Revista Morashá - ed. 117

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ANO XXIX - Dezembro 2022 - Nº 117

CHANUQUIÁ, KOBLENZ, ALEMANHA, C. 1790

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Carta ao leitor

A festa de Chanucá celebra a vitória militar dos Macabeus sobre os greco-sírios, ocorrida há aproximadamente 2.200 anos. Após derrotar os poderosos exércitos do Imperador Antíoco IV, os Macabeus, oriundos de uma família de Cohanim, os Chashmonaim, recapturaram o Templo Sagrado de Jerusalém, purificaram-no e reiniciaram seus serviços.

Dentre estes, diariamente os Cohanim, sacerdotes, realizavam no Templo Sagrado, o acendimento do candelabro de sete braços – a Menorá de ouro – com azeite de oliva ritualmente puro. Quando os Macabeus recapturaram o Templo, descobriram que os grecosírios haviam propositalmente profanado os jarros com o azeite usado para acender a Menorá. Encontraram um único vasilhame, com conteúdo suficiente para mantê-la acesa por apenas um dia, sendo que levaria oito dias para produzir mais quantidade.

Os sacerdotes acenderam a Menorá com a quantidade que tinham e, milagrosamente, o pequeno suprimento, que daria apenas para um dia, ardeu ininterruptamente por oito dias – tempo suficiente para a produção de novo azeite. Este milagre constituiu um sinal de D’us de que a vitória militar dos Macabeus havia sido um ato de graça Divina.

À Festa das Luzes foi dado o nome de Chanucá, que significa “inauguração”, porque essa festividade celebra a reinauguração do Templo Sagrado de Jerusalém, particularmente do Altar, depois que os Macabeus o recapturaram dos greco-sírios. Mas o nome Chanucá também é derivado da palavra hebraica Chinuch –educação – um tema central dessa festa. Na tentativa de promover a assimilação em massa entre o Povo de Israel, os invasores emitiram decretos contra a educação judaica – contra o estudo e o ensino da Torá – e proibiram a prática dos mandamentos que constituem os sinais eternos entre D’us e o Povo Judeu – a circuncisão e a observância do Shabat e Rosh Chodesh. De fato, ao longo da história do Povo de Israel, a falta de conhecimento judaico e a assimilação andaram de mãos dadas.

Os judeus que se levantaram contra os exércitos do Imperador Antíoco IV entendiam que a verdadeira luta entre Jerusalém e Atenas não era política, e sim, religiosa e cultural. Eles compreendiam que a educação era central para o Judaísmo.

Como escreveu o Rabino Lorde Jonathan Sacks ZT’L: “Para defender um país fisicamente, precisa-se de um exército, mas para defender uma civilização, é necessário que haja educação, educadores e escolas.... De fato, a história judaica nos ensina que a educação representa a ferramenta mais poderosa para preservar o Judaísmo. É um dos segredos de nossa capacidade de sobreviver como povo, e até mesmo de prosperar, durante séculos de exílio e adversidade. O objetivo da educação judaica deve ser a transmissão dos nossos valores. Queremos que nossos jovens tenham orgulho de sua identidade, seja ela de forma intelectual, ética ou espiritual; um senso de responsabilidade com a comunidade, nosso povo e a sociedade em geral, e o desejo de passar isso para seus filhos, e de uma geração a outra” – LeDor VaDor Ser um judeu comprometido requer o envolvimento com o mundo; e somente se o fizermos enquanto judeus orgulhosos e comprometidos estaremos dando nossa singular contribuição à humanidade, de modo integral. Temos que estar preparados para nos engajarmos com o restante do mundo como judeus, de forma assumida e sem fazer concessões.

Ano após ano, o Povo Judeu comemora Chanucá porque essa festa celebra muito mais do que uma vitória militar ocorrida há mais de dois milênios. A festa de Chanucá, cujo mandamento central é o acender das luzes da Chanuquiá, simboliza a luta perpétua para manter acesa a chama do Judaísmo.

Chanucá celebra a atemporalidade do Judaísmo e a guerra espiritual que devemos empreender, em todas as gerações, para manter a luz da Torá acesa, eternamente.

Que as luzes emitidas pelas Chanuquiot acesas em todo lar judaico, mundo afora, tragam paz para toda a humanidade e mantenham o espírito judaico brilhando ao longo dos séculos, em uma luz eterna.

14 14 49 49 64 64 ÍNDICE 4 03 carta ao leitor 06 NOSSAS FESTAS Chanucá e as Sefirot emocionais 14 Purim e o Jejum de Esther 21 Destaque Dois anos dos Acordos de Abraão POR jaime spitzcovsky 24 HISTÓRIA O êxodo esquecido dos países árabes POR Lyn Julius 33 israel A véspera da soberania –75 anos da Partilha POR ZEVI GHIVELDER 42 shoá Princesa Alice, uma Justa Entre as Nações 21 21 33 33 56 56
REVISTA MORASHÁ i 117 dezembro 2022 5 49 PERSONALIDADE Reino Unido: Charles III e os judeus 56 antissemitismo Reconhecendo o antissemitismo POR Samuel Feldberg 64 comunidades Recordando Sefarad 75 cartas 24 24 06 06

Chanucá e as Sefirot Emocionais

O mandamento primordial de Chanucá é o acender de candelabros com óleo de oliva ou velas durante as oito noites desta festividade. Suas luzes nos fazem lembrar e celebrar o milagre ocorrido logo após a vitória dos Macabeus contra os greco-sírios: quando os Macabeus recapturaram o Templo Sagrado de Jerusalém, encontraram uma única jarra com azeite de oliveira não profanado para com ele acender a Menorá.

ED’us realizou um milagre: aquela única jarra de azeite, que deveria durar apenas um dia, ardeu ininterruptamente durante oito dias – tempo suficiente para que o Povo Judeu pudesse produzir mais quantidade do azeite ritualmente puro. Para celebrar esse triunfo dos Macabeus, simbolizado pelo milagre do suprimento de azeite que manteve acesa a Menorá por oito dias, nossos Sábios instituíram a Festa das Luzes – Chanucá.

Como se trata de uma festa de oito dias, o candelabro que usamos durante a festa, a Chanuquiá, tem oito braços. Contudo, a Menorá do Templo possuía sete braços. Na Torá, o número sete é altamente significativo, sendo uma das razões o fato de D’us ter criado o universo em um processo que durou sete dias.

Veremos, a seguir, o que cada um dos sete braços da Menorá representa e o significado do braço adicional, o oitavo, da Chanuquiá.

Os sete braços da Menorá representam os sete pastores do Povo de Israel – as figuras centrais que influenciam a vida espiritual de todos os judeus. Eles são: Avraham, Yitzhak, Yaakov, Moshé, Aharon, Yossef e David e aparecem em

diferentes contextos e ocasiões. São os Ushpizin, os visitantes celestiais, que visitam toda Sucá durante os sete dias de Sucot. Os sete braços da Menorá representam cada uma de suas contribuições espirituais singulares. E cada um deles personifica um dos sete atributos da Árvore da Vida da Cabalá, também conhecidos como as Sete Sefirot Emocionais.

O estudo das Sefirot é um dos alicerces da Cabalá. Elas são modos ou atributos mediante os quais D’us Se manifesta – três delas são intelectuais e sete, emocionais. É imperativo enfatizar-se que as Sefirot não representam D’us, mas sim, o meio pelo qual a Torá atribui ao Infinito qualidades e atributos específicos. Exemplificando: é um grave erro acreditar que D’us é amor. D’us é Infinito e Indefinível. O amor – uma manifestação da Sefirá de Chessed – é uma emanação de D’us. Esse mesmo conceito vale para as demais Sefirot: não constituem D’us, e sim, emanações Divinas por meio das quais D’us cria, sustenta e Se relaciona com toda a Sua Criação.

As Sefirot constituem a composição espiritual de cada ser humano. Um dos significados do ensinamento da Torá de que D’us criou o homem à Sua imagem é que assim como D’us opera por meio das Sefirot, o homem também

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o faz. Quando uma pessoa utiliza as Sefirot que tem dentro de si – isto é, os poderes de sua alma – em seu serviço a D’us aqui em nosso mundo, ela tem condições de impactar sua origem, as Sefirot, nos mundos superiores.

Como nosso propósito neste artigo é explicar o significado cabalístico de cada um dos sete braços da Menorá, discutiremos as sete Sefirot emocionais que eles representam – e não as três intelectuais. Nosso objetivo ao descrevê-las é indicar de que forma o ser humano pode utilizá-las em seu relacionamento com D’us.

1 Etz Chaim (em hebraico, , “Árvore da Vida) é uma obra cabalística escrita em 1573. Esse livro é um sumário dos ensinamentos de Rabi Yitzhak Luria, o Arizal (1534-1572), e publicado por seu aluno, o Rabi Chaim Vital.

Chessed, Guevurá e Tiferet

O primeiro braço da Menorá representa a primeira Sefirá emocional, Chessed – amor, bondade, generosidade e benevolência. Chessed também é conhecida como Guedulá – grandeza – porque a vida provém de D’us e é dirigida a um número quase ilimitado de mundos e criaturas. O Zohar, obra fundamental da Cabalá, se refere a Chessed como “o primeiro dia (o primeiro atributo) que acompanha todos os demais dias da Criação” (Zohar 1, 46a).

E representa a benevolência ilimitada com que D’us criou e permeou toda a Criação, como bem o descreve um versículo do Livros dos Salmos (89-3): “O mundo foi construído com Chessed”.

A Cabalá nos ensina que Chessed foi o motivo para a Criação. D’us criou

os mundos para que Ele tivesse sobre quem derramar Sua bondade – como nos é explicado em Etz Chaim1: “Fazer o bem é da natureza d’Aquele que é bom”.

Uma das razões para a Torá descrever a criação do mundo como um processo de sete dias é o fato de que cada dia da semana corresponde a uma das sete Sefirot emocionais. Como nos ensina a Torá, no Primeiro Dia, D’us criou a luz. Na linguagem da Cabalá: “No início, uma luz infinita, não condicionada, preencheu toda a Criação”. Essa luz construiu toda a Criação.

O primeiro braço da Menorá, que simboliza Chessed, a primeira Sefirá emocional, refere-se a Avraham Avinu, primeiro dos Patriarcas do Povo de Israel, ele próprio a personificação desse atributo e que sintetiza o “homem de bondade e

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benevolência”, que amava D’us e os homens e praticava uma ilimitada generosidade – material e espiritual.

Em nosso relacionamento com D’us manifestamos Chessed ao expressar nosso amor por Ele e por outros seres humanos. Como nos ensina o Talmud, uma das formas de se unir a D’us é emular Suas qualidades, as Sefirot Quando uma pessoa pratica Chessed, realizando atos de bondade, amor e generosidade, ela está emulando D’us, unindo-se, assim, a Ele.

O segundo braço da Menorá simboliza a segunda Sefirá emocional – Guevurá – que significa disciplina, força, bravura e justiça. Guevurá é um movimento que segue em

direção oposta a Chessed. Se, este, por um lado, representa doação e compartilhamento, mesmo quando de forma incondicional e não criteriosa, Guevurá representa o contrário – retenção e retraimento. Como um poder da alma, representa o atributo emocional da reverência, do temor e da restrição. Chessed é atração, ao passo que Guevurá é repulsa. O primeiro determina que se deve doar generosa e incondicionalmente, sem considerar o mérito de quem irá receber. Já Guevurá argumenta contra a doação àquele que não a merece ou que fará mau uso do que receber.

Contudo, Guevurá também possui um aspecto essencial da bondade

Divina, pois se a torrente de Chessed de D’us fosse irrestrita, provocaria o anulamento de toda a existência. Como nos ensina a Matemática, qualquer número, por maior que seja, é anulado no Infinito. Assim sendo, Guevurá, como Chessed, mantém a existência do mundo. A Sefirá de Guevurá é a manifestação do poder Divino em restringir e ocultar Sua Luz Infinita, possibilitando que Suas criaturas recebam o Chessed Divino segundo sua capacidade – sem serem anulados por Sua Infinitude.

A Sefirá de Guevurá caracteriza o Segundo Dia da Criação – quando D’us criou o Firmamento – em hebraico, Rakía – uma barreira restritiva sem a qual a vida na Terra não seria possível.

Guevurá é a Sefirá emocional associada a Yitzhak Avinu, nosso segundo Patriarca. O evento paradigmático na vida de Yitzhak foi quando ele anulou sua vontade, permitindo ser amarrado no altar a fim de ser sacrificado por seu pai, Avraham. O Midrash descreve como Yitzhak estava em completo controle de si mesmo. Ele personificou a bravura, a Guevurá, em sua capacidade e força de dominar seu sentido natural de autopreservação, exercendo total disciplina e resiliência ao se dispor a sacrificar sua vida em obediência à ordem de D’us.

Servimos D’us com Guevurá por temor e reverência a Ele. Aquele que serve a D’us com Guevurá exerce disciplina ao cumprir Seus mandamentos, não cedendo à tentação. A Cabalá nos ensina que assim como um pássaro necessita duas asas para voar, também nós, seres humanos, devemos amar e temer a D’us, ao mesmo tempo, ou seja, servindo a D’us com os

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Iluminura representando a Menorá de ouro de acordo com a visão do Profeta Zacharias (Zechariah 4:2–7). BÍBLIA DE CERVERA, ESPANHA, 1300

atributos de Chessed e de Guevurá.

O terceiro braço da Menorá simboliza a terceira Sefirá emocional – Tiferet, que tem várias definições: beleza, harmonia, compaixão, misericórdia, verdade e paz.

Tiferet promove a harmonia entre Chessed e Guevurá Se D’us emanasse apenas Chessed, o mundo seria anulado perante sua Guedulá, sua Grandeza Infinita. Por outro lado, se D’us manifestasse apenas Guevurá, se Ele Se contivesse totalmente, o mundo deixaria de existir. Nosso mundo somente pode existir se Chessed e Guevurá se equilibrarem, uma à outra. Tem de haver uma constante interação, uma reciprocidade, entre essas duas Sefirot. Tiferet possibilita que as duas se autoequilibrem, uma à outra, a fim de que este nosso mundo finito possa absorver a Infinita benevolência Divina, sem deixar de existir.

No Terceiro Dia da Criação, D’us determinou um equilíbrio entre água e terra, de forma que ambos sustentassem o reino vegetal – e, subsequentemente, o reino animal e o humano.

Yaakov Avinu, o terceiro e último dos Patriarcas, é o pastor que personifica a Sefirá de Tiferet. O Patriarca Jacob foi a primeira pessoa na Torá a revelar o espectro total das emoções humanas. Ele combina o Chessed de seu avô, Avraham, com a Guevurá de seu pai, Yitzhak. Em nosso relacionamento com D’us,

expressamos Tiferet ao estudar a Sua Torá, que representa a busca pela harmonia, verdade, compaixão e paz. Também exercitamos esta Sefirá glorificando D’us por meio do embelezamento do cumprimento dos mandamentos de Sua Torá.

Netzach, Hod e Yessod

O quarto braço da Menorá representa a quarta Sefirá emocional – Netzach – que significa “conquistar” ou “vencer”. Denota a ideia de dominação, ambição e a iniciativa necessária para se chegar à vitória.

Esta Sefirá caracterizou o Quarto Dia da Criação – quando D’us criou as estrelas e os corpos celestes. Estes são uma expressão de Netzach pelo fato de exercitarem uma medida de dominação sobre todos os seres vivos. Exemplificando: a luz do Sol é

imperativa para a existência de vida na Terra. Dia e noite, as quatro estações, o Shabat e os Chaguim – os dias festivos no calendário judaico – dependem do ciclo lunar e do ciclo solar. Os corpos celestes expressam Netzach de uma outra forma: eles não se desviam de sua missão, seguindo as rígidas leis que lhes foram impostas por D’us.

Entre os sete pastores, cabe a Moshé Rabenu – o maior dos líderes e profetas judeus, em todas as épocas – personificar a Sefirá de Netzach. Todas as ações de Moshé foram duradouras, especialmente ao trazer a Torá à Terra e a transmitir ao Povo Judeu.

Aquele que serve a D’us com o atributo de Netzach está determinado a cumprir Sua Vontade, quaisquer que sejam os desafios ou dificuldades. A qualidade de Netzach que reside na alma de cada pessoa depende da confiança que ela tem na missão Divina que lhe cabe. E essa pessoa a executará com total determinação até chegar à vitória.

A quinta Sefirá emocional é Hod, traduzida como humildade, entrega, gratidão e aceitação. Hod representa o poder da alma que complementa Netzach. Enquanto Netzach nos impele para a frente, vencendo barreiras, Hod assegura que nosso sucesso se baseie em nosso reconhecimento da origem Divina de nosso poder e força. Assim sendo, Hod representa sinceridade, humildade e gratidão.

É a Sefirá de Netzach que energiza nossa ambição. Mas é a Sefirá de Hod que nos obriga a reconhecer

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que devemos nosso sucesso à Providência Divina. A qualidade de Hod instila dentro de nós a humildade de reconhecer que não somos senhores únicos de nossa vida e nosso destino. Se Netzach implica em dominação, Hod implica em submissão. Na vida, temos por vezes que exercitar Netzach e impor nossa vontade, ao passo que em outras vezes temos que agir com Hod, submetendo-nos à vontade dos outros.

A Sefirá de Hod caracterizou o Quinto Dia da Criação. Neste dia, D’us criou as aves e as criaturas marinhas – os primeiros a receber Sua benevolência.

Entre os sete pastores, Aharon, irmão de Moshé, que foi o primeiro Cohen Gadol, primeiro Sumo Sacerdote, é quem personifica a Sefirá de Hod. Sua capacidade de fazer a paz entre as pessoas era proveniente de seu desejo de se submeter aos outros em troca de promover a união entre eles.

Em nosso relacionamento com D’us, expressamos a Sefirá de Hod mediante a auto abnegação e o reconhecimento da transcendência Divina que desafia nosso entendimento enquanto meros mortais. Exercitamos Hod em nosso serviço a D’us mediante o reconhecimento de que, apesar de nosso grande empenho e determinação, a Vontade de D’us sempre prevalecerá. Por meio de Hod, nós, seres humanos, reconhecemos depender totalmente de D’us. E percebemos que nossa visão limitada se deve à nossa perspectiva material e finita. Expressamos nossa gratidão a D’us por todos os favores que Ele nos concede e a Ele oferecemos

graças por todos os Seus louváveis feitos, atributos e trabalho na criação dos mundos superiores e inferiores. Neste contexto, Hod significa ser sincero em nossos atos de gratidão.

O sexto braço da Menorá representa a sexta Sefirá emocional – Yessod, que significa “a base, o fundamento”. Explicamos acima como a Sefirá de Tiferet harmoniza e equilibra Chessed e Guevurá. De modo análogo, é a Sefirá de Yessod que promove a harmonia e o equilíbrio entre Netzach e Hod.

Netzach e Hod têm a ver com dominação ou submissão, ao passo que Yessod constitui o equilíbrio entre a manutenção e a rendição da identidade da pessoa. E isto é válido tanto no relacionamento entre o ser humano e D’us como entre duas pessoas.

A Sefirá de Yessod caracterizou o Sexto Dia da Criação – quando D’us criou o primeiro ser humano. O homem e a mulher constituem a base da Criação. D’us dá a todas as Suas criaturas, mas os seres humanos retribuem cumprindo o Seu propósito na Criação. O homem

e a mulher expressam Yessod quando mantêm sua identidade exercitando o livre arbítrio, mas também renunciam a ele para cumprir os desejos Divinos.

A Sefirá de Yessod une D’us e Sua Criação em um vínculo de empatia e amor. Um Tzadik, ser humano justo, personifica Yessod por constituir um elo entre Céu e Terra. Ele desperta na humanidade a busca por D’us. Ao mesmo tempo, atrai a compaixão e a bondade Divina para o mundo. Daí se origina o ensinamento de que “Um Tzadik é a base do mundo” (Provérbios 10:25).

Yossef HaTzadik, José, filho de nosso patriarca Jacob, personifica a Sefirá de Yessod. Pilar de integridade e retidão, Yossef resistiu à tentação e teve sucesso em todos os seus esforços, trazendo bênçãos, salvação e prosperidade para o mundo, pelo fato de estar constantemente conectado com D’us.

Utilizamos o poder de Yessod em nossa alma ao sermos fiéis a D’us com intensa vontade e prazer. Conta um antigo Midrash que os seis primeiros dias da Criação constituem dois conjuntos de três dias cada, sendo que o segundo conjunto aperfeiçoa e complementa o primeiro. A primeira composição espiritual das Sefirot – Chessed, Guevurá e Tiferet – se compara à segunda – Netzach, Hod e Yessod No primeiro dia (Chessed), D’us criou a luz; no quarto dia (Netzach), Ele criou os corpos luminosos. No segundo dia (Guevurá), D’us criou os oceanos ao dividir as águas; no quinto dia (Hod), Ele criou os peixes. No terceiro dia (Tiferet), D’us criou a terra seca; até que, no sexto dia (Yessod), Ele criou o homem.

NOSSAS FESTAS

Malchut –a sétima Sefirá

O sétimo braço da Menorá representa a sétima Sefirá emocional – Malchut. Definida como “realeza”, essa Sefirá é única entre as sete Sefirot emocionais: as seis primeiras são ativas ao passo que Malchut é passiva, transmitindo a ideia de receber. Yessod, a sexta Sefirá, combina todas as demais Sefirot e as conecta a Malchut. Tendo recebido a luz de todas as demais Sefirot, Malchut canaliza e direciona uma luz unificada ao mundo, harmonizando todos os diversos atributos das demais Sefirot e os projetando para baixo, para a Criação.

Diferentemente das demais Sefirot, Malchut não tem nenhuma característica nem mesmo uma qualidade própria, e isto lhe permite unificar todas as Sefirot dentro de si e as projetar para nosso mundo. Malchut é o instrumento por meio do qual todo o plano da Criação passa a existir. A Cabalá nos ensina que “nada ocorre com os seres inferiores a não ser que seja através de Malchut” (Tikunei Zohar 19:40b, Zohar Chadash, 11a). Esta Sefirá é conhecida como “o arquiteto mediante o qual se fez toda a Criação” (Pardes Rimonim 11:2).

A receptividade inata em Malchut, que chega mesmo à sensação de vazio, é personificada pelo rei judeu ideal, que deve ser excessivamente humilde. Ele precisa estar constantemente ciente de sua nulidade perante o verdadeiro Rei dos Reis. A humildade é como um copo vazio – pronto para receber. A humildade de um rei é o portão que se abre para que ele possa receber o influxo Divino, o qual ele, por sua vez, pode compartilhar com os demais. David HaMelech, o Rei David, é o sétimo pastor e

personifica a Sefirá de Malchut. Em seus Salmos, ele se autodescreve como “pobre e carente”, apesar de descender de uma das famílias judias mais ricas e distintas. No entanto, ele se considerava pobre, pois assim como alguém que nada possui depende da generosidade dos demais, o Rei David reconhecia que todas as suas posses – seu reino, suas riquezas, seu poder – provinham exclusivamente de D’us. Malchut é o poder que D’us nos dá para que possamos receber d’Ele. Essa Sefirá expressa um relacionamento no qual o que recebe pode retribuir, tornando-se um doador.

Cada pessoa recebe uma determinada Sefirá que determina a estrutura de sua personalidade. Quanto maior a receptividade da pessoa, mais ela pode receber dos braços da Menorá.

A Sefirá de Malchut caracteriza o Sétimo Dia da Criação – o Shabat. Como vimos acima, as seis primeiras Sefirot emocionais são ativas, ao passo que a sétima, Malchut, é passiva. Essa ideia se aplica ao ciclo semanal. A Torá nos ordena trabalhar seis dias da semana e descansar no sétimo – o Shabat. O sétimo dia, o Shabat sagrado, recebe bênçãos dos outros seis dias que o precedem – assim como Malchut recebe das demais seis Sefirot, mas então as retribui, tornando-se, pelo fato de abençoar os dias da semana que o seguem, um doador. O Zohar justamente nos ensina que “Através dos dias de Shabat, todos os outros dias se tornam abençoados”.

Nós expressamos Malchut mediante a aceitação da soberania Divina e do cumprimento de Sua Vontade. A alma que serve a D’us com humildade está manifestando o poder de Malchut.

O oitavo braço da Chanuquiá

Os sete dias da semana, que são caracterizados, respectivamente,

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Vitrais (1984) de Mordecai Ardon, no saguão, da Biblioteca Nacional de Israel, Givat Ram, Jerusalém

pelas sete Sefirot emocionais, constituem um ciclo natural. O número oito representa aquilo que está acima da Natureza, ou seja, o sobrenatural. No Judaísmo, o número oito representa o milagroso. Na história de Chanucá, o azeite ardeu por oito dias para indicar que a vitória militar dos Macabeus sobre os greco-sírios tinha sido um milagre.

A Menorá do Templo tinha sete braços, sendo o sétimo representado pela Sefirá de Malchut, personificada pelo Rei David. Já a Chanuquiá tem oito braços. O oitavo braço simboliza um descendente do Rei David, o Rei Mashiach, cuja vinda trará o Shabat eterno. Essa época será uma era de paz, alegria e prosperidade para a humanidade, caracterizada por fenômenos sobrenaturais.

A Menorá e a União do Povo Judeu

A Menorá tem sete braços porque basicamente há sete caminhos diferentes para se chegar a D’us. Todo ser humano contém todas as sete Sefirot emocionais, mas uma delas exerce um papel central na vida da pessoa. Alguns judeus sentem-se mais inclinados à alma de Avraham – eles são guiados por Chessed – ao passo que outros preferem a linha de Yitzhak – são mais rigorosos e disciplinados. Cada pessoa recebe uma determinada Sefirá que determina a estrutura de sua personalidade. Quanto maior a receptividade da pessoa, mais ela pode receber dos braços da Menorá. Alguns amam D’us (Chessed) mais do que O temem; outros O temem (Guevurá) mais do que O amam. Há judeus que servem a D’us basicamente por

meio do estudo da Torá (Tiferet), que traz paz para o mundo harmonizando Chessed e Guevurá. Há judeus que servem a D’us por meio de pura determinação (Netzach), enquanto há outros que conseguem anular totalmente sua vontade diante da Vontade Divina (Hod). Algumas almas são naturalmente atraídas a D’us (Yessod) e conseguem unir Céus e Terra, num só conjunto. Mas há, também, pessoas cuja humildade lhes permite receber a generosidade da plenitude Divina – o conjunto completo das demais seis Sefirot – e a compartilhar com o restante do mundo.

Cada um de nós tem o seu caminho, sua maneira de chegar a D’us, e nenhum deles é melhor que o outro. Mas, apesar desses diferentes caminhos, temos que ter em mente que a Menorá original que Moshé construiu no deserto era feita de um único pedaço de ouro, representando a ideia de que nosso povo, o Povo de Israel, constitui um todo, uma plenitude, apesar de a Menorá ter sete diferentes braços. O fato de a Menorá original ter sido feita inteiramente de ouro simboliza a beleza do Povo Judeu. Como está decantado no Cântico dos Cânticos: “Amor meu, és bela por completo” (Shir HaShirim 4:7).

