosa 53

Apesar dos pais serem seculares, Shimon era religioso: usava kipá, era casher e shomer Shabat, isto é, guardava as leis do Shabat. Certa vez seu pai comprou o primeiro rádio da cidade e o ligou no Shabat, “Chocado, eu o quebrei”, contava Shimon. “Quando era menino, estava convencido da existência de D’us, temia Sua ira, sentia Sua enorme e invisível Presença. Eu rezava com incansável entusiasmo. Os primeiros livros que li foram os Textos Sagrados. A Santidade, o Divino e não histórias infantis preenchiam meu coração”... DEZEMBRO 2016


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Ele não veria mais o avô. Durante a cerimônia pelo Dia de Recordação do Holocausto, no Yad Vashem, em 2012, o Presidente Shimon Peres contou: “Metade dos habitantes da cidade vieram para Israel. A outra metade pereceu… Em 30 de agosto de 1942 o dia amanheceu escuro em minha cidade natal... Todos os judeus foram levados pelos nazistas para a sinagoga de madeira da cidade e queimados vivos. O Rabino Zvi Meltzer, meu avô, …foi consumido pelo fogo com seu talit sobre a cabeça. Foi o último dia judaico em Vieshniev”. SHIMON PERES E SONIA COM SEUS TRÊS FILHOS. NOVEMBRO DE 1958

O pai de Shimon, apesar de ser descendente de uma dinastia rabínica, era um homem secular, bem apessoado e elegante. Abrira seu próprio negócio de comércio de madeira e fornecia trigo para o Exército polonês. Sua mãe, Sara, era uma mulher inteligente que nutria profundo amor pelo filho. Trabalhava como voluntária na biblioteca pública e transmitiu a Shimon sua paixão pela leitura. Ela trazia livros para casa para o filho ler, despertando nele uma sede pela leitura. Shimon estudava na escola Tarbut, de orientação sionista, onde aprendia hebraico junto com o iídiche. Ele era um excelente aluno, sério, raramente brincava com outras crianças, preferindo ficar em casa e ler. A poesia tornou-se sua grande paixão. “Quando descobri a poesia, pensei que havia encontrado o meu destino”. Vishniev era um shtetl com uma vibrante comunidade sionista e o sonho de emigrar para a Terra de Israel incendiava o espírito dos mais jovens. Na época, o fervor religioso de Shimon diminuíra e ele abraçou

o sionismo de corpo e alma. Um dia, um judeu vindo da Terra de Israel visitou Vishniev. Shimon e sua família estavam entre os que se reuniram para ouvi-lo contar sobre a terra distante. O relato que ele fez sobre os feitos heroicos dos pioneiros judeus deixaram todos os presentes com um sentimento de orgulho. Os primeiros familiares a deixar Vishniev para a então Palestina foram suas três tias com as respectivas famílias. Em 1932, quando ele tinha 9 anos, foi a vez de seu pai. Ao partir para a Terra de Israel, Getzel Persky prometeu aos filhos e à esposa que, em poucos meses, mandaria buscá-los. Os meses transformaram-se em três longos anos.

A vida em Israel Foi somente em 1935 que as autoridades britânicas concederam a Getzel os documentos de imigração, que permitiriam à sua família entrar no país. Ao despedir-se de seu avô, Zvi Meltzer lhe fez uma única recomendação: “Seja um judeu, para todo o sempre!”. 54

Foi longa a viagem de Shimon e sua família para a então Palestina. Foram de trem até Istambul onde embarcaram em um navio e, dias depois, atracaram em Yaffo. Ele imediatamente se apaixonou por aquela terra. Os Persky alugaram um pequeno apartamento em Tel Aviv, mas enfrentavam dificuldades financeiras. Shimon e Gigi foram viver por algum tempo com os tios em Rehovot e passaram o verão patrulhando sua nova pátria. No outono retornaram a Tel Aviv, e ficaram fascinados com a cidade, os cinemas, teatros, praias, cafés e pessoas elegantes. Para Shimon, “Tel Aviv era mais chique do que Paris”. Ele começou a cursar a 6ª série da Escola Balfour, mas, no ano seguinte, os professores o transferiram para a 8ª série. Seus colegas diziam que ele “era extremante inteligente. E, quando falava, todos escutavam”. Shimon escrevia para o jornal da escola – ensaios, debates e histórias humorísticas. E, em segredo, continuou a escrever poemas, nos quais revelava um traço triste e solitário de sua alma jovem. O ano de 1936 foi decisivo na História Judaica. Na Europa, os


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nazistas já no poder na Alemanha, haviam tomado a região da Renânia. E, na então Palestina, iniciava-se a chamada “Revolta Árabe” – uma revolta armada contra o domínio colonial britânico e a imigração judaica. Na época, conforme o compromisso assumido com a Declaração Balfour, a Grã-Bretanha estava auxiliando o estabelecimento dos judeus na região. No ano de 1935, uns 65 mil judeus haviam emigrado para a Terra de Israel. Os confrontos tiveram início em 15 de abril, quando árabes assassinaram dois judeus. A Haganá, organização judaica de autodefesa, retaliou, matando dois árabes. Alguns dias depois, um grupo de árabes massacrou 16 judeus nas ruas de Yaffo. No dia 25 foi criado, em Nablus, por iniciativa de Hajj Amin al-Huseini, o mufti de Jerusalém, o “Comitê Árabe Supremo”, que assumiu o controle da revolta. A violência escalou, árabes armados passaram a emboscar os judeus nas estradas. Qualquer viagem de Tel Aviv a Yaffo tornara-se uma aventura arriscada. Desde adolescente o sangue político já corria nas veias de Peres. Ele era um dos seguidores de David Ben Gurion e apoiava o Movimento Trabalhista e a Histadrut, a organização sindical criada pelos partidos trabalhistas. Filiou-se ao Hanoar Haoved (“Juventude Operária”), o movimento juvenil socialista da Histadrut. No outono de 1937, Shimon Peres obteve uma bolsa de estudos para a Geula Commerce High School, uma instituição elitista e de renome. Mas não estava interessado em trabalhar no mundo dos negócios; queria trabalhar num kibutz.

Shimon Peres E Ezer Weizman, COM O REI DO NEPAL, 1958

Aos 15 anos, deixa a escola e vai para a Aldeia Juvenil Ben-Shemen, uma escola agrícola onde ficou por dois anos e meio. “Meu objetivo na vida é servir meu povo”, escreveu ao chegar. Ele amava a vida em Ben-Shemen, trabalhava a terra, levantava-se antes do sol nascer para ordenhar as vacas e, à noite, lia avidamente – os clássicos, literatura hebraica, poesia, ensaios políticos. E, continuava a escrever – poemas românticos, artigos ideológicos... Na época já era um líder. Um dia, os ingleses foram até Ben-Shemen à procura de armas para confiscálas. Os alunos, liderados por Peres, sentaram-se no chão sobre a entrada do depósito onde estavam escondidas as armas, fingindo estar estudando, e elas não foram descobertas. Como os demais jovens, integrouse às fileiras da Haganá e passava inúmeras noites nos postos de vigilância ao redor de Ben-Shemen. Em 16 de janeiro de 1939, os árabes emboscaram três jovens que estavam de vigília. Dois foram mortos e um terceiro, ferido. Os assassinatos 55

chocaram a comunidade e Shimon ficou profundamente abalado com a morte de seus amigos. Foi também em Ben-Shemen que Peres encontrou o grande amor de sua vida, Sonia Gelman. Cheia de vida e grande idealista, Sonia emigrara com a família para a então Palestina aos três anos de idade. Shimon, um ativo membro do Movimento Trabalhista, considerava a Juventude Trabalhista o seu lar ideológico embora não compartilhasse a admiração de seus companheiros pela então União Soviética. Tinha profunda ojeriza por Stalin. No ano de 1939, a Grã Bretanha voltou as costas ao Sionismo, publicando um documento limitando o estabelecimento de judeus na então Palestina. O chamado Livro Branco parecia ser uma sentença de morte para o sonho sionista, mas os judeus decidiram lutar contra a política britânica de todas as formas possíveis. Mas, com a eclosão da 2ª Guerra Mundial, com os nazistas ameaçando a DEZEMBRO 2016


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sobrevivência dos judeus da Europa, tanto Ben Gurion quanto Yitzhak Tabenkin, um dos fundadores do Movimento Kibutziano, uniram-se para pedir aos judeus do Ishuv que se alistassem nas forças britânicas para lutar contra os alemães. Foi quando Ben Gurion cunha seu famoso slogan: “Nós devemos ajudar os britânicos em sua guerra contra Hitler como se não houvesse o Livro Branco, e devemos resistir ao Livro Branco como se não houvesse guerra!”. O apelo de Ben Gurion provocou uma tremenda resposta. Mais de 35 mil judeus alistaram-se no exército britânico. Outros, principalmente os simpatizantes de Tabenkin, preferiram integrar-se à Haganá, o exército não oficial do Ishuv e às suas forças de combate, o Palmach. A 2ª Guerra teve um impacto direto na família Persky. O pai de Shimon fechou seu negócio e, apesar de ter mais de 40 anos, voluntariou-se no exército britânico e foi enviado à Europa. Gigi filiou-se ao Palmach. Sonia, futura esposa de Shimon, também se voluntariou, atuando como enfermeira e motorista nas forças britânicas. Até sua mãe empregou-se numa fábrica do exército inglês. Seus melhores amigos, seu pai, seu irmão e a mulher que amava se alistaram, apenas ele ficou de fora. Já era uma das lideranças nacionais da Juventude Trabalhista e estava totalmente absorvido em suas atividades em Ben-Shemen. Ele sabia que ao término da Guerra seria de suma importância para o Povo Judeu ter mais assentamentos judaicos no país. Sentia-se fortemente atraído pelo Neguev, o deserto ao sul do país. Em janeiro de 1945, organizou uma

expedição composta de membros da Juventude Trabalhista para explorar a região. O intuito era chegar a Eilat. Durante a viagem, Shimon mapeou o terreno e passou a calcular quanto poderia ser cultivado e quanto de água poderia ser armazenada por represamento. Ele estava convencido de que nós, judeus, poderíamos fazer o Neguev florescer, novamente.

A Guerra da Independência

Durante a viagem, cruzou com um pássaro enorme, uma ave mais perigosa até do que as águias. Era um abutre, em hebraico, Peres.

Em 1945, Shimon tornou-se líder da Juventude Trabalhista. Foi então liberado de suas tarefas no Kibutz Alumot para que pudesse dedicar-se

não estava presente. Durante a Guerra ele fora capturado pelos alemães, várias vezes, mas conseguiu escapar, retornando a Israel no final da 2ª Guerra. Shimon e Sonia tiveram três filhos e permaneceram casados por 66 anos.

Shimon Peres com David Ben Gurion e Moshe Dayan, década de 1960

Shimon gostou do nome da ave. O deserto lhe havia presenteado com o que ele acabaria adotando como seu nome hebraico. Na primavera de 1945, Sonia Gelman deu baixa do exército britânico e filiou-se ao Kibutz Alumot, ao norte do mar da Galiléia, do qual Shimon foi um dos fundadores. Ela e Shimon se casaram em 1º de maio de 1945. A festa de casamento foi realizada em Ben-Shemen. O pai de Shimon 56

a suas funções no movimento. Em dezembro de 1946 foi escolhido por Ben Gurion para ser um dos delegados ao Congresso Sionista, na Basileia. O outro jovem era Moshé Dayan. Na Basileia eles iniciaram uma aliança política que duraria 30 anos. O Ishuv estava dividido entre aceitar ou não a Partilha da então Palestina, proposta pelas Nações Unidas. Muitos entre os delegados que participavam do Congresso


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argumentavam que o país oferecido aos judeus era ínfimo e sequer incluía alguma parte de Jerusalém. Ben Gurion, pragmático, era favorável, mas percebera que eram grandes as chances da proposta ser rejeitada. Impulsivamente retirouse do plenário do Congresso, afirmando que “os delegados não percebiam para onde sopravam os ventos da História”. Peres e outros jovens foram atrás dele. Ben Gurion perguntou a Peres: “Você vem comigo?” Ele respondeu: “Vou, se voltar ao plenário para ver o que acontece. Se ganharmos, ficamos. Se perdermos, vamos todos juntos”. Após uma tumultuada sessão, por pequena maioria, os judeus aceitaram a Partilha. No início de maio de 1947, os judeus já sabiam que teriam que enfrentar os exércitos árabes. Joseph Izraeli, o vice-comandante da Haganá, convocou Peres para trabalhar no QG da organização, em Tel Aviv. Peres tinha apenas 24 anos e não poderia ter imaginado que os meses seguintes revolucionariam sua vida e o introduziriam no universo da segurança nacional. Inicialmente ele era responsável por recursos humanos e pela pequena indústria secreta de armas. Israel estava prestes a lutar uma guerra por sua sobrevivência, mas não possuía armas e tampouco munições. Segundo um despacho que um general enviou a Ben Gurion, recusando o posto de comando que lhe havia sido oferecido, as forças de Israel possuíam um total de seis milhões de balas; para cada dia do conflito teria que se utilizar um milhão. Ou seja, Israel tinha munição para seis dias... Ben Gurion chamou Peres, entregou-lhe um papel no qual

estava escrito 150 metralhadoras, 600 ou 700 rifles e disse: “Estamos indo para a guerra, mas não temos armas. Precisamos delas. É a coisa mais importante. Faça isso acontecer”. O que tornava Shimon uma escolha perfeita para qualquer função que lhe era repentinamente atribuída era sua capacidade de se focar em um assunto e estudá-lo com profundidade até se tornar um expert.

Shimon estava trabalhando contra o relógio quando, em novembro de 1947, as Nações Unidas votaram a Partilha da Palestina em dois estados – um árabe e um judeu.

Ele passou a trabalhar sem parar. O “Sr. Segurança”, como era chamado, encontrara mais uma paixão, provavelmente a maior de todas: a construção do poderio militar de Israel. Ele entrou de cabeça no mundo de missões secretas, passou a enviar mensagens codificadas e telegramas à Europa e à América, para conseguir comprar rifles, morteiros, aviões, navios de guerra, armas e munições. Foi nesse período que mudou oficialmente seu nome para “Shimon Peres”. Quando Teddy Kollek, chefe da delegação de aquisição de armas da Haganá, nos Estados Unidos, foi a Israel, queixou-se a Ben Gurion da desorganização da sede americana, e exigiu que alguém competente fosse escolhido para “ajeitar as coisas”. Escolheram Peres ainda que ele não falasse inglês e nunca tivesse estado na América. Ben Gurion sabia que ele daria conta. Shimon estava trabalhando contra o relógio quando, em novembro de 1947, as Nações Unidas votaram a Partilha da Palestina em dois estados – um árabe e um judeu. O Estado de Israel foi criado em 14 de maio de 1948. Os árabes da região e as nações vizinhas árabes, que haviam rejeitado a resolução da ONU, imediatamente atacaram Israel. 57

Shimon Peres, Diretor-Geral do ministério da defesa, 1963

As atividades de Peres estavam canalizadas para um único objetivo: comprar armas e enviá-las ao recémcriado exército de Israel. Era uma tarefa dificílima porque os Estados Unidos, a Inglaterra e, depois, a Rússia impuseram um embargo de armas ao jovem país. Os israelenses utilizaram toda a sua criatividade para conseguir os armamentos – forjaram identidades, utilizaram passaportes falsos de países da América do Sul e da África. Ao final, conseguiram comprar uma DEZEMBRO 2016


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quantidade enorme de armas, a maior parte eram armamentos da 2ª Guerra. Peres integrou a missão que negociou a compra de armamentos na Checoslováquia, cruciais para a vitória de Israel. Os arsenais adquiridos eram enviados em navios sem registro e aviões sem qualquer identificação. Aos 26 anos, ele foi indicado assistente do Secretário de Defesa para assuntos da Marinha, e tornouse assessor de Ben Gurion e por ele protegido. Trabalhava diretamente com ele nos problemas do Neguev, cujo reflorescer era sonho compartilhado por ambos. A Guerra de Independência de Israel foi o grande feito e maior erro de Shimon. As atividades de Peres foram cruciais para os esforços de guerra; sem armas Israel não poderia ter ganhado a Guerra, no entanto, ao não se alistar Shimon cometeu um dos maiores erros de sua vida. Talvez não se tenha alistado por estar convicto de que lidava com questões de vital importância para a existência de Israel. Mas, enquanto os soldados arriscavam a vida, Shimon era um civil, e nenhum deles jamais conseguiu perdoá-lo. Naqueles dias fatídicos, quando o Estado lutava por sua sobrevivência, eles acreditavam que todo cidadão apto deveria vestir um uniforme e lutar. Depois da Guerra de Independência, a nova geração de líderes israelenses emergiu das fileiras das Forças de Defesa de Israel (FDI): Yigael Yadin, Yigal Allon, Moshe Dayan, Yitzhak Rabin, Chaim Herzog, Ezer Weizman, Ariel Sharon e tantos outros. Shimon Peres não fazia parte desse grupo; seu erro tornou-se um obstáculo para suas aspirações políticas. A animosidade de Yitzhak Rabin em relação a

Peres originou-se do fato de Rabin jamais tê-lo perdoado por não ter servido o exército naqueles tempos terríveis.

Missão nos EUA Em 1950, Shimon Peres foi enviado aos EUA como adido militar. Aprendeu inglês em três meses, fez cursos avançados em filosofia e economia na Faculdade de Pesquisas Sociais de Nova York, na New York University e, em Harvard, fez um curso avançado sobre Administração. Mas, seu principal objetivo continuava sendo a compra de armas em grande escala e dos aviões que o exército de Israel necessitava. Seu trabalho implicava em assumir sérios riscos, pois Washington ainda impunha duras restrições à venda de armas a Israel. Sendo assim, ele e sua equipe viram-se forçados a usar de todos os métodos – legais ou não perante a lei americana – para consegui-los. Muitos dos aviões conseguidos foram comprados em partes e secretamente montados em uma pequena fábrica em Burbank, Califórnia. Em muitas ocasiões, Peres falava de seu sonho aos membros de sua equipe, que o consideravam delirante. “Virá o dia”, costumava dizer, “em que Israel não dependerá mais de aviões velhos restaurados, comprados em outros países, mas terá seus próprios aviões modernos, idealizados e fabricados em Israel”.

Construindo o poderio de Israel Em 1952 Peres retornou a Israel. Aos 29 anos, foi indicado por Ben Gurion para ocupar um cargo importante no Ministério da 58

Defesa. Viajava constantemente ao exterior para conduzir delicadas negociações militares para adquirir todo tipo de armamento. Sua reputação era de negociador astuto, eficaz e realista. Seu papel foi primordial para armar as Forças de Defesa de Israel com armamento moderno. Em poucos anos transformou o Ministério da Defesa em um verdadeiro “império” econômico, industrial e científico. Desenvolveu a indústria de armamento nacional, fundou a indústria aeronáutica. Seu trabalho permitiu que o país equipasse seus aviões e tanques com peças “Made in Israel”, fator decisivo para o fortalecimento militar de Israel. Uma de suas grandes vitórias aconteceu em 1955. Peres tinha conseguido criar uma sólida rede de relações com a França, o que lhe permitiu fechar uma aliança militar franco-israelense. Israel passou a ter acesso ao moderno estoque de armamentos franceses. O acordo resultou na compra de US$ 1 bilhão em armas da França, sem as quais teria sido difícil para Israel vencer as guerras em 1956 e 1967. Suas boas relações com os franceses foram, também, fundamentais nos encontros secretos que culminaram na aliança entre Israel, França e Inglaterra na Guerra de Suez, contra o Egito, em 1956. Seu pragmatismo em relação ao que era melhor para o Estado de Israel o levou a uma aproximação com a Alemanha Ocidental antes mesmo do relacionamento se tornar oficial. Dessa forma, pôde fechar importantes acordos que permitiram que Israel recebesse aviões, helicópteros e tanques.


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1. Com o Comte. da Marinha, Gen. de Brigada Shlomo Harel, 1967 2. Min. Defesa Ezer Weizmann Tel Aviv, 1977 3. P.M. Peres ladeado pelos Pref. de Bethlehem Elias Freij e de Jerusalém Teddy Kollek, Bethlehem, 1984 4. P.M. Peres cumprimenta xeques beduínos, Beersheva, 1985 5. Com Y. Rabin, 1986. 6. P.M. cumprimenta N. Sharansky, Prisioneiro de Zion recém libertado, Aeroporto Ben-Gurion Airport, 1986

O apogeu de seu trabalho de segurança foi a criação do programa nuclear israelense, um arsenal que nunca foi oficialmente reconhecido. Na época, muitos o chamaram de “aventureiro irresponsável”. “A ideia e sua implementação despertaram a ira de muitos contra mim”, contava Peres. “Havia quem alegasse que nada daquilo se concretizaria (...) que a ideia era impossível de ser posta em pratica, e alguns profetizavam que se nós sequer tentássemos ir na direção que eu sugeria, o mundo inteiro se voltaria contra nós, e Dimona faria desabar contra Israel uma terrível guerra. Mas, o reator deu uma nova dimensão a Israel. Trata-se da maior compensação pelo pequeno tamanho do país. Nesse caso, a tecnologia constitui a compensação pelo território, pela geografia. E, tudo bem, se o reator é sempre misterioso e ambíguo,

porque ele é suficientemente claro para servir como força dissuasora para nossos inimigos, e ambíguo o bastante para não despertar a fúria do mundo. E deu autoconfiança a Israel. Todos perceberam que a opção de nos destruir já passou, no mundo”. Os esforços de Peres e a contínua ajuda miliar dos EUA ajudaram a transformar o Estado Judeu na nação mais poderosa do Oriente Médio. A força militar israelense é uma das mais respeitadas e temidas da região.

Vida política Peres entrou na vida política em 1959 e atuou no Knesset por praticamente 50 anos – de 1959 até 2007, ano em que foi eleito o 9º Presidente de Israel. Sempre esteve no centro da ação, onde as decisões sobre o futuro do Estado eram 59

tomadas, mas sua vida política foi turbulenta. Uma das personalidades mais amadas do mundo político israelense, concorreu a cinco pleitos sem jamais vencer. Atuou como ministro em 12 governos diferentes e foi duas vezes Primeiro Ministro. O período mais longo em que atuou como tal foram dois anos na época em que fez uma aliança com seu oponente político, o Likud. Peres foi o único israelense a ocupar o cargo de Primeiro Ministro e, também, o de Presidente. Foi eleito pela primeira vez para o Knesset em 1950 pelo Partido Mapai e indicado Vice-Ministro da Defesa. Saiu do Mapai em 1965, juntamente com Ben Gurion, que o indicou para secretário geral do seu novo partido, o Rafi. Em 1968, Rafi e Mapai se uniram, criando o Partido Trabalhista e Peres tornouse Vice-Secretário Geral. DEZEMBRO 2016


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que Israel podia, e devia, enviar um comando aéreo até Uganda e que seria viável um resgate dos reféns dos terroristas que haviam sequestrado o avião da Air France. Em 1977 ele perdeu para Rabin as primárias partidárias. Nessa época já começavam a surgir sinais de mudanças em suas posições diplomáticas em direção à reconciliação com o mundo árabe. Em 1980 ele finalmente derrotou Rabin nas eleições partidárias, mas perdeu o pleito de 1981 para o Likud.

peres assina os acordos de oslo na casa branca, em Washington, observado por Rabin, Clinton e Arafat

Foi ministro em diferentes Pastas no governo de Golda Meir, incluindo o de Absorção de Imigrantes, Transportes e Comunicações. Peres concorreu para a liderança do Partido Trabalhista em 1974, perdendo para Yitzhak Rabin. Quando este foi eleito Primeiro Ministro, ele indicou Peres “com o coração pesado”, como ele mesmo disse, para o Ministério da Defesa. Os desafios que Peres enfrentou à frente do Ministério da Defesa foram muitos, inclusive o de reerguer as FDI depois da Guerra de Yom Kipur, em 1973. Ele modernizou o arsenal militar, equipou o exército com mísseis, tanques e jatos de combate, alguns feitos pela própria indústria do país. Porém, grande parte de suas realizações ainda permanecem secretas. Em 1976, ele era Ministro da Defesa no governo de Rabin quando Israel realizou a Operação Entebbe. Hoje se sabe que o grande mérito coube a ele, pois desde o início Peres acreditou

As eleições seguintes foram realizadas em 1984, logo após a eclosão da Guerra do Líbano e uma grave crise econômica. Shimon levou seu partido à vitória no Knesset pela primeira e última vez. Mas o Partido Trabalhista não obteve maioria expressiva e Peres foi obrigado a formar um governo de coalisão nacional e alternar o cargo de primeiro-ministro com Yitzhak Shamir. Peres tinha 61 anos, e passou a fazer da busca pela paz seu principal objetivo como Primeiro Ministro. Foi um período difícil, pois enfrentou grandes desafios internos, entre os quais, a hiperinflação. Retirou as forças israelenses do Líbano e, durante sua administração, trouxe os judeus etíopes para Israel.

peres, à esq. com rabin, à dir., na ocasião do sequestro do avião air france em entebbe

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Depois da alternância na função de Primeiro Ministro, em 1986, Peres foi Ministro das Relações Exteriores do governo Shamir. Em 1987, a Primeira Intifada eclodiu e, em 1988, o Likud venceu as eleições e foi formado um novo governo de coalizão no qual Shamir foi o Primeiro Ministro e, Peres, Ministro das Finanças. Os trabalhistas retornam ao poder em 1992 sob a liderança de Rabin que indicou Peres


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como Chanceler. O relacionamento entre Rabin e Peres mudara ao longo dos anos, tendo os dois aprendido a trabalhar juntos e a depender totalmente um do outro.

Acordos de Oslo e assassinato de Rabin Peres nunca acreditou que Israel tinha uma “dívida histórica” com os palestinos. Ele acreditava que a paz deveria ser algo pragmático, uma opção. Em uma entrevista, disse: “Israel pagou com sangue. Eu acredito que nós sofremos muito. (...) Eu pessoalmente paguei um alto preço, porque defendia as negociações com os palestinos e eles nos aterrorizaram. No início, os árabes queriam riscar-nos do mapa, tentaram fazer isso através da guerra. Fomos atacados sete vezes. Eles estavam corretos em sua análise, mas errados em sua compreensão. Eram numericamente superiores. Nós estávamos em número menor e sozinhos, não tínhamos ainda um Estado e estávamos em guerra. Então, de seu ponto de vista, eles estavam corretos em tentar nos destruir. Mas acontece que eles perderam todas as sete guerras, apesar de todos os seus cálculos, pois há elementos que não podem ser calculados, mas são decisivos: o espírito humano e o sacrifício humano”. Ele ainda dizia: “Acredito que há duas coisas na vida que não podem ser alcançadas a menos que você feche um pouco os olhos: o amor e a paz. Se você ficar sempre de olhos abertos jamais se apaixonará. Se você abrir seus olhos nunca fará a paz. Porque todos nós somos incompletos, não somos perfeitos”. Segundo Peres, Rabin não queria conversar com Arafat, então ele o

fernando henrique cardoso encontra shimon peres em jerusalem, 2014

fez. Negociações secretas com a OLP levaram à assinatura de um acordo entre Peres e Mahmoud Abbas, em 1993, em Oslo. O intuito dos acordos era resolver o conflito pela terra entre a Jordânia e o Mar Mediterrâneo. Rabin sequer queria ir a Washington. “Já que Rabin não queria ir, Arafat disse que se Rabin não fosse, ele também não iria. Rabin não gostava de Arafat e não queria falar com ele”. A famosa cerimônia realizada na Casa Branca em setembro daquele ano contou com a participação de Rabin, Arafat, Clinton, Peres e Abbas. “Como vocês sabem”, contava Peres, “quando estávamos em Washington, Clinton praticamente forçou Rabin a apertar a mão de Arafat. E quando o fez virou-se para mim e disse: ‘Agora é sua vez’, porque ele já passara pela agonia”. Em 1994, Peres, Rabin e Arafat receberam o Prêmio Nobel da Paz pelos Acordos de Oslo. 61

Depois de Oslo, Peres costumava traçar uma conexão entre segurança e paz. “Dimona sedimentou o caminho para Oslo. Uma vez me perguntaram como eu gostaria de descrever minha biografia e eu disse: ‘De Dimona a Oslo’. Uma nação ataca a outra por duas razões – o desejo de destruir o outro país e a capacidade de fazê-lo. Como nós não podemos mudar o desejo, precisamos convencer o outro de que ele não pode fazer isso. Portanto, Dimona puxou o tapete sob os pés daqueles que pensaram que poderiam destruir Israel”. Juntos, Peres e Rabin deram início ao processo de Oslo e juntos tornaram-se alvo de fortes críticas e ameaças de morte por parte de radicais israelenses. Durante dois anos Peres trabalhou arduamente para manter a imperfeita paz. Mas, a fúria dos israelenses diante do constante terrorismo árabe, a violência e números de mortos, levou a uma série de manifestações contra o governo de Rabin e Peres. DEZEMBRO 2016


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1. Peres e Rabin com seus Prêmios Nobel, Oslo, 1994 2. Peres cumprimenta Rei Hussein da Jordânia, funeral de Yitzhak Rabin, Mt. Herzl, Jerusalém 3. Com o ex-Secretário de Estado Henry Kissinger, 2012 4. Pres. Shimon Peres e Vladimir Putin em sua visita oficial a Moscou, 2012 5. Com o Papa Francisco, 2013 6. Pres. Barack Obama, esq., plantando uma árvore na residência do Pres. de Israel, Jerusalém, 2013

Em 1995, Yigal Amir assassinou Rabin em uma manifestação em prol da paz. Peres, outro alvo de Amir, estava a alguns metros de distância. Peres foi indicado Primeiro Ministro. Pela segunda vez em sua vida era Primeiro Ministro e também Ministro da Defesa. Israel entrou em um dos períodos mais difíceis de sua história, incluindo uma série de ataques terroristas perpetrados pelo Hamas, que mataram centenas de israelenses. Peres perdeu o apoio politico quando sucessivos ataques a bomba mataram dezenas de cidadãos em Tel Aviv e em Jerusalém. A promessa de Oslo foi destruída em meio aos ataques suicidas palestinos. A Segunda Intifada tinha começado.

o primeiro ministro com a esposa, sonia, 1984

Peres, no entanto, insistia em argumentar que negociações eram o único caminho para se conseguir a segurança definitiva de Israel. 62

Derrota eleitoral Em 1996 Peres enfrentou um oponente mais jovem, Binyamin Netanyahu, e perdeu as eleições pela estreita margem de 1%. Depois da derrota, fundou o Centro Peres para a Paz. O pleito de 1999 foi vencido pelo líder do Partido Trabalhista, Ehud Barak, e Peres foi indicado para o Ministério da Cooperação Regional. Mas em 2000, sofreu mais uma derrota ao perder a eleição presidencial no Knesset para Moshe Katsav. Quando Ariel Sharon derrotou Barak, em 2001, Peres fez com que o Partido Trabalhista participasse do governo. Israel vivia dias dramáticos, pois a Segunda Intifada estava no auge. No final de 2002, quando os trabalhistas deixaram a coalisão, Peres renunciou ao cargo. Os trabalhistas também perderam a eleição de 2003 e, mais uma vez,


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Peres levou o partido ao governo de Sharon para apoiar a retirada da Faixa de Gaza. Mas, em 2005, quando Amir Peretz derrotou Peres nas primárias e, tirou o partido do governo, a reação de Peres foi imediata, deixando definitivamente o partido. Na eleição seguinte ele concorreu com o Partido Kadima, que tinha sido criado por Sharon, e foi indicado Vice-Primeiro Ministro e Ministro para o Desenvolvimento do Neguev, Galileia e Economia Regional na gestão de Ehud Olmert. Peres foi eleito 9º Presidente de Israel em 2007 e permaneceu no cargo até 2014. Dentro do sistema parlamentar israelense, a presidência é uma função principalmente cerimonial. Rapidamente, alcançou o status de estadista mundial. Durante esse período, ele e sua equipe se tornaram uma “marca” internacional e convidado imprescindível em importantes conferências e eventos ao redor do globo. Internamente, ele jamais foi tão popular quanto durante os sete anos em que esteve na presidência, obtendo mais de 80% de aprovação.

A perda de um gigante No dia 13 de setembro de 2016 Shimon Peres sofreu um infarto, vindo a falecer duas semanas depois, no dia 28. Deixou três filhos – Tzvia Walden, Yoni Peres, e Chemi, além de netos e bisnetos. Peres escreveu 11 livros, ganhou inúmeros prêmios, além do Nobel da Paz. Tendo sobrevivido a todos os políticos de sua geração, ele foi um dos mais importantes líderes do mundo. Não era “ingênuo”, em relação à paz com os árabes, como tantos os acusam. Em 2012, durante

Era um grande homem do mundo. Ele pertencia a uma geração que emergiu da escravidão para a liberdade, que lançou raízes em nossa Pátria ancestral, e empunhou a Espada de David para defendê-la”.

Bill Clinton, presidente dos Estados Unidos, despede-se de Shimon Peres

seu discurso em Yad Vashem, ele foi muito firme ao declarar: “Viemos aqui para dizer que somos um povo pacífico que pode defender-se. Podemos e iremos fazê-lo”. Tinha plena consciência de quão arraigado é o ódio dos árabes contra Israel e quão difícil seria conseguir a paz. “Nós as vencemos, todas as guerras de Israel”, costumava dizer. “Mas não vencemos a maior das vitórias a que aspirávamos: a libertação da necessidade de ter que vencer as vitórias”. Shimon Peres nunca viu seu sonho de paz realizado. No entanto, aos 93 anos, jamais parou de trabalhar pelo seu povo e nunca deixou de sonhar por um futuro melhor. Foi amado por judeus e não judeus, e o mundo lamentou profundamente sua morte, a perda de um grande homem. Um homem que se tornou um símbolo de paz e esperança. Líderes de todo o mundo foram ao Monte Herzl, o cemitério nacional de Israel, para dar seu último adeus a Shimon Peres. Netanyahu, Primeiro Ministro de Israel, proferiu um discurso emocionado: “Shimon viveu uma vida cheia de propósito. Ele alçou a alturas incríveis. Arrebatou a tantos com sua visão e esperança. Era um grande homem de Israel. 63

As palavras do presidente Barack Obama não foram menos tocantes: “O último da geração dos fundadores agora se foi. Em sua vida, Shimon realizou feitos que equivalem à vida de mil homens. Mas ele entendeu que é melhor viver até o final dos dias na Terra com saudades não do passado, mas dos sonhos que ainda não se realizaram – um Estado de Israel seguro e em uma paz justa e duradoura com seus vizinhos”. O ex-presidente Bill Clinton disse que Peres “... viveu 93 anos em um estado de constante admiração sobre o inacreditável potencial que todos nós temos de superar nossas feridas, nossos ressentimentos, nossos temores de fazer o melhor hoje e reivindicar a promessa do amanhã”. “Eu sou filho de uma geração que perdeu um mundo e construiu outro”, Peres escreveu. E, nós, o povo judeu, somos eternamente gratos ao mundo que ele, entre outros gigantes de nossa nação, ajudou a construir.

Bibliografia

Samuel, David, President: Shimon Peres: The Kindle Singles Interview, 2013 Bar-Zohar, Shimon Peres: The Biography Ziv, Guy, Why Hawks Become Doves: Shimon Peres and Foreign Policy Change in Israel, 2014- kindle edition Yardena, Schwartz, Exclusive: Shimon Peres on Peace, War and Israel’s Future 15 de fevereiro de 2016 (TIME Interviews Shimon Peres)

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TURQUIA: há um futuro para os judeus? A comunidade judaica da Turquia é uma das poucas ainda presentes em um país de maioria muçulmana. Desde a criação da República, na década de 1920, até hoje, o país tem passado por inúmeras mudanças que afetaram a vida dos judeus. A hostilidade e discriminação já existentes nas primeiras décadas da nação turca atingiram novos patamares com a subida ao poder do Partido Islâmico que governa atualmente a Turquia.

A

pesar de a comunidade judaica mostrar certo dinamismo, os cientistas políticos têm dúvidas quanto à sua continuidade na Turquia a longo prazo. Desde a fundação da República turca, o número de judeus que vivem no país tem minguado, e o êxodo continua. Não há dados exatos sobre quantos lá vivem, atualmente, pois, desde 1965, o censo excluiu a pergunta sobre a religião do cidadão e, dependendo da fonte, os números diferem, mas estima-se que, em 2005, havia quase 20 mil judeus no país e, atualmente, o número tenha caído para 17 mil.

E o quadro que se vê atualmente sob o atual presidente, Recep Tayyip Erdogan, islamista convicto, não difere do que já existia, apesar do reatamento das relações diplomáticas com Israel, em junho de 2016.

A criação da República Turca Sempre houve judeus vivendo, interruptamente, na região onde fica a República da Turquia desde o século 4º a.E.C., principalmente na Península da Anatólia. No entanto, a grande imigração judaica ocorreu no final do século 15 e 16 com a chegada de judeus e conversos ibéricos à região, na época parte do Império Otomano. Em fins do século 19, a população judaica que vivia na atual Turquia era numerosa e próspera. Em um relatório, a Alliance Israélite Universelle afirma que “são poucos os países, mesmo os mais esclarecidos e civilizados, onde os judeus desfrutem a igualdade que têm na Turquia”.

É bem verdade que os judeus que vivem na Turquia enfrentaram menos problemas do que outras comunidades em países islâmicos, mas apesar da liberdade religiosa, da concessão dos direitos civis e da participação na vida econômica, não se pode falar em aceitação dos judeus enquanto tal na sociedade turca; pelo contrário. Desde seu estabelecimento no país, eles são alvo de discriminação, assimilação forçada e pogroms.

A Turquia como país com a configuração atual surgiu após o término da 1a Guerra Mundial. O debilitado Império Otomano aliara-se à Tríplice Aliança (Alemanha, Áustria-Hungria e Itália), que acabou sendo derrotada pela França e Grã-Bretanha.

A partir do final da década de 1940, o sentimento anti-israelense e o antissemitismo permeiam a sociedade turca, e os judeus têm sido alvo da crescente retórica hostil dos setores islâmicos e ultranacionalistas. 64


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Istambul, vista da Torre Galata, Turquia

No final da Guerra, o Império foi desmembrado, ficando o território turco dividido entre os vencedores. Em de maio de 1919, a ocupação de Istambul por tropas britânicas, francesas e italianas, e de Esmirna pelos gregos foi o estopim para o início da Guerra de Independência Turca. Durante o conflito, oficiais liderados pelo general Mustafa Kemal, mais conhecido como Atatürk (Pai dos Turcos), enfrentaram e venceram as tropas gregas, britânicas e francesas. Em julho de 1923, as partes envolvidas assinaram o Tratado de Lausanne que reconhecia o governo dos nacionalistas turcos e definia as fronteiras da nova nação. O novo Estado turco, com Ancara como capital, irá ocupar a península da Anatólia.

Em outubro de 1923, Mustafa Kemal proclama a República da Turquia, tornando-se seu presidente. Convoca também a Grande Assembleia Nacional (GAN) que agiria como Poder Legislativo.

MUSTAFA KEMAL, “PAI DOS TURCOS”

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A Turquia passa a ser governada por um sistema político unipartidário e, nas três décadas seguintes, o poder está nas mãos do “Partido Republicano do Povo” (CHP), fundado e encabeçado por Atatürk. O objetivo de Atatürk era criar uma nação homogênea e secular sobre as ruínas do multiétnico Império Otomano. A Constituição de 1924, em teoria, não fazia distinção entre os muçulmanos e não muçulmanos, no entanto, Kemal almejava a “turquização” de toda a população. E consequentemente todas as minorias veem-se forçadas a se integrar, adotando a cultura e idioma turcos. As principais minorias que viviam na época em território turco eram: um número reduzido de armênios, pois mais de um milhão e meio haviam sido dizimados pelo governo otomano; os gregos cristãos, a maioria vivendo DEZEmbro 2016


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em Istambul, pois os que viviam em outras regiões tinham sido transferidos para a Grécia, e, em contrapartida, os muçulmanos que viviam na Grécia tinham ido para a Turquia; e os judeus que, de acordo com o primeiro censo, realizado em 1927, eram 80 mil pessoas, e estavam basicamente concentrados em Istambul, Izmir e Edirne.

programa do governo turco, em 1925 essas minorias abriram mão da proteção de suas singularidades, imbuídas nesse Tratado.

As reformas rumo à secularização Ao assumir a presidência, Kemal deu início à ocidentalização da Turquia. Nos anos que se seguiram e até sua morte, em 1938, implantou um programa de reformas que transformaram a sociedade turca. Pretendia secularizar uma sociedade que, durante séculos tinha-se pautado pelas leis da shari’a1. Queria fazer da Turquia um Estado moderno, democrático e laico. As reformas instituídas traduzem a ideologia “kemalista” que servirá de base para a estruturação da nação. Não há dúvida de que a principal reforma empreendida por Atatürk foi a separação entre o Estado e o Islã, que deixou de ser a religião do Estado. O turco tornou-se a língua oficial das preces nas mesquitas. Foram abolidas as cortes islâmicas e criado um código jurídico baseado nos códices europeus. Adotou-se o calendário gregoriano, o domingo e não a sexta-feira se tornando o dia do descanso. Tornou-se obrigatório adotar um sobrenome de família, proibiu-se a poligamia e as mulheres passaram a ter os mesmos direitos A shari’a é o corpo da lei religiosa islâmica tanto em relação à justiça civil e criminal, quanto em relação à conduta individual.

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Um não-muçulmano que vivia num Estado Islâmico

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cHacham Bashi Haïm Nahum Rabino Chefe da Turquia, 1909

legais que os homens, inclusive o de voto. O novo regime estimulou o uso de roupas ocidentais, e, em 1934, foi decretada a Lei do Vestuário, que proibiu o uso de véus e turbantes em instituições públicas. De suma importância foram também as reformas na área de educação. A escola primária tornouse gratuita e obrigatória, e ficou sob a responsabilidade direta do Estado, acabando, assim, com o domínio islâmico. Foi também adotado o alfabeto turco, de grafia latina. As expectativas das várias minorias de total integração, porém, não se realizaram. Tanto os kemalistas, como o povo em geral eram xenofóbicos, e consideravam “suspeitas” as minorias e todos os não-muçulmanos. A pressão por uma “turquização” – como “prova” de lealdade à Turquia, era intensa. Não faltaram críticas no âmbito internacional ao programa de turquização, pois violava disposições do Tratado de Lausanne, que garantia os direitos dos nãomuçulmanos. Para colocar um ponto final na discussão da validade do 66

O xenofobismo teve sérias consequências para os nãomuçulmanos, pois resultou em uma série de leis, principalmente na área econômica, que faziam uma distinção entre os verdadeiros “turcos”, ou seja, muçulmanos de etnia turca, e os não-muçulmanos. De acordo com essas leis apenas “turcos étnicos” podiam exercer inúmeras funções econômicas e uma série de profissões. A lista é imensa, mas para se ter uma ideia, apenas os “turcos étnicos” podiam trabalhar em instituições públicas, bancos, correio, hotéis, e assim por diante. E, apenas os “turcos” podiam ser médicos, dentistas, parteiras, vendedores ambulantes, fabricantes de roupas...

A vida judaica Foi substancial o impacto na vida judaica, em decorrência dessas reformas. Os judeus logo perceberam que a igualdade de juri de direitos não lhes garantia a igualdade de facto dos mesmos na esfera social e pública. A maioria muçulmana continuava a considerálos “não turcos”, dhimmis2, cidadãos de 2ª classe, pessoas que não “mereciam” os mesmos privilégios que os turcos étnicos. Eles eram constantemente “lembrados” de sua classificação de “convidados”, cabendo-lhes, portanto, demonstrar sua gratidão mediante sua turquização. Numa demonstração de “patriotismo”, os judeus abdicaram de seus direitos como minoria, e muitos renunciaram à sua nacionalidade estrangeira.


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A Sinagoga Asquenazi, Istambul, 2015

Historiadores acreditam que se os judeus não foram abertamente forçados, eles foram “induzidos” a tomar essa atitude.

judeus foram assediados em público, multados ou presos por utilizar o ladino ou francês – com total apoio do governo.

Como vimos, como outras minorias os judeus foram proibidos de exercer inúmeras profissões, muitas das quais haviam exercido sob domínio otomano. Em 1934, 24% dos judeus trabalhavam no comércio, 20% na indústria e 45% em atividades que não necessitavam qualificação e apenas 4% na administração pública e no setor de serviços.

Em aderência às reformas kemalistas, a comunidade judaica teve que fechar organizações religiosas e beneficentes. As escolas judaicas deixaram de ensinar hebraico e religião, enquanto que, como dissemos, tornava-se obrigatório o ensino do idioma turco, da história e geografia do país – por um professor “turco”. A proibição de ensinar a religião nas escolas foi um sério golpe, colocando em questão a manutenção de um sistema educacional separado. Em 1929 havia em Istambul 10 escolas judaicas, com cerca de 2.500 alunos, mas, após a 2a Guerra, eram raras as que ainda funcionavam. Eram escassas as perspectivas de uma vida judaica plena para a maior parte da população judaica, pois toda

A secularização da República acelerou a secularização dos judeus, iniciada meio século antes. Estes últimos foram obrigados a adotar sobrenomes turcos, e a utilizar o idioma turco sempre que estivessem em público e, pasmem, até nas sinagogas! Em 1928, a campanha cujo slogan era “Cidadão, fale turco!” espalhou-se pelo país. Centenas de

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uma geração não teria fácil acesso à instrução religiosa, enquanto era grande a pressão pela turquização. Contudo, apesar de todas essas mudanças, a integração dos judeus na sociedade maior continuava limitada. Eles permaneceram separados, mantendo low profile, de certa forma interiorizando o rótulo de “convidados” que lhe havia sido imposto. Mesmo assim, por causa de seu sucesso econômico, a burguesia judaica enfrentava quase que diariamente um ressentimento que beirava o antissemitismo. A imprensa emergia como um importante fator no fomento aos sentimentos antijudaicos. Nas primeiras décadas proliferavam as publicações antissemitas com caricaturas de judeus retratados como gananciosos, parasitas, traidores desleais e mal-agradecidos, que deviam ser expulsos do país. DEZEmbro 2016


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e restabelecer no local a presença turca implantando-se bases militares. Tanto políticos quanto militares não queriam não-muçulmanos nessa área. A estratégia utilizada para forçá-los a abandonar o local consistia em incentivar ataques e campanhas de intimidação. Não calcularam que, uma vez desencadeado, seria difícil conter o antissemitismo da população e tampouco imaginaram a explosão de ódio de grande escala que, de fato, ocorreu.

Tragédia dos refugiados judeus durante o Holocausto A Turquia se manteve neutra durante a 2ª Guerra. Apesar de os judeus turcos não correrem os perigos enfrentados por seus irmãos em outros países, foi um período de grandes dificuldades para a comunidade.

Bimá da Sinagoga Bikur Cholim, Izmir, Turquia

Os pogroms na Trácia Em 1934, durante os últimos dias de junho e primeiros de julho foram registrados ataques violentos contra os judeus nas cidades de Edirne, Çanakkale e Kirklarel, localizadas na Trácia turca, onde viviam por volta de 20 mil judeus. A violência teve início com um boicote aos mercadores. Em 24 de junho, o bairro judaico de Çanakkale foi atacado e muçulmanos atacaram lojas e residências de judeus. No dia 3 de julho, foram atacados os de Kirklarel e, em seguida, os de Edirne. As notícias de judeus

espancados, atacados e mulheres judias estupradas disseminaram o pânico entre os judeus da Trácia. Mais de 15 mil abandonaram suas casas e fugiram para Istambul. De acordo com os documentos atualmente disponíveis, os ataques ocorreram por uma série de motivos. Havia por parte dos muçulmanos um forte ressentimento em relação aos judeus da região que não falavam o turco e uma inveja de seus comerciantes que dominavam a economia. Havia ainda o interesse do governo e das forças armadas de militarizar o Estreito do Bósforo 68

Na década de 1930 o país instituiu uma política de imigração seletiva, admitindo apenas refugiados judeus altamente qualificados. Por volta de 300 médicos, cientistas e artistas judeus foram convidados para lá se estabelecer. Entre eles estavam as mais brilhantes mentes da Europa, que se tornaram instrumentais no empenho turco de melhorar seu sistema educacional e infraestrutura econômica. Em 1934, havia 82 judeus alemães dando aulas na Universidade de Istambul. Em contrapartida, foi severa a política adotada em relação aos outros milhares de judeus que procuravam asilo. Em 1938 foi proibida a entrada a todos aqueles sem passaporte ou documentos de cidadania. Em seguida foi


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promulgado um decreto para impedir a entrada na Turquia de “Judeus cujos direitos foram limitados em seus países”. Em 1941, a outorga de visto de residente ou turista a judeus perseguidos foi proibida por lei, sendo apenas permitida a concessão de vistos de trânsito àqueles que tinham visto de entrada a outros países. Assim, 13.240 judeus usaram a Turquia como caminho para a então Palestina, enquanto outros 3.234 conseguiram se estabelecer na Turquia. As leis turcas permitiam a volta à Turquia aos judeus com cidadania turca que viviam em países ocupados pela Alemanha, desde que tivessem documentos válidos. Em muitos casos, a situação dos que não possuíam papeis em ordem dependia da boa vontade dos cônsules turcos. Eles podiam reconhecê-los como cidadãos do país, salvando-os da deportação, ou não. Alguns deles, como Necdet Kent, Namık, Kemal Yolga, Selahattin Ülkümen e Behiç Erkin, fizeram de tudo para salvar a vida do maior número possível de judeus, e seus nomes constam entre os Justos das Nações, em Jerusalém. A lei de refugiados foi cumprida ao pé da letra, mesmo em situações extremas, como foi o caso dos refugiados a bordo de três navios que atracaram nos portos da Turquia. O SS Parita, com 850 refugiados, atracou no dia 8 de agosto de 1939, na costa de Izmir. As autoridades não permitiram o desembarque e, após uma semana sem água ou alimento, o capitão foi forçado a seguir viagem. Algumas revistas turcas ridicularizaram os refugiados judeus que procuravam refúgio pelo mundo afora.

Ernst Eduard Hirsch, refugiado judeu alemão que influenciou consideravelmente o sistema jurídico turco

Após a partida do navio, o jornal semi-oficial Ulus escreveu: “Finalmente se foram os judeus que perambulavam por aqui”. O segundo navio foi o Salvador que chegou em 6 de dezembro de 1940. A bordo havia 327 judeus. Mais uma vez as autoridades não permitiram o desembarque. No dia 12 os turcos forçaram o navio a seguir para altomar apesar da forte tempestade. O navio afundou e 204 pessoas se afogaram, entre elas 70 crianças.

O incidente mais famoso foi o do Struma. O navio, com 769 judeus a bordo, tentou aportar em Istambul, em 15 de dezembro de 1941. As autoridades recusaramse a autorizar o desembarque sem a garantia da Grã-Bretanha de que os passageiros poderiam prosseguir viagem. O impasse durou 70 dias, durante os quais os refugiados sobreviveram graças à mobilização da comunidade judaica local. Em 23 de fevereiro, os turcos rebocaram o Struma até alto-mar. No dia seguinte, a casa de máquinas explodiu e o navio afundou. Somente uma pessoa sobreviveu. Após o incidente, o então Primeiro Ministro Refik Saydam declarou: “A Turquia não pode se tornar a casa daqueles que não são aceitos por ninguém”. Variam os dados sobre o número de judeus salvos pela Turquia durante a Shoá. De acordo com Stanford Shaw foram 100 mil; o renomado historiador Rifat Bali estima em 15 mil e Tuvia Friling, um especialista israelense nos Balcãs e Oriente Médio, em 20 mil.

às primeiras horas da manhã, em tel aviv, o ss parita, com 700 refugiados judeus a bordo, aporta diante do hotel ritz, 22/08/1939 (AP Photo)

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Os turcos nãomuçulmanos na 2ª guerra A Turquia, apesar de neutra e de cooperar com um ou outro país beligerante, mantinha fortes relações com a Alemanha – econômicas e militares. Em Istambul, existia desde 1933 um núcleo do partido nazista que era tolerado pelo governo turco, e muitos turcos simpatizavam com o nazismo. O terreno era fértil para o crescimento do antissemitismo. Na mídia apareciam cada vez mais artigos que apontavam as minorias, principalmente os judeus, como “responsáveis” pelos problemas da Turquia. As caricaturas estereotipadas de judeus eram comuns. Nesse clima, o governo adotou uma política discriminatória em relação aos não-muçulmanos. Após a eclosão da guerra, foram mobilizadas 20 classes de reservistas, entre 18 e 45 anos. Judeus e outros não-muçulmanos foram separados dos demais e enviados aos Batalhões de Trabalho. Eles não receberam armas nem uniformes e eram insultados por soldados “turcos” que os chamavam de “soldados infiéis”. Os “soldados” dos batalhões foram despachados para vários locais da Anatólia, obrigados a trabalhar em condições sub-humanas na construção de bases aéreas, túneis e rodovias. Muitos morreram. Os batalhões só foram dispensados em julho de 1942. Dönme: Grupo de cripto-judeus no Império Otomano, no século 17, cujos membros são publicamente muçulmanos, mas secretamente seguem praticando o judaísmo.

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Apenas quatro meses após a dissolução dos batalhões, os não-muçulmanos seriam novamente alvo de mais um decreto discriminatório. Em 11 de novembro de 1942, é promulgada a Lei sobre Imposto de Renda. Em princípio, a nova lei foi promulgada como uma oportunidade para o governo sanear suas finanças. A lei3 dividia os contribuintes em quatro grupos: os muçulmanos, os não-muçulmanos, os estrangeiros, e os dönmes3 . Os impostos para os não-muçulmanos eram quatro vezes superiores aos dos muçulmanos. Estima-se que, na média per capita, os muçulmanos eram taxados em 5% de suas rendas anuais, os gregos em 156%, os judeus em 179% e os armênios em 232%. Para piorar a situação, os não-muçulmanos tinham que pagar a totalidade dos impostos em 15 dias, em dinheiro, caso contrário seriam enviados a campos de trabalhos forçados na Anatólia Oriental. Estima-se que 1.400 acabaram sendo deportados para Askale. Em 1943, o governo libertou os que enviara a essa localidade e, em março do ano seguinte, o Imposto de Renda foi suspenso e as dívidas, perdoadas. A lei de taxação foi um grande golpe para a burguesia nãomuçulmana. Os tributos arruinaram a vida e as finanças de muitas famílias. Historiadores acreditam que a lei tenha sido criada para enfraquecer a posição econômica das minorias e criar uma burguesia verdadeiramente turca. A legislação discriminatória empobreceu a comunidade judaica deixando-a desorientada e desconfiada. Os acontecimentos prepararam o caminho para a ampla emigração ocorrida após a 70

2ª Guerra – especialmente após a independência de Israel, entre 1948 e 1949. Em 1945 havia 76 mil judeus na Turquia, em 1955, 45.995, número que continuou a diminuir na década seguinte, chegando a 38.267 em 1965.

Cresce o Movimento Islâmico No pós-guerra a Turquia entrou num período de transição política de um regime unipartidário para o multipartidarismo. Em 1946, formou-se o Partido Democrático, que assumiu o poder em 1950. Mais uma vez, havia motivos para as minorias não muçulmanas acreditarem que a igualdade prometida na Constituição de 1924 poderia tornar-se realidade, garantindo-lhes o mesmo tratamento dos muçulmanos. Mas as esperanças foram frustradas e a situação, principalmente da população judaica, tornou-se mais difícil. A volta ao islamismo tornara-se uma forte tendência política que iria determinar as futuras décadas. Até o CHP, partido de ideologia kemalista, defensor da secularização que até então governara o país, teve que adotar uma atitude mais moderada sobre as questões religiosas. Com a subida ao poder do Partido Democrático, foram abolidas muitas das proibições em relação ao Islã que vigoravam desde as primeiras décadas da República. Gradativamente o Islã reconquistava seu lugar na sociedade turca. Essa tendência não secularista e pró-islâmica acabou abrindo espaço ao islamismo político.


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O Movimento Islâmico e os judeus turcos O crescimento constante do movimento islâmico turco que acompanhou a transição do país à democracia multipartidária trouxe consigo uma crescente onda antissemita. Na última década isso vinha aparecendo constantemente na imprensa ultranacionalista e islâmica, tornando-se gradualmente um princípio que caracterizava ambas as ideologias. Durante as primeiras décadas da República o antissemitismo era desencadeado pela “resistência” dos judeus à turquização e à sua posição socioeconômica. A partir de 1948, um novo elemento é adicionado e vai predominando: a existência e fortalecimento do Estado de Israel. Os turcos, sentindo-se humilhados pelas sucessivas derrotas dos exércitos árabes, passaram a alimentar um ódio contra Israel e a comunidade judaica identificada como sinônimo de Israel.

Rolos da Torá, Sinagoga Signora, Izmir, Turquia

“O antissemitismo atinge novos patamares na Turquia: ameaças contra judeus turcos, manifestações de admiração a Hitler...”, Segundo um despacho oficial do MEMRI (Instituto de Pesquisa de Mídia do Oriente Médio), 2014

A retórica negativa sobre Israel e o sionismo e a crença de uma suposta conspiração judaica mundial para enfraquecer e dominar a Turquia e o Islã permeiam toda a sociedade turca - não apenas a direita, mas também os esquerdistas e círculos kemalistas. Esse tipo de crença explica, entre outros, porque nenhuma instituição judaica internacional tem autorização para abrir escritórios ou atuar no país. Essa nova vertente do antissemitismo tem-se intensificado paralelamente ao crescimento do radicalismo islâmico. Com o aumento da virulência antissemita, cresciam os ataques físicos aos judeus. Em 6 de setembro de 1986, a Sinagoga Neve Shalom

foi vítima de um ataque suicida executado por palestinos ligados à organização terrorista de Abu Nidal. Sete judeus ficaram feridos, e 22 dos que tinham ido para as orações do Shabat foram mortos.

rimonin em prata. sinagoga italiana de karakôy

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Na década de 1990 há um crescimento do antiamericanismo e antiisraelismo. Novas teorias de conspiração passam a circular, apontando para os americanos judeus ou israelenses como os principais arquitetos da primeira Guerra do Golfo (agosto de 1990 a fevereiro de 1991) que, segundo essa teoria, teria sido realizada para beneficiar o Estado Judeu. DEZEmbro 2016


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As várias teorias de supostas conspirações judias contra muçulmanos conseguiram maior credibilidade com a publicação do livro de Soner Yalçın’s Efendi, em 2004, e Efendi II, em 2006. Mais de 150 mil cópias foram vendidas. Os livros contém divagações obsessivas e sem nexo sobre a suposta influência judaica no país. As obras, caluniosas e fantasiosas, disseminaram entre a população o discurso antissemita radical, até então limitado aos círculos ultranacionalistas islâmicos. Nesse clima político qualquer pessoa que se atreva a fazer comentários favoráveis a Israel é considerada traidor ou alguém que vendeu a alma ao “Estado sionista”. Portanto, é compreensível que os judeus turcos prefiram não dar declarações, e manter silêncio. O ano de 2003 foi marcado por atos de violência que não deixam dúvida em relação à hostilidade vigente no país contra os judeus, apesar do discurso oficial de tolerância e igualdade. Além do assassinato do dentista Yasef Yahya – cujo perpetrador confessou tê-lo matado só por ser judeu – foram realizados atentados a bomba em duas das principais sinagogas de Istambul. No dia 15 de novembro, um Shabat, carros-bomba explodiram em frente à Sinagoga Neve Shalom, no distrito de Galata, e da Beth Israel, no bairro de Osmanbey. As explosões mataram pelo menos 20 pessoas e deixaram cerca de 300 feridos. Os dois atos foram cometidos pelos grupos Islamistas turcos, simpatizantes da Al-Qaeda.

mídia turca questionou a posição da comunidade judaica local, “perguntando de que lado estavam”. O Rabinato Chefe emitiu um comunicado afirmando que a comunidade estava profundamente angustiada. Dizia o comunicado: “Às primeiras informações de que havia mortos e feridos, aumentou nosso pesar”. A imprensa turca exigiu que o único jornal judaico do país, o Salon, publicasse uma declaração oficial da comunidade. Mas, nenhuma outra declaração foi feita, além da difundida através do Rabinato Chefe. saul kapeluto, importante membro da comunidade de Istambul, na brit milá de seu neto

de Libertação de Gaza, organizada pelo Movimento Gaza Livre e a Fundação de Direitos Humanos, Liberdade e Ajuda Humanitária da Turquia. O objetivo era romper o bloqueio à Faixa de Gaza, imposto por Israel para impedir o contrabando de armas para o Hamas através de suposta ajuda humanitária. As autoridades israelenses exortaram o governo turco a não autorizar a partida da flotilha, alertando que não permitiriam, em hipótese alguma, sua entrada em águas sob seu controle. O regime de Ancara desconsiderou o aviso, apoiando totalmente a iniciativa.

Mavi Marmara

No dia 31 de maio de 2010, quando a flotilha tentava romper o bloqueio, as Forças de Defesa de Israel (FDI), conforme alertado, interceptaram o Mavi Marmara, o maior navio do grupo. O saldo da operação foi a morte de oito cidadãos turcos e um americano-turco.

Um dos momentos mais difíceis na história dos judeus turcos foi o incidente com a chamada Flotilha

Pela primeira vez, turcos foram mortos num confronto com as FDI, e, como era de se esperar, a 72

Ainda que a Turquia seja marcada por acentuadas diferenças ideológicas, o antagonismo a Israel e ao sionismo, percebidos como a “origem de todos os males”, é uma das poucas questões em que islamistas, nacionalistas, liberais, esquerdistas e kemalistas estão de acordo. Diante da onda de antissemitismo disseminada pela mídia turca depois do incidente com o Mavi Marmara, a imprensa internacional publicou uma série de artigos sobre o medo dos judeus de serem vítima de ataques físicos contra indivíduos e instituições comunitárias. Essa reação internacional obrigou o governo a declarar que os extremistas islâmicos que protestavam contra Israel deveriam fazer uma diferença entre o governo e o povo de Israel, e entre os judeus turcos e o Estado de Israel. Para a comunidade judaica turca, no entanto, ficou claro, mais uma vez, que para a opinião pública e a mídia turca, um bom judeu é um judeu antissionista, que tem uma atitude crítica em relação ao sionismo e a Israel. Enquanto que um mau judeu é o judeu sionista.


REVISTA MORASHÁ i 94

Ou seja, é impossível para os judeus da Turquia serem aceitos, a menos que adotem a retórica de “bons judeus”. Contudo, a adoção dessa retórica é um problema, pois o sionismo e a ligação com Israel são os principais temas ensinados à juventude judaica turca como forma de ajudá-los a preservar sua identidade judaica. Segundo uma pesquisa feita pela Liga Anti-Difamação em julho de 2013, 69% dos turcos têm sentimentos antissemitas que aumentaram ainda mais desde 2014. São comuns os cartazes em locais públicos e restaurantes com os dizeres: “Não é permitida a entrada de cães e judeus” e ataques com ovos contra aqueles que se dirigem à sinagoga. Apesar da condenação de tais atitudes por parte do governo e da afirmação de que os judeus do país “são nossos cidadãos”, pouco se fez para impedir a repetição desses atos. Ainda que sem chamar muita atenção, a comunidade mantém uma estrutura que permite a manutenção da cultura judaica. Em 2001 foi inaugurado o Museu de Judeus Turcos. Em 2003 foi instituído o Dia Europeu da Cultura Judaica, em Istambul. Desde 2005 vem sendo realizado um festival de cultura judaica intitulado Limmud, palavra hebraica para o termo aprendizado. Em 2006, aconteceu pela primeira vez o Karakare Film Days, visando celebrar o Holocausto através do cinema. No mesmo ano, foi inaugurado o Centro de Pesquisa da Cultura Sefaradi Turco-Otomana cuja missão é preservar a herança cultural sefaradita e a língua ladina, com a apresentação de grupos musicais. Realizam, também, várias atividades em diferentes instituições para

incentivar a juventude a manter a cultura e as tradições judaicas. Em Ulus, moderno distrito de Istambul, funciona uma escola judaica particular de nível médio que oferece 12 anos de ensino em inglês, além das matérias hebraicas.

Turquia e Israel Apesar da retórica antissionista, até maio de 2010 as relações diplomáticas entre Israel e a Turquia eram relativamente tranquilas. O intercâmbio comercial entre os dois países somava milhões de dólares, incluindo a cooperação em diversas áreas, além do fluxo de turismo, principalmente partindo de Israel. Após o incidente com o Mavi Marmara, as relações entraram em colapso, até junho de 2016, quando foi anunciada a normalização das relações diplomáticas, visando uma eventual cooperação para explorar reservas de gás natural no Mar Mediterrâneo. Israel afirma que o acordo com Ancara não anulará o bloqueio naval à Faixa de Gaza, mas criará oportunidades adicionais de

assistência humanitária à região. A Turquia, por sua vez, se compromete a não permitir “ações terroristas contra Israel a partir de seu território”. Os sentimentos anti-Israel, no entanto, são fortes. Em 2013, Erdogan ficou em segundo lugar numa pesquisa do Centro Simon Wiesenthal de classificação de personalidades antissemitas. Em 12 de janeiro de 2015 o Presidente teve um cordial encontro em Ancara com Mahmoud Abbas, negacionista do Holocausto e glorificador do terrorismo. Antes disso, em 27 de dezembro de 2014, o dirigente do Hamas, Khaled Mashaal, discursou perante o congresso do Partido da Justiça e do Desenvolvimento no poder, enquanto a multidão gritava slogans do tipo “Morte a Israel”! Um despacho oficial do MEMRI (Instituto de Pesquisa de Mídia do Oriente Médio), em novembro de 2014, dizia: “O antissemitismo atinge novos patamares na Turquia: ameaças contra judeus turcos, manifestações de admiração a Hitler,

Após o atentado de 1986 a Sinagoga Neve Shalom foi restaurada. Autoridades turcas estiveram presentes na cerimônia de reabertura em 20 de maio de 1987.

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DEZEmbro 2016


COMUNIDADES

seu amor por Israel em público e que ignorem comentários maliciosos sobre o Estado Judeu ou sobre a própria comunidade. A recente tentativa de golpe (julho de 2016) liderada por alguns militares contra o governo islamista de Erdogan e a rápida e violenta resposta das autoridades em reprimila, apoiada pela população que saiu às ruas para se manifestar contra a queda do presidente, sinalizam que, por enquanto, nada vai mudar na Turquia, a não ser para uma radicalização islâmica maior, com um regime cada vez mais centralizado no presidente Erdogan, que hoje conta com o total apoio dos setores islâmicos e nacionalistas.

fachada da Sinagoga de Edirne, Atualmente abandonada

exortações para que os judeus sejam enviados a campos de concentração, os judeus deveriam pagar um tributo especial etc. ”. Ainda de acordo com o despacho, ao mesmo tempo em que Erdogan negava, em seu discurso de 22 de setembro de 2014, no Conselho de Relações Exteriores, que ele ou seu governo fossem antissemitas, membros de seu partido estavam tuitando elogios a Hitler. Conforme destaca o MEMRI é óbvio que no atual governo o antissemitismo na Turquia está atingindo novos patamares. A situação é tão delicada que muitas vezes as sinagogas ficam fechadas para evitar eventuais tragédias. A Sinagoga Neve Shalom não abre mais para o Shabat, a segurança foi reforçada e, atualmente, funciona como museu. Segundo a liderança judaica, as ameaças maiores vêm da própria população turca, constantemente bombardeada com um discurso de ódio. Mensagens ameaçadoras são enviadas a membros da

Interior da Sinagoga de Edirne

comunidade, além de alertas frequentes de terrorismo emitidos por Israel. Ademais, membros da comunidade foram instruídos a não dar entrevistas para a mídia, pois qualquer palavra pode ser mal interpretada e ter sérias repercussões. O único autorizado a falar em nome da comunidade é seu presidente, Ishak Ibrahimzadeh. Para entender ainda mais o contexto basta dizer que pais recomendam a seus filhos que não usem Estrelas de David, kipá, e outros símbolos judaicos de forma ostensiva, que não falem de 74

Para a situação dos judeus na Turquia mudar o país teria que passar por uma profunda mudança cultural, afastando-se do nacionalismo islâmico que permeia todos os segmentos sociais e assumir um caminho mais liberal. Não há nada que indique que esta será a opção turca, nos próximos anos. Mesmo com a reaproximação com o Estado de Israel e o reatamento das relações diplomáticas entre os dois países, em junho de 2016. Eitan Naeh, primeiro embaixador de Israel na Turquia desde 2010, chegou no dia 1º de dezembro a Ancara, selando a normalização das relações bilaterais após anos de crise.

Bibliografia

Prof. Bali, Rifat,The Slow Disappearance of Turkey’s Jewish Community, publicado em 6 de janeiro de 2011 no site :The Jerusalem Center for Public Affairs http://jcpa.org/ Prof.Bali, Rifat “Model Citizens of the State: The Jews of Turkey during the Multi-Party Period, 2013 -kindle edition

Brink-Danan, Marcy Jewish Life in TwentyFirst-Century Turkey: The Other Side of Tolerance, 2011- kindle edition


REVISTA MORASHÁ i 93

Queremos parabenizar a direção da revista Morashá pela publicação do artigo maravilhoso (ano XXIII, edição 93, setembro 2016): Meu irmão Jonathan “Operação trovão” – Entebe, escrito por Zevi Ghivelder. Ao lermos o artigo ficamos emocionados. A descrição minuciosa do resgate dos reféns no Aeroporto de Entebe nos faz sentir, em toda sua plenitude, a grandiosidade da nossa “Tzava” – Exército de Defesa de Israel. Enea Wainstok Raanana – ISRAEL

À Equipe da Morashá, meus votos de feliz 5777 e que a revista continue sua relevante mitzvá de informar, instruir, entreter e, sem dúvida, enriquecer de conhecimentos a comunidade judaica brasileira. As celebrações no Grande Templo Israelita do Rio de Janeiro deste ano foram especialmente bonitas, com grande afluência, sobretudo no Kol Nidrei e Yom Kipur, quando inauguramos a nova fase de nossa iluminação externa e interna, projeto que denominamos “Or Hayehudim” - Luzes do Judaísmo. Como é nossa tradição, a liturgia é centro-europeia asquenazita, com chazan e coro vindos de Buenos Aires. Shaná Tová Chatima Tová! Ruy Flaks Schneider Presidente do Grande Templo Israelita do Rio de Janeiro Rio de Janeiro - RJ

Morashá, através de suas matérias de judaísmo autêntico, proporciona aos judeus de todo o Brasil o enriquecimento dos conhecimentos sobre nossa religião e história. Sempre aguardo ansiosamente a próxima edição por saber que estará repleta de conteúdos interessantes. Tenho uma tia de mais de 90 anos que diz que seu principal lazer é ler a revista!Obrigado por chegar até nós, de Recife! Parabéns pela edição de número 93, que destacou as magníficas histórias de Elie Wiesel e Jonathan Nethanyahu. Marcelo Azoubel Recife - PE

Conheci a Morashá através da minha irmã, a psicóloga Clara Benarroch, que busca aprender e colocar em prática os ensinamentos judaicos. Com ela aprendi a gostar das informações variadas e dos ensinamentos da nossa cultura e sua importância. Gostaria de destacar na edição 93, de setembro de 2016, o artigo “Os Três T (Tefilá, Tzedacá e Teshuvá)”, que muito me sensibilizou, em especial uma das passagens que fala sobre o real propósito da oração com uma linguagem simples, profunda e tocante. Parabéns aos editores. E que venham mais artigos com temas expressivos que possam marcar significativamente não só a minha vida, como a de outros. Cleise Helena Benarroch Belém - Pa

Leio a Morashá na Biblioteca Municipal de Atibaia (SP), cidade onde moro, e gostaria de agradecer o envio da publicação compartilhando, assim, uma revista de qualidade com assuntos culturais interessantes. Odete Regina Gomes São Paulo - SP

O período de Yamim Noraim me faz pensar, imaginar e associar esta época à forma de um triângulo. A base é um apoio para nossos pensamentos, reflexões, esperanças, crença e fé. O topo são as sábias decisões que virão nos iluminar. Shaná Tová Umetuká. Esthel Feldman Por e-mail

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Mais uma vez meus agradecimentos pela edição que chegou para Rosh Hashaná. “Julgamento em Nuremberg” é uma leitura muito importante para as novas gerações, especialmente perante as ondas de Holocaust Deniers que temos que enfrentar. Quarenta anos desde o resgate em Entebe... Dia 4 de Julho, estávamos em Jerusalém, no Doar (correio) comprando selos para mandar cartas aos amigos e descobrimos que estavam vendendo lindos selos comemorativos do 200º aniversário da Independência dos Estados Unidos. Também compramos a linda coleção de selos dos vitrais de Chagall. De repente ouvimos um tiroteio e começamos a perguntar o que acontecia. Não foi tiroteio - foram foguetes pela alegria da chegada dos reféns de Uganda! Todos nós, estranhos, estávamos nos abraçando. Verão de 1976, os primeiros dias de nossa primeira estadia de verão em Jerusalém, onde voltamos anualmente, e participamos em um programa maravilhoso chamado TOVS (Teachers on Volunteer Service). Gladys Udewitz Nova York - EUA

Agradecemos a doação das revistas Morashá e informamos que já fazem parte do acervo desta Biblioteca, o que complementa e auxilia nas pesquisas e para o lazer da comunidade. Sônia Regina Pinho Maia Novais Bibliot. Mun. “Dr. Clóvis Julião Arroyo” Monte Azul Paulista - SP

DEZEMBRO 2016


Agradecemos seu apoio ao Instituto Morashá de Cultura

Banco Safra S/A Cyrela Brazil Realty CSN – Cia. Siderúrgica Nacional Família Moritz Raquel Btesh Safdié e família


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Banco Daycoval S/A Banco Fibra S/A Família Ruhman Fundação Arymax Helio Seibel e Sidney Angulo


Agradecemos seu apoio ao Instituto Morashá de Cultura

BRR Adm. Crédito Construtora Elias Victor Nigri LTDA. Raphy Indústria Têxtil Ltda.


Agradecemos seu apoio ao Instituto MorashĂĄ de Cultura

Etilux Ind. e Com. Ltda. Grupo TĂŞxtil Rosset IPL Incorporadora Paulista Master Blindagens


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Banco Rendimento S/A Betapack Ind. e Com. de Plásticos Ltda. Candide Indústria e Comércio Ltda. Helbor Empreendimentos S.A. Induvel Ind. de Veludos Ltda. Sibilla e David Assine


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Adina, Elie Sakkal e Família Aleatory CONCESSIONÁRIAS GRAND BRASIL Drastosa S/A Grupo Elgin Kalimo Têxtil Ltda. Lina e Jaky Diwan Nara e Nelson Pacheco Sirotsky sab gR0UP Union National S/A Zaraplast S/A


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Adar Indústria e Comércio Ltda Altaplast Embalagens/Altacoppo Descartáveis BBZ Adm. de Condomínios Conthey Indústria e Comércio Ltda. Edfort Esser Empreendimentos Ezconet Família Friedheim Família Kignel Fitas Elásticas Estrela Ltda. Focus Têxtil Fort Solutions C. Imp. Exp. Heddy e Isaac Dayan HOPE DO NORDESTE Importação e Comércio Visitex Ltda. Ind. Têxtil Sueco Isaac Sidi Jacqueline e Albert Kayeri Joseph Nasser e família


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Kondor Invest Linda e Victor Chayo M.D.F. - Tecidos e Confecções Marcos Memram e Família Mario Arthur Adler Mash Indústria e Comércio Ltda. Presentes Mickey Moas Ind. Com. Imp. Exp. Paula e Berty Tawil RAICHER LEILÕES – SAMI RAICHER LEILOEIRO OFICIAL Rendatex / Camesa / Vanity Ricaelle Samy E Ricky Arq. e Interiores SOCIPAR INVESTIMENTOS IMOBILIÁRIOS Ruy Flaks Schneider e Família Toyland Comercial e Dist. Ltda. Vrasalon Indústria e Comércio Ltda. You Inc Incorporadora e Participações S/A



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