CHANUQUIÁ POSSIVELMENTE DE FLORENÇA, 1781-1800. RÉPOUSSÉ EM PRATA
Coordenação ANO XXIX Editorial: - Dezembro 2021 - Nº 113 Vicky Safra Assistentes de Coordenação: Clairy Dayan Fortuna Djmal Revisão e tradução de texto: Lilia Wachsmann Assessora Internacional: Muriel Sutt Seligson Supervisão Religiosa: Rabino Y. David Weitman Rabino Efraim Laniado Rabino Avraham Cohen Jornalista Responsável: Desirée Nacson Suslick MTb 13603 Colaboradores especiais: André Lajst Jaime Spitzcovsky Maria Luiza Tucci Carneiro Paulo Valadares Rabino Gabriel Aboutboul Tev Djmal Zevi Ghivelder Consultor: Marcello Augusto Pinto Coordenação de Marketing: Ronaldo Mauro Erlichman Thais Sznajdleder Simeliovich Produção Gráfica: Joel Rechtman JR Graphiks - Tel: 3873 0300 Projeto Gráfico: LEN - Tel: 3815 7393 Serviços Gráficos: C&D Editora e Gráfica - Tel: 3862 8417 Tiragem: 28.750 exemplares A distribuição desta revista é gratuita sendo sua comercialização expressamente proibida. Morashá significa Herança Espiritual; contém termos sagrados. Por favor, trate-a com o devido respeito. Os artigos assinados são de inteira responsabilidade de seus autores, não refletindo necessariamente a opinião da revista. É expressamente proibida a reprodução desta publicação, inclusive os artigos aqui publicados, bem como distribuição, compartilhamento, publicação ou utilização como obra derivada, em qualquer formato, parcial ou total, sem prévia e expressa autorização por escrito do Instituto Morashá de Cultura. Esta publicação, incluindo textos e imagens, é protegida e tem todos seus direitos reservados pela legislação nacional e tratados internacionais vigentes. Textos, imagens, gráficos, diagramação e fotografias constituem em seu conjunto e isoladamente obras autorais protegidas, estando os direitos sobre a mesma reservados. www.morasha.com.br
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Carta ao leitor O principal mandamento da festa de Chanucá é o acendimento da Chanuquiá, que lembra o milagre do azeite da Menorá – o candelabro de sete braços que era aceso diariamente no Templo de Jerusalém. No entanto, há diferenças marcantes entre a Chanuquiá e a Menorá. A mais evidente delas é que a Menorá tinha sete braços, enquanto a Chanuquiá é constituída por oito. Outra diferença é que a Menorá ficava em um santuário onde apenas os Cohanim podiam entrar. A Chanuquiá, por outro lado, deve ser acesa dentro do lar, em um local que permita que sua luz seja vista pelo público, na rua. O Lubavitcher Rebbe, Rabi Menachem M. Schneerson, explica que há um grande significado nessas diferenças. O fato de a Menorá ter sete braços não é coincidência. O número sete representa a ordem natural do mundo, da forma como esta ordem se reflete nos sete dias da Criação, os sete dias da semana. Cada dia representa uma das sete formas de energia Divina que constituem e sustentam o universo. Já o número oito simboliza o que está além ou acima do mundo – um passo além da Natureza. Na história de Chanucá, o óleo queimou milagrosamente por oito dias – um sinal Divino de que a vitória dos Macabeus sobre os gregos havia sido milagrosa. A Menorá no Templo representava a Luz Divina, que existe independentemente do envolvimento humano. Por ser um lugar de santidade e religiosidade reveladas, as sete luzes da Menorá eram suficientes para iluminar o Templo, bem como o mundo ao seu redor. Esse é um dos motivos pelos quais a Menorá se localizava em uma câmara sagrada, acessível apenas aos Cohanim. As luzes da Chanuquiá, por outro lado, comemoram um milagre e têm como propósito transmitir uma mensagem divina aos seres humanos. Por isso, devem ser compartilhadas mundo afora. Hoje, em nossos dias, uma escuridão espiritual tomou conta do mundo, portanto, temos que nos elevar além das limitações da Natureza para poder iluminar a escuridão que nos cerca. As oito luzes de nossas Chanuquiot, ardendo noite adentro, transformam o mundo em um lugar sagrado, repleto de luz. A história do Povo Judeu é repleta de milagres. Por que motivo nossos Sábios teriam instituído uma festa para lembrar o fenômeno sobrenatural do azeite?