Não há um ser humano idêntico a outro, ensina o Talmud. Cada alma é diferente e singular. Mas o Povo Judeu constitui um único organismo – e cada um de nós é responsável pelos outros na singularidade de sua essência.

BIBLIOGRAFIA

Kaplan, Rabbi Aryeh, Inner SpaceIntroduction to Kabbalah, Meditation and Prophecy, editado por Abraham Sutton, Moznaim Publishing Corporation

Steinsaltz, Rabbi Adin Even-Israel, The Candle of G-d - Discourses on Chassidic Thought, editado e traduzido Yehuda Hanegbi, Maggid Books

NOSSAS FESTAS 12
Chanuquiá. nuremberg, Alemanha, c. 1770

acendendo a Chanuquiá

Todas as noites, antes de acender as velas, DIZ-SE as seguintes bênçãos:

Costuma-se colocar a Chanuquiá sobre uma mesa no lado esquerdo da porta de entrada, em frente à mezuzá, ou na janela que dá para a via pública. Os seguintes horários são referentes apenas a São Paulo

Baruch Atá A-do-nai, E-lo-hê-nu Mêlech haolam, asher kideshánu bemitsvotav, vetsivánu lehadlic ner Chanucá.

Bendito és Tu, Eterno, nosso D’us, Rei do Universo, que nos santificaste com Teus mandamentos, e nos ordenaste acender a vela de Chanucá.

A cada noite, após recitar as bênçãos, acende-se as velas da Chanuquiá com o shamash, que é colocado na Chanuquiá de modo a ficar mais alto do que as demais chamas. Após acender as velas, recita-se em seguida Hanerot halálu:

1ª noite 25 de Kislev Domingo, 18 de dezembro, a partir das 18:51 horas

2ª noite 26 de Kislev Segunda-feira, 19 de dezembro, a partir das 18:51 horas

3ª noite 27 de Kislev Terça-feira, 20 de dezembro, a partir das 18:52 horas

Baruch Atá A-do-nai, E-lo-hê-nu Mêlech haolam, sheassá nissim laavotênu, bayamim hahêm, bazeman hazê.

Bendito és Tu, Eterno, nosso D’us, Rei do Universo, que fizeste milagres para nossos antepassados, naqueles dias, nesta época.

Apenas na primeira noite, depois de recitar as duas bênçãos, recita-se o shehecheyánu:

Hanerot halálu ánu madlikim, al hanissim veal hapurkan, veal haguevurot veal hateshuot, veal haniflaot, veal hanechamot, sheassita laavotênu, bayamim hahêm, bazeman hazê, al yedê cohanêcha hakedoshim. Vechol shemonat yemê Chanucá, hanerot halálu côdesh hem, veen lánu reshut lehishtamesh bahem êla lir’otam bilvad, kedê lehodot lishmêcha, al nissêcha, veal nifleotêcha, veal yeshuotêcha.

4ª noite 28 de Kislev Quarta-feira, 21 de dezembro, a partir das 18:52 horas

5ª noite 29 de Kislev Quinta-feira, 22 de dezembro, a partir das 18:53 horas

Baruch Atá A-do-nai, E-lo-hê-nu Mêlech haolam, shehecheyánu vekiyemánu vehiguiyánu lazeman hazê.

Bendito és Tu, Eterno, nosso D’us, Rei do Universo, que nos deste vida, nos mantiveste e nos fizeste chegar até a presente época.

Acendemos estas luzes em virtude dos milagres, redenções, bravuras, salvações, feitos maravilhosos e auxílios que realizaste para nossos antepassados, naqueles dias, nesta época, por intermédio deTeus sagrados sacerdotes. Durante todos os oito dias de Chanucá, estas luzes são sagradas, não nos sendo permitido fazer qualquer uso delas, apenas mirálas, a fim de que possamos agradecer aTeu grande nome, porTeus milagres, Teus feitos maravilhosos e Tuas salvações.

6ª noite 30 de Kislev Sexta-feira, 23 de dezembro, 18:33 horas, antes de acender as velas de Shabat

7ª noite 1 de Tevet Sábado 24 de dezembro, a partir das 19:32 horas, após a Havdalá

8ª noite 2 de Tevet Domingo, 25 de dezembro, a partir das 18:54 horas

REVISTA MORASHÁ i 117 13 DEZEMBRO 2022

Purim e o Jejum de Esther

O Jejum de Esther (Taanit Esther) é realizado no dia 13 do mês hebraico de Adar. termina ao anoitecer, quando um novo dia se inicia, 14 de Adar, inaugurando a festa de Purim – uma das datas mais felizes do ano judaico. Ao contrário dos jejuns de Yom Kipur e Tishá b’Av, nos quais jejuamos por mais de 24 horas, taanit Esther é o que se conhece como um meio-jejum: inicia-se antes do nascer do sol e se encerra ao pôr do sol. É costume quebrar o jejum somente após ouvir a leitura da Meguilá, na noite de Purim.

neste ano judaico de 5783, o Jejum de Esther será realizado no dia 6 de março de 2023 – segunda-feira. A festa de Purim será celebrada ao anoitecer e no dia seguinte, 7 de março. Normalmente, observa-se Taanit Esther no dia 13 de Adar, mas quando Purim cai na noite de sábado e no dia de domingo, o jejum é antecipado: é movido do Shabat (quando é proibido jejuar, exceto em Yom Kipur) para a quinta-feira anterior.

Há quatro meios-jejuns no calendário judaico. Três deles – o jejum de Guedaliá, realizado em 3 de Tishrei, o de 10 de Tevet e o de 17 de Tamuz –comemoram eventos difíceis na história do Povo de Israel. O Jejum de Esther é o único meiojejum que celebra um evento feliz: o fracasso dos planos genocidas de Haman e o subsequente triunfo do Povo Judeu sobre seus inimigos, em uma batalha travada em 13 de Adar. Ao contrário de todos os outros, o Jejum de Esther não foi ordenado pela Torá ou pelos Profetas. Portanto, sua observância é mais branda, principalmente quando se trata de mulheres grávidas ou lactantes e de pessoas doentes que passariam muito mal se jejuassem.

Um resumo da história de Purim

Para entendermos o motivo do Jejum de Esther, é necessário relembrar os principais eventos da história de Purim

A história narrada no Livro de Esther (Meguilat Esther) ocorreu na antiga Pérsia, atual Irã, no século 4 a.E.C. O Templo Sagrado de Jerusalém havia sido destruído há mais de 50 anos, e os judeus eram súditos do poderoso e extenso Império Persa.

Três anos após o rei Achashverosh ter ascendido ao trono persa, ele promove uma grande festa para todos os seus súditos. Durante as festividades, Achashverosh ordena que sua esposa Vashti apareça nua diante de todos os homens: o rei desejava mostrar a todos a beleza de sua rainha. Vashti se recusa a fazê-lo e, a conselho de um de seus assessores, Achashverosh ordena que ela seja executada.

Quando a ira do rei se dissipa, ele se sente solitário. Seus servos sugerem que se organizasse um concurso de beleza: oficiais de todas as terras do rei trariam belas moças para Achashverosh e a que achasse graça aos olhos dele seria a nova rainha.

14 NOSSAS FESTAS

O líder dos judeus à época, Mordechai, residente da capital persa de Shushan, tinha uma sobrinha, Esther, que ele havia criado como filha. Embora não desejasse ser rainha, Esther é levada à força para o harém do rei para participar do concurso de beleza. Enquanto todas as outras concorrentes, que almejavam tornar-se a nova rainha do Império Persa, embelezavam-se com perfumes e loções, Esther nada fazia para atrair a atenção do rei. Mas D’us tinha Seus planos. E quando ela aparece diante do rei, ele imediatamente gosta de Esther e a torna sua nova esposa. Mesmo após se tornar rainha, ela não revela a sua identidade judaica para o rei Achashverosh.

Pouco depois de Esther se tornar rainha, Mordechai toma

conhecimento de um plano para assassinar o rei. Mordechai transmite essa informação a Esther, que passa a

informação adiante. Assim, a vida de Achashverosh é salva graças a Mordechai.

Enquanto isso, Haman, um dos ministros do rei Achashverosh, é promovido ao cargo de primeiro-ministro. Haman era a personificação do antissemitismo – um descendente do povo de Amalek – nação arqui-inimiga dos Filhos de Israel. Imediatamente após Haman se tornar primeiroministro da Pérsia, o rei emite um decreto: todas as pessoas do império teriam de se curvar perante Haman. Mas como esse notório antissemita andava com um ídolo pendurado em uma corrente em seu pescoço, Mordechai se recusava a se curvar diante dele. Isso serve de pretexto para que Haman orquestrasse um plano diabólico: o extermínio de todo o Povo de Israel. Haman faz

REVISTA MORASHÁ i 117 15 DEZEMBRO 2022
Esther e Mordechai. Aert de Gelder, 1675 Rainha Esther. Andrea del Castagno. Itália, C. 1450

um jogo da sorte para determinar o dia em que implementaria seu plano. A sorte caiu no dia 13 do mês hebraico de Adar

Haman oferece ao rei Achashverosh 10 mil moedas de prata para obter permissão para exterminar todos os judeus. Achashverosh, que também não era amigo do Povo de Israel, diz a Haman: “Guarde seu dinheiro, e faça com essa nação o que bem entender”.

Haman envia proclamações a todas as terras sob o reinado de Achashverosh. Seladas com o anel do rei, ordenavam que todos se levantassem contra os judeus e exterminassem a todos – homens, mulheres e crianças – no dia 13 de Adar

Quando Mordechai toma conhecimento do decreto nefasto de Haman, ele envia uma mensagem a Esther pedindo-lhe que interceda perante o rei para que este poupe o Povo de Israel do extermínio. Esther responde a Mordechai que qualquer pessoa que entrasse na presença do rei sem ter sido convocada seria morta, a menos que o rei estendesse a essa pessoa seu cetro de ouro. “E eu”, disse Esther, “já não sou convocada pelo rei há 30 dias!”

Mordechai então envia outra mensagem à rainha Esther: “Não pense que você escapará do destino de todos os judeus por estar no palácio do rei. Pois se você permanecer calada neste momento, alívio e salvação virão para os judeus de outra fonte, e você e a casa de seus pais perecerão. E quem sabe se não foi com essa finalidade que você alcançou esta posição real” (Esther, 5:14).

Esther concorda em se aproximar do rei mesmo sem ter sido convocada.

Pede a Mordechai que reúna todos os judeus em Shushan e que todos jejuem por três dias e três noites. Esther também participaria desse jejum, após o que ela arriscaria sua vida aproximando-se do rei mesmo sem ter sido convocada.

Mordechai atende ao pedido de Esther. Ele reúne os judeus de Shushan e todos jejuam durante três dias e três noites.

Após o término do jejum, Esther veste trajes reais e adentra os aposentos de Achashverosh. Imediatamente, o rei estende seu cetro e pergunta a Esther o que ela desejava. Esther responde ao rei que deseja convidá-lo, bem como a Haman, para um pequeno banquete que ela havia preparado.

O rei Achashverosh e Haman juntam-se a Esther para participar do banquete por ela organizado. Durante a refeição, o rei pergunta novamente a Esther se ela tinha algo a pedir. “Sim”,

respondeu Esther. “Eu gostaria que amanhã, novamente, o rei e Haman se juntassem a mim para um banquete. E então revelarei ao rei o meu pedido”.

Haman deixa a festa sentindose feliz e orgulhoso por ter sido homenageado pela rainha. Mas ele se depara com Mordechai que, mais uma vez, se recusa a se curvar diante dele. Quando Haman volta a seus aposentos, sua esposa e seus conselheiros o aconselham a erguer uma forca e pedir permissão ao rei para enforcar Mordechai. Haman segue o conselho.

Naquela noite, o rei Achashverosh não consegue dormir. E então pede a seus servos para ler para ele as Crônicas Reais. Eles abrem em uma página que descrevia como Mordechai havia salvado a vida do rei ao revelar que dois de seus camareiros haviam planejado matá-lo.

Achashverosh pergunta a eles: “Ele foi recompensado por este belo ato?”

E eles respondem que Mordechai não havia sido recompensado de nenhuma forma por ter salvado a vida do rei.

Naquele mesmo momento, Haman chega no palácio real para pedir ao rei permissão para enforcar Mordechai. Antes de Haman informar o motivo de sua visita, o rei dirige-se a ele e pergunta: “Na sua opinião, o que deve ser feito a uma pessoa a quem o rei deseja honrar?”

Haman, que tinha certeza de que o rei se referia a ele,

NOSSAS FESTAS
Rainha Esther fala com o Rei Achashverosh (Esther 8: 3-12). Londres, biblioteca britânica

responde: “Tragam-lhe roupas reais e um cavalo real. E que um dos nobres do rei vista o homem e o conduza a cavalo pelas ruas da cidade, proclamando diante dele: ‘Assim é feito para o homem a quem o rei deseja honrar!’”

“Uma ótima ideia”, responde Achashverosh. “Agora vá pegar as roupas e o cavalo e faça isso para Mordechai”.

Haman não tem escolha a não ser obedecer. No dia seguinte, ele honra Mordechai como o rei havia ordenado, e, logo depois, corre para se juntar ao rei e a Esther para o segundo banquete. Durante a refeição, o rei pede para que Esther finalmente revele seu pedido.

“Se achei graça aos teus olhos, ó rei”, implora Esther, “e se for do teu agrado, que minha vida me seja concedida pelo meu pedido, bem como a vida do meu povo, pelo meu pedido. Pois meu povo e eu fomos vendidos para sermos aniquilados, mortos e destruídos!”. Esther então identifica Haman como o vilão que desejava cometer essa atrocidade.

O rei se enche de ódio contra Haman. E quando lhe é informado que ele havia construído uma forca para Mordechai, o rei ordena que a mesma seja utilizada para enforcar o próprio Haman. Naquele mesmo dia, o rei Achashverosh nomeia Mordechai primeiro-ministro da Pérsia.

Haman estava morto, mas seu decreto nefasto ainda permanecia em vigor. De acordo com a lei persa da época, um decreto real não podia ser revogado. O que o rei Achashverosh fez então foi dar permissão a Mordechai e Esther para que redigissem um decreto que

“e se for do seu agrado, que minha vida me seja concedida pelo meu pedido, bem como a vida do meu povo, pelo meu pedido...”

autorizasse os judeus a se defender contra seus inimigos. Já que àquela altura todos sabiam que a rainha e o recém-nomeado primeiro-ministro eram judeus, ninguém impediria os judeus de se defenderem. Assim, no dia 13 de Adar daquele ano, os judeus prevaleceram sobre os inimigos que, a mando de Haman, levantaram-se para matá-los.

A rainha Esther também pede permissão ao rei para que fosse dado aos judeus de Shushan, capital da Pérsia, o direito de lutar contra seus inimigos por mais um dia. Achashverosh atendeu seu pedido. Naquele dia, 14 de Adar, enquanto o Povo de Israel comemorava a vitória do dia anterior, os judeus de Shushan continuaram a lutar – mataram um número ainda maior de seus inimigos e enforcaram os 10 filhos de Haman. Os judeus de Shushan então descansaram e comemoraram a vitória no dia 15 de Adar. Mordechai e Esther estabeleceram a festa de Purim para comemorar esses eventos extraordinários.

REVISTA MORASHÁ i 117 17 DEZEMBRO 2022
PURIM - LITOGRAFIA COLORIDA, MOSHEH SHAH MIZRAHI, JERUSALÉM. INÍCIO DO SÉC. 20. COLEÇÃO DA FAMÍLIA GROSS, TEL AVIV MEGUILAT ESTHER. envoltório em PRATA E PEDRAS PRECIOSAS. C. 1920

Judeus em todo o mundo comemoram Purim no dia 14 de Adar, enquanto os moradores de cidades muradas em Israel – hoje, apenas Jerusalém – comemoram a data no dia 15 de Adar, assim como fizeram os judeus de Shushan. Purim é considerada uma das datas mais alegres do calendário judaico.

Por que foi instituído o Jejum de Esther?

Maimônides (o Rambam) escreve: “Todo o Povo Judeu segue o costume de jejuar... no dia 13 de Adar, em comemoração ao jejum realizado na época de Haman, como está escrito: “Para estabelecer para si mesmos o assunto dos jejuns e seus clamores” (Esther, 10:31).

Ao explicar o motivo do Jejum de Esther, Maimônides cita um verso do Livro de Esther em que a palavra “jejum” está no plural: “o assunto dos jejuns”. Vários comentaristas

clássicos da Torá deduzem que ao citar um versículo da Meguilá que menciona “jejuns”, Maimônides sustenta a opinião de que o Jejum de Esther é realizado em lembrança aos três dias e três noites de jejum consecutivos observados pelo Povo Judeu. Como vimos acima no resumo da história de Purim, Mordechai, o líder do Povo de Israel à época, pediu à sua sobrinha, a rainha Esther, que intercedesse junto ao rei Achashverosh para que este revogasse o decreto de genocídio de Haman. Esther responde a Mordechai que qualquer pessoa que se aproximasse do rei sem ter sido convocada seria morta, a menos que o rei estendesse a essa pessoa seu cetro de ouro. Esther concordou em arriscar sua vida com a condição de que todo o Povo Judeu jejuasse por três dias e três noites.

Mas a opinião do Rambam sobre o motivo pelo qual jejuamos na véspera de Purim não é unânime. O Rabino David Avudraham, uma

das maiores autoridades sobre a liturgia judaica, diverge de Maimônides. Ele escreve: “Até mesmo HaYarchi [o Rabino Avraham ben Nathan, que viveu na Provença, sul da França, durante o século 12] escreve que esses jejuns não são uma comemoração dos jejuns de Esther, pois não jejuamos por três dias consecutivos, dia e noite, [como Esther o fez]. Além disso, esses jejuns (de três dias e três noites) foram realizados em Pessach... Em vez disso, (o jejum do dia 13 de Adar foi instituído) por causa do versículo: ‘E os judeus ... reuniram-se no dia 13 (de Adar)’; [esta reunião] foi com o propósito de jejuarem [juntos]”.

De acordo com Avudraham, o Jejum de Esther é realizado no dia 13 de Adar porque, na história de Purim, o Povo Judeu jejuou nessa data – o dia da batalha contra seus inimigos – visando a despertar a misericórdia Divina. Como explicado acima, a revogação do decreto de Haman

NOSSAS FESTAS

significou que o rei Achashverosh concedera aos judeus o direito de autodefesa. O dia 13 de Adar foi o dia em que os judeus travaram batalhas e derrotaram aqueles que, galvanizados por Haman, se levantaram para aniquilá-los. Os judeus jejuaram no dia 13 de Adar porque reconheceram que precisavam da ajuda de D’us para derrotar seus inimigos. De fato, há precedentes para isso na história judaica: quando Yehoshua liderou os Filhos de Israel na batalha contra Amalek, Moshé e seu irmão Aharon e o sobrinho deles, Chur –filho de Miriam – jejuaram.

Quem está correto? O Rambam ou o Avudraham, que cita a opinião de HaYarchi? Por um lado, é possível refutar os desafios apresentados por HaYarchi que contestam a opinião do Rambam. Pode-se argumentar, por exemplo, que embora Taanit Esther comemore os três dias e três noites de jejum observados sob ordens da rainha Esther, observamos apenas um curto jejum no dia 13 de Adar porque nossos Sábios não quiseram impor sobre o Povo Judeu um jejum extremamente longo e difícil. Também pode-se argumentar que a razão do Jejum de Esther ser realizado no dia anterior a Purim, e não em Pessach – como foram os três jejuns consecutivos solicitados pela rainha Esther – é que faz sentido comemorar os jejuns que levaram à nossa salvação em Purim na véspera desta festa – e não no mês seguinte, Nissan, que é quando celebramos Pessach. Além disso, o mês de Nissan celebra a liberdade e a redenção do Povo Judeu. Nissan foi também o mês da inauguração do Mishkan – o Tabernáculo. Jejuar em Nissan para comemorar os jejuns que concernem a festa de Purim seria, portanto, inapropriado.

Finalmente, o próprio nome do jejum – Taanit Esther – constitui um forte indicativo de que comemora os jejuns solicitados pela rainha Esther. Pois se esse jejum comemorasse aquele realizado pelo Povo Judeu em 13 de Adar – o dia da batalha contra seus inimigos – por que seria chamado de Jejum de Esther?

Vale ressaltar, porém, que mesmo esse último argumento - o fato de se chamar Taanit Esther o jejum da véspera de Purim – não

A rainha Esther, por outro lado, passou o dia 13 de Adar no palácio real – ela não se juntou aos judeus no campo de batalha – e, portanto, jejuou nesse dia. De acordo com HaYarchi, o jejum realizado na véspera de Purim é chamado de Taanit Esther porque a rainha Esther foi a única pessoa a jejuar no dia 13 de Adar como forma de atrair a misericórdia Divina sobre os judeus que estavam lutando contra aqueles que desejavam exterminá-los.

Livro de Esther, escrito em um pergaminho (meguilá) para ser lido na festa de Purim. Alsácia (?), século 18

constitui uma refutação clara da posição de HaYarchi. Esse Sábio poderia argumentar o seguinte: Em princípio, os judeus decidiram jejuar no dia 13 de Adar para despertar a misericórdia Divina.

O objetivo desse jejum seria pedir a D’us que os ajudasse na batalha contra seus inimigos. No entanto, os judeus não chegaram a jejuar no próprio dia 13 de Adar porque isso comprometeria sua força física durante as batalhas. Portanto, o Povo Judeu se comprometeu a jejuar em uma data posterior.

Qual a finalidade de um jejum, de acordo com o Judaísmo?

A disputa entre as posições de Rambam e Avudraham, que cita a opinião de HaYarchi, lembra as discussões talmúdicas, em que grandes Sábios têm opiniões diferentes, até mesmo opostas. A verdade é que todas são válidas porque ensinam diferentes pontos de vista e importantes lições. Como afirma o Talmud sobre as discussões entre a Escola de Hillel e a de Shammai: “Estas e aquelas,

REVISTA MORASHÁ i 117 19 DEZEMBRO 2022

ambas são as palavras do D’us Vivo”. De fato, as posições do Rambam e de Avudraham são válidas e podem nos orientar em nosso relacionamento com D’us. A Torá afirma que “D’us o abençoará em tudo o que você fizer” (Deuteronômio 15:18).

Esse versículo da Torá nos ensina que todo sucesso se deve a dois elementos: “tudo o que você fizer” (os esforços do ser humano neste mundo material) e a bênção de D’us. Na história de Purim, os jejuns realizados pelo Povo Judeu tiveram o propósito de despertar a bênção de D’us para anular o decreto de Haman e trazer sucesso aos seus esforços físicos na luta contra aqueles que desejavam aniquilá-los.

De acordo com a visão de Avudraham, o Jejum de Esther destaca a importância de buscar as bênçãos de D’us mesmo sob circunstâncias favoráveis. Vale lembrar que depois de a rainha Esther ter intercedido com sucesso junto ao rei Achashverosh, todos os oficiais do reino estavam apoiando os judeus na batalha, e “ninguém podia resistir a eles, porque o medo

[dos judeus] havia caído sobre todos os povos” (Esther 9:2-3). Apesar de se encontrarem em uma posição muito favorável, os judeus se comprometeram a jejuar pois reconheceram que precisariam da ajuda de D’us no campo de batalha.

De acordo com a visão do Rambam, o Jejum de Esther nos ensina que podemos despertar ilimitadas bênçãos Divinas e transformar até as circunstâncias mais adversas e desfavoráveis.

O plano de Haman para aniquilar o Povo de Israel parecia ser irrevogável, pois o próprio rei o havia aprovado. No entanto, apesar da situação desesperadora em que se encontravam os judeus, a rainha Esther percebeu que, se ela e todo o Povo de Israel jejuassem por três dias e três noites, seria possível atrair a misericórdia Divina e, assim, reverter a situação. Foi exatamente o que ocorreu. No final da história de Purim, não apenas o decreto genocida de Haman é frustrado, mas Mordechai toma seu lugar como primeiro-ministro e “para os judeus houve luz, felicidade, alegria e glória” (Esther 9:16).

As mulheres e a Redenção

Seja qual for a razão pela qual jejuamos em Taanit Esther, o próprio nome do jejum destaca o papel das mulheres na dinâmica da redenção. Nossos Sábios (Talmud Bavli, Sotá 11b) ensinam que “pelo mérito das mulheres justas, os judeus foram redimidos do Egito”, e, de fato, de exílios posteriores também. Foi-nos prometido “Como nos dias do seu Êxodo do Egito, Eu lhes mostrarei maravilhas” (Miquéias 7:15). Rabi Yitzhak Luria, o Arizal – o maior Cabalista de todos os tempos –ensinou que os judeus que presenciarão a redenção final constituem a reencarnação daqueles que foram libertados no Êxodo do Egito. Isso significa que a futura redenção refletirá a redenção arquetípica, a do Egito, e assim, podemos supor que ela também virá como resultado do mérito de mulheres justas.

Taanit Esther e a história de Purim como um todo nos lembram que foi por mérito de uma mulher, Esther, que o Povo Judeu sobreviveu àqueles que tentaram aniquilá-lo. Foi por mérito das mulheres judias que nosso povo foi libertado do Egito, tornando-se uma nação – o povo a quem D’us deu a Sua Torá. Foi por mérito de uma mulher, Esther, que nosso povo existe até hoje e, se D’us quiser, existirá eternamente.

Bibliografia

The Basic Purim Story - A Brief Retelling of the Book of Esther (Megillah), artigo publicado no site https://www.chabad.org/ holidays/purim

The Fast of Esther, adaptado da obra Likkutei Sichot - An Anthology of talks by the Lubavitcher Rebbe, Rabbi Menachem Mendel Schneerson, publicado no site https://www.chabad.org/therebbe

NOSSAS FESTAS 20
meguilat esther ricamente ilustrada. amsterdã, c. 1701

Dois anos dos Acordos de Abraão

Iniciativa diplomática no Oriente Médio mais impactante em décadas, os Acordos de Abraão, assinados entre Israel e quatro países árabes (Emirados Árabes Unidos, Bahrein, Marrocos e Sudão) apresentam significativos resultados dois anos após sua assinatura. Os tratados pavimentaram o caminho para laços comerciais em franca expansão, cooperação em áreas científicas e até militares, implementação de rotas turísticas e o florescimento de vida judaica, por exemplo, em Dubai e Abu Dhabi.

Em 14 de setembro, o Hilton Abu Dhabi Yas Island recebeu mais de 1,5 mil convidados para o casamento de Levi Duchman e Lea Hadad. A festa virou reportagem do The New York Times, e um vídeo viralizou no Instagram, ao mostrar judeus e muçulmanos dançando entusiasticamente ao som de música chassídica.

Rabinos como Levi Duchman e Elie Abadie trabalham junto a uma comunidade em acelerada expansão, desde 2020. Estimativas oficiais registram cerca de 700 judeus vivendo nos Emirados, entre israelenses e oriundos de outros países. No entanto, há quem fale em cerca de 2 mil cidadãos de Israel com domicílio no país do Golfo Pérsico.

O meteórico ressurgimento de vida judaica em um cenário árabe, assim como o desenvolvimento de laços diplomáticos e comerciais, se deve aos Acordos de Abraão, assinados a 15 de setembro de 2020, em Washington. A cerimônia histórica reuniu o presidente Donald Trump, o primeiro-ministro Binyamin Netanyahu, e os chanceleres emiradense Abdullah bin Zayed Al-Nahyan e barenita Abdullatif bin Rashid Al -Zayani.

Posteriormente, Marrocos e Sudão aderiram à caravana diplomática. Com papel preponderante na concepção e articulação de Jared Kushner, genro de Trump, os Acordos de Abraão na realidade trouxeram à luz um processo de contatos e diálogos discretos que vinham ocorrendo havia anos. Essencialmente, dois fatores levaram à gênese e consolidação de uma iniciativa responsável por levar Israel a saltar de dois para seis os países árabes com os quais assinou tratados de paz, com os passos pioneiros dados com o Egito (1979) e com Jordânia (1994).

Um elemento a levar à inédita aproximação diplomática chama-se ameaça iraniana. O regime de Teerã, no poder após a derrubada do regime pró-Ocidente do xá Reza Pahlevi, em 1979, rejeita os valores democráticos de EUA e de Israel e anuncia os dois países como seus principais inimigos.

País de maioria persa e xiita, o Irã também rivaliza, em busca de supremacia regional, com vizinhos de população majoritariamente árabe e sunita, como Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos, entre outros.

Nos últimos anos, o regime iraniano investiu pesadamente no avanço de seu programa nuclear, clara ameaça à

21 DESTAQUE
DEZEMBRO 2022

estabilidade regional e global. O desafio emanado de Teerã levou Israel e países árabes do Golfo Pérsico, vizinhos ao Irã, a entabularem um diálogo a fim de arquitetar estratégias voltadas a conter o expansionismo do governo persa.

Também o redesenho da geopolítica global contribuiu para a aproximação.

construção de uma nova arquitetura de segurança, mais regional e menos dependente do apoio oferecido pelos Estados Unidos.

A chamada era pós-petróleo corresponde a mais um fator a aproximar antigos adversários. Com economias historicamente dependentes da riqueza petrolífera,

Em outras palavras, monarquias do Golfo Pérsico menores em território e em população passaram a ser uma espécie de laboratório na estratégia regional de substituir a economia profundamente dependente do petróleo por cenário de desenvolvimento baseado também na expansão do setor de serviços, com atividades como turismo, tecnologia, finanças e passando a serem motores fundamentais da atividade econômica.

Dubai se transformou num importante centro de finanças e de negócios, além de um entroncamento aéreo, com um dos aeroportos mais movimentados do planeta. Voos da Qatar Airways passaram a se espalhar globalmente, enquanto Bahrein passou, por exemplo, a receber uma corrida internacional de Fórmula Um.

Desde o governo Barack Obama, iniciado em 2009, os EUA implementam a política denominada “pivô para a Ásia”, que consiste em assumir a ascensão da China como principal desafio à liderança norte-americana no século 21. Uma consequência dessa opção é a diminuição da presença militar norte-americana no Oriente Médio, com a retirada, por exemplo, de tropas do Iraque e da Síria, a fim de concentrar mais recursos em fronteiras asiáticas.

A diminuição do foco da Casa Branca no cenário médio-oriental, para ampliar na região do Indo-Pacífico, também contribuiu para israelenses e lideranças árabes sunitas buscarem a

países do Golfo Pérsico perceberam a inevitável perda de relevância do produto, devido à busca por fontes de energia limpas e renováveis.

A partir dessa premissa, sobretudo as monarquias conservadoras do Golfo Pérsico, lideradas pela Arábia Saudita, embarcaram num ambicioso processo de diversificação do modelo econômico, a fim de abrir novas fontes de recursos e compensar eventuais perdas de receitas da atividade petrolífera. Emirados Árabes Unidos, Qatar e Bahrein, por exemplo, mergulharam com mais intensidade nesse processo do que os vizinhos sauditas, dono de um ambiente social, político e econômico mais conservador.

Exemplos proliferam desse redesenho da economia. De olho num pragmatismo que contribua para a manutenção no poder de seus regimes monárquicos, países do Golfo Pérsico decidiram ampliar a interação com Israel, antes limitada ao enfrentamento da ameaça iraniana, para uma parceria também em áreas como tecnologia e investimentos, ingredientes valiosos para a renovação de modelos econômicos historicamente baseados no petróleo.

Israel e Emirados Árabes Unidos já assinaram um acordo de livre comércio, com objetivo de atingir a marca de 10 bilhões de dólares em cinco anos. Em 2021, a balança comercial atingiu 1,2 bilhão de dólares e, para este ano, a estimativa é chegar a 2 bilhões de dólares. Os dois países firmaram diversos tratados de cooperação em áreas como investimentos, medicina,

DESTAQUE 22
Yair Lapid cumprimenta Sheikh Abdullah bin Zayed Al-Nahyan (EAU) na “Cúpula do NegUev”. Março 2022, Sde Boker, Israel

energia renovável. “Nem raspamos ainda a superfície do potencial de cooperação em todas as áreas”, declarou o primeiro-ministro Yair Lapid, ao receber em Jerusalém, a 15 de setembro, o chanceler emiradense Abdullah bin Zayed Al-Nahyan, no segundo aniversário da assinatura dos Acordos de Abraão. O visitante também conheceu o Yad Vashem.

Em março, o ministro Al-Nahyan havia aterrissado em Israel para um encontro com seus colegas de Israel, Bahrein, Marrocos, Egito e Estados Unidos, numa ação diplomática a escancarar o rearranjo provocado pelos Acordos de Abraão. E a reunião ocorreu num cenário simbólico: kibutz Sde Boker, onde morou David Ben-Gurion, pai da independência israelense.

Representações diplomáticas de Israel se estabeleceram em países signatários do histórico tratado. Voos diretos chegam a solo israelense oriundos de Abu Dhabi, Manama

(Bahrein), Casablanca e Marrakesh (Marrocos). Visitas ministeriais acompanham o fluxo turístico e, em novembro de 2021, em Rabat, capital marroquina, reuniram-se os ministros da Defesa Benny Gantz e Abdellatif Loudiyi.

Mais um reflexo dos novos ventos se registrou em junho, com a primeira reunião de cúpula do bloco econômico I2U2, nome formado a partir das iniciais em inglês dos quatro integrantes: Israel, Índia, Estados Unidos e Emirados Árabes Unidos

O encontro inaugural ocorreu quando da visita de Joe Biden a Israel. O presidente norte-americano e o anfitrião Lapid se reuniram num hotel em Jerusalém, para dialogar, por videoconferência, com os líderes indiano e emiradense. A lógica envolvida corresponde a priorizar projetos em áreas como segurança alimentar, com EUA e Israel aportando tecnologia; a

Índia oferecendo seu vasto mercado consumidor, enquanto os Emirados contribuem essencialmente com os recursos financeiros.

E, no campo dos projetos, destaca-se a ideia de criar uma ligação terrestre entre Israel e países do Golfo Pérsico, pois o comércio atual depende sobretudo de laços aéreos. Rodovias nesse trajeto também poderiam facilitar o fluxo de mercadorias entre Europa e nações médio-orientais, ampliando horizontes de negócios.

Históricos, os Acordos de Abraão alteraram algumas dinâmicas do Oriente Médio. O esforço agora se concentra em, além de aprofundar suas consequências, atrair outros países do mundo árabe e muçulmano para aderirem à caravana diplomática responsável por uma das maiores mudanças do cenário geopolítico do século 21.

REVISTA MORASHÁ i 117 23 DEZEMBRO 2022
Jaime Spitzcovsky COLUNISTA DA FOLHA DE S.PAULO, FOI CORRESPONDENTE DO JORNAL EM MOSCOU E EM PEQUIM. O então ministro das Relações Exteriores de Israel, Yair Lapid, na abertura da Cúpula do Neguev, com o secretário de Estado dos EUA, Antony Blinken, e os Ministros de Relações Exteriores dos EAU, Sheikh Abdullah bin Zayed Al-Nahyan; do Marrocos, Nasser Bourita; do Egito, Sameh Shoukry; e do Bahrain, Abdullatif bin Rashid Al-Zayani. Março 2022, Sde Boker, Israel

O êxodo esquecido dos países árabes

Os judeus do Líbano, Síria e Egito são os principais componentes da comunidade sefardita do Brasil. Mas como e por que eles chegaram nesse país é um mistério para a maioria dos brasileiros – e também para muitos judeus.

Praticamente a primeira coisa que os visitantes veem no aeroporto de São Paulo é uma filial do Banco Safra, fundado por uma família judaica libanesa de Beirute. Nas décadas de 1950 e 60, muitos judeus se reassentaram em São Paulo, vindos da Síria e da cidade libanesa de Saida (Sidon).

Os judeus do Egito fugiram para o Brasil após o ano de 1956. Eles somavam oito mil pessoas em uma comunidade basicamente ashquenazi de 100 mil pessoas. Eles mereceram apenas um parágrafo de explicação no Museu Judaico de São Paulo. Assim sendo, eles decidiram contar sua própria história.

A exposição Judeus do Egito – 70 Anos, composta por fotografias, documentos e objetos, foi exibida na Hebraica em junho e julho deste ano de 2022 e transferida para a sinagoga da comunidade egípcia Ohel Yaacov em setembro. Seu ponto de partida são os 70 anos desde o Golpe dos Oficiais Livres que depôs o Rei Farouk. Enquanto esteve sendo exibida na Hebraica, tive o privilégio de ser convidada por Nessim Hamaoui para viajar da Inglaterra para o Brasil, conhecer a encantadora comunidade judaico-egípcia e falar sobre meu livro Desenraizados

Em 1952, o futuro da comunidade judaica local de 80 mil membros era iminente: após a partida de 20 mil judeus na esteira da Guerra da Independência de Israel, em 1948, outros 25 mil foram expulsos após a crise do Suez. Hoje são menos de dez os judeus que ainda vivem no Egito.

Na década de 1950, o Brasil buscava atrair imigrantes. Funcionários judeus de multinacionais americanas conseguiram transferir seus empregos para São Paulo, a capital comercial do país. Outros foram assistidos pela agência de assistência aos refugiados, HIAS (Hebrew Immigrant Aid Agency, a Agência Judaica de Auxílio a Imigrantes), que nunca exigiu devolução do apoio financeiro prestado a judeus refugiados. Algumas crianças foram contempladas com bolsas gratuitas nas escolas judaicas.

A metade do contingente de judeus egípcios chegara ao Brasil como apátridas. Um deles emigrou da França, na década de 1950, mas antes atirou seu passaporte francês no rio Sena ao ser convocado pelo exército para lutar na guerra na Argélia. Conseguiu comprar um passaporte iraniano e partiu para o Brasil.

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Os refugiados não tinham permissão de sair do Egito com mais de 20 dinares1. A solução foi encher caixotes de madeira com roupas e, em sua base, esconder suas joias. Também levavam itens estranhos como uma máquina de moer café, um aparato para cortar legumes e ervas para fazer a tradicional sopa molocheya e até um manual da polícia de Primeiros Socorros.

Esses caixotes eram depois usados para dormir até que os refugiados tivessem meios de comprar um sofá-cama numa negociação de troca com algum de seus bens.

1 O dinar é a moeda nacional de vários países, a maioria deles árabes, ex-integrantes do extinto Império Otomano. A palavra “dinar” em árabe é derivada do denário, uma moeda romana.

A história dos judeus exilados do Egito é parte de uma história maior – a epopeia da extinção das comunidades judaicas do mundo árabe. E esta tem sido chamada de a maior história que nunca foi contada...

Mais de 99% dos judeus expatriados fugiram do mundo árabe nos últimos 60 anos. Cerca de 650 mil deles foram para Israel, dobrando, da noite para o dia, a população judaica do país; 200 mil fugiram para o Ocidente, inclusive o Brasil. E hoje, não chega a quatro mil o número de judeus que vivem nos países árabes.

Seu êxodo ocorreu de duas maneiras. Os melhor equipados, que detinham passaportes estrangeiros e conexões no exterior via de regra organizaram de forma independente a sua partida, principalmente para a Europa, Austrália ou as Américas. Ainda que a Diáspora continue sendo majoritariamente ashquenazita, mais de 50% dos judeus de Israel, hoje, são refugiados mizrahim ou sefaradim de países árabes e muçulmanos, ou são seus descendentes. E isso tem sérias

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interior da Sinagoga Ben Ezra. Cairo, Egito. 2017 LYN JULIUS EXIBE SEU LIVRO, UPROOTED (DESENRAIZADOS)

implicações para o entendimento do conflito do Oriente Médio, a paz e a reconciliação.

Tais judeus provêm de comunidades que eram efetivamente naturais do Oriente Médio e Norte da África. São anteriores à conquista árabe e ao Islã por cerca de mil anos ou mais, e fizeram enormes e importantes contribuições intelectuais ao Judaísmo. Por exemplo, o Talmud Bavli foi elaborado nas academias judaicas que existiam na então Babilônia, na região que hoje é Iraque, no período anterior à chegada do Islã.

Os deslocamentos em massa de refugiados têm sido uma característica de conflitos na primeira metade do século 20: mais de 52 milhões de pessoas foram desalojadas. O conflito entre árabes e israelenses não é exceção. As trocas de população foram comuns no século 20 – praticamente números iguais de judeus do Oriente Médio e Norte da África e árabes palestinos trocaram de lugar. (Houve, também, troca de refugiados entre Grécia e Turquia, Índia e Paquistão, bem como entre os cipriotas gregos e os cipriotas turcos, sem nos esquecermos da migração em massa dos alemães étnicos e outros na esteira da 2a Guerra Mundial). Ainda assim, há muitos que acreditam que Israel foi criado em resposta ao Holocausto e que os refugiados palestinos foram deslocados para dar lugar aos judeus vindos da Europa.

Há também um mito de que judeus e muçulmanos coexistiram pacificamente durante 13 séculos até que a criação do Estado de Israel arruinasse tal relacionamento. Existia uma simbiose cultural, mas os judeus tinham uma vida precária e

um status de dhimmis, de cidadãos inferiores, sob o Islã. Na ausência de direitos, eles eram obrigados a pagar para obter “favorecimentos”. Viviam à mercê – ou sob a “proteção” – do governante da vez, fosse ele benevolente ou malvado com eles.

Essas condições melhoraram durante o período colonial e os judeus puderam se beneficiar de instrução ocidental e maior segurança. E assim, deixaram em seu caminho importantes contribuições à sociedade. Foram grandes mercadores e empresários,

proeminentes músicos e atores, chegando mesmo ao cargo de ministros.

No entanto, na década de 1930, o crescente nacionalismo não deixou espaço para ninguém que não fosse árabe ou muçulmano. Os judeus foram marginalizados até serem expulsos. Violentos motins e massacres eclodiram antes ainda da criação de Israel, fazendo os judeus perceberem que não tinham futuro em países árabes.

Após 1948, o movimento sionista underground e o American

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interior da Sinagoga Ben Ezra. Cairo, Egito INTERIOR DA SINAGOGA ashquenazi. Cairo, Egito 1994 1. Casamento na Sinagoga de Ismailia, Cairo, Egito, 1949 2. Casamento em Alexandria, Egito,1950
1. 2.

Joint Distribution Committee, determinados, após o Holocausto, a nunca mais abandonar os judeus da Diáspora à sua sorte, resgataram dezenas de milhares de refugiados em algumas das maiores ponteaéreas da história. Quando a pressão pela emigração se tornou insuportável, o Iêmen e o Iraque fizeram um acordo como o Mossad israelense para permitir que os judeus partissem.

Os judeus que permaneceram nesses países muito frequentemente se tornaram prisioneiros em seus países de nascimento, onde vigoravam proibições discriminatórias de viagem.

Apesar de que duas populações de refugiados tivessem trocado de lugar, as circunstâncias de seus deslocamentos foram muito diferentes. Os refugiados árabes palestinos se viram em meio a uma zona de guerra, em 1948. Muitos optaram por fugir, mas ocorreram também expulsões, como em Ramle e Lydda. O fato de que 160 mil árabes, dentre um total de cerca de 870 mil, na então Palestina Ocidental, tivessem optado por lá permanecer é uma clara indicação de que o recém-proclamado Estado de Israel não possuía nenhuma política sistemática de “limpeza étnica”.

Enquanto as populações refugiadas do século 20 foram absorvidas em seus novos países, de acordo com a ONU somente os árabes palestinos continuam sendo considerados como refugiados, sendo-lhes permitido passar seu status a sucessivas gerações, ad infinitum. Suas lideranças mantêm constantemente acesa a vã esperança de um “Direito de Retorno” à Palestina, ainda que a maioria deles lá não tenham nascido e outros tantos não

viveram lá por mais de dois anos. Provavelmente, esses refugiados foram deliberadamente privados de direitos civis nos países que adotaram de modo a permanecer como uma permanente reprovação a Israel e uma arma na luta árabe e muçulmana de décadas contra o Estado Judeu.

Por outro lado, quase um milhão de judeus do Oriente Médio e Norte da África, centenas ou milhares de quilômetros distantes do teatro de guerra, foram escolhidos para serem perseguidos e destituídos

simplesmente pelo fato de serem judeus. Os governos da Liga Árabe adotaram leis fazendo de seus cidadãos judeus bodes expiatórios como “a minoria judaica do estado da Palestina”. O Sionismo virou crime: os pretextos mais frágeis poderiam ser invocados para prender, julgar e, por que não, executar os judeus.

Enquanto os refugiados palestinos foram deslocados internamente apenas alguns quilômetros, ou realocados em países que, em sua grande maioria, eram muçulmanos sunitas de língua árabe, os judeus foram forçados a abandonar sua antiga herança, seu idioma e sua cultura para de novo começar – do zero.

Em 29 de novembro de 1947, as Nações Unidas aprovaram a resolução 181 de sua Assembleia Geral, aprovando a Partilha da Palestina em um Estado Judeu e um Estado Árabe. Os árabes orgulhosamente rejeitaram o plano, sendo que tumultos antijudaicos explodiram na Síria, Bahrein e Aden, e posteriormente no Egito, Líbia e Marrocos. Os cinco países da Liga Árabe – Síria, Líbano, Egito, Iraque e Jordânia – que haviam

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IMIGRANTES IEMENITAS NO ACAMPAMENTO DE KISALON. AGOSTO DE 1950, ISRAEL AVIÃO REPLETO DE JUDEUS IRAQUIANOS AO CHEGAR AO ENTÃO AEROPORTO DE LOD, TEL AVIV, 1951

deslanchado a guerra de 1948 contra Israel (o Iêmen e a Arabia Saudita enviaram forças expedicionárias) declararam uma segunda guerra contra seus próprios cidadãos judeus, não-combatentes. Todos esses países criminalizaram o Sionismo, expondo suas minorias judias a acusações de constituírem uma 5ª Coluna.

Os países árabes perderam a guerra contra Israel, mas decididamente venceram a guerra contra seus próprios judeus. Exceto quando

eram tratados como reféns e proibidos de deixar o país, não lhes sobrava outra alternativa a não ser partir. Enquanto os judeus que conseguiam fugir da Alemanha Nazista encontravam os portões da maioria dos países fechados para eles, Israel ofereceu aos mais pobres, enfermos e vulneráveis um porto seguro onde aportar.

Na década de 1950, o Marrocos, lar da maior população judaica no mundo árabe, bem como a Líbia e a Tunísia, se filiaram à Liga Árabe, implementando a política de

arabização. Apesar de viverem nesses países há dois milênios, os judeus já não se sentiam em casa.

Motins antijudaicos, que atingiam o seu máximo em tempos de guerra com Israel, tiveram um tremendo impacto psicológico: os judeus passaram a se questionar se teriam um futuro em vista da alternativa em Israel. O Estado Judeu prontamente aceitou essas massas espoliadas e destituídas, que se amontoavam, incondicionalmente – como judeus. E lhes ofereceu um porto seguro e a capacidade política de se

defenderem, coisa que as minorias nos países árabes desconheciam.

A libertação dos refugiados judeus foi alcançada com altas somas em dinheiro vivo. Israel pagou um resgate por cada um dos judeus, além de custear seu transporte para fora do país. As autoridades iraquianas tiveram que ser subornadas em montantes várias vezes mais altos que seus salários mensais. Custou £12 para transportar cada um dos passageiros para a segurança. Quando foi extinta uma proibição que vigorara durante cinco anos à emigração de famílias judias marroquinas, as indenizações que tiveram que ser pagas às autoridades do Marrocos chegaram a somas inacreditáveis, entre 5-20 milhões de dólares.

Os cerca de 120 mil judeus que abandonavam o Iraque foram destituídos, por decreto, de sua cidadania em 1950, e, posteriormente de suas propriedades, mediante uma lei parlamentar aprovada em sessão secreta. Tinham permissão de partir levando, cada um, no máximo 50 dinares ($80 hoje), um terno, uma aliança de casamento, uma pulseira, um relógio e uma maleta. Não havia garantia de que tais malas fossem chegar a seu destino. Os judeus que partiam queixavam-se de que funcionários desonestos na Alfândega confiscavam a última joia que encontrassem, vasculhavam suas bagagens ou arruinavam seus pertences.

O governo iraquiano concordou em libertar os judeus por julgar que os milhares de judeus destituídos que chegavam a Israel, com pouco mais do que a roupa do corpo, levariam a um colapso econômico. E, enquanto isso, os países árabes e seus

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Jacob E. Safra, La Corniche, Beirute, Líbano, 1942 SINAGOGA MAGUEN ABRAHAM. Beirute, LIBANO

cidadãos colhiam uma bonança de curto prazo com os ativos judaicos confiscados e com as propriedades que eles consideravam que tinham sido abandonadas ou vendidas por tostões. Os custos de longo prazo para a economia e cultura dos países árabes são inquantificáveis.

Os judeus do Iêmen fizeram uma caminhada, longa e arriscada, a pé, até alcançar Aden, colônia da Coroa Britânica: emissários britânicos pagavam a vários chefes tribais iemenitas um imposto per capita para permitirem que os refugiados judeus atravessassem o país. Eles chegavam quase mortos de fome e muito necessitados e passavam longas semanas em acampamentos improvisados, em meio ao calor e à poeira. Cerca de 150 deles morreram no caminho, enquanto outros 700 não resistiram aos campos. Acima de 90% dos 38 mil judeus da Líbia partiram para Israel. Muitos já tinham ficado desabrigados por distúrbios mortais, em 1945, e vinham sendo abrigados nas sinagogas. Praticamente 30 mil judeus da Síria fugiram dos violentos distúrbios em 1947.

Os judeus que lá ainda se encontravam, geralmente os mais ricos, e que permaneceram em países árabes, se felicitaram por não se haver juntado ao maciço êxodo. Por um curto período eles continuaram a viver calma e confortavelmente. Porém, piores dias de tormento e terror os aguardavam: os judeus do Egito foram brutalmente expulsos do país após 1956; os poucos milhares dos que permaneciam no Iraque e na Síria, que eram obrigados a portar cartões de identidade especiais, com sua religião, foram destituídos de seus direitos de cidadão e de sua

subsistência. Era questão de tempo sua inevitável partida.

No Iraque, as condições desesperadoras exigiam medidas desesperadoras e, após 1970, seguindo-se aos horrendos enforcamentos de nove judeus na praça principal de Bagdá e o desaparecimento de outras tantas dezenas, a maioria dos remanescentes foram contrabandeados através do Curdistão, com a cumplicidade das autoridades israelenses.

Os judeus sírios foram feitos virtuais prisioneiros até a década de 1990, tendo suas atividades restritas e sendo cada um de seus movimentos seguidos pela polícia secreta. Aqueles que podiam, arriscavam-se pelas perigosas rotas de contrabandistas em direção a Israel.

Os 25 mil judeus egípcios, principalmente da classe média, foram sumariamente expulsos após 1956, sendo-lhes concedidas apenas poucas horas para partir,

Joseph Safra e amigos, Beirute, Líbano, 1958

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Família passeando. Beirute, Líbano, 1954

com um limitado montante em dinheiro nos bolsos. Outros foram demitidos de seus empregos e passaram meses na cadeia antes de serem expulsos de vez do Egito.

Muitos dos refugiados ficaram marcados para toda a vida pelo trauma de sua erradicação da terra que julgavam sua. Chefes de família viram, de uma hora para outra, suas licenças de trabalho rescindidas. Esses judeus egípcios continuaram sendo perseguidos pelas abusivas ou obscenas ligações telefônicas que recebiam, ou ligações em que o outro lado da linha permanecia mudo, aterrorizando-os; as ameaças por escrito que recebiam, os subornos que lhes eram exigidos, as sinistras batidas à porta às 3 da manhã; o choque de se deparar com homens armados à porta de suas casas; parentes do sexo masculino sendo presos sem a menor explicação. Os planos de partida tinham que ser feitos em segredo, sem as costumeiras despedidas, especialmente se o destino final era Israel – que alguns dos judeus egípcios chamavam de ‘chez nous’.

Quando chegava a hora de sua apressada partida, os judeus do Egito tinham seus passaportes confiscados e substituídos por um laissez-passer marcado com as palavras: ‘uma ida – sem volta”.

Uma vez em segurança, os refugiados enfrentavam o desafio de erguer sua vida, tudo de novo. O custo mental e físico era incalculável.

Há provas empíricas de que um número impressionante deles morreu logo após esse deslocamento e essa destituição, incapazes de lidar com o trauma de serem arrancados de sua terra de nascença e o estresse de ter que buscar sustento para sua família.

Em especial os homens, chefes de família, subitamente viram sua autoridade erodida em uma sociedade menos patriarcal do que a sua de origem. Comerciantes ou administradores em seu país de nascença, despiram os seus ternos e se juntaram aos que trabalhavam nas construções. As mulheres puseram-se a trabalhar, fora de casa, pela primeira vez na vida – e eram, com frequência, mais resilientes à enorme mudança.

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Passaporte sírio de um judeu, 1947 Colunas e arcos do pátio de Beit Mourad Farhi, hoje Beit Dahdah. Damasco, Síria. Amigos em Alepo, Síria, 1944

Os relacionamentos viraram de cabeça para baixo, com os filhos, muitas vezes, assumindo a responsabilidade por seus pais, desorientados. As famílias de refugiados viram-se explodidas e seus membros dispersos através do globo terrestre.

Eram pouco encorajadoras as duras condições que aguardavam os 650 mil judeus que partiram para Israel – as malcheirosas ma’abarot (acampamentos de trânsito), a escassez de alimentos e de empregos, e o idioma e cultura estranhos. Israel se esforçava para lidar com o afluxo de refugiados da Europa e os sobreviventes do Holocausto. E esses acampamentos foram, aos poucos, se transformando em vilarejos e cidades permanentes.

Apesar das dificuldades e do sofrimento dos primeiros anos, esses judeus haviam escapado de motins antijudaicos, sinagogas incendiadas, sequestros, internações e execuções. Hoje, os judeus dos países árabes e muçulmanos estão bem integrados e representados em

todas as áreas de atividade em Israel, em seu governo e seu exército.

Muitos conseguiram se sair muito bem. Conta-se a história do judeu egípcio que insistia em visitar o túmulo de Nasser e, ao fazê-lo, disse: “Obrigado Nasser, pois se você não me tivesse expulsado, eu não teria me tornado milionário”.

No final das contas, sua erradicação desses países foi uma libertação e uma bênção. Nenhum desses judeus deseja retornar: se eles houvessem permanecido nas áreas da Síria e

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Grande Sinagoga de Alepo, Síria Trem de Alepo rumo à então Palestina, despedida das famílias. Alepo, síria 1944 Amigas em Alepo, Síria, 1937 Família judia. Damasco, Síria

Iraque ocupadas pelo ISIS, o Estado Islâmico, e tivessem tido a mesma sorte que os Yazidis e os cristãos assírios, eles teriam sido executados, suas mulheres e filhos estuprados e vendidos como escravos. Ou, no mínimo, a exemplo de outras minorias, eles lá estariam, largados, vulneráveis a pogroms, lutando para alimentar seus filhos e privados de trabalho e de subsistência por discriminação sancionada pelo Estado.

Até a fuga em massa dos cristãos mediorientais após a invasão do Iraque, em 2003, o maior número de refugiados não-muçulmanos no Oriente Médio e Norte da África era composto por judeus. Eles eram em maior número que os refugiados árabes palestinos da região que hoje é Israel. A vasta maioria deles são inequivocamente gratos pelo fato de ter podido escapar e reconstruir sua vida no mundo livre. Referindo-se às autoridades egípcias, Maurice Mizrahi, judeu egípcio que se tornou engenheiro do Pentágono, nos Estados Unidos, afirmou: “Eles nos tiraram tudo; mas a única coisa que eles não podiam tirar estava dentro de nossa cabeça”. No entanto, muitos deles

estão incrivelmente frustrados pelo fato de sua história ter sido negligenciada ou esquecida.

O mundo ignorou a história dos refugiados judeus e sua busca por justiça. Não apenas tiveram que lutar para serem reconhecidos como refugiados, mas eles nunca foram indenizados. Estima-se que as propriedades e ativos de judeus roubados ou abandonados em países árabes chegue a cerca

de $300 bilhões. As terras judaicas perdidas chegam a uma área do tamanho da Jordânia e Líbano, juntos.

Visando despertar a conscientização para tão grande injustiça, o Knesset, Parlamento de Israel, designou o dia 30 de novembro (dia seguinte à aprovação, pelas Nações Unidas, do plano de partilha) como o Dia de Comemoração da Partida e Êxodo dos judeus dos países árabes e do Irã. Anualmente, esse dia é celebrado em Israel e na Diáspora. Espera-se que também os judeus do Brasil – ashquenazim bem como sefaradim – juntem-se às demais comunidades e organizem suas próprias comemorações. Esse êxodo não é uma história exclusiva sefardita – é uma história judaica.

São muitas as pessoas que negam o antissemitismo e o preconceito árabe e muçulmano, a máquina de “limpeza étnica” que existe na região. Mais do que nunca essa história é relevante para que se entenda a luta árabe/islâmica contra Israel.

Se é que vamos, algum dia, chegar ao ponto de nos entendermos e até mesmo de nos reconciliarmos, é essencial restaurar a luta dos judeus dos países árabes no registro histórico de nosso povo, e derrubar os mitos que tiveram permissão de criar raízes durante décadas de silêncio.

Lyn Julius é Filha de refugiados judeus do Iraque. nascida na Grã-Bretanha, Lyn é jornalista e fundadora da Harif (a Associação de judeus do Oriente Médio e Norte da África). É autora da obra DESENRAIZADOS: Como, da noite para o dia, desapareceram 3.000 anos de civilização judaica no mundo árabe. (Conto Judaico, 2020)

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SINAGOGA CONSTRUÍDA NO INÍCIO DO SÉC. 20. Marrakesh, MARROCOS Imigrantes judeus marroquinos chegando em Israel, 1954

A VÉSPERA DA SOBERANIA –75 anos da partilha

O dia amanheceu gelado em Flushing Meadows, no bairro de Queens, Nova York. Era um dia comum de fim de semana para os americanos, mas especial para os judeus do mundo todo que celebravam o sábado, o Shabat, no qual um judeu observante se abstém de todo trabalho e renova sua devoção ao Criador. Pouco depois do anoitecer, a Assembleia Geral das Nações Unidas ali adotaria partilhar a Palestina sob Mandato Britânico prenunciando a criação do Estado de Israel.

Areunião da Assembleia deveria acontecer num dos pavilhões remanescentes da Feira Internacional de Nova York, que tinha mobilizado as atenções do mundo em 1939. O pavilhão tinha sido transformado em ringue de patinação e depois adaptado para receber os representantes dos países signatários da fundação das Nações Unidas. Alguns líderes sionistas presentes na ocasião pressentiam um mau agouro porque lhes trazia à lembrança o ano de 1939, um dos mais traumáticos na batalha pela criação de uma pátria judaica soberana na sua terra ancestral. Foi o ano em que o Império Britânico, mandatário na Palestina, editou o White Paper, um documento determinando que a continuação ilimitada da imigração judaica levaria a um desequilíbrio demográfico e ao domínio dos mandatários pela força, e que isso era contrário ao espírito da Liga das Nações.

Em artigo para esta revista (edição Nº 65), o historiador Reuven Faingold explicitou que o governo de Sua Majestade havia decidido estabelecer uma cota de 10 mil imigrantes judeus por ano, mais uma outra cota adicional de 25 mil refugiados. Depois de cinco anos teriam chegado à Palestina sob Mandato Britânico 75 mil judeus, e nenhuma outra imigração judaica seria

permitida sem o consentimento árabe. A venda de terras para judeus ficava proibida de imediato. Na verdade, o conteúdo do White Paper (Livro Branco, em tradução livre) impedia o desenvolvimento do Lar Nacional judaico e fechava o território, com exceção de uma insignificante fração de refugiados.

O texto recusava a ideia de dividir o Mandato em dois estados, favorecendo uma Palestina independente governada em comum por árabes e judeus, com os primeiros a manter a maioria demográfica. Em setembro de 1939, quando a Alemanha nazista invadiu a Polônia, David Ben-Gurion fez uma declaração que ganhou dimensão histórica: “Nós combateremos na guerra como se não houvesse o White Paper e combateremos o White Paper como se não houvesse guerra”.

A rigor, a possibilidade da existência de dois estados, ou seja, partilhar a então Palestina, já tinha sido objeto da atenção inglesa, dois anos antes, quando foi formada em Londres a Comissão Peel. A dita Comissão foi chefiada por Lorde William Peel, importante político e empresário britânico. A Comissão chegou à Palestina sob Mandato Britânico em novembro, já ciente de um comunicado emitido pelo Mufti, líder dos árabes, segundo o qual

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eles não prestariam à Comissão qualquer forma de colaboração. O Ishuv (comunidade judaica na então Palestina) e o movimento sionista tiveram uma reação oposta. Foi elaborado, para ser entregue à Comissão, um extenso relatório. Primeiro, uma dissertação de caráter histórico, evidenciando a presença judaica naquele território desde a antiguidade. A seguir, uma relação dos sucessos ali obtidos pelos judeus desde o início do século, sobretudo na criação dos kibutzim (colônias agrícolas coletivas) e na recuperação de pantanais e vastas áreas até então desertas.

Entre novembro de 1936 e fevereiro de 1937, David Ben-Gurion, Chaim Weizmann e Zeev Jabotinsky, os mais proeminentes líderes sionistas, prestaram depoimento perante a Comissão Peel e outras autoridades britânicas. Ben-Gurion foi o mais enfático: “Nossos direitos nesta terra não têm como origem o Mandato Britânico, nem a Declaração Balfour de 20 anos atrás. Nossos direitos decorrem da Bíblia que nós mesmos escrevemos, em nosso próprio idioma”.

Mapa do Plano de Partilha da Palestina em novembro de 1947

Em face da positiva repercussão internacional dos três depoimentos, Amin El Husseini, líder árabe radical conhecido como o Mufti de Jerusalém, reconsiderou sua obstrução. Emitiu, então, uma declaração: “Pretendem reconstruir o templo de Salomão em nossas

sagradas propriedades. A Palestina está plenamente ocupada e nela não há lugar para dois povos”.

Esta sua posição já era conhecida e até mesmo mais violenta. Uns anos antes da intervenção da Comissão, o jornalista e escritor holandês Pierre Van Passen, autor de um excelente livro sobre a participação da Brigada Judaica na 2ª Guerra Mundial, entrevistou o Mufti em Jerusalém. Este lhe declarou com absoluta tranquilidade: “Nós vamos exterminar os judeus que ocuparam nossas terras”. De fato, a intenção de extermínio tinha tudo a ver com o Mufti, que jamais escondeu seu apoio a Hitler. O ditador nazista o havia recepcionado calorosamente durante a 2ª Guerra e lhe proporcionado um “passeio” por campos de extermínio e de concentração.

No dia 7 de julho de 1937, a Comissão Peel divulgou seu relatório constante de 435 páginas. Este relatório causou espanto ao afirmar que o maior problema não eram os ataques dos árabes contra os judeus, mas dos árabes contra setores árabes que se opunham à tirania do Mufti. Ao fim de tudo, apesar das obviedades que favoreciam o Ishuv, a Comissão Peel apresentou uma proposta desprovida de um mínimo de bom senso no tocante a uma sugerida divisão do território: aos árabes competiria 80% do território, aos judeus 13% e o restante caberia à Inglaterra. Ben-Gurion chegou a cogitar uma aceitação dos 13%, mas foi dissuadido por Weizmann e dez anos transcorreriam até que a partilha voltasse a ser considerada em âmbito internacional.

Após a 2a Guerra Mundial, os ingleses escolheram um novo primeiro-ministro, preterindo Winston Churchill, o grande

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MEMBROS DA COMISSÃO PEEL EM VISITA À PALESTINA

vencedor do conflito. O eleito foi Clement Atlee, do Partido Trabalhista. Em Jerusalém, os líderes da Agência Judaica, em grande parte socialistas, ficaram otimistas. Julgavam que os entendimentos com os novos governantes em Londres, também socialistas, se tornariam mais flexíveis ou, pelo menos, mais cordiais. Sofreram uma contundente decepção. Além das implicações políticas que consistiam em aceitar as exigências dos árabes, era flagrante que o chanceler britânico, Ernest Bevin, não gostava dos judeus e era hostil à causa sionista. Por sua inspiração e ordens, a Marinha de Guerra inglesa empenhou-se sem cessar na tarefa de interceptar e confiscar, com inusitada ferocidade, os navios que conduziam judeus.

De 63 embarcações clandestinas transportando refugiados, somente cinco conseguiram furar o bloqueio.

Os apreendidos foram confinados em acampamentos rudimentares na ilha de Chipre. Embora não sofressem violências, o arame farpado à sua volta, os guardas de fuzis nos portões dos acampamentos, em tudo faziam lembrar os campos de concentração nazistas.

Questionado sobre as condições de vida dos judeus ali instalados à força, um oficial inglês declarou: “Está bom demais para eles”.

O White Paper encampado pelo Partido Trabalhista britânico impediu a expansão dos kibutzim implantados pelos pioneiros judeus. Indiferentes à sua condição de esquerda, os socialistas ingleses não se deram conta de que os kibutzim representavam uma forma de vida igualitária, levada com sucesso da teoria para a prática.

No fim de 1946, a Inglaterra se encontrava numa situação insustentável no território sob seu mandato. A organização clandestina Irgun, chefiada por Menachem Begin, era incansável em sua luta contra o Mandato Britânico. Os atentados da Irgun contra alvos militares britânicos

REVISTA MORASHÁ i 117 35 dezembro 2022
ApÓs a partilha ser aprovada pela ONU, Moshe Sharett, Abba Eban e David Hacohen HASTEIAM, NA SEDE DAS NAÇÕES UNIDOS, A BANDEIRA QUE IRIA REPRESENTAR O ESTADO DE ISRAEL. N.Y., 29/11/1947 Chaim Weizmann e David Ben-Gurion, Suíça, 1945

haviam se sucedido de forma incessante, culminando com um atentado ao Hotel King David, em Jerusalém, que servia como sede para o alto comando inglês. A bomba fora escondida num latão de leite colocado no porão do hotel. Antes da explosão do petardo, a Irgun telefonou para o King David, advertindo que seus ocupantes deveriam evacuar o prédio. Ao ser informado, o comandante britânico assim reagiu: “Eu não recebo ordens de judeus”. A explosão matou 92 pessoas, entre militares, civis e funcionários do hotel.

Os próprios líderes da Agência Judaica repudiaram o atentado porque se empenhavam em atingir somente por vias pacíficas a implementação de um lar nacional judaico na Terra de Israel.

Na verdade, os ingleses estavam perplexos em face do novo tipo de judeu que deviam combater. Assim como os demais europeus ocidentais, estavam habituados à passividade judaica estendida ao longo de aldeias e pequenas cidades da Rússia e da Polônia. Eram judeus que dificilmente reagiam a sangrentos ataques e perseguições. Agora, o poder militar britânico enfrentava uma nova geração de judeus, nascidos na Palestina nas duas primeiras décadas do Século 20. Eram jovens audaciosos e determinados, dispostos a emancipar a terra onde haviam nascido. Muitos recorreram às vias pacíficas. Outros acreditavam na luta armada, tal como a adotada pelo Irgun.

Em 1947, teve início em Londres uma série de conversações entre árabes e judeus, ouvidos separadamente pelas autoridades britânicas. Mas não houve consenso face à proposta britânica de

prorrogar o Mandato Britânico por mais quatro anos, depois dos quais seria discutida a divisão da Palestina. Durante esse tempo permaneceria a proibição da entrada de novos imigrantes judeus, uma desumanidade principalmente com os 250 mil sobreviventes do Holocausto que não tinham para onde ir e esperavam uma solução enquanto viviam presos nos campos de pessoas deslocadas na Europa. Diante do fracasso das negociações, Ernest Bevin decidiu entregar às Nações Unidas a

solução do problema da então Palestina. Sugeriu a criação de uma comissão, à semelhança da Comissão Peel.

A nova comissão, nominada Unscop, relativa à sigla de United Nations Special Committee on Palestine, apresentaria suas conclusões à Assembleia Geral. Bevin acreditava que poderia manipular o texto final em favor dos árabes e assim se livrar da pressão exercida pelo presidente americano, Harry Truman, que demandava a concessão de 100 mil vistos para os judeus refugiados na Europa. O pavor britânico era que a entrada daqueles 100 mil novos imigrantes, sob bandeira inglesa, arruinasse sua posição geopolítica no Oriente Médio, na qual a adesão dos árabes avultava como o foco central.

A delegação da Agência Judaica incumbida de acompanhar os acontecimentos na ONU, em Flushing Meadows, foi chefiada por Moshe Sharett, que tinha o economista David Horowitz como braço direito. Este mandou chamar em Londres um militante

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CHAIM WEIZMANN (E) DURANTE sua audiência perante a UNSCOP, JERUSALÉM Soldados britânicos deportando judeus do navio Haganá. Haifa, 16 de novembro de 1947 Moradores de Tel Aviv, aglomeram-se em torno de automóveis de membros da Unscop, em 25 de junho de 1947

da Agência chamado Audrey Sachs, 32 anos, cuja competente qualidade diplomática ganharia reconhecimento internacional nos anos seguintes com o selo de Abba Eban. Ele escreve em sua autobiografia que, antes de partir para os Estados Unidos, constatou em Londres um enraizado ambiente contrário à causa sionista, a ponto de Bevin ter recusado receber Chaim Weizmann em audiência.

Eban e Horowitz se debruçaram sobre os nomes dos 11 membros da Unscop, comandada por Emil Sandstrom, magistrado da Corte Suprema da Suécia, conhecido por suas ações em causas humanitárias. No âmbito latino havia componentes do Peru, Uruguai e Guatemala. A Unscop chegou à Palestina sob Mandato Britânico em junho, poucas semanas depois de um acontecimento que fez exultar a delegação judaica nas Nações Unidas: um inesperado discurso de Andrei Gromyko, jovem representante da União Soviética.

Gromyko começou com uma crítica violenta à Inglaterra, acentuando que sua incumbência como mandatária havia resultado num enorme fracasso pela incapacidade de obter um mínimo de entendimento entre árabes e judeus. Referiu-se ao horror sofrido pelos judeus no Holocausto e enfatizou que era “hora de o mundo ajudar este povo, não com palavras, mas com iniciativas concretas”.

No final do discurso, ressaltou que os judeus tinham pleno direito à autodeterminação através da divisão da Palestina em dois estados, um árabe e outro judeu. Suas palavras tiveram ampla repercussão internacional e evidenciaram a posição de Stalin. O ditador soviético não tinha especial simpatia

pelos judeus, muito pelo contrário, mas julgava que a existência de um Estado Judeu, mesmo em parte do território até então sob Mandato Britânico, seria importante fator para diminuir a influência e a presença da Grã-Bretanha no Oriente Médio.

No dia 19 de julho, enquanto percorria a então Palestina, a Unscop chegou a Haifa e, no porto da cidade, se deparou com um espetáculo deprimente: a apreensão pelas forças britânicas do navio Exodus e a humilhação

a que estavam submetidos seus passageiros, homens, mulheres e crianças sobreviventes do Holocausto. No cais, bastava ver a aparência destroçada do Exodus para que se tivesse uma ideia do que havia acontecido. Os refugiados foram descendo sob a mira de fuzis e levados para três navios de guerra britânicos. Apenas uma jornalista, a americana Ruth Gruber, teve permissão de subir ao navio enquanto estava ancorado. Anos mais tarde ela escreveu em seu livro O navio que fundou uma nação: “Centenas e centenas de pessoas seminuas pareciam ter sido jogadas no fundo de um canil. Por um momento, cheguei a ter a horrível impressão de que estavam latindo. Todos gritavam na minha direção nos mais diversos idiomas, vozes cobrindo vozes. Uma jovem mãe aproximou-se de mim e disse: ‘Minha vida acabou’. Respondi-lhe: ‘Não fale assim, você já passou pelo pior’. Ela disse: ‘Tem razão, eu sei que vou acabar chegando à minha terra, eu sei que vou viver’”.

As reportagens escritas por Ruth Gruber e as dramáticas fotografias que tirou correram o mundo e mobilizaram dezenas de opiniões públicas em favor da causa judaica. Numa atitude de incrível

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David Ben-Gurion e Moshe Sharett, Jerusalém, 1947 ABBA EBAN

insensibilidade, os passageiros do Exodus não foram conduzidos para Chipre, mas para a França, seu ponto de partida. Eles se recusaram a desembarcar e foram levados numa ação de imperdoável crueldade para campos de pessoas deslocadas justamente na Alemanha, a origem de seus carrascos. Um porta-voz do almirantado britânico declarou que aquilo tinha sido feito para “dar um exemplo e dissuadir outros navios que tivessem a audácia de tentar furar o bloqueio”.

Longe de ter sido um fator determinante, não resta dúvida de que o drama do Exodus sensibilizou de forma significativa os componentes da Unscop em favor da implantação de um Estado Judeu.

Semanas depois, em Genebra, a Comissão Especial apresentou seu relatório final do qual constava um mapa com o traçado da Partilha da Palestina com dois países independentes, um abrigando 1 milhão e 250 mil árabes, outro com 570 mil judeus, cabendo a Jerusalém tutela internacional. Aos árabes também competiria a maior parte do território. Este era o relatório que seria levado à apreciação da Assembleia Geral da ONU.

Sharett, Horowitz e os demais integrantes da delegação trabalhavam de forma incessante. Disparavam telegramas e telefonemas para os quatro cantos do mundo. Alguém conhecia alguém que conhecia o governante de determinado país? Como apurar qual seria o importante voto da França? Pedir ao diplomata Garcia Granados, embaixador da Guatemala, conhecido apoiador do Sionismo, que influenciasse os representantes de outros países. Abba Eban escreveu em suas memórias: “Nós tínhamos bons aliados. O presidente da Assembleia, Oswaldo Aranha,

do Brasil, estava religiosamente devotado ao direito da existência de um estado judaico”.

Nos bastidores da ONU movimentavam-se em favor da partilha líderes judeus da estatura de Nahum Goldman, Moshe Sharett e o Rabi Abba Hillel Silver. Nessa atmosfera foi relembrado, com grandes esperanças, o nome do judeu Eddie Jacobson, com quem Truman tinha afetuosa amizade. Amigo de juventude, haviam servido juntos durante a 1ª Guerra no exército americano. Após o conflito, os dois montaram um negócio chamado Truman & Jacobson Gents’ Furnishing. Jacobson não era sionista, mas mudou de opinião depois do Holocausto.

Quando Truman assumiu a Casa Branca, Jacobson ficou famoso. Centenas de pessoas passaram a procurá-lo, pedindo que ele intermediasse isso ou aquilo com o novo presidente. Ele jamais atendeu quem quer que fosse. O general Marshall, então secretário de Estado, opunha-se à partilha e recomendava que

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“Exodus” chega a haifa, julho 1947 Eddie Jacobson com Harry Truman, que se tornaria presidente dos EUA

as Nações Unidas instituíssem uma espécie de tutela na então Palestina. Contudo, a decisão de Truman estava assumida: não havia outra solução a não ser a partilha e esta foi a sua ordem expressa ao Departamento de Estado. Mas como tudo estava sendo tratado a portas fechadas, aumentava a pressão externa para que Truman aprovasse o relatório do Unscop.

Truman recebeu, naqueles dias, uma carta de seu velho amigo, Eddie Jacobson: “Faço-lhe um apelo em nome do meu povo. O futuro de um milhão e meio de judeus refugiados na Europa depende do que será aprovado nas Nações Unidas. O inverno está chegando e é preciso aliviar o sofrimento daquela gente. De que maneira eles poderão sobreviver no frio, vai além da minha imaginação. Só há um lugar neste mundo para onde possam ir: a Palestina. Eu e você sabemos disso muito bem. Talvez eu seja um dos poucos americanos que realmente sabe avaliar o enorme peso que agora recai sobre seus ombros. Portanto, eu deveria ser o último a fazê-lo pesar ainda mais. Mas sinto que você me perdoará porque a vida de mais de um milhão de pessoas depende da sua palavra e do seu coração. Harry, meu povo precisa de socorro e eu apelo para que você o ajude”.

Pedindo para guardar confidencialidade, Truman foi conciso na resposta: “Como o assunto depende das Nações Unidas, não será adequado que eu intervenha no processo, mesmo porque são necessários dois terços dos votos da Assembleia para que a partilha seja aprovada. O caso está entregue a Marshall e espero que ao final tudo dê certo”. Dias depois,

ainda por interferência de Jacobson, o presidente aceitou receber Chaim Weizmann em audiência.

No dia 19 de novembro, Eliahu Epstein, um dos elementos mais ativos da Agência Judaica, encontrou-se com Weizmann e o juiz Frankfurter no café da manhã. Juntos elaboraram um memorando que seria entregue ao presidente ao cabo da reunião. O documento enfatizava a absoluta necessidade de o deserto do Neguev estar dentro das futuras fronteiras do estado judeu, “porque somente através de Eilat e do Golfo de Akaba teremos acesso à navegação

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HERSCHEL JOHNSON, REPRESENTANTE DOS EUA NAS NAÇÕES UNIDAS, ADVOGA A FAVOR DA PARTILHA DA PALESTINA, 1947 Oswaldo Aranha presidiu a Segunda Assembleia Geral da ONU, que votou o plano da partilha Embaixadores árabes na onu. os árabes eram representados por cinco países

no Mar Vermelho”. O memorando acrescentava: “O próprio relatório do Unscop reconheceu a conexão histórica entre os judeus e aquele pequeno porto no Mar Vermelho”.

Weizmann foi recebido durante meia hora no Salão Oval da Casa Branca e, em vez de entregar o papel, resolveu tratar de tudo que era crucial em viva voz, estendendo um mapa na mesa do presidente. Referiu-se aos tempos de fazendeiro de Truman e, portanto, ele saberia compreender de que maneira os pioneiros judeus estavam fazendo verdadeiros milagres na agricultura, tornando férteis terras que estavam áridas por mais de cem anos. Na questão do acesso ao Mar Vermelho, explicou que se o Neguev não viesse a pertencer a Israel, continuaria relegado à condição de deserto. Weizmann escreveu em suas memórias: “Saí muito feliz daquela reunião. O presidente entendeu rapidamente o que eu lhe apontava no mapa e prometeu que levaria o assunto para a delegação americana nas Nações Unidas. De fato, Truman telefonou para Herschel Johnson, o embaixador americano na ONU, e deu-lhe ordens inamovíveis em favor de um Neguev israelense”.

No dia 27 de novembro, quando a Assembleia Geral se reuniu, Sharett e os demais companheiros estavam a ponto de perder a esperança. A contagem por intuição indicava que não seriam alcançados os 2/3 de votos necessários para a aprovação da partilha. A angustiante solução foi pedir aos embaixadores favoráveis à partilha que ocupassem a tribuna pelo maior tempo possível, fazendo com que a sessão tivesse que ser encerrada sem votação em função do esgotamento do horário. Assim, num gesto de boa vontade para os representantes judeus,

Oswaldo Aranha suspendeu os trabalhos e marcou a retomada para dois dias depois, porque o dia seguinte era o do feriado americano de Ação de Graças. Moshe Sharett disse, anos depois, que aquelas 24 horas tinham sido cruciais para a obtenção dos votos ainda duvidosos.

No dia 29 de novembro, na abertura da sessão, o embaixador do Líbano, Camille Chamoun, propôs o adiamento da votação do relatório da Unscop. Foi obstado por Aranha: “Votar ou não votar, eis a questão”.

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COM O JORNAL “DER TOG”, EM IÍDICHE, ANUNCIANDO UM ESTADO JUDEU, ESSA FAMÍLIA AGUARDA PARA ENTRAR NA ARENA ST. NICHOLAS ONDE UMA MULTIDÃO CELEBRAVA A DECISÃO. N.YORK, 30 NOV 1947 Judeus comemoram nas ruas de Tel Aviv a decisão da ONU, em 1947 Estados membros da ONU votaram a Resolução da partilha em 29 de novembro de 1947

Os países foram chamados para se manifestar por ordem alfabética e o voto favorável da França assegurou a proporção necessária para a aprovação da partilha, com o seguinte resultado final: 33 votos a favor, 13 contra, 10 abstenções e uma ausência.

Quando a partilha foi aprovada, o Times Square e arredores, em Nova York, tornaram-se um pandemônio. Milhares de pessoas cantavam e dançavam nas ruas enquanto eram pronunciados calorosos discursos dos líderes sionistas. Emanuel Neumann, um dos principais ativistas sionistas, falou no microfone: “Devemos essa decisão favorável das Nações Unidas em grande parte, talvez mesmo a maior de todas, aos esforços incansáveis do presidente Harry Truman”. Por causa do fuso horário, era madrugada na Terra de Israel. Milhares de pessoas saíram às ruas de Jerusalém, Tel Aviv, Haifa e outras cidades, onde celebraram até o amanhecer.

Em Jerusalém, na sede da Agência Judaica, Ben-Gurion estava angustiado. Apesar da grande vitória, sabia que esta significava uma guerra desigual porque os árabes, fiéis ao comando do Mufti, jamais aceitariam a partilha, mesmo sendo contemplados com mais vantagem na sua metade de território.

Em Tel Aviv, um jovem corpulento e bem apessoado, saiu da multidão

A VOTAÇÃO

no centro da cidade e caminhou na direção da orla do Mediterrâneo. Olhou para aquele mar que já havia navegado. Era Iossi Harel, 28 anos, nascido em Jerusálem, comandante do Exodus. Ele sentia que uma pequena porção daquela festa, por menor que fosse, ia permanecer para sempre em sua vida.

A favor: 33 - África do Sul, Austrália, Bélgica, Bolívia, Brasil, Bielorrússia, Canadá, Checoslováquia, Costa Rica, Dinamarca, Equador, Estados Unidos, Filipinas, França, Guatemala, Haiti, Holanda, Islândia, Libéria, Luxemburgo, Nicarágua, Noruega, Nova Zelândia, Panamá, Paraguai, Peru, Polônia, República Dominicana, Suécia, Ucrânia, União Soviética, Uruguai e Venezuela.

Contra: 13 - Afeganistão, Arábia Saudita, Cuba, Egito, Grécia, Iêmen, Índia, Irã, Iraque, Líbano, Paquistão, Síria e Turquia.

Abstenções: 10 - Argentina, Chile, China, Colômbia, El Salvador, Etiópia, Honduras, Iugoslávia, México e Reino Unido.

Ausência: 1 - Tailândia

REVISTA MORASHÁ i 117 41 dezembro 2022
Votação referente à Partilha da Palestina na Assembleia Geral das Nações Unidas, no dia 29 de novembro de 1947
Zevi Ghivelder é escritor e jornalista.

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Princesa Alice, uma Justa Entre as Nações

Avó paterna do Rei Charles III, novo monarca britânico, a Princesa Alice é recordada pelo povo judeu por ter salvado uma família judia em Atenas, durante a 2a guerra, escondendo-a dos nazistas. levou uma vida de altruísmo e dedicação a terceiros e, POR seu desejo EXPLÍCITO, foi enterrada aos pés do Monte das Oliveiras, em Jerusalém. Do palácio ao convento, A VIDA DA PRINCESA ALICE foi muito pouco convencional.

As páginas de sua vida em nada se parecem a um conto de fadas. Criada como princesa, já adulta ela renunciou à vida da realeza. A família a trancou em hospitais para saúde mental onde os psiquiatras, entre os quais Sigmund Freud, a submeteram a tratamentos experimentais. Com grande força de vontade, Alice superou uma deficiência auditiva, lutou contra a doença mental e acabou sendo uma inesperada heroína na 2 a Guerra Mundial. Ainda que suas filhas se tivessem casado com nazistas, ela se arriscou e abrigou uma família judia durante o Holocausto. Por sua bravura, Alice de Battenberg foi condecorada por Yad Vashem como “Justa Entre as Nações”.

Sua vida foi notável. Apesar de seus pais serem mais alemães do que ingleses, Alice foi criada como uma princesa inglesa. Nasceu no Castelo de Windsor1, em 1885, recebendo o nome de Princesa Victoria Alice

O Castelo de Windsor é uma das residências da família real britânica. Lá viveu a Rainha Elizabeth II, recentemente falecida.

2 A Rainha Victoria reinou sobre o Reino Unido da GrãBretanha e da Irlanda de 1837 até sua morte, em 1901.

Elizabeth Julia Marie. Era filha do Príncipe Louis de Battenberg e da Princesa Victoria de Hesse. A bisavó de Alice foi a Rainha Victoria, da Grã-Bretanha 2. Isso significa que seu filho, Philip, e a Rainha Elizabeth, com quem ele viria a se casar em 1947, eram primos de 3º grau. A Princesa Alice tinha vínculo familiar com a maioria das famílias reais europeias.

Desde pequena era diferente do restante de sua família. Diagnosticada, ainda menina, com uma surdez congênita, mesmo assim ela conseguiu aprender leitura labial em diferentes idiomas, falando fluentemente inglês e alemão.

Em 9 de agosto de 1902, aos 17 anos de idade, Alice compareceu à coroação do Rei Eduardo VII, filho da Rainha Victoria, em Londres. Lá conheceu e se apaixonou perdidamente pelo Príncipe Andrew, da Grécia e Dinamarca, quarto filho do Rei George I da Grécia e de Olga Constantinovna, da Rússia. Alice e Andrew se casaram em uma cerimônia alemã pouco mais de um ano depois, em 6 de outubro de 1903. Alice e Andrew viveram na Grécia, onde tiveram cinco filhos, sendo quatro meninas e um menino –Philip, único varão e o mais novo dos cinco, que mais

42 Shoá

tarde se casaria com a Princesa Elizabeth, da Grã-Bretanha.

Entre 1905 e 1912, Alice levou uma vida despreocupada, viajando pela Europa e fazendo seu trabalho de caridade enquanto o marido, Príncipe Andrew, se dedicava à sua carreira militar, no exército grego. Quando irromperam as guerras nos Bálcãs, em 1912, a Princesa Alice não hesitou em partir para a linha de frente, organizando e trabalhando nos hospitais de campanha. Testemunhando os horrores da guerra, ela não hesitava em fazer curativos e aplicar bandagens nos inúmeros feridos. Por esse trabalho, foi condecorada com a Cruz Vermelha Real, em 1913.

Dois Exílios Reais

Em 1913, o cunhado de Alice, Constantino I, torna-se Rei

da Grécia. Em 1917, durante a 1a Guerra Mundial, ocorre o primeiro dos vários exílios da realeza grega. O Rei Constantino é expulso da Grécia em virtude de suas várias alianças que favoreciam a Alemanha.

A família real grega se exila na Suíça. Entre eles, Alice e sua família.

Em 1920, após o término da Guerra, o poder é restituído a Constantino I, que, juntamente com a família real, entre os quais seu irmão Andrew e Alice, retorna à Grécia. Sua permanência, no entanto, seria breve e, em 1922, ele e toda a família real novamente tiveram que fugir. A família da Princesa Alice refugia-se em Paris. O Príncipe Philip era apenas um bebê de colo. Esconderam-no numa cestinha de laranjas, fazendo as vezes de berço, e assim foi removido da Grécia, seu país natal – um fato repetidamente mencionado no seriado The Crown, da Netflix.

Terminava assim a vida real da Princesa Alice. Sua família perdera seu propósito e suas perspectivas de um futuro real. Esses eventos

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PRINCESA Victoria Alice Elizabeth Julia Marie von Battenberg, também conhecida como princesa Alice de Battenberg Alice no colo de sua mãe, ao lado da princesa Beatrice e da rainha Victoria

tiveram enorme impacto em Alice, que se voltou à religião, como forma de consolo – ao ponto de que em 1928, com 43 anos de idade, ela anunciava uma súbita e inesperada conversão à Igreja Greco-Ortodoxa.

No final da década de 1920, sua família demonstrou grande preocupação com a saúde mental da Princesa. Relatando incessantes alucinações religiosas, Alice acaba tendo um colapso nervoso. Desesperada, a família recorre à nova ciência, muito falada, a Psiquiatria. Em fevereiro de 1930, Alice é internada na Clínica do Dr. Ernst Simmel, nos arredores de Berlim. Simmel, um dos primeiros colaboradores de Sigmund Freud, diagnosticou a princesa com esquizofrenia paranoide3

Consultado, o Dr. Freud prescreve o tratamento experimental a que Alice foi submetida. Um dos tratamentos era a aplicação de Raios-X em seus ovários, visando provocar uma menopausa antecipada como forma de “diminuir o nível de seus hormônios”.

Alice abandona o tratamento e retorna à sua família, autodeclarando-se curada. Sua mãe, no entanto, continua estranhando seu comportamento. Em 2 de maio de 1930, enquanto seu filho, o Príncipe Philip, então com oito anos, estava fora de casa, Alice é sedada, à força, e enviada para o Sanatório Bellevue, na Suíça.

Sua própria família a confinava à internação. Abandonada pelo marido e familiares, ela continuava

convencida de sua sanidade mental e por isso fez repetidas tentativas de escapar de lá, todas em vão. E lá ela permaneceu, retida e afastada de tudo, por mais dois anos.

Durante sua estada em Bellevue suas quatro filhas desposam príncipes alemães sem que ela pudesse presenciar aqueles importantes eventos familiares. Para eles, Alice era motivo de embaraço e eles a mantinham escondida.

Recebendo alta em setembro de 1932, Alice afastou-se do contato com a família e praticamente se tornou uma nômade, vagando pela Alemanha e morando em várias hospedarias modestas.

O marido vivia, na época, no Sul da França e, ainda que nunca tivessem formalizado o divórcio, os dois nunca voltaram a se relacionar. O Príncipe Andrew faleceria em 1944. Nesse ínterim, seu filho Philip crescia sem a mãe ao seu lado, internado nos melhores colégios e passando as férias de verão com os parentes.

Em 1937, Alice se reúne à família no enterro de sua filha Cecilie. Com o marido, ambos nazistas, Cecilie morrera em um acidente de avião, juntamente com três de seus filhos. Philip, então com 16 anos, fez parte do cortejo fúnebre na Alemanha Nazista. Em foto da ocasião, ele aparece rodeado por familiares e dignitários, muitos trajando uniformes nazistas, enquanto as multidões apinhadas no entorno faziam a saudação nazista.

2ª Guerra Mundial

3 Os principais sintomas desse tipo de esquizofrenia são as alucinações, delírios, sensação de perseguição e pensamentos sobre conspirações.

Quando irrompe a 2a Guerra Mundial, em 1939, Alice havia retornado à Grécia para trabalhar junto aos pobres e necessitados. Esse país foi uma das primeiras vítimas dos exércitos do Eixo. Em 28 de outubro de 1940, tropas italianas atacaram a Grécia, mas não conseguiram subjugar os gregos, encontrando forte resistência. Hitler viu-se, então, obrigado a enviar auxílio às tropas de Mussolini e, em 6 abril de 1941, os nazistas entraram no país. Até 2 de junho desse ano, toda a Grécia havia sido ocupada pelas forças do Eixo e dividida em três zonas: alemã, italiana e búlgara.

Shoá 44
Princesa Alice de Battenberg Princesa Alice e Príncipe Andrew

Alice viu-se sozinha na Grécia ocupada pelos nazistas, dedicando-se a uma vida de caridade. Trabalhava em cozinhas comunitárias para os necessitados até se esgotarem os alimentos. Sempre que a família conseguia enviar-lhe alimentos ou dinheiro, ela imediatamente os repassava para os carentes. Também servia de voluntária na Cruz Vermelha Suíça e Sueca. Nas palavras da Princesa Victoria, sua mãe, “Alice cuidava dos mais pobres”. Durante a guerra, não medindo esforços, ela tentava usar sua posição real para conseguir suprimentos médicos para quem o necessitasse.

Ligações familiares nazistas

Ainda que Alice tivesse um filho combatendo na Marinha Real Britânica, três de suas quatro filhas, irmãs de Philip, eram casadas com aristocratas alemães que ocupavam posições seniores no Partido Nazista.

Sua filha mais moça, a Princesa Sophie, era casada com o Príncipe Christoph de Hesse, oficial das SS, que teria dado a seu filho o nome de Adolf, em clara homenagem a Hitler. Em suas memórias, já em idade mais avançada, a Princesa Sophie contou ter conhecido Hitler pessoalmente, ficando muito impressionada com aquele “homem cativante, de aparência modesta, e com seus planos de mudar para melhor a situação da Alemanha”.

Holocausto na Grécia

No começo da guerra a população judaica da Grécia já atingia cerca de 80 mil pessoas. Em 1941, 55 mil judeus gregos ficaram sob o jugo direto dos alemães. Estes últimos prontamente começaram a perseguir

e discriminar os judeus sob sua jurisdição, até que os deportaram, entre março e agosto de 1943.

O destino dos judeus de Salonica fora selado desde a entrada dos nazistas na cidade, em abril de 1941. Estima-se que 95% dos 46.091 judeus da cidade tenham morrido nas câmaras de gás.

Atenas permaneceu sob jugo italiano. Em toda a região por eles ocupada os judeus viveram bem até a chegada dos alemães. Assim que a

Itália se rendeu aos aliados, em 8 de setembro de 1943, os nazistas passaram a controlar Atenas, iniciando-se então a perseguição e deportação dos judeus de Atenas para Auschwitz.

Em outubro de 1944, quando a Grécia foi libertada, 10 mil judeus ainda permaneciam no país. Entre 1941 e 1944, fora aniquilado mais de 87% do judaísmo grego, o que representa o maior percentual de mortes seguindo-se aos trágicos números da Polônia.

REVISTA MORASHÁ i 117 45 DEZEMBRO 2022
Tropas alemãs, em maio de 1941, Acrópole de Atenas. Alice e Andrew com suas filhas, Theodora e Margarita, dez. de 1922

A família Cohen

Os Cohen eram uma das famílias judaicas mais proeminentes do país, amigos de velha data da família real grega. Haimaki Cohen tinha sido parlamentar pelo estado de Tricala, no norte da Grécia. Na década de 1910, ele fora importante aliado do Rei George I, sogro de Alice.

Em 1941, quando da invasão da Alemanha à Grécia, a família Cohen fugira para Atenas – que ainda estava sob domínio italiano. No entanto, o período de relativa segurança somente duraria até setembro de 1943, quando os alemães ocuparam Atenas. Nessa época, por volta de 1943, Haimaki Cohen já havia falecido. Sua viúva, Rachel, juntamente com seus cinco filhos, necessitavam desesperadamente de proteção contra a perseguição nazista. Primeiro foram abrigados pela Irmã Chrisaki, de um convento nos arredores de Atenas, mas tiveram que fugir de lá por temerem ser denunciados pelos vizinhos.

Os quatro filhos dos Cohen queriam cruzar a fronteira para chegar ao Egito através da Turquia, juntando-se ao governo grego no exílio, sediado no Cairo. Mas viram que a viagem era muito arriscada para sua mãe, Rachel, e sua irmã, Tilde. Tomando conhecimento da situação desesperadora dessa família, a Princesa Alice ofereceu abrigo a Rachel e Tilde no palácio em que residia, pertencente à família real da Grécia, em Atenas. E as abrigou em um dos apartamentos, no 3º andar, da residência.

Os Cohen descrevem com incontida emoção o que lhes aconteceu a esse esconderijo, que, à parte do perigo que os rodeava, era muito confortável, e a maneira dedicada com que a

Princesa se ocupava deles. Ademais, Alice conseguiu dois elementos de ligação, de sua confiança, Demosthene Foris e Simopoulou e, com a ajuda deles, os judeus que ela mantinha escondidos podiam manter comunicação com o mundo exterior. Dessa maneira, ficaram sabendo que um de seus quatro filhos fora forçado a retornar a Atenas – e este, também, recebeu a proteção e o abrigo da casa da Princesa.

Segundo relato dos Cohen, a Princesa Alice costumava ir ao 3o andar da residência para visitar Rachel, Tilde e o rapaz, às vezes demorando-se várias horas em sua

interrogatórios nazistas usando sua surdez como desculpa e fingindo não entender seus questionamentos. O mais notável é que a Princesa teve que esconder a família Cohen de suas próprias filhas. Em determinado momento, suas filhas visitaram-na em Atenas com seus maridos, oficiais das SS, e algo os fez suspeitar de que a mãe lhes escondia algo sério. Apesar de fazer leitura labial com maestria, Alice usou o recurso da surdez, fingindo não entender suas insistentes perguntas e sustentando, categoricamente, que uma de suas ajudantes domésticas vivia no andar superior.

companhia. Tomavam chá juntos e conversavam longamente sobre religião.

Durante a Guerra, a coragem da Princesa foi repetidamente posta à prova. Suas atividades, entre as quais se incluía o já citado trabalho para a Cruz Vermelha e o contrabando de suprimentos médicos para a Grécia, despertaram a suspeita das autoridades nazistas. Contase que Alice teria se livrado dos

Em uma carta que escreveu ao filho Philip na última semana da libertação, a Princesa contou que não tinha nada mais o que comer, além de pão e manteiga; há meses que não comiam carne. Ao final da guerra, durante o combate pela libertação de Atenas, ela insistiu em andar pelas ruas, para o desespero das forças britânicas, em meio à troca de tiros, a fim de distribuir alimentos aos soldados e ao povo.

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A família Cohen antes da guerra

A família Cohen permaneceu na residência da Princesa Alice até a libertação da Grécia, em outubro de 1944. Sua disposição em se colocar em risco provavelmente ajudara a salvar a vida deles. Graças à Alice, eles escaparam do terrível destino de 54.533 judeus gregos despachados para Auschwitz, onde tragicamente perderam a vida.

Após a Guerra

Ao término da Guerra, Alice continuou vivendo para atender e ajudar os demais. Em 20 de novembro de 1947, seu filho, Príncipe Philip, casa-se com a Princesa Elizabeth, futura Rainha Elizabeth II da Inglaterra. Os diamantes de seu anel de noivado foram retirados de uma tiara pertencente à Princesa Alice. Ela a recebera como presente de casamento do Czar Nicholas II e da Czarina Alexandra da Rússia. Alice presencia o casamento, ao qual não haviam sido convidados nenhum dos membros alemães de sua família devido à sua filiação ao Nazismo.

Em 1948, vestindo um hábito monacal cinza, Alice “se retirou do mundo”, em suas próprias palavras. Ainda que formalmente nunca tivesse feito os votos para se tornar freira pela Igreja Greco-Ortodoxa, ela continuou a usar as vestimentas das religiosas pelo resto da vida.

Em 1949, ela fundou a Irmandade Cristã de Martha e Maria, uma ordem de freiras dedicadas a cuidar dos doentes. Num subúrbio pobre de Atenas, ela construiu um convento e um orfanato, que estão em uso ainda hoje como centro comunitário. Abrindo mão de todas as suas posses, ela ainda vendeu o que lhe restava de suas joias reais para financiar esse projeto, para consternação e a contragosto de seus

familiares. Ainda no mencionado seriado da Netflix, The Crown, a princesa é retratada em seus últimos anos como uma fumante inveterada em busca de fundos para os pobres. Na coroação da Rainha Elizabeth II, em 1953, a Princesa Alice usava seu tradicional hábito monacal.

Em 1967, a história se repete. A família real da Grécia é novamente expulsa de Atenas por um golpe militar. Foi necessário que o Príncipe Philip enviasse um avião, com um pedido especial da Rainha Elizabeth, para trazer Alice de volta à Inglaterra. Já com a saúde

muito debilitada, Alice é levada para o Palácio de Buckingham, residência dos monarcas ingleses. Após uma vida inteira afastados por doença mental, guerras e política familiar, o Príncipe Philip e sua mãe finalmente estavam reunidos. Isso permite que ela volte a se conectar com seu filho único na tentativa de retomar seu relacionamento, quase sempre muito tenso.

A princesa era vista com frequência vagando pelos salões do palácio, vestida de freira, muitas vezes envolta na fumaça do cigarro que sempre levava na mão. Alice faleceu em 5 de dezembro de 1969, aos 84 anos de uma vida muito agitada. Suas únicas posses neste mundo eram três vestidos de baile.

A mãe do Príncipe Philip reservara uma última surpresa para sua família e para o mundo. Deixou o pedido que queria ser enterrada na Igreja Ortodoxa Russa de Santa Maria Magdalena, em Jerusalém, ao lado de sua tia, a Grã-Duquesa Elizabeth Fyodorovna. Mas seriam necessárias duas décadas até que o Príncipe Philip cumprisse o último desejo de

REVISTA MORASHÁ i 117 47 DEZEMBRO 2022
PRINCESA ALICE COM SEUS NETOS, PRINCESA ANNE E PRÍNCIPE Charles, 1955 Princesa Elizabeth II com Philip no dia DE SEU casamento, 1947

sua mãe. Em 1988, após anos de negociações entre as autoridades eclesiásticas, o caixão da Princesa Alice foi transportado, de avião, para Jerusalém, e enterrado na Igreja Ortodoxa no Monte das Oliveiras.

Yad Vashem

Após a morte da Princesa Alice, o neto de Rachel Cohen, Alfred Cohen, deu início às tramitações para que a Princesa fosse homenageada pelo Museu do Holocausto Yad Vashem, em Jerusalém, com o título de “Justos Entre as Nações”, atribuído a nãojudeus que salvaram nossos irmãos durante o Holocausto.

Como bem o afirmou na ocasião Philippe Cohen, um dos descendentes da família, “Todos nós devemos nossa existência à coragem da Princesa Alice”.

Hugo Vickers, biógrafo da Princesa, escreveu que anos depois, ao receber o agradecimento de um membro da família, “Alice respondera bruscamente que apenas fizera o que julgava ser sua obrigação”. Em 1993 Yad Vashem concede o título de “Justa Entre as Nações” à Princesa Alice de Battenberg. No

ano seguinte, 1994, o Príncipe Philip fez uma peregrinação a seu túmulo e plantou uma árvore no bosque de Yad Vashem em homenagem à sua mãe. Era a primeira vez que um membro da família real inglesa punha os pés no Estado de Israel. Philip, no entanto, viajava em caráter privado, não-oficial. Na cerimônia, o Príncipe fez um discurso forte. Contou que sua mãe nunca mencionara os Cohen.

E contou sobre ela: “Desconfio que nunca ocorreu à minha mãe que suas

ações fossem especiais, de alguma forma. Ela era uma pessoa que tinha profunda fé religiosa e certamente julgava ser uma ação extremamente humanitária socorrer outros seres humanos em dificuldades”.

Em 2018, o Príncipe William, filho da Princesa Diana e do hoje Rei Charles III, fez uma viagem real ao Oriente Médio, que incluiu uma parada em Jerusalém. Na ocasião, depositou flores no túmulo de sua bisavó. Nessa viagem, William se encontrou com Philippe Cohen, um dos descendentes da família que ela salvara. O Príncipe já havia manifestado publicamente sua admiração pela Princesa Alice. E quando de sua homenagem como “Justa Entre as Nações” por ter salvado uma família judia, os Cohen, ele declarou: “A história de minha bisavó é motivo de grande orgulho para toda a minha família”.

Em novembro de 2021, o Presidente de Israel Isaac Herzog anunciou a criação de uma bolsa de estudos em Enfermagem, na Universidade Hebraica de Jerusalém, levando o nome da Princesa Alice de Battenberg. O Gabinete do Presidente informou que a bolsa “rende tributo à compaixão e profunda espiritualidade da Princesa, e sua imensa perseverança em ajudar os necessitados”.

BIBLIOGRAFIA

How Princess Alice saved an entire family from the Nazis, artigo publicado em 1 de dezembro de 2019 pelo jornal The Guardian, https://www.theguardian.com/uk Rescue in the Royal Palace, artigo publicado no site https://www.yadvashem.org/ righteous.html

The Crown: Princess Alice of Battenberg’s Life Was More Dramatic Than the Show Depicts, artigo publicado em 9 de abril de 2021 por Delia Paunescu no site https://www.elle.com

Shoá 48
PRINCESA ALICE COM SEU NETOS, PRÍNCIPE CHARLES E PRINCESA ANNE. Atenas, 1964 Príncipe Philip plantando uma árvore, em homenagem à sua mãe, ALICE DE BATTENBERG. YAD VASHEM, 1994

Reino UNIDO: CHARLES III e os judeus

Com o falecimento da Rainha Elizabeth II, o Reino Unido tem um novo rei, Charles III. Se HÁ ALGUÉM, NA família real, QUE TENHA uma conexão particularmente forte com a comunidade judaica, esse alguém é o Rei Charles III. O novo monarca é patrono de várias instituições de caridade judaicas e fã de nossa cultura. Sempre se manifestou publicamente contra o antissemitismo, sobre a necessidade de não esquecer o Holocausto, E TEM UM vínculo especial com Israel.

Aos 73 anos de idade, Charles III é a pessoa de mais idade a ascender ao trono britânico. Ele é o primogênito da Rainha Elizabeth II e do Príncipe Philip. Foi casado com a falecida Princesa Diana e a separação do casal, que culminou com seu divórcio em 1996, ocupou as manchetes do mundo todo. O casal teve dois filhos, os Príncipes William e Harry. Com sua subida ao poder, Charles III passa a ser o líder da Commonwealth, um conglomerado de 56 países independentes com um total de 2,5 bilhões de pessoas. De 14 desses países, entre os quais o Reino Unido, o Rei é também Chefe de Estado. E reina, também, sobre os 300 mil judeus que vivem na Grã-Bretanha.

Considerado extremamente amável e cuidadoso com os que o cercam, Charles fez da promoção da tolerância uma de suas bandeiras, denunciando o antissemitismo e alertando contra os perigos do extremismo e da perseguição, além de insistir em recordar aos demais a importância das lições do Holocausto.

A simpatia e a proximidade de Charles com a comunidade judaica são consideradas uma herança de seu pai, o falecido Príncipe Philip. Este último tinha

amigos próximos entre os membros dessa comunidade e foi o primeiro da família real a visitar Israel, ainda que em caráter particular. Ademais, sua mãe, a Princesa Alice de Battenberg, recebeu o título de “Justa Entre as Nações” por seu humanismo e coragem, escondendo uma família judia em sua residência, em Atenas, durante a 2a Guerra Mundial. A Princesa Alice está enterrada em Jerusalém, atendendo seus últimos desejos, como vimos em outro artigo desta edição.

A falecida Rainha Elizabeth II também conduziu eventos para os judeus britânicos e participou de atos em recordação do Holocausto, sendo muito amada por seu povo. Contudo, nunca visitou Israel. A Rainha esteve em visitas oficiais a 117 países, entre os quais alguns nos Oriente Médio, como Catar e Arábia Saudita, e foi a Chefe de Estado que mais viagens empreendeu, na história. O fato de nunca ter visitado Israel irritou inúmeras pessoas na comunidade judaica inglesa, bem como políticos israelenses.

Circuncidado por um Rabino

A forte conexão do novo monarca com os judeus se iniciou com sua própria circuncisão, pois Charles foi

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dezembro 2022

circuncidado em 1948 pelo Rabi Jacob Snowman, médico e um dos principais mohelim de Londres. O Rabino Snowman foi o escolhido pela Rainha que acreditava que ele tivesse mais experiência e renome na realização das circuncisões do que um médico comum.

Não se sabe a razão para os filhos da família real britânica serem geralmente circuncisos. Há teorias que afirmam que a tradição vem desde o início da década de 1700, com o Rei George I (que reinou de 1714 – 1727), ou que se tenha iniciado com a Rainha Victoria (que reinou de 1837 – 1901), que acreditava que a família real inglesa descendia diretamente do Rei David, o nosso David ha-Melech

Esse hábito também era prática comum quando do nascimento do então Príncipe Charles. Segundo o The Telegraph, 20% de todos os meninos nascidos no Reino Unido eram circuncidados, na década de 1950.

Orações judaicas pela família real

Desde 1801, recita-se uma prece pela Família Real, a cada Shabat,

na maioria das sinagogas britânicas, no momento do serviço religioso em que nas demais comunidades do mundo se faz a oração pelo bemestar do governo local e do Estado de Israel.

Abaixo um pequeno trecho da oração que era proferida em prol da saúde da Rainha e da Família Real, quando Elizabeth ainda era viva:

“Aquele que dá a salvação aos reis e poder aos príncipes, cujo reino é um reino eterno, que Ele abençoe

nossa Soberana, a Senhora Rainha Elizabeth II; Philip, Duque de Edimburgo; Charles, Príncipe de Gales e toda a Família Real...”.

Após o falecimento da Rainha Elizabeth II, as palavras dessa oração foram substituídas, passando a dizer, pela primeira vez em 70 anos: “Nosso Soberano, o Lorde Rei Charles III”, em vez de “Nossa Soberana a Senhora Rainha Elizabeth II”.

Essa oração emociona Charles III que a ela se refere em tantas de suas aparições públicas em eventos judaicos, bem como na festa préChanucá auspiciada por ele no Palácio de Buckingham, em 2019.

Na ocasião, o hoje Rei expressou seu apreço pela comunidade judaica de seu reino: “Em todas as camadas sociais e em todas as áreas de atividade, nossa nação não poderia contar com cidadãos mais generosos e amigos mais fiéis. A conexão entre a Coroa e nossa Comunidade Judaica é algo especial e precioso. Eu o digo a partir de uma perspectiva particular e pessoal, pois cresci sendo profundamente tocado pelo fato de as sinagogas britânicas terem, por séculos, recordado minha família em suas preces semanais. E, assim como vocês se recordam de minha família, nós também os recordamos e celebramos com vocês”.

Laços com o Judaísmo britânico

Os vínculos do novo Rei com a comunidade judaica são profundos. Charles é patrono de inúmeras instituições, tais como o Fundo Mundial de Assistência Judaica (World Jewish Relief), a agência humanitária da comunidade judaico-

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Greville Janner presenteia a Rainha com uma menorá na Conferência de Líderes da Commonwealth Judaica, em dezembro de 1982 Príncipe Charles COM SUA MÃE

britânica; o Museu Judaico; o Fundo para o Dia em Memória do Holocausto, e a Brigada dos Rapazes e Moças Judeus, um grupo juvenil judaico.

O Rei Charles sempre contribuiu para inúmeras causas judaicas. Com financiamento de suas próprias instituições de caridade, fundou o Centro Comunitário de Cracóvia, na Polônia. Em 2002, em uma visita auspiciada pelo World Jewish Relief, ele conheceu o que restava da outrora vibrante comunidade judaica de Cracóvia e se dispôs a ajudá-los. Seis anos depois, o hoje Rei voltou ao Centro, onde pessoalmente afixou a mezuzá à entrada.

Sua fundação também assiste o projeto de transformar a Sinagoga Merthyr Tydfil, uma construção do século 19 de inspiração galesa, em um Centro Galês de Herança

Judaica. O monarca visitou pessoalmente o local.

Durante a celebração da festa pré-Chanucá de 2019, no Palácio

de Buckingham, ao mencionar seu profundo envolvimento com as causas e organizações judaicas, Charles III declarou em seu pronunciamento que via aquele gesto “como o mínimo que podia fazer para tentar retribuir, de uma maneira singela, as imensas bênçãos que o Povo Judeu trouxe a esta terra, e, com efeito, a toda a humanidade”.

O novo Rei é frequentemente convidado para várias celebrações e eventos de arrecadação da comunidade judaica, já tendo visitado escolas, sinagogas e centros de preservação da memória do Holocausto no Reino Unidos e em outras partes. Os eventos em que esteve presente são em número grande demais para serem listados.

Em 1998, ele compareceu à comemoração do 50o aniversário da criação do Estado de Israel, na

REVISTA MORASHÁ i 117 51 DEZEMBRO 2022
CHARLES III no funeral da Rainha Elizabeth II na Capela de São Jorge. Castelo de Windsor. 19 de setembro de 2022 Charles junta-se às crianças da escola para celebrar Chanucá, Londres

St. John’s Wood Synagogue, em Londres. Na ocasião, o então Rabino Chefe Lorde Jonathan Sacks ZT’L, de saudosa memória, elogiou o apoio do então Príncipe de Gales às demais religiões não pertencentes à Igreja da Inglaterra. Em 2018, Charles também esteve presente na celebração do 70o aniversário de Israel.

Charles era amigo íntimo do saudoso Rabino Chefe Lorde Sacks. E foi o principal palestrante em seu Jantar de Despedida, quando este último se

aposentou desse importante cargo, em maio de 2013. Na ocasião, o então Príncipe de Gales comentou que, apesar de os dois serem da mesma idade, tendo nascido no mesmo ano da criação do Estado de Israel, o Rabino Chefe já podia se aposentar – ao passo que ele, o Príncipe, sequer havia começado o seu principal trabalho. E se referiu ao Lorde Sacks como um “amigo constante” e um “valioso conselheiro”. Nesse mesmo ano, Charles III também participou da

instalação no Rabinato Chefe da Inglaterra, em uma sinagoga londrina, do Rabino Chefe Ephraim Mirvis, com quem ele também tem um bom relacionamento. Ele foi o primeiro membro da família real a presenciar a posse de um Rabino Chefe.

Conta-se que quando o Rabino Sacks faleceu, em 2020, Charles teria ficado devastado pela perda e fez um emocionado discurso em memória de seu amigo e mestre. Em suas palavras, considerava aquela uma “perda irreparável” e o chamava de “um guia confiável, um mestre inspirado e um amigo verdadeiro e constante”. “Sentirei sua falta mais do que minhas palavras podem expressar”.

Em fevereiro deste ano de 2022, Charles inaugurou uma estátua, em Winchester, homenageando uma mulher judia do século 13, Licoricia. Essa senhora, que concedia empréstimos, ajudou a financiar a construção da Abadia de Westminster. Acredita-se que ela teria apoiado financeiramente três reis da Inglaterra. Licoricia é considerada a mulher judia mais importante da Inglaterra medieval.

Para a comunidade judaica britânica, o novo Rei Charles III é considerado um amigo fiel, um “fiador da tolerância”.

Israel

Em 2018, o Príncipe William, filho de Charles e Diana, tornou-se o primeiro membro da família real britânica a visitar Israel de modo oficial. O Príncipe Philip e seu filho Charles haviam estado no país anteriormente, mas suas viagens não foram consideradas oficiais pela Coroa. Em 1995, o Príncipe Charles esteve presente no funeral de Yitzhak Rabin e, em 2016, no

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CHARLES III COM O MARTELO USADO PARA AFIXAR A MEZUZÁ NO CENTRO JUDAICO DE CRACÓVIA, POLÔNIA, 2008 O RABINO SACKS E O PRÍNCIPE CHARLES NO 50o ANIVERSÁRIO DA CRIAÇÃO DE ISRAEL. SINAGOGA DE ST. JOHN’S WOOD, LONDRES. 1998

de Shimon Peres. Este último havia sido condecorado Cavaleiro Honorário da Grã-Bretanha em 2008.

Em 2020, Charles realizou sua primeira visita oficial a Israel. Ele é o membro mais sênior da família real britânica a realizar tal visita desde a criação do Estado. Durante sua estada no país, Charles reuniuse com o então Presidente Reuven Rivlin, um grupo de sobreviventes do Holocausto e participou de uma cerimônia em Yad Vashem; visitou a exposição dos Pergaminhos do Mar Morto e o túmulo de sua avó, a Princesa Alice de Battenberg, o que também fizera em suas visitas anteriores. A Princesa está enterrada na Igreja Maria Magdalena, no Monte das Oliveiras, em Jerusalém.

Em 2021, Charles recebeu o Presidente de Israel, Isaac Herzog, em sua residência campestre, em Gloucestershire.

Recordando o Holocausto

A Família Real tem profundo envolvimento com a Educação e Memória do Holocausto, trabalhando ativamente para manter viva a lembrança da Shoá

O falecido Príncipe Philip apoiava as atividades de organizações como o Fundo Educacional sobre o Holocausto, fundado em 1988. Essa instituição educa os jovens de todas as origens acerca do que foi o Holocausto e as importantes lições que se aplicam ainda hoje.

Em 2015, a Rainha Elizabeth II e o Príncipe Philip fizeram uma emocionante visita ao local do campo de concentração de BergenBelsen, libertado pelas tropas

britânicas em abril de 1945. Apesar das limitações por força de sua idade, a Rainha quebrou o protocolo, demorando-se muito mais do que o programado para ouvir a história de cada um dos sobreviventes de Auschwitz, na ocasião.

Em 2015, Charles se tornou Patrono do Fundo para o Dia da Memória do Holocausto, substituindo sua mãe, que, até então, ocupava o patronato. Essa fundação é a instituição de caridade criada e

financiada pelo governo do Reino Unido para a promoção e apoio do Dia da Memória do Holocausto. Os atuais Príncipe e a Princesa de Gales (William e Kate) também estão envolvidos com as atividades do Dia da Memória.

O hoje Rei Charles III tem demonstrado grande empatia pelas trágicas experiências vividas pelos judeus na história recente. Em 2018, ele ofereceu uma recepção na Clarence House, sua residência em

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O príncipe de Gales encontra-se com o presidente de Israel, Isaac Herzog, na Highgrove House, em Gloucestershire. 22 de novembro de 2021 O Príncipe de Gales com Margers Vestermans, diretor do Museu Judaico de Riga, Letônia. O museu registra a perseguição alemã aos judeus NESSE PAÍS, durante a 2ª Guerra Mundial e a ocupação russa durante e após a guerra. Nov. de 2001

Londres, para comemorar o 80o aniversário do Kindertransport, uma campanha de resgate das crianças judias dos territórios controlados pelos nazistas pouco antes da 2a Guerra Mundial.

Em janeiro de 2020, Charles viajou a Israel para o 5º Fórum Internacional do Holocausto, no Yad Vashem, em Jerusalém. A cerimônia marcava o 75o aniversário da libertação do campo de morte de Auschwitz. Dezenas de líderes mundiais estiveram no evento, entre os quais o Presidente Emmanuel Macron, da França, e o Presidente Vladimir Putin, da Rússia. Sem dúvida, o discurso do hoje Rei Charles III foi dos mais emocionantes.

Ele se reuniu com o então Presidente Reuven Rivlin, na residência oficial, em Jerusalém, antes da cerimônia. “Para mim, esta é uma experiência de grande significado”, disse o hoje Rei ao Presidente Rivlin. “Muitos de meus professores, no colégio, eram sobreviventes do Holocausto e todos nós estamos profundamente comprometidos em combater o antissemitismo”.

Charles foi o orador principal nessa cerimônia. Em seu pronunciamento, ele afirmou que o mundo precisava “ser destemido ao se confrontar com notícias falsas e resoluto ao resistir a palavras e atos de violência”. E continuou: “Não podemos permitir que o Holocausto se torne um simples fato na História; não podemos cessar de nos horrorizar com o testemunho daqueles que vivenciaram esse horror. A vivência deles deverá sempre nos educar, nos guiar e nos alertar”.

Charles advertiu contra as lições “ardentemente relevantes” do Holocausto, nestes tempos em que o ódio e a intolerância “ainda nos contam novas mentiras, adotam novos disfarces e seguem buscando novas vítimas”.

Durante o Fórum, Charles conversou longamente com sobreviventes do Holocausto, interessado em conhecer sua história. “Ele demonstrou grande interesse em conhecer os detalhes sobre Auschwitz e saber como

havíamos conseguido sobreviver”, explicou a sobrevivente Marta Weiss, que conversou com o monarca durante essa visita.

Em janeiro deste ano de 2022, por ocasião do Dia Internacional da Lembrança do Holocausto, foi exibida no Palácio de Buckingham uma exposição intitulada Sete Retratos: Sobrevivendo ao Holocausto. Charles encarregou sete renomados artistas de pintar o retrato de sete conhecidos sobreviventes do Holocausto. Os quadros passarão a fazer parte da Coleção Real de Arte.

A introdução ao catálogo da exposição foi escrita pelo próprio Charles III: “Atrás de cada retrato se esconde uma história única de uma vida salva, de amor, de perda. No entanto, esses retratos representam algo muito maior do que sete notáveis seres humanos. Eles são um memorial vivo para os seis milhões de homens, mulheres e crianças inocentes cujas histórias nunca serão contadas, cujos rostos nunca serão pintados. Eles constituem um

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Charles discursa durante o 5º Fórum Mundial do Holocausto no museu memorial do Holocausto Yad VASHEM, Jerusalém. 23 de janeiro de 2020 durante uma visita à Sinagoga de Belfast, Irlanda do Norte

poderoso testamento da resiliência e coragem muito extraordinárias daqueles que sobreviveram e que, a despeito de sua idade avançada, continuam a contar ao mundo as inimagináveis atrocidades que vivenciaram. Eles constituem um lembrete permanente para nossa geração – e, de fato, para as futuras gerações – da profundidade da depravação e maldade de que a humanidade pode cair presa quando a razão, a compaixão e a verdade são abandonadas”. Esse projeto é parte do objetivo do Rei de longa data de educar as futuras gerações e de assegurar que os horrores do Holocausto jamais sejam olvidados. “Com o declínio, triste, mas inevitável, dos sobreviventes, tenho a esperança constante de que esta coleção sirva de guia iluminador no futuro”, afirmou.

Na cerimônia inaugural, Lily Eber, de 98 anos, retratada entre os sete sobreviventes expostos, mostrou a tatuagem que lhe foi feita, à força, ao chegar a Auschwitz; e disse a Charles: “Ao conhecê-lo sinto que o faço por todos aqueles que perderam a vida”. Ao que o hoje Rei respondeu: “Mas o meu privilégio é ainda muito maior que o seu”.

No passado, o Rei Charles III alertou o mundo contra os perigos do crescente antissemitismo e outras formas de intolerância no Reino Unido. Alertou, também contra “as distorções da História que tentam diminuir ou negar a vivência judaica povoada de antissemitismo, ao longo de milênios, mas particularmente no Holocausto”.

Defensor de todas as religiões

Quando de sua coroação no dia 6 de maio de 2023, o Rei Charles III

receberá, entre outros, o título de Defensor da Fé – o Defensor da Igreja da Inglaterra. Em 1994, Charles deu motivo para uma controvérsia ao afirmar que seria “defensor de todas as fés”, evidenciando seu desejo de refletir a diversidade religiosa da GrãBretanha. Em suas próprias palavras, ele pretende ser verdadeiro “protetor da fé” e da liberdade de culto do povo de seu país.

Enquanto fechávamos esta edição, o jornal The Jerusalem Post noticiava que o dia da coroação de Charles III cairá num Shabat. Fazendo questão absoluta da presença do Rabino Chefe Ephraim Mirvis, o Soberano o convidou, juntamente com sua esposa, para passarem a noite na Clarence House, sua residência, localizada a alguns minutos a pé do Buckingham Palace, onde será realizada a cerimônia. Desta forma, o RabinoChefe da Comunidade Britânica, judeu ortodoxo, poderá caminhar até a cerimônia de coroação de Charles III.

Com todas essas credenciais, o hoje Rei também presta reverência à comunidade judaica de uma

maneira muito carinhosa. Ele possui sua própria kipá, que usa em todos os eventos judaicos a que comparece. Seu solidéu em veludo azul é ornado com o brasão real do Príncipe de Gales, seu título anterior, bordado em fio de ouro e linha de seda branca.

Amigo verdadeiro do Povo Judeu, o Rei Charles III faz jus às bençãos nas orações de Shabat realizadas nas sinagogas em todo o Reino Unido. Acredita-se que a comunidade judaica do Reino Unido não poderia ter um melhor amigo ou soberano do que Charles III.

BIBLIOGRAFIA

King Charles III: A friend to UK Jewry, with special and historic ties to Israel, artigo publicado na edição de 10 de setembro de 2022 pelo Times of Israel por Itamar Sharon e equipe da redação do jornal King Charles III and the Jews, artigo publicado em 11 de setembro de 2022 no site https://aish.com por Yivette Alt Miller

Prince Charles speech: name check for World Jewish Relief, discurso do Rei Charles III proferido no Palácio de Buckingham em 5 de dezembro de 2019 publicado no site https://www.worldjewishrelief.org/ news/977

REVISTA MORASHÁ i 117 55 DEZEMBRO 2022
Charles fala com a sobrevivente do Holocausto Anita Laskar-Wallfisch durante e exposição “Sete Retratos: Sobrevivendo ao HOLOCAUSTO”. PALÁCIO de Buckingham, Londres, janeiro de 2022

Reconhecendo

o antissemitismo

Embora tenha encontrado sua expressão mais devastadora no Holocausto, o antissemitismo não se iniciou nem tampouco lá terminou. O preconceito contra os judeus existe desde a antiguidade. Como um vírus maligno e mutante, ao longo dos séculos mudou sua forma de atuação e roupagem, mas não desapareceu, e continua a proliferar pelo mundo. Combater esse mal tem sido um dos grandes desafios de todos os tempos.

Atualmente o antijudaísmo se manifesta de várias formas, entre outras através do antissionismo, do ressurgimento da negação e distorção do Holocausto e do fortalecimento de grupos neonazistas. O crescimento das mídias sociais e a fragmentação da mídia tradicional têm contribuído para esta situação. Na Europa, nos Estados Unidos e em outros lugares as ideias de supremacistas brancos estão ganhando força, e extremistas e radicais usam as mídias sociais para disseminar propaganda e semear mentiras, medo e ódio. Neonazistas organizam e recrutam além de suas fronteiras, exibindo símbolos nazistas e suas ambições assassinas. Nos países islâmicos, o antissemitismo assumiu a forma de antissionismo e tornou-se uma bandeira nacionalista. E é essencial destacar que o ódio a Israel é uma das principais facetas do moderno antissemitismo.

O próprio termo “antissemitismo” que atualmente usamos com referência ao antijudaísmo, ao ódio aos judeus, é um termo traiçoeiro, pois dá a entender que é um sentimento contra todos os semitas, os diferentes povos que teriam surgido na Arábia 3.500 anos antes da Era Comum. No entanto, o termo somente é utilizado

para descrever o antijudaísmo, tendo sido cunhado no final do século 19 por um antissemita declarado, Wilmer Marr, fundador da famosa Liga Antissemita. A palavra “antissemitismo”, com suas conotações raciais embutidas, prontamente se tornou de uso corrente e todos os postulados “científicos” do termo foram avidamente aceitos por determinados segmentos da ideologia nacionalista patriótica.

O atual crescimento do antissemitismo deve ser visto como uma das facetas de um ataque global à verdade. Tornam-se corriqueiros ataques que reduzem o papel da ciência, ignoram fatos comprovados empiricamente e se baseiam em absurdas teorias conspiratórias. Quando a verdade é apenas uma “versão” entre muitas, a mentira se normaliza e a História pode ser distorcida e reescrita, tornando mais fácil para determinados grupos explorar diferenças e atribuir culpas a bodes expiatórios.

Antijudaísmo religioso

O ódio aos judeus é milenar; tal qual um vírus, se adapta e se transforma ao longo dos séculos. Ainda que frequentemente vinculada ao Cristianismo, a discriminação aos judeus já existia na Grécia antiga e

56 Antissemitismo

no período romano, anterior ao nascimento e pregação de Jesus. Porém, somente após a legalização do Cristianismo através do Edito de Constantino, em 313, e sua declaração como religião oficial do Império Romano em 380, o antissemitismo, nesse período de cunho religioso, iria assumir proporções maiores.

O Cristianismo construiu o ódio aos judeus sobre uma base contraditória, que, no entanto, prevaleceria por quase dois milênios. Por um lado, o judeu devia ser punido por negar que Jesus era o Messias, mas, por outro, devia ser preservado para, no futuro, testemunhar a Segunda Vinda, pois, de acordo com a tradição cristã, Jesus prometera aos seus discípulos regressar numa era futura.

Ao longo dos séculos, após o progressivo fortalecimento do poder

da Igreja, os judeus foram sendo cada vez mais discriminados e segregados, e suas liberdades e atividades econômicas cerceadas através de leis religiosas e civis. À campanha sistemática da Igreja para denegrir o Judaísmo, bem como seus seguidores, vão ser agregadas acusações como de profanação da hóstia, assassinato ritual e envenenamento dos poços d’água.

Essa vertente religiosa do antissemitismo, que permeou a sociedade ocidental por quase dois milênios, resultou em segregações, massacres, torturas, pogroms e expulsões, e acabou gerando espaços geográficos “livres” de judeus, como na Inglaterra (1290) e na Espanha (1492), onde foram promulgados decretos de expulsão de toda a população judaica do país.

Antissemitismo e emancipação

Em 1789 a Revolução Francesa sacudia a Europa com os seus ideais de liberdade e igualdade. A emancipação dos judeus franceses percorre todo o continente europeu como um raio de esperança. As conquistas napoleônicas levaram até a Europa Central os ideais franceses de igualdade e liberdade, sendo instaurada, nas áreas conquistadas pelos exércitos franceses, a igualdade civil para todos os habitantes, inclusive os judeus.

Mas, enquanto na Europa Ocidental a emancipação judaica era baseada no princípio da igualdade civil para todos os homens, na Europa Central era entendida como “uma troca”. Para serem emancipados os judeus teriam que provar serem “merecedores” de tal ação através da total assimilação,

REVISTA MORASHÁ i 117 57 DEZEMBRO 2022
o protesto contra o aumento da violência antijudaica no Reino Unido e na Europa, Londres, Julho de 2018

ou melhor ainda, da conversão ao Cristianismo. Em 1812, os judeus da Prússia haviam sido emancipados, mas era uma “concessão” parcial, pois ainda recaía sobre eles a suspeita de deslealdade, não importando o fato de terem participado da campanha militar contra os franceses.

Após a derrota de Napoleão, em 1815, e a criação da Confederação Germânica sob hegemonia austríaca, a situação civil dos judeus passou a variar de estado a estado. Alguns revogaram os editais da emancipação judaica, ao passo que outros, apesar de os manterem oficialmente, na prática os ignoravam. A situação da população judaica nos estados germânicos iria piorar em decorrência do crescimento de um movimento conservador, nacionalista, romântico e cristão que idealizava a superioridade da nação alemã e do destino germânico.

Os judeus continuavam a ser vistos como “estrangeiros obscurantistas, que não compartilhavam das tradições germânicas e cristãs”. Assim, apesar da assimilação já estar ocorrendo em grande escala, os judeus alemães ainda vivenciavam uma intensificação do antissemitismo, endossado tanto pelo romantismo teórico – que pregava que o pertencimento à nação germânica era determinado pelo “compartilhamento do sangue e do solo” – como pelo racionalismo intelectual.

As circunstâncias econômicas e sociais da época também conspiraram para potencializar ainda mais a rejeição aos judeus. Proibidos de atuar em vários setores da vida econômica, estavam perfeitamente posicionados para se beneficiar do crescimento da economia em áreas como comércio,

finanças, indústria leve e transportes. Muitos se tornaram extremamente bem-sucedidos. A sociedade em geral passou a identificá-los com o liberalismo e a economia capitalista. Quando, no final do século 19, crescem os movimentos contra o liberalismo e a modernidade, os judeus tornam-se o bode expiatório ideal.

Na Europa Oriental, então dominada pela Rússia Imperial, o ódio aos judeus era milenar, virulento e endêmico. A discriminação e violência contra

eles eram uma constante, pois tanto os Czares como a Igreja russoortodoxa as tinham incorporado em seu âmago. No século 19 vão engrossar o caldo antissemita clássico os conflitos no âmbito econômico. À medida que o Império Russo entra num período de certa industrialização e modernização econômica, os empresários judeus passam a se destacar no comércio, no sistema bancário, na construção de ferrovias. Mas a modernização se choca com o protecionismo de uma sociedade agrária arcaica, dominada por uma nobreza feudal, e a vida da população judaica volta piorar quando o Czar Alexandre II dá uma guinada reacionária. Este último adota as ideias do nacionalismo eslavo – uma nova corrente de pensamento reacionário que pregava uma volta aos valores russos e desprezava qualquer ideia liberal.

Foi ainda nesse período, em 1895, que os agentes da Okhrana, a polícia secreta do czar, criaram um famigerado panfleto: Os Protocolos dos Sábios de Sião, sobre uma suposta conspiração judaica para dominar o mundo. Uma mentira cujas terríveis repercussões chegaram aos nossos dias.

No final do século 19 e início do século 20, a Rússia czarista é palco de pogroms sanguinários. Por conta do intenso sofrimento que lhes é imputado, cerca de 2,5 milhões de judeus abandonam a Rússia entre 1881 e 1914.  Os que lá permanecem, desiludidos em sua maioria, são identificados como capitalistas ou se engajam nos movimentos de esquerda.

Em 1917 a Revolução Bolchevista pôs fim ao regime czarista. O fato de haver inúmeros judeus

Antissemitismo 58
CENA DA CHAMADA “profanação DA HÓSTIA” TENDO, AO FUNDO, UMA FAMÍLIA SENDO QUEIMADA NA FOGUEIRA, PAOLO UCCELLO, C. 1465 Judeus ALEMÃES queimados vivos NA IDADE MÉDIA. Xilogravura colorida

entre as lideranças revolucionárias bolcheviques vai repercutir negativamente no futuro, criando novos elementos para alimentar o vírus do antissemitismo.

E, após a Revolução de 1917, os Protocolos dos Sábios de Sion adquirem vida própria. Quando a elite russa foge para outros países da Europa, leva consigo o panfleto, apresentado como “prova” de que a Revolução Bolchevique era parte de uma suposta conspiração judaica mundial. A partir desse período, os judeus passam a ser acusados, absurdamente, de serem capitalistas e comunistas.

Antissemitismo racial

Nos séculos 19 e 20 o antissemitismo assumiu uma nova modalidade – a racial. O problema judaico deixara de ser da alçada da religião cristã, não adiantando mais buscar refúgio no batismo uma vez que a “natureza racial, inata” de um judeu não podia ser mudada. O que os arianos não podiam permitir era que a “mácula” do “sangue judaico” contaminasse a “pureza do sangue germânico”. A disseminação dessas ideias, que incluíam o apoio à eugenia, alimentaram o antissemitismo e pavimentaram o caminho em direção ao Holocausto.

A 1a Guerra Mundial eclodiu em agosto de 1914 na Europa. Além da Alemanha, o conflito envolveu a França, Inglaterra, o Império Austro-Húngaro, Sérvia, Itália, o Império Russo e Otomano e os Estados Unidos. Havia judeus lutando em todos os exércitos.

O início dessa guerra levou a uma breve integração dos judeus nos países centro-europeus, que viviam uma onda de solidariedade

nacional e uma “pasteurização” das identidades. Na Alemanha era grande o apoio público à guerra e todos, judeus e nãojudeus, engajados no esforço militar das Potências Centrais – coligação formada entre a Alemanha e a Áustria-Hungria – eram vistos sob a ótica do nacionalismo. Mas, à medida que foi-se arrastando o conflito – que os alemães haviam previsto vencer em alguns meses – eles começaram a procurar “culpados”. Surgiram rumores de que a culpa era dos

ainda mais as acusações de serem os responsáveis pela “covarde rendição” frente à França e Inglaterra e às condições impostas pelo Tratado de Versalhes.

O caldo antissemita nesse período foi ainda mais alimentado pela crise econômica que se seguiria à 1a Guerra Mundial, bem como pela humilhação imposta aos perdedores e pelas tensões oriundas da criação de uma infinidade de novos estados fundamentados na identidade nacional de cada povo.

judeus. A frustração com a derrota causa amplas tensões na Alemanha e Áustria, criando, assim, um terreno ainda mais fértil para a busca de culpados.

A derrota das Potências Centrais, aliada à presença de judeus entre as principais lideranças revolucionárias bolcheviques que derrubaram o Czar, alimentaria o mito da existência de uma “conspiração judaico-bolchevique”.

A destacada atuação de políticos judeus nos governos da República de Weimar e da Áustria iria reforçar

ilustração ANTISSEMITA

REVISTA MORASHÁ i 117 59 DEZEMBRO 2022
PRES. ROOSEVELT (EUA) ADVERTE O CZAR NICOLAU II SOBRE TRATAMENTO DADO AOS JUDEUS: “PARE COM SUA OPRESSÃO CRUEL DOS JUDEUS!” - QUADRO DE EMIL FLOHRI (1869-1938) NOS protocolos dos SÁBIOS de SIÃO: O PERIGO JUDAICO, 1921

A ascensão do partido nazista, na Alemanha, e a eleição de Hitler, em 1933, deram início a uma nova etapa na história do antissemitismo e de nosso povo. Ao ser adotado pelo Nazismo, o antissemitismo racial gerou a maior catástrofe que já se abatera sobre os judeus da Europa. Os nazistas adotaram a deplorável “teoria” de que “ser judeu” era uma característica racial, sendo assim, a solução para resolver a “questão judaica” deixava de ser o clássico binômio “conversão ou expulsão”. Mesmo convertido ao Cristianismo, um judeu não mudaria suas características raciais. Portanto, a “questão judaica” só poderia ser resolvida de uma forma mais drástica – mediante uma “Solução Final”.

As lições incorporadas em dois mil anos de perseguições, expropriações e os incontáveis massacres não seriam capazes de preparar os judeus

1 O endônimo “rom” foi adotado pela União Romani Internacional e pelas Nações Unidas após o ano de 1971. O primeiro Congresso Mundial Romani, em 1971, rejeitou todos os exônimos do povo Romani, incluindo “ciganos”, por suas conotações negativas e estereotipadas.

para o que estava por vir. De forma progressiva, através de medidas legais e com a conivência e apoio da maioria da população alemã, os judeus foram sendo segregados, destituídos de cidadania, obrigados a emigrar e, finalmente, marcados para o extermínio.

A mesma política antissemita foi implantada nos demais países

da Europa ocupados pelos exércitos de Hitler. As medidas mais mortais foram implantadas nos países da Europa Oriental, onde vivia a maior parte da população judaica do mundo, à época. Mais de seis milhões de judeus foram assassinados pelos nazistas e seus comparsas durante a 2a Guerra Mundial. O Holocausto, termo adotado para definir o extermínio dos judeus europeus, foi o ápice de um processo, mas infelizmente não o seu final.

Antissemitismo pósSegunda Guerra

Nos anos que se seguiram ao final da 2a Guerra, o mundo se viu obrigado a reconhecer a enormidade do crime cometido contra nosso povo, bem como contra outros grupos discriminados pelos nazistas, como o povo Romani1 e os homossexuais. Foi promulgada a Declaração Universal dos Direitos Humanos e criada a Convenção para a Prevenção e Punição do Crime de Genocídio. E, em 1947, as Nações Unidas votaram a Partilha da Palestina, então sob Mandato Britânico, criando um Estado Judeu, Israel.

Antissemitismo 60
1. Cartaz antissemita “Os judeus são nosso infortúnio”, década de 1920. 2. Ilustração antissemita de um judeu segurando moedas de ouro, um chicote e a União Soviética. DER EWIGE JUDE, 1937 3. Cartaz antissemita “Ele é culpado pela guerra”, Hans Schweitzer, 1943 ENSINAM ÀS CRIANÇAS “COMO RECONHECER” UM NARIZ JUDEU. LIVRO “DER GIFTPILZ” (O COGUMELO VENENOSO)
1. 2. 3.

No início da década de 1960, a Igreja Católica deu os primeiros passos em direção a nosso povo. Em 1959, um documento de iniciativa do Papa João XXIII eliminou a referência a “pérfidos judeus” na liturgia da Sexta-feira Santa, dando início a um processo para revisar os ensinamentos católicos sobre o Judaísmo e os judeus. O Concílio Vaticano II, com sua encíclica “Nostra Aetate”, mudou a relação da Igreja com os judeus depois de séculos de antijudaísmo e acusações de sermos o povo responsável pela morte de Jesus.

Mas, após a pausa provocada pelo impacto do Holocausto, que exterminou os judeus europeus, ressurgiram as antigas acusações contra nosso povo. Muitas delas são baseadas nas fabricações encontradas nos Protocolos dos Sábios de Sião: o judeu como elemento egoísta, avarento, manipulador, a personificação do mal.

Agora, quase 80 anos após o final da 2ª Guerra Mundial, podemos identificar uma clara mudança na forma como se expressa o antissemitismo, que deixou de ser baseado na etnicidade e nas teorias científicas raciais que pregavam a melhoria da raça humana.

Na União Soviética, após um breve flerte com o recém-criado Estado Judeu, o antissionismo se estabeleceria como a nova face do antissemitismo. Nos Estados Unidos, os judeus passaram a ser identificados com o liberalismo e o radicalismo políticos, alinhados com a esquerda. Na década de 1960, houve um forte engajamento de judeus liberais na luta contra a discriminação dos afro-americanos, que, infelizmente, foi apagado da memória dos afro-americanos.

Pois, apesar dessa luta e dos esforços promovidos por Martin Luther King, parte da liderança negra identifica os judeus como membros da elite branca. E, no contexto do conflito no Oriente Médio, a liderança negra assumiu uma posição contra os supostos “opressores colonialistas brancos”, esquecendo-se de que em Israel vivem judeus negros, e declaradamente a favor dos árabes e palestinos.

As limitações morais impostas pelo Holocausto às manifestações de antissemitismo geraram um novo instrumento utilizado por todo antissemita que se preze: a negação do Holocausto. A ideia de que o antissemitismo, quando não combatido, pode provocar um genocídio como o Holocausto ficou tão enraizada na sociedade ocidental que, apenas através da negação desse extermínio, ou de suas terríveis proporções, os

REVISTA MORASHÁ i 117 61 DEZEMBRO 2022
“FORA COM A MENTALIDADE JUDAICA DE PECHINCHAR”. CARTAZ PROMOVENDO A “ARIANIZAÇÃO” DO COMÉRCIO ALEMÃO, HANS SCHWEITZER, C. 1936-37 Mulheres e crianças judias chegam em caminhões ferroviários a AuschwitzBirkenau

antissemitas contemporâneos são capazes de fazer qualquer acusação contra os judeus. Mas o sistema judicial de muitos países tem estado alerta e em vários, inclusive no Brasil, a negação do Holocausto tem sido condenada nos tribunais.

Na Ásia surgiu uma forma curiosa de antissemitismo, caracterizada pela ausência de judeus e, portanto, baseada na sua imagem. Reflete a crença no suposto poderio judaico, seu domínio das finanças e da mídia, mas também demonstra uma admiração pela forma como um grupo, numericamente tão reduzido, foi capaz de alcançar resultados tão significativos.

Nos países islâmicos sempre houve um antijudaísmo. Os judeus, assim como outros não muçulmanos, eram considerados pelo Islã cidadãos de 2ª classe, e sua vida ficava à mercê dos governantes. Apesar de viveram melhor de que seus irmãos na Europa, os judeus nos países islâmicos também vivenciaram períodos de tolerância, seguidos

de outros de humilhações, perseguições e destruição.

No século 19 o antissemitismo cristão alastrou-se pelo Oriente Médio e, com o fortalecimento do nacionalismo árabe, a vida dos judeus nos países muçulmanos piorou sensivelmente. Os países árabes não se envolveram no massacre europeu, mas houve casos de atrocidades com ranço nazista perpetradas contra comunidades judaicas, como o pogrom no Iraque, em 1941.

Após a aprovação da Partilha da Palestina em 1947, a situação das comunidades judaicas nos países árabes tornou-se insustentável e, nos anos seguintes, cerca de 900 mil judeus tiveram que abandonar os países onde viviam. Comunidades que existiam por mais de dois milênios simplesmente desapareceram.

Nos países árabes o antissemitismo assumiu a roupagem do confronto contra Israel, transformando-se em antissionismo. E lá o fenômeno tem que ser denominado de antijudaísmo, porque em teoria o termo antissemitismo deveria incluílos – apesar do fato desse termo só ser usado em relação aos judeus. Com o surgimento do Estado de Israel, em 1948, a expressão de rejeição aos judeus foi transferida das sociedades das quais faziam parte, como minorias, para a condenação das ações do Estado Judeu, Israel, ou a negação de seu direito à existência. Os inimigos agora são Israel – e os sionistas, seus defensores.

O Neo-antissemitismo

Ataques ao conceito do Sionismo como movimento de autodeterminação do Povo Judeu e sua definição como uma suposta “guerra de extermínio” contra os árabes são meramente um reforço do conceito tradicional de antissemitismo, expresso através de uma nova ótica. Esta postura antiisraelense poderia ser denominada de “neo-antissemitismo”, para diferenciá-la do antissemitismo tradicional, milenar, religioso e racial.

Esta modalidade caracteriza-se pela demonização, deslegitimação e difamação de Israel como Lar Nacional do Povo Judeu. Acusações

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Comício e marcha de protesto “NO HATE” (ÓDIO, NÃO), EM S. FRANCISCO, 2017. NO CARTAZ: “Meus avôs sobreviveram aos nazistas e eu também sobreviverei” Grafiti COM A PALAVRA 'mentirosos' PINTADA no pôster do Dia do Memorial do Holocausto, Londres, 2015

absurdas de genocídio contra o povo palestino (uma das populações que mais crescem no Oriente Médio) e ofensivas equiparações com as ações dos nazistas compõem alguns dos mais sórdidos instrumentos desta política deste novo antissemitismo. Essa nova versão de ódio contra os judeus identifica Israel e a disputa com os palestinos como a origem de todos os males no Oriente Médio, e ignora a miríade de conflitos que assolam a região desde antes da criação dos estados nacionais, após a 1a Guerra Mundial.

Uma das mais sérias facetas do neoantissemitismo é a negação ao direito de existência do Estado Judeu, Israel, único entre as quase 200 nações do mundo, e a utilização de critérios desproporcionais na crítica contra este país. Prova da existência dessa nova modalidade são as infindáveis condenações de que Israel é alvo na ONU e em outros organismos internacionais. E, mesmo após o desaparecimento da União Soviética e do bloco de esquerda, essas contínuas condenações representam um sintoma da resiliência do antissemitismo nesses organismos.

Outra faceta do antissemitismo contemporâneo está representada pelo ressentimento de certas camadas da sociedade contra o “bom desempenho profissional” dos judeus e suas inúmeras contribuições em diferentes áreas.

No Brasil

A preocupante multiplicação de eventos antissemitas em nosso entorno nos leva a abordar mais uma vez um tema pouco discutido, mas sempre presente, de forma subliminar, na sociedade brasileira. Vivemos em uma sociedade que foi fundada e subsistiu muito tempo

sob o mito do caldeirão racial, da democracia racial, do “homem cordial” de Sérgio Buarque de Holanda. E, assim como o racismo tem sido negado ao longo dos séculos, também o antissemitismo se manteve como um “tabu”, até que estudos mais recentes demonstraram a realidade da política migratória do governo Vargas e as mudanças na política externa brasileira destacaram a ligação entre o antissemitismo contemporâneo e o antissionismo.

A pandemia levou ao aumento do antissemitismo no Brasil, mostrando que temos que permanecer vigilantes contra essa forma persistente e insidiosa de discriminação.

Um importante texto que está sendo agora publicado no Brasil, A Face Mutável do Antissemitismo, de autoria de Walter Laqueur, nos deixa uma importante mensagem:

“Por mais que tentem disfarçá-lo ou justificá-lo, o antissemitismo é algo que tem que ser reconhecido e combatido, pois os judeus servirão sempre de ‘canário na mina de carvão’, o sinal de alerta. Nos países onde forem discriminados e perseguidos serão, invariavelmente, as vítimas precursoras de uma ação mais ampla contra minorias vulneráveis e desprotegidas”.

REVISTA MORASHÁ i 117 63 DEZEMBRO 2022
“ANTISSEMITISMO É UM CRIME. ANTISSIONISMO É UMA OBRIGAÇÃO”, CARTAZ EM manifestação antissionista em Toronto, Ontário Manifestação contra o ódio e o antissemitismo no Holocaust Memorial Park, no Brooklyn, NY, 13 de março de 2016 SAMUEL FELBERG é Diretor Acadêmico do StandWithUs Brasil, Doutor em Ciência Política pela USP, Pesquisador do Centro Moshe Dayan da Universidade de Tel Aviv

Recordando Sefarad

Durante sua longa história, os judeus têm vivido nos quatro cantos do mundo. No entanto, apenas a quase mística terra de Sefarad emprestou seu nome a uma significativa parcela do nosso povo. A milenar história dos judeus sefaradim é pouco conhecida, inclusive na Espanha, onde a Coroa Espanhola e a Igreja procuraram, após tê-los EXPULSADO do país em 1492, apagar qualquer traço de vida judaica medieval de suas terras.

Hoje, pouco restou em Sefarad – nome geralmente atribuído pelos judeus à Espanha, mas que, na verdade, abrange toda a Península Ibérica – da glória do judaísmo medieval que floresceu em suas terras. A milenar saga dos judeus dessa origem está enterrada sob séculos de antissemitismo e silêncio; suas belas sinagogas foram convertidas em igrejas e conventos; os cemitérios e bairros judeus, desaparecidos.

Durante 500 anos a trajetória e contribuição dos judeus dessa origem ficaram vivas apenas no coração e na alma dos descendentes dos judeus expulsos da Espanha no final do século 15. Mas, aos poucos, a história dos judeus em Sefarad, que se iniciou na Antiguidade clássica quando o rei Salomão reinava sobre Judá, está vindo à tona. Na própria Espanha tem havido um interesse em trazer à luz essa história e recuperar um patrimônio cultural nacional até então esquecido ou enterrado.

Com esse intuito, inúmeros municípios, onde na Era Medieval viviam judeus, apoiados por historiadores e pesquisadores espanhóis, uniram-se numa entidade chamada Rede de Judiarias da Espanha. O Instituto de Turismo da Espanha, Turespaña, uma agência oficial do

Governo espanhol, tem apoiado a Rede de Judairias desde o início, promovendo no mundo todo “los Camiños de Sefarad”. Os nomes das cidades que, até agora, fazem parte dessa Rede nos remetem a nosso passado: Toledo, Tudela y Tui, Barcelona, Avila, Lucena, Lorca, Segóvia, Bejar, Cáceres, Leon, Hervás, Jaén, Lorca, Lucena, Monteforte de Lemos, Plasencia, Ribadavia, Sagunto, Tarazona, Estella-Lizarra. Podemos citar o nome das centenas de grandes rabinos, sábios e cabalistas, poetas e cientistas que viveram nesses lugares, e das importantes obras teológicas que produziram, dos poemas litúrgicos que até hoje os sefardim rezam em suas sinagogas.

Como vamos ver adiante, no decorrer dos séculos Sefarad foi lar de numerosa população judaica. No século 12, estima-se que 90% da população judaica mundial vivia na Península Ibérica. Mas, em 31 de março de 1492, os Reis Católicos, Isabel de Castela e Fernando II de Aragão, publicaram o Edito de Expulsão. O Edito estipulava que a condição sine qua non para que judeus e mouros vivessem em seus domínios era a conversão ao Cristianismo.

No curto prazo de quatro meses, os 275 mil judeus1 que viviam em Sefarad tiveram que escolher entre a conversão ao Cristianismo ou o exílio. A escolha era

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terrível. Trair sua fé ancestral e seu povo ou abandonar a terra onde seus ancestrais haviam fincado raízes séculos antes do próprio Cristianismo lá se estabelecer.

As fontes divergem sobre os números, mas estima-se que 175 mil judeus tenham deixado aquelas terras na primavera e verão do ano de 1492, enquanto outros 100 mil optaram pela conversão. Entre os que escolheram o exílio, cerca de 120 mil foram para Portugal onde, cinco anos mais tarde, seriam convertidos à força por ordem do rei português. Não se sabe quantos entre os conversos permaneceram secretamente em Sefarad, preservando sua religião e identidade.

O que sabemos é que, durante o século 16, muitos deles conseguiram fugir para outras terras, onde se juntaram aos exilados.

A expulsão da Espanha e a conversão forçada em Portugal marcam o fim da saga judaica na Península Ibérica. Mais de 400 anos transcorreriam até que os dois países permitissem que um judeu pisasse em Sefarad. Até meados do século 19, qualquer um dos nossos que se aventurasse pela Península Ibérica estaria arriscando sua própria vida.

A identidade sefaradi

o fato de que, em toda a história judaica, não há uma outra identificação como essa e uma ligação tão forte e duradoura de nosso povo com outra terra que não fosse a Terra de Israel.

1 Não se conhece, ao certo, o número de judeus que viviam em Sefarad em fins do século 15. Alguns historiadores calculam em 200 mil; outros chegam a 350 mil.

Apesar da expulsão da Espanha ter sido uma das últimas de uma longa lista de expulsões que afetaram todos os judeus da Europa na Idade Média, a mesma constitui um capítulo à parte em nossa história. É consenso entre os historiadores

Como comprova a história dos povos, a identidade sefaradita dos desterrados deveria estar em vias de desaparecer duas gerações após a expulsão. Quando grupos populacionais migram para outros países, os filhos e netos de imigrantes gradualmente abandonam as tradições, hábitos e o idioma “da velha pátria”, adotando os do novo país. Isso, porém, não aconteceu no caso da Diáspora Sefaradi, que orgulhosamente preserva suas tradições há mais de cinco séculos.

Por que, perguntam-se os historiadores, os sefaradim mantiveram tamanha lealdade pela

REVISTA MORASHÁ i 117 65 dezembro 2022
TOLEDo
Acervo @redjuderias

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Espanha, um país que os expulsou e perseguiu, implacavelmente, apenas por serem judeus ou descendentes de judeus, e que, até há pouco, sequer reconhecia a grande injustiça que cometera contra nosso povo? O que representa Sefarad? Um lugar idílico envolto em mito? Um profundo orgulho da civilização que existiu em terras ibéricas na Era Medieval? A orgulhosa chama eterna dos trabalhos deixados por seus grandes sábios, rabinos e poetas?

No âmago da autodefinição sefaradita reside a saudade e a lembrança da Idade de Ouro da Cultura Judaica, um período cultural extraordinário surgido durante os séculos 10, 11 e a primeira metade do século 12, enquanto a Península Ibérica esteve sob domínio muçulmano e que os judeus procuraram replicar nos séculos seguintes nos Reinos Cristãos.

Os primórdios

É difícil precisar quando os judeus chegaram à Península Ibérica. O Tanach menciona que, no século 10 a.E.C., eram rotineiras as expedições de mercadores judeus para a Península Ibérica. E o profeta Ovadia utiliza o termo Sefarad quando se refere aos “judeus exilados de Jerusalém”.

Porém, apesar de termos registros sobre a presença judaica na Península Ibérica, as primeiras provas arqueológicas datam dos primeiros séculos da Era Comum, quando havia na Hispania, então uma província do Império Romano, prósperas comunidades judaicas.

O Arianismo é uma heresia cristã antitrinitária fundada no século 4 a.E.C. por Ario, um presbítero cristão de Alexandria, no Egito.

A população judaica na região aumentou com a chegada de milhares de prisioneiros judeus que Roma enviara para essa província após suas legiões terem derrotado as rebeliões judaicas, durante as Guerras Judaico-romanas (70 e 135 E.C.). E, nas décadas seguintes, há outro contingente de imigração judaica vinda do Norte da África e do Sul da Europa. Há registros de comunidades judaicas nas regiões de Granada, Córdoba e Sevilha, ao Sul, bem como em Toledo e Barcelona, ao Norte, nos séculos 2 e 3. Documentos dos primeiros concílios da Igreja realizados na Península indicam que os judeus viviam livremente entre os cristãos.

O colapso do Império Romano do Ocidente permite que os visigodos – um grupo de tribos bárbaras germânicas – invadissem a Hispania,

no início do século 5. Não há fontes judaicas sobre o período do domínio visigodo, um dos mais obscuros da História Judaica. Tudo o que se sabe é originário de códigos legais e de registros dos Concílios Eclesiásticos visigodos. Da maneira e com a frequência com que os assuntos judaicos são abordados, fica claro que constituíam uma população vasta e influente e, num primeiro momento, “tolerada”.

A situação mudaria depois que Recaredo I, em 589, abandona o Arianismo2 e proclama o Catolicismo religião oficial do Reino. Os judeus são brutalmente perseguidos e sua situação se torna insustentável quando, no ano de 613, o rei Sisebut assina um decreto determinando a conversão forçada de toda a população judaica. Milhares são mortos, outros expulsos ou batizados à força. Esta foi a primeira experiência em Sefarad de conversão forçada em massa e é também o início do criptojudaísmo, pois a maioria dos judeus passam a viver secretamente sua fé e identidade.

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CHEGADA DO EMBAIXADOR À CORTE DO CALIFA ABD-AR-RAHMAN III, ONDE O JUDEU HASDAI IBN Shaprut EXERCE O IMPORTANTE PAPEL DE INTERMEDIÁRIO. ÓLEO, DIONISIO BAIXERAS VEERDAGUER, 1885

O domínio mouro de Al-AndaluS

Quando, em 711, o general mouro Tarik ibn Ziyad invade a Península Ibérica, para todos os efeitos não havia judeus declarados na região. Rapidamente o exército mouro conquista grande parte de Sefarad, que passa a fazer parte do Império Islâmico. Com a chegada dos muçulmanos, os judeus voltam a viver abertamente seu Judaísmo.

A dinastia dos omíadas se estabelece em Al-Andalus – denominação árabe dada à Península, e faz de Córdoba a capital. Governantes liberais que eram, os omíadas criam um ambiente de tolerância onde judeus, cristãos e muçulmanos conviviam em harmonia. Essa convivência possibilitou o florescimento de uma rica cultura cosmopolita e secular, fortemente contrastante com o obscurantismo vigente no restante da Europa, onde apenas a Igreja mantinha exclusivo domínio sobre toda as formas de conhecimento.

Considerados pelos omíadas como sendo um segmento útil e leal da população, os judeus, livres para viver onde quisessem e podendo exercer qualquer atividade econômica, ingressaram no comércio, finanças, política e administração pública. Tornaram-se conselheiros dos califas, diplomatas, generais, médicos, poetas, filósofos, tradutores, astrônomos, cientistas e cartógrafos assim como comerciantes, agricultores e artesãos.

A comunidade judaica de Sefarad acabou se tornando a mais populosa e rica fora da Babilônia, à medida que os judeus vindos da África, do Oriente e das demais partes da Europa se iam estabelecendo em AlAndalus.

A partir do século 8, o mundo judaico reconheceu que havia uma parte separada do Judaísmo, na Ibéria, que se autodenominava sefardita. É preciso ressaltar-se que a identidade sefaradi surgira séculos antes do estabelecimento da

entidade geopolítica conhecida como Espanha – coisa que só se tornaria realidade no final da Idade Média, quando Granada foi conquistada, os muçulmanos subjugados e seus inúmeros reinos cristãos unificados.

O século 10 é de extrema importância para o florescimento da identidade sefardita. No ano de 929, Abd-ar-Rahman III declara o Califado de Córdoba independente de Bagdá. O califa vai fazer de AlAndalus um importante centro econômico e cultural, onde os judeus iriam participar da prosperidade econômica e efervescência cultural que se seguiria.

O Califado atrai milhares de judeus vindos dos quatro cantos do mundo.

REVISTA MORASHÁ i 117 67 dezembro 2022
CÓRDOBA, BAIRRO JUDAICO típico pátio interno DE UMA CASA, EM CÓRDOBA, NO BAIRRO JUDAICO Logotipo da Rede das Judiarias, com a palavra Sefarad em metal usado em todos os locais onde, na Idade Média, viviam judeus

Nesse período havia importantes comunidades judaicas não apenas em Córdoba, Granada, Sevilha, Lucena e Toledo, mas em outras 40 cidades, muitas com suas próprias ieshivot. Foi nessa época que os laços que prendiam os judeus de Sefarad às autoridades gaônicas da Babilônia se afrouxaram e o judaísmo sefardita se torna religiosa e intelectualmente independente.

Sob o Califa Abd-ar-Rahman III o Judaísmo sefaradi entrou na chamada Idade de Ouro da cultura judaica. Um grande responsável pelo florescimento de nossa cultura foi Hasdai Ibn Shaprut (915-970). Um dos homens de confiança de Abd-ar-Rahman III, Ibn Shaprut era líder da comunidade judaica de Córdoba, e fundou a famosa ieshivá de Córdoba. Médico e diplomata, Ibn Shaprut traduziu todo o corpo do importante conhecimento médico existente à época, do latim ao árabe. Graças a esse seu trabalho, o califado passa a funcionar como centro científico independente.

Durante a Idade de Ouro da cultura judaica nessas terras, que duraria até primeira metade do século 12, os judeus criaram em Sefarad uma cultura extraordinária, atingindo altíssimos níveis em todos os aspectos do conhecimento religioso e secular. O judaísmo sefaradi combinava elementos que, em outras comunidades e em outra época seriam considerados contraditórios ou conflitantes.

Uma total devoção às leis e à tradição judaica e um vivo interesse pela teologia e filosofia judaicas conviviam com uma abertura à cultura geral, ao humanismo e às ciências naturais.

Houve uma proliferação de instituições acadêmicas judaicas e seus membros produziram centenas de obras, tanto no campo da filosofia e teologia judaica como em todos os ramos da ciência e da literatura. A lista dos rabinos, filósofos e poetas que viveram em Al-Andalus é imensa e suas obras se tornaram fundamentais para o Judaísmo. Podemos citar alguns: Solomon ibn Gabirol, Samuel ibn Nagrela Ha-Naguid, Bahya ibn Pakuda, Abraham bar Hiyya, Menahem ben Jacob ibn Saruq, Isaac ibn Shaprut, Judah Halevi, Joseph ibn Zaddik de Córdoba, Abraham ben Meir Ibn Ezra, Benjamin de Tudela e Moses ben Maimon, conhecido, também, como Maimônides ou o Rambam

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Ponte de pedra, do tempo dos romanos, sobre o rio Guadalquivir. Córdoba TRABALHO EM MADEIRA NESTA PORTA, COM UMA RICA ALDRAVA EM METAL. Bairro Judaico, CÓrdoba

Infelizmente o apogeu da cultura hispano-judaica irá coincidir com o crescimento do fanatismo religioso no restante do mundo islâmico. A dinastia dos omíadas desmorona quando berberes islâmicos tomam Córdoba. A ausência de um poder forte permite o estabelecimento em Al-Andalus de uma série de pequenos estados islâmicos. Nas décadas finais do século 11, os almorávidas, berberes islâmicos do norte da África, dominam toda Al-Andalus. Fanáticos e violentos, introduzem na Espanha muçulmana uma intolerância religiosa até então desconhecida.

A situação dos judeus torna-se precária, mas eles tinham muito a oferecer aos novos conquistadores em todos os setores, em particular na área administrativa e diplomática, e, com o tempo, voltam a ter um tratamento favorável. Assim, a primeira metade do século 12 assistiu ao apogeu da Idade de Ouro do Judaísmo sefardita.

O início do fim da vida judaica na Espanha muçulmana ocorrerá com a chegada em Sefarad, em 1146, dos almôadas, uma outra tribo berbere do Norte da África, cujo objetivo era aplicar rigidamente as leis do Corão.

O fanatismo religioso e a intolerância incondicional em relação aos não muçulmanos trouxeram grande sofrimento e destruição para as comunidades judaicas. Pela segunda vez na história de Sefarad, os judeus se veem obrigados – assim como os cristãos – a se converterem desta vez ao Islamismo, sob a ponta de espada. As sinagogas e ieshivot são fechadas e, os judeus, obrigados a usar roupas que os diferenciassem do restante da população.

As comunidades judaicas do sul da Espanha não conseguiram sobreviver à perseguição. Muitos judeus, entre os quais Maimônides, fogem para a África do Norte à procura de governantes muçulmanos mais tolerantes; outros fogem para o norte da Espanha, então sob domínio cristão.

Sob domínio cristão

Os muçulmanos jamais conseguiram dominar toda a Península, que, desde o século 9, estava dividida entre reinos cristãos, ao Norte,

e o domínio islâmico, ao Sul. E, no início do século 11, os cristãos retomaram as tentativas de reconquistar a Península Ibérica.

Durante os quase 200 anos da chamada Reconquista surgiram na Península importantes Reinos Cristãos, sendo os principais: Navarra, Castela, Aragão, Leão e Portugal.

Durante esse período da Reconquista os judeus ibéricos estavam em constante movimento. À medida que os mouros se defrontavam com o inimigo cristão, tornavam-se mais intolerantes em relação aos não-muçulmanos. Cada vez mais perseguidos e encurralados, os judeus procuram refúgio entre os cristãos que, naquele momento histórico, representavam o menor perigo. Assim sendo, trocaram o domínio islâmico, onde reinava uma intolerância ativa, pelo domínio cristão, apesar do enraizado antijudaísmo que reinava entre seus membros.

Nos primeiros estágios desse período, os judeus eram perseguidos, mas os governantes cristãos logo perceberam que a presença judaica era vital para a continuidade da vida urbana e econômica nas áreas reconquistadas.

REVISTA MORASHÁ i 117 69 dezembro 2022
ketubá. TUDELA, C. 1300 MAIMÔNIDES RETRATADO EM ANTIGA NOTA ISRAELENSE

Fluentes em árabe, assim como nos vernáculos utilizados nos Reinos Cristãos, os judeus eram os únicos que podiam agir como intermediários entre muçulmanos e cristãos. Criouse um tácito acordo: enquanto as populações cristãs cuidavam da agricultura e do pastoreio e os nobres dos assuntos de guerra, os judeus cuidavam da reorganização do Estado e da economia.

À medida que iam conquistando novos territórios, os reis cristãos oferecem aos judeus a proteção real e isenções fiscais. E, precisando repovoar as áreas conquistadas, os reis concediam terras aos que se estabeleciam em seu território.

Alfonso V de León (999-1027), por exemplo, atraiu judeus oferecendo terras, privilégios e liberdade. Na cidade de Léon os judeus atuavam na agricultura e viticultura, bem como no comércio têxtil e de pedras preciosas. Em Barcelona, tornaramse importantes proprietários de terras, chegando mesmo a possuir cerca de um terço das propriedades do condado.

Precisamos lembrar que até o final da Idade Média, a Península Ibérica era composta de inúmeras monarquias cristãs, independentes e rivais. E, cada um de seus governantes, em cartas

de direitos (fueros), determinava os direitos, “privilégios” e obrigações da população judaica que vivia em seus domínios. Os reis não tinham interesse em interferir na estrutura interna, autônoma e independente, das comunidades judaicas – conhecidas como aljama, mantendo o nome em árabe. O que lhes interessava era o montante de impostos pagos pelos judeus ao Tesouro Real. Os direitos e privilégios eram, porém, meras

concessões que podiam ser revogadas ou alteradas num piscar de olhos – uma situação que aconteceu em muitas ocasiões, em decorrência de pressões da Igreja ou da população cristã, que via o poder dos judeus como ofensivo e contrário à doutrina da Igreja.

Apesar do profundo antijudaísmo existente nos Reinos Cristãos, quando comparado com o resto da Europa eles ofereciam relativa

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SEGÓVIA À NOITE, VENDO-SE O ALCAZAR “A MICVÊ: FIEIS PURIFICAM OS CÁLICES”, HAGADÁ HISPANO-MOURISCA. CASTILHA, 1300 “GRUPO DE FIEIS SAINDO DA SINAGOGA”, ILUMINURA DA HAGADÁ DE SARAJEVO. ARAGÃO, 1350

segurança e estabilidade, bem como grandes oportunidades para os judeus. E, a partir do final do século 12, cresce o número daqueles que se refugiam nos Reinos Cristãos. Cresce também a esperança de ser possível reconstruir na esfera cristã o modo de vida que prevalecera em Al-Andalus, pois eles eram acolhidos de braços abertos pelos Reis.

Muitos judeus que haviam servido nas cortes dos califas passam a ocupar cargos importantes nos Reinos Cristãos. Os monarcas consideravam os judeus “confiáveis”, pois não representavam um perigo em termos políticos, como era o caso dos cristãos que podiam se aliar a outros reis ou nobres e tentar derrubá-los. Tampouco constituíam uma ameaça militar, como era o caso dos muçulmanos que poderiam vir a se aliar às forças mouras.

Cultos e dominando vários idiomas, os judeus tornaram-se conselheiros, administradores financeiros, inclusive de ordens religiosas católicas. Passaram a exercer as funções de diplomatas e intérpretes. Eram os únicos capazes de traduzir rapidamente os textos árabes para o idioma castelhano e catalão.

Essas atividades de tradução atingiram seu pico no reinado de Alfonso X de Castela, conhecido como “o Sábio” (1221-1284), em virtude de seu interesse nos estudos. Este rei convida os judeus para sua corte, com a missão de traduzir trabalhos do hebraico e do árabe. E estes tradutores judeus precisaram criar uma linguagem castelhana que pudesse acomodar a nova Filosofia e Ciência, uma vez que nem o espanhol vernacular ou o latim falado à época possuíam vocabulário adequado para os novos conceitos. Os judeus tornaram-se uma ponte

cultural e uma das principais forças da vida cultural judaica na Europa, além de constituírem um vínculo vital para a transmissão de obras clássicas gregas e romanas, assim como islâmicas, para a Europa cristã.

Nos Reinos Cristãos o status social e econômico dos judeus rapidamente voltou a ser o que havia sido em Al-Andalus levando, no entanto, mais tempo para que a vida cultural

voltasse a florescer. Contudo, não tardaram a surgir os comentaristas talmúdicos, bíblicos, haláchicos, os cabalístas e os poetas que produziram obras que influenciam até hoje todo o mundo judaico. Entre eles podemos citar: Moses ben Nachman, conhecido, também, como Nachmanides, ou o Ramban, Moses de Léon, Abraham ibn Daud de Toledo, Isaac ibn Sid, Solomon ibn Verga.

A vida judaica nos Reinos Cristãos

Protegida pela atitude benevolente dos Reis, a vida judaica floresce e toma corpo, dando origem a grande número de importantes e ricas comunidades nos Reinos Cristãos.

O rei Alfonso VI de Leão e Castela, o Bravo (1037-1109), é um dos tantos exemplos da atitude dos monarcas cristãos em relação à população judaica. Após reconquistar Toledo, em 1085, Alfonso VI não apenas garante aos judeus igualdade de direitos, mas lhes concede direitos desfrutados apenas pela nobreza. No século

REVISTA MORASHÁ i 117 71 dezembro 2022
CÁCERES, Extremadura, espanha MICVÊ, A PISCINA RITUAL. BESALÚ, GERONA

10 e 11, os governantes de Castela outorgam aos judeus, em muitos aspectos, condições de igualdade em relação aos cristãos, alguns chegando a exercer autoridade considerável sobre a própria população cristã.

O grande favoritismo pelos judeus do rei Alfonso VI, o Bravo, rei de Leão e Castela (1043-1109) despertou o ódio dos cristãos, bem como várias advertências papais. O exemplo de Alfonso VI em relação aos judeus foi seguido nos Reinos de Aragão e Navarra. Porém, mesmo nesse período, o antijudaísmo da população e as tensões latentes vão minar a situação favorável a nossos irmãos em Castela e Aragão.

Em Castela, durante o reinado de Alfonso VIII, o Nobre, os judeus chegam a exercer uma influência ainda maior. O rei permitiu aos que viviam em Toledo a construção da Sinagoga Ibn Shushan, hoje Santa María la Blanca. Em estilo

3 A arte mudéjar que se desenvolveu entre os séculos 13 e 16 na Península Ibérica combina e reinterpreta estilos artísticos cristãos (românico, gótico e renascentista) com a arte islâmica

arquitetônico mudéjar3, a sinagoga foi inaugurada em 1180. Na segunda metade do século 15, foi convertida em Igreja e atualmente é um museu. Em 2013 a comunidade judaica de Toledo pediu ao Arcebispo Católico Romano, Dom Braulio Rodriguez Plaza, a transferência e custódia do local para eles. Comunicaram oficialmente que seu interesse não era recuperar Santa María la Blanca como local de culto, mas como “gesto simbólico”. No entanto, até hoje a Igreja Católica não atendeu sua solicitação.

No século 13, os judeus haviam alcançado posições de grande poder político, econômico e social muitas vezes superior aos cristãos. À medida que crescia a importância da população judaica crescia também o ressentimento dos cristãos em relação ao poder alcançado por seus membros. O papado passou a pressionar os governantes pedindo a adoção de medidas mais duras contra eles, mas, cientes do valor dos judeus nas finanças de seus reinos, os reis não cediam às pressões. Entre outros, estima-se que entre 35 e 60%

comunidades 72
ARCOS BRANCOS DA BELÍSSIMA Sinagoga IBN SHUSHAN. Erguida em 1180 em estilo arquitetônico mudéjar é HOJE CONHECIDA COMO SANTA MARIA LA BLANCA, TOLEDO
Acervo @redjuderias
Interior da Sinagoga de Córdoba erguida em estilo mudéjar foi inaugurada em 1315

dos recursos de cada reino fossem provenientes de impostos pagos pela população judaica.

A história da Península Ibérica chegou a um ponto crucial quando, no século 13, Ferdinando III (1217-1252), de Castela, e Jaime I (1213-1276), de Aragão, concluem a Reconquista. Nas cidades conquistadas, Ferdinando III encorajou os judeus a usarem seus talentos a serviço da Coroa, além de lhes conceder terras após conquistar Sevilha. E, apesar da proibição da Igreja à construção de novas sinagogas, ele permitiu que os judeus de Córdoba construíssem uma nova sinagoga, magnífica. Erguida em estilo mudéjar, a Sinagoga de Córdoba foi inaugurada em 1315.

É difícil caracterizar a vida judaica nos anos que se seguiram ao término da Reconquista, mas as determinações legais do período, apenas moderadamente favoráveis à população judaica, sinalizam o início do fim de uma era de tranquilidade e tolerância religiosa em Sefarad

Ao longo do século 13, as atitudes contra os judeus tornam-se mais abertas e constantes e há um fortalecimento do poder da Igreja que queria neutralizar os benefícios concedidos aos judeus. Inúmeros padres e frades percorrem a Península proferindo sermões inflamatórios contra eles, retratandoos como verdadeiras “encarnações do diabo”, ou, no mínimo, seus parceiros no mal, seres malignos que “tramavam constantemente a destruição do Cristianismo”. Esse retrato extremamente danoso se foi disseminando por toda parte – na arte e nos ornamentos arquitetônicos, na música e na literatura, assim como nos cortejos religiosos, nos sermões semanais

e nos rumores espalhados pelos padres.

Em tal atmosfera, não surpreende que os judeus recebessem a culpa por todo tipo de desastres naturais. Quando, em 1348, a Peste Negra varreu a Europa matando um terço da população, os judeus são acusados de espalhar a doença envenenando os poços. Isto, mais a profanação da hóstia e o libelo de sangue foram as acusações antissemitas mais graves contra eles durante o período medieval. Pouco depois, explodiria a violência em Barcelona e outras cidades da Catalunha. Contudo, os

judeus de Sefarad não são alvo do tipo de perseguições que sofreram seus irmãos no resto da Europa.

O crescente antijudaísmo não impedia os reis cristãos de manter judeus a seu serviço nem tampouco de conceder privilégios a seus súditos da comunidade judaica. Em Castela, por exemplo, Pedro I, o Cruel (1334 -1369), deu a permissão a Dom Samuel Meir ha-Levi Abulafia, seu tesoureiro-chefe, de construir uma sinagoga particular em Toledo, em 1357. Erguida em estilo mudéjar foi posteriormente chamada de El Transito

REVISTA MORASHÁ i 117 73 dezembro 2022
Sinagoga Ha-Levi, posteriormente chamada de El Transito Sinagoga Ha-Levi. Erguida em 1357 em estilo mudéjar foi posteriormente chamada de El Transito

Mas, a intolerância religiosa se alastrava rapidamente e a região mais tolerante da Europa, onde muçulmanos, cristãos e judeus viviam lado a lado, torna-se, no século seguinte, a mais intolerante de todas.

Os pogroms de 1391

Em junho de 1391, a violência antijudaica explode em Sevilha e espalha-se rapidamente. Os cristãos oferecem aos judeus uma única saída para escapar da morte: a conversão. Em Castela poucas comunidades foram poupadas e a comunidade judaica de Aragão apenas escapa da total destruição graças à intervenção do Rabi Hasdai Crescas (c. 1340-1410), uma das principais autoridades rabínicas de seu tempo

Variam as estimativas sobre o total da população judaica que vivia em Sefarad no final do século 14, mas os historiadores acreditam que, quando a calma foi restaurada – um ano após os massacres – cerca de 100 mil haviam sido mortos, outros 100 mil se convertido e apenas 100 mil haviam sobrevivido como judeus. Até meados de 1415 houve outras 50 mil conversões.

O judaísmo espanhol jamais voltaria à condição que desfrutava antes de 1391. Sobreviveria durante mais um século devido à determinação dos monarcas de Castela e Aragão em proteger as comunidades judaicas, e ao reconhecimento dos pequenos centros urbanos de que lhes era favorável a presença de uma comunidade judaica.

Uma fonte de prolongada angústia para os judeus e de antagonismo por parte da população cristã era a presença dos novos convertidos, conhecidos como conversos.

O conceito de limpieza de la sangre (pureza de sangue) passa a ser incorporado na vida espanhola. Para um cristão “provar sua pureza de sangue” era preciso comprovar que não havia nenhum judeu em sua linhagem. A política de limpieza de la sangre será adotada primeiramente, em 1449, em Toledo, com o banimento de cargos oficiais dos conversos e seus descendentes.

Querendo “preservar” os cristãos de toda e qualquer “contaminação” judaica, a Igreja colocava um número cada vez maior de obstáculos na interação entre eles e os cristãos, provocando, assim, o isolamento cada vez maior da população judaica.

Em 1412 novas leis são outorgadas no Reino de Castela e Leon visando minar a vida econômica dos judeus e restringir as relações entre a população crista e a judaica. Para separá-los fisicamente, as autoridades despejaram os judeus de seus bairros. Em meados do século 15, ainda havia numerosas comunidades nas principais cidades (Sevilha, Toledo, Burgos), mas os judeus estavam mais dispersos por várias cidades menores.

A história dos judeus na Espanha vai entrar em sua etapa final em outubro de 1469, quando Isabel de Castela

se casa com o príncipe Fernando de Aragão. Em 1474, Isabel ascende ao trono de Castela e, cinco anos depois, Fernando se torna rei de Aragão. De 1479 em diante, o casal governa o que era, de fato, um único reino. E, uma vez consolidada sua posição política, os Reis decidiram agir para resolver a questão dos conversos e da “contaminação” judaica. Treze anos mais tarde, em 1492, os Reis vão expulsar os judeus de Sefarad, brutalmente desarraigando uma extraordinária minoria que tanto contribuíra para a civilização, bem como à economia do que iria se tornar a nação espanhola.

Na próxima edição, Morashá continuará com este vibrante relato da vida de uma das mais intensas comunidades judaicas da Idade Média.

BIBLIOGRAFIA

Cohen, Malcolm, A Short History of the Jews in Spain, eBook Kindle

Gerber, Jane S., The Jews of Spain, eBook Kindle

Morashá agradece o apoio e contribuição da Rede de Judiarias na confecção desta matéria, bem como na cessão das imagens que a ilustram.

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AS MURALHAS DE ÁVILA DATAM DE SUA CONSTRUÇÃO, NO SÉC. 12

Desejo cumprimentá-los pela excelência da revista que, por tantos anos, preserva seu valor e qualidade editorial das matérias em prol de nossa comunidade e do conhecimento coletivo.

Parabéns e obrigado a toda a equipe do Morashá pelo excelente trabalho e por nos dar o mérito de receber estas revistas onde o capricho se nota desde as lindas capas, aos mínimos detalhes e beleza das edições, fotografias etc.  De forma geral, gosto e aprendo muito com os conteúdos religiosos dos artigos  iniciais e os políticos também, mas, em sua última edição,  me emocionei muito ao ler o artigo sobre Barbra Streisand e descobrir detalhes que até então desconhecia, mesmo sendo um grande admirador do seu trabalho e um apaixonado  por música. Agora consigo entender melhor o que tem por trás da intensidade e beleza do trabalho desta brilhante atriz. Parabéns e Kol Hacavod ao trabalho de vocês e seus colaboradores!!

Acompanho a revista Morashá on-line há um tempo e tem sido muito relevante para os meus estudos junto de minha família. Quero parabenizar por este trabalho de qualidade que desempenham. É uma linda missão.

Sempre com muito entusiasmo recebo a Revista Morashá, desde a sua edição primeira. Há quase seis anos vivendo em Israel ainda me emociono com a sua chegada em meu novo lar. Parabéns pela qualidade, originalidade dos artigos e alto nível dos redatores.

Gostaria de agradecer sua contribuição para enriquecer os acervos da nossa Biblioteca com o envio das quatro unidades das revistas Morashá Ressaltamos que a doação dessas obras será valiosa para promover a leitura.

Marcelle da Silva Coelho Queiroz Gerente do Sistema Estadual de Bibliotecas Públicas do Espírito Santo

Recebemos a Revista Morashá - ed.111, jun. 2021, enviada a esta Fundação. Agradecemos esta importante contribuição para a preservação e a guarda da Coleção “Memória Nacional”, composta pela produção intelectual do país.

Divisão de Depósito Legal Fundação Biblioteca Nacional C. de Processamento e Preservação Coord. de Serviços Bibliográficos

Fomos presenteados por um grande amigo com uma edição antiga (edição 98) da revista Morashá e gostamos muito. Conteúdo genuíno acerca do nosso povo que certamente nos proporcionará mais conhecimento e riqueza espiritual.

Revista Morashá é o periódico de melhor qualidade e envergadura sobre os judeus, o judaísmo, literatura, história e cultura judaica publicado no Brasil. Certamente ela deve figurar entre as revistas judaicas de maior relevância a nível mundial.

Gabriel Antônio Rodrigues Emediato Uberlândia - MG

Sou muito grata por receber a Morashá, além de sentir-me privilegiada pela riqueza de conteúdo e beleza de cada edição. No número 115  (junho de 2022), sobre Shakespeare e os Judeus,  gostei de encontrar o nome do médico Heitor Nunes, um dos destacados membros da comunidade de conversos portugueses, na Inglaterra, no reinado de Henrique VIII. Um dos seus descendentes, João Nunes da Costa, foi um dos conversos que aportaram no Brasil no século 18, tendo se estabelecido em Teixeira, Paraíba, cidade de origem da família do meu pai, Vicente Nunes Cordeiro. Tal confirmação me trouxe grande alegria. Lourdes Cordeiro RECIFE - PE

Comunicamos o recebimento de dois exemplares da revista Morashá 116. Aproveitamos a oportunidade para agradecer pelo envio da referida publicação, com destino ao nosso acervo.

Adoro a revista. A cultura, artigos. A edição de 116 estava maravilhosa. O suplemento fantástico.

Tânia Schelling dos Santos Campinas - SP

Agradeço o recebimento permanente desta excelente revista.

Marcelo Kozmhinsky

Centro Israelita de Pernambuco

Sinagoga Beit Chabad Recife Recife - PE

75 dezembro 2022 REVISTA Morashá i 93
Diogo Oliveira Sinagoga Isaac Bennesby Sociedade Israelita de Rondônia. Porto Velho - RO Professor Paulo Clarindo Presidente CLUBE DO LIVRO São João de Meriti - RJ

Sempre com muito entusiasmo recebo a Revista Morashá, desde a sua edição primeira. Há quase seis anos vivendo em Israel ainda me emociono com a sua chegada em meu novo lar. Parabéns pela qualidade, originalidade dos artigos e alto nível dos redatores.

Vivian Blankfeld Israel

Com muita satisfação venho recebendo a Revista Morashá, a qual considero ser atualmente a melhor publicação judaica do país.

Fabiane Norah Schnaid Steinbruch Londrina - pr

Minha Mãe é uma leitora assídua de vossa revista. Os senhores fazem um trabalho extraordinário!!! Novamente, nossos agradecimentos!

Ester Krishevsky Harish – Israel

Recebo a linda e significativa Morashá desde seu lançamento. Desejamos continuado sucesso à revista

Paulo S. Cohen Aguinsky Viamão-RS

A Morashá é uma das melhores publicações do Brasil. A profundidade das matérias me impressiona e não estou falando apenas do mundo judaico. Poucas revistas no Brasil têm a excelência que vocês possuem.

Paulo Roberto Feldmann São Paulo - SP

Cumprimentá-los pela excelência da revista que, por tantos anos, preserva seu valor e qualidade editorial das matérias em prol de nossa comunidade e do conhecimento coletivo.

David Léo Levisky São Paulo – SP

Agradecemos a gentileza no envio de vossa revista Morashá, que fica exposta em nossa estante de revistas para consulta gratuita de nossos leitores. Biblioteca Municipal Paul Harris São Caetano do Sul - SP

A Morashá é uma revista maravilhosa, recebo e gostaria de continuar recebendo.

Ester Sznajder Kutner São Paulo - SP

Meu pai, Matheus Ajzenberg, de 89 anos, aprecia muito a leitura da Morashá

Gladys Ajzenberg São Paulo - SP

Conhecemos a revista Morashá, por ocasião do nascimento do nosso neto no Hospital Albert Einstein. Interessamo-nos muito pela cultura judaica.

Silvia Elisabeth Ferronato Londrina - PR

Sempre com muito entusiasmo recebo a Revista Morashá desde a sua edição primeira. Há quase seis anos vivendo em Israel ainda me emociono com a sua chegada em meu novo lar. Parabéns pela qualidade, originalidade dos artigos e alto nível dos redatores.

Vivian Blankfeld Israel

Gostaria apenas de agradecer a Morashá, revista de grande conteúdo e sabedoria Judaica.

Nara Weiss

Piracicaba - SP Muito obrigada pelo envio da excelente Revista Morashá –edição 116 de setembro/2022, acompanhada do Suplemento Grandes Festas e do Catálogo Maayanot 2022/2024. Fiquei encantada!!

A qualidade editorial dessa Revista me surpreende a cada novo número recebido!

Maria do Socorro de Oliveira Recife - PE

Sou leitora da Morashá há muitos anos, e não abro mão!

Eva Belaciano Rio de Janeiro - RJ

Morashá é uma publicação que reúne ciência, informação com credibilidade, aprofundando o conhecimento holístico. Prossigam com a visão e propósitos que os impulsionam... Admiro-os profundamente...

Floriano Peixoto Gomes de Sá Filho Curitiba - PR

Parabenizo a Morashá pela qualidade das matérias. Sou fã particularmente das matérias biográficas e que maravilhosamente cobrem os feitos de expoentes do Povo Judeu. Isso sem falar na qualidade da revista, da impressão, das fotos, acabamento.

Fernando Skitnevsky Belo Horizonte – MG

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Fiquei emocionado e feliz por puder continuar a receber e ler a Revista Morashá, pela qual tenho um afeto e carinho muito grande. Cada edição publicada é de uma riqueza e sabedoria brilhante. Tenho aprendido muito sobre as tradições do judaísmo e sou grato aos meus irmãos mais velhos na fé!

Carlos Manuel Fonseca Gomes Golegã – Portugal Revista Morashá é o periódico de melhor qualidade e envergadura sobre os judeus, o judaísmo, literatura, história e cultura judaica publicado no Brasil. Certamente ela deve figurar entre as revistas judaicas de maior relevância a nível mundial. Parabéns!

Gabriel Antônio Rodrigues Emediato Uberlândia - MG

Sou leitor assíduo da Revista Morashá, cuja leitura sobre temas judaicos aprecio há muitos anos.

Hermann Zaidhaft Rio de Janeiro – RJ

77 ABRIL 2022 REVISTA MORASHÁ i 114

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