A resposta é que o milagre do azeite simbolizou a vitória dos Macabeus. Foi “uma vitória dos poucos contra os muitos” – dos militarmente fracos contra os poderosos. Os Macabeus não possuíam força bélica expressiva nem armamentos e sequer eram numerosos, mas tinham a dupla porção do espírito judaico que anseia por liberdade, pela qual sempre está pronto para lutar. Mas a razão mais profunda que levou nossos Sábios a instituir uma festa judaica para celebrar o fenômeno do azeite é que o que ocorreu em Chanucá simbolizou o maior milagre de todos: a continuidade do nosso povo. As luzes de Chanucá representam a luz do Judaísmo que, ao longo dos milênios, recusou-se a se deixar apagar. O milagre do azeite nos ensina que quando as trevas ameaçam extinguir a luz do Povo de Israel, sempre restará uma fonte de luz que sobreviverá e que, por sua vez, gerará mais luz. Enganaram-se todos aqueles que se levantaram contra nós e acreditaram nos ter derrotado. Nosso povo continua forte, enquanto os que quiseram nos eliminar nada mais são que páginas da História. Podemos não ter mais o Templo Sagrado de Jerusalém, mas temos dezenas de milhares de mini-Templos em todo o mundo – nossas sinagogas. Podemos não ter mais a Menorá do Templo Sagrado, mas centenas de milhares de Chanuquiot são acesas durante os oito dias de Chanucá, em todo o mundo. Como disse o Grão Rabino Jonathan Sacks ZT”L, as luzes da Chanuquiá servem para nos lembrar que o Judaísmo tem sido a ner tamid, a luz perene da humanidade – a Luz incessante que nenhuma potência no mundo consegue extinguir. Em Chanucá, acendemos as luzes da Chanuquiá não apenas para comemorar um milagre ocorrido há mais de dois mil anos, mas também para celebrar o maior dos milagres, que ocorre a cada geração – nossa existência contínua como nação. Por meio das luzes de Chanucá, agradecemos a D’us pelo milagre de pertencermos a um povo eterno. Assim como os Macabeus que, inspirados por nossa fé, puderam mudar o mundo, nós, também, podemos lutar para melhorar este nosso mundo.
Chag Chanucá Sameach!
ÍNDICE
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03 carta ao leitor
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06 NOSSAS FESTAS Chanucá e a
HISTÓRIA Três eventos decisivos POR ZEVI GHIVELDER
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Celebrando Chanucá
destaque Israel e o fim da Era Merkel POR jaime spitzcovsky
Acendendo a Chanuquiá
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Eternidade do Judaísmo
14 A Rainha Esther
e a Festa das Máscaras
história Shaltiel, primeiro Embaixador de Israel no Brasil POR paulo valadares 4
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62 40 SABEDORIA
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shoá A história secreta do povoado holandês que salvou judeus
Ser feliz ou estar feliz?
por rabino Gabriel Aboutboul
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comunidades Judeus na moda e nos negócios do Rio Imperial por Maria Luiza Tucci Carneiro
israel Realidade ou ficção?
por André Lajst
71 74
50 brasil
50 anos do Hospital Israelita
Albert Einstein
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morasha.com livro Dicionário dos refugiados do Nazifascismo no Brasil dezembro 2021
NOSSAS FESTAS
Chanucá e a Eternidade do Judaísmo Chanucá comemora eventos que ocorreram há mais de 2.200 anos. Essa festa celebra a vitória militar do Povo Judeu sobre os gregos, que ocupavam a Terra de Israel e procuravam suplantar o Judaísmo ao forçá-los a adotar o Helenismo - a cultura grega que prevalecia na época e cujos princípios constituem a antítese da Torá.
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esde os dias de Alexandre, o Grande, a Terra de Israel era ocupada pelo império helênico. No século III A.E.C., a Pátria Judaica estava sob o controle do Reino Ptolemaico - um antigo estado helênico com base no Egito, fundado em 305 A.E.C. Durante o segundo século A.E.C, a Terra de Israel ficou sob o domínio do Império Selêucida (312-63 A.E.C.) - uma vasta entidade política estabelecida por Seleuco I Nicátor, um dos generais de Alexandre, o Grande, que reivindicou parte de seu império após sua morte. Os selêucidas constituíam a dinastia que governava a Fenícia, a Ásia Menor, o norte da Síria e a Mesopotâmia. Como os ptolemeus antes deles, os selêucidas respeitavam o Judaísmo e protegiam as instituições judaicas. Mas essa política mudou drasticamente quando Antíoco IV, um rei helênico do Império Selêucida, subiu ao poder, em 175 A.E.C. Proclamando-se uma divindade, Antíoco forçou os judeus da Terra de Israel a abandonar o Judaísmo e a abraçar o Helenismo. Entre seus decretos nefastos e provocativos, ele proibiu a prática pública do Judaísmo, ergueu uma estátua de uma divindade grega no Templo Sagrado de Jerusalém e ofereceu porcos como sacrifícios.
Em reação à campanha de Antíoco para erradicar o Judaísmo, um Cohen (sacerdote) chamado Matityahu, e seus filhos e apoiadores, conhecidos como os Macabeus ou os Hashmonayim, revoltaram-se. Eles travaram uma guerra de guerrilhas contra as poderosas forças armadas selêucidas. Após três anos de guerra, os Macabeus derrotaram as forças gregas na Terra de Israel - uma superpotência militar na época - e trouxeram Jerusalém e o Templo Sagrado de volta à soberania judaica. Enquanto ocupavam a Terra de Israel, os gregos profanaram deliberadamente o Segundo Templo Sagrado de Jerusalém. Quando os Macabeus o reconquistaram, eles o purificaram, reconstruíram o Altar e retomaram os serviços religiosos. Uma parte fundamental dos serviços diários no Templo Sagrado era o acender da Menorá - o candelabro de sete braços localizado no Santuário (o Kodesh) - com azeite de oliva ritualmente puro. Ao recuperar o Templo, os Macabeus encontraram um único jarro de azeite que não havia sido profanado pelos gregos. Esse jarro continha a quantidade de óleo suficiente para acender a Menorá por um dia apenas e seriam necessários oito dias para produzir mais azeite ritualmente puro. Os judeus foram em frente - acenderam a Menorá com o azeite desse 6
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único jarro, que deveria ter durado um dia. Mas, milagrosamente, a Menorá se manteve acesa por oito dias - o número exato de dias necessários para a produção de mais azeite puro. Os judeus perceberam que esse fenômeno sobrenatural constituía um sinal de D’us de que Sua Providência havia intervindo a favor dos Macabeus na guerra contra o poderoso exército grego. Para comemorar a vitória dos Macabeus e o subsequente milagre do óleo, nossos Sábios instituíram a festa de Chanucá, que dura oito dias, e cujo principal mandamento é o acendimento da Chanuquiá - o candelabro de oito braços. O fenômeno do óleo foi milagroso, ao passo que a vitória dos Macabeus, embora altamente improvável, foi desprovida de qualquer aspecto sobrenatural. No entanto, o triunfo militar foi incomparavelmente mais
relevante do que o milagre do jarro de azeite que, inexplicavelmente, durou oito dias. Na verdade, a guerra dos Macabeus foi um dos episódios mais importantes em toda a história judaica, pois eles lutaram pela sobrevivência do Judaísmo e, consequentemente, do Povo Judeu.
Chanuquiá em liga de cobre, OBRA de Maurice Ascalon (1913-2003). The Jewish Museum, n. y.
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Se os Macabeus não tivessem se levantado contra os gregos - ou se não tivessem vencido a guerra -, é provável que o Povo de Israel tivesse deixado de existir, engolido pelo Helenismo e pela assimilação. A Guerra dos Macabeus constituiu o último bastião do Judaísmo na Terra de Israel, especialmente porque eles estavam lutando duas guerras: uma delas contra as forças de Antíoco, e a outra - que, de certa forma, era até mais difícil e insidiosa - contra a assimilação judaica, uma vez que a maioria dos judeus da época estavam voluntariamente adotando a cultura helenística e abandonando o Judaísmo. Se os Macabeus tivessem perdido a guerra, as consequências para o Povo Judeu teriam sido catastróficas e irreversíveis: Antíoco teria realizado o sonho de Haman e Hitler - erradicar o Povo Judeu. DEZEMBRO 2021
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E ao contrário de Haman e Hitler, Antíoco o teria feito de uma forma “limpa” - sem ter de derramar muito sangue judeu. Antíoco sabia que a aculturação e a assimilação constituem os meios mais eficazes de eliminar o Povo de Israel. Não fosse pela bravura dos Macabeus, é possível que Antíoco tivesse varrido do mapa os Bnei Israel, Filhos de Israel. É importante saber que a vitória militar dos Macabeus mudou a história, não apenas a história judaica. Pois se os exércitos de Antíoco tivessem derrotado os Macabeus, o Judaísmo teria deixado de existir. E, se isso tivesse ocorrido, as outras religiões monoteístas do mundo, especialmente o Cristianismo e o Islamismo, que surgiram a partir do Judaísmo, nunca teriam nascido. Talvez essa seja a razão por que muitos não judeus se encantam com Chanucá e participam do acendimento da Chanuquiá. Em todo o mundo - aqui no Brasil, na Casa Branca e no Kremlin, e agora até em Dubai e Abu Dhabi ministros, governadores e presidentes participam do acendimento público das Chanuquiot. As luzes de Chanucá encantam tantas pessoas, das mais diferentes fés e nações, porque essa festa não celebra apenas uma vitória judaica, e sim, eventos que impactaram quase toda a humanidade. Os Macabeus eram um pequeno grupo de judeus, mas sua vitória na guerra contra os gregos impediu a erradicação do monoteísmo da face da Terra. Comparado com a guerra travada pelos Macabeus, o milagre do azeite aparenta ser trivial. Constituiu um fenômeno sobrenatural - o que as pessoas chamam de milagre - mas, diferentemente da vitória militar dos guerreiros judeus, não
teriam de esperar mais uma semana antes de poder novamente acender a Menorá.
produziu resultados práticos muito significativos. Isso porque de acordo com a Halachá, a Lei Judaica, os judeus poderiam ter acendido a Menorá com azeite de oliva que não fosse ritualmente puro. E, mesmo que a Lei Judaica não o permitisse, o pior que teria acontecido na ausência do milagre do óleo é que os judeus
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Por que, então, celebramos Chanucá acendendo a Chanuquiá, que lembra o milagre do óleo, e não fazendo algo que comemore a vitória militar dos judeus - como uma leitura pública do Livro dos Macabeus? É verdade que em nossas orações durante a festa, mencionamos a vitória dos Macabeus e não o milagre do óleo. No entanto, seu principal mandamento é acender a Chanuquiá. O próprio motivo de Chanucá ser uma festa de oito dias é o fato de o azeite ter ardido milagrosamente durante oito dias. Além disso, o costume de comer alimentos fritos em Chanucá sufganiyot (sonhos recheados) ou latkes - uma tradição que é tão popular, especialmente em Israel lembra o milagre do azeite.
A Luz da Torá O milagre do óleo foi um sinal de D’us para o Povo Judeu. Como mencionamos acima, o objetivo
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desse fenômeno sobrenatural foi o de conscientizar os judeus de que a vitória dos Macabeus ocorreu graças à Providência Divina, que os favoreceu. Mas esse milagre esse sinal de D’us - poderia ter assumido diferentes meios e formas. O fato de o milagre ter ocorrido especificamente por meio do azeite da Menorá é profundamente significativo, pois as luzes desse candelabro sagrado representam a Torá. Como escreveu o Rei Salomão, o mais sábio dos homens: “Pois um mandamento é a vela, e a Torá é luz” (Provérbios 6:23). Já que os Macabeus haviam lutado em prol do Judaísmo - o objetivo de sua guerra era o de preservar a Torá e seus mandamentos -, o sinal que D’us lhes enviou após a vitória foi manifestado por meio da luz da Menorá. É significativo o fato de que o azeite tenha ardido por exatos oito dias, pois no Judaísmo, o número oito representa o sobrenatural1. O milagre envolvendo a Menorá e sua luz pode não ter sido muito relevante na prática, mas foi profundamente simbólico. A razão para que Chanucá seja observada por meio do mandamento do acendimento da Chanuquiá é porque a Torá é o que sustenta o Judaísmo e o Povo Judeu, isto é, tanto a fé quanto a nação judaica. É verdade que não podemos ignorar a importância de hoje termos o Estado de Israel - um país com uma
Se alguém se perguntar por que o milagre não envolveu a Arca Sagrada, que continha as Tábuas - e, de acordo com uma opinião do Talmud, o rolo da Torá original escrito por Moshé Rabenu -, é porque não havia Arca Sagrada no Segundo Templo de Jerusalém. Na ausência da Arca Sagrada, a Menorá era o objeto do Templo Sagrado que mais simbolizava a Torá.
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Chanuquiá EM FRENTE AO KOTEL, JERUSALÉM
máquina de guerra extremamente afinada - para defender nosso povo. Quase dois milênios de sofrimentos indescritíveis, culminando com o Holocausto, foram consequência direta do fato de os judeus não terem seu próprio país ou exército. No entanto, as vitórias militares por si, por mais vitais que sejam, não sustentam uma nação indefinidamente; o melhor que um exército pode fazer é proteger o país e seu povo. É inegável que se o Estado de Israel tivesse perdido a Guerra da Independência, a dos Seis Dias ou a de Yom Kipur, o país teria sido destruído, assim como é verdade que se os Macabeus tivessem sido derrotados, os judeus provavelmente teriam deixado de existir. No entanto, uma enorme força militar por si só não perpetua uma civilização. O império helênico era famoso por suas grandes conquistas e extraordinários triunfos militares, mas não durou muito. 9
Na verdade, pouco após os eventos da história de Chanucá, esse império começou a declinar e Roma surgiu para tomar seu lugar. E mesmo o Império Romano, famoso por suas legiões e expansões territoriais, entrou em colapso e desapareceu. As forças armadas romanas podem ter derrotado nossos exércitos, destruído nosso Templo Sagrado e nos lançado para fora da Terra de Israel, mas nós, os judeus, estamos aqui, hoje, enquanto os antigos romanos não mais se encontram na face da Terra. Toda civilização que vincula seu destino à sua força bélica está fadada ao fracasso: mais cedo ou mais tarde, entrará em colapso. No auge de seu poder, a União Soviética ameaçou enterrar os Estados Unidos e aterrorizou o mundo com suas ambições imperialistas e arsenais nucleares. Menos de três décadas mais tarde, DEZEMBRO 2021
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quando a Guerra Fria terminou, esse outrora poderoso império não conseguia sequer alimentar seu povo e teve de depender de doações de alimentos trazidos dos Estados Unidos. Quanto a este país, sua recente derrota no Afeganistão - um fracasso militar e geopolítico apesar das vastas somas que o país dedica às suas forças armadas - fez com que muitas pessoas se perguntassem se estaria iminente o fim do império americano. Mark Twain, um dos maiores, senão o maior autor americano de todos os tempos, escreveu um ensaio intitulado “Sobre os Judeus” em que afirmou: “Os egípcios, babilônios e persas assumiram o poder, encheram a terra com seu brilho, mas o som deles naufragou. Na sequência, os gregos e romanos seguiram, fizeram muito barulho e desapareceram. O judeu viu a todos, os venceu e hoje é aquilo que ele sempre foi; não apresenta decadência, nem
envelhecimento, nem fraquezas, nem diminuição de energia, nem deficiências em sua vigilância e em seu espírito dinâmico. Todas as coisas são mortais, menos os judeus; todas as forças se esvaem, mas eles permanecem. Qual é o segredo de sua imortalidade?”
chanuquiá em DUBAI
CHANUQUIÁ EM PARIS
A resposta a essa pergunta - o segredo da imortalidade judaica reside no fato de sermos uma nação focada não em conquistas militares, e sim, religiosas e intelectuais. O Talmud nos conta que no período que antecedeu a queda do Segundo Templo, um Sábio chamado Rabi Yehoshua Ben Gamla fundou uma rede de escolas em toda a Terra de Israel. O resultado disso foi que, a partir dos seis anos, todas as crianças do país passaram a receber uma educação universal com financiamento público. Constituiu, segundo o Rabino Lord Jonathan Sacks, ZT”L, o primeiro sistema de
Chanuquiá em frente ao Portão de Brandemburgo, em Berlim. Deste local, Hitler clamou pela destruição do Povo Judeu
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educação desse tipo em qualquer lugar do mundo, e uma indicação clara do compromisso judaico com a educação e com a garantia de que nossos filhos aprendam sobre sua herança judaica. De acordo com o Talmud, a memória de Rabi Yehoshua Ben Gamla é abençoada, pois seus esforços perpetuaram o estudo da Torá, preservando-a de geração em geração. Durante dois mil anos, o Povo Judeu pagou um alto preço pelo fato de não ter um exército para se defender. Contudo, mesmo tendo sido expulso de sua Pátria e tendo sido perseguido e massacrado por tantas nações, o Povo de Israel sobreviveu. Já os antigos gregos e romanos, que construíram vastos impérios, foram extintos. A nação judaica sobreviveu porque D’us prometeu que nunca deixaremos de existir como povo, mas também porque nosso objetivo nunca foi construir um império. Somos um povo pequeno - há pouco mais de 15 milhões de judeus no mundo - e o Estado de Israel é um país geograficamente minúsculo - menor do que muitos estados brasileiros. Ademais, independentemente do que antissemitas possam alegar, as forças armadas de Israel nunca lutaram uma guerra que não fosse em defesa de sua população. Somos o Povo do Livro - não o da Espada. O Rei David é celebrado não por seus êxitos militares, mas pelo seu Livro dos Salmos. A civilização judaica está enraizada nas obras sagradas do Judaísmo e em livros e textos, mestres e professores, sinagogas, Casas de Estudo e escolas. Somos um povo cujos heróis são Profetas e Sábios, cujas cidadelas são escolas e cuja paixão é o aprendizado e a elevação do
O ENTÃO PRIMEIRO-MINISTRO BIBI NETANYAHU ACENDE A VELA DE CHANUCÁ NA CASA BRANCA, AO LADO DO ENTÃO PRESIDENTE BILL CLINTON
intelecto e da alma. O resultado disso é que mesmo sem um país próprio, a civilização judaica sobreviveu ao longo dos milênios, enquanto os poderosos impérios militares deixaram de existir. O Rabino Lord Jonathan Sacks ZT”L escreveu: “Para defender um país fisicamente, precisa-se de um exército, mas para defender uma civilização, é necessário que haja educação, educadores e escolas. Essas são as coisas que mantiveram o espírito judaico vivo e a Menorá dos valores judaicos brilhando ao longo dos séculos em uma luz eterna. Muitas vezes uma vitória militar que, no momento merece todas as manchetes, em retrospecto é secundária à verdadeira vitória cultural de transmitir valores à geração seguinte”. O Povo Judeu sempre soube que as verdadeiras vitórias não são travadas no campo de batalha, e sim, na alma, no coração e na mente das gerações futuras. 11
Celebramos Chanucá não como algum tipo de cerimônia militar, mas em cumprimento a um mandamento Divino que envolve luz - símbolo da Torá, da sabedoria, do aprendizado, da bondade, da generosidade e da verdade. A mensagem central dessa festa não é que os judeus prevaleceram em uma guerra militar - não importa o quão importante fosse na época -, porque as guerras são vencidas e perdidas e um país que é militarmente forte hoje pode ser fraco amanhã. A mensagem central de Chanucá é que o Povo Judeu existe hoje porque não permitimos que a luz do Judaísmo jamais se apagasse.
BIBLIOGRAFIA
Chanukah in Hindsight, artigo do rabino Jonathan Sacks ZT”L publicado no site- https://rabbisacks.org/chanukah-inhindsight/ em 19 de dezembro de 2019 The Festival of Lights that signifies an inextinguishable faith, artigo do rabino Jonathan Sacks ZT”L publicado no site https://rabbisacks.org/credo em 8 de dezembro de 2012 DEZEMBRO 2021
NOSSAS FESTAS
celebrando Chanucá A festa de Chanucá se inicia no dia 25 de Kislev, 28 de novembro, este ano, à noite. o acendimento das velas vai até 2 de Tevet – 5 de dezembro, à noite.
a
s luzes de Chanucá são acesas noite após noite nesta festividade de oito dias. Acendemos uma luz na primeira noite, duas na segunda e assim por diante. Na oitava e última noite, acendemos todas as oito. Na primeira noite, acende-se a vela da extrema direita e, a cada noite subsequente, vai-se acrescentando uma nova vela do lado esquerdo à primeira e, assim, sucessivamente. A primeira vela a ser acesa é sempre a nova, à esquerda.
Na sexta-feira, véspera do Shabat, acendemos a Chanuquiá logo antes de acender as velas do Shabat. Devemos usar azeite suficiente ou velas suficientemente grandes para que as luzes de Chanucá fiquem acesas cerca de 1 ½ horas após a entrada do Shabat. Uma vez iniciado o Shabat, não podemos reacender chamas apagadas nem mover de lugar a Chanuquiá; tampouco preparar as velas para serem acesas sábado à noite. Isso somente poderá ser feito ao término do Shabat. Sábado à noite, as luzes de Chanucá são acesas após a realização da Havdalá.
A Chanuquiá deve ser acesa diariamente após o aparecimento das estrelas, com exceção da véspera do Shabat, quando isso deve ser feito antes do pôr-do-sol. Por ter um propósito sagrado, a luz da Chanuquiá não poderá ser usada para nenhum outro fim, como trabalho ou leitura.
para divulgar os milagres de Chanucá – mas não para cumprir o mandamento.
Qualquer material incandescente pode ser usado para acender a Chanuquiá, mas deve-se preferir a luz intensa do azeite ou de velas de cera ou parafina, grandes o bastante para permanecer ardendo no mínimo por meia hora após o cair da noite. Por isso, se uma vela apagar durante esse tempo – com exceção da noite de Shabat, ela deve ser reacendida. É importante ressaltar que não se devem usar Chanuquiot elétricas. Elas podem ser colocadas em locais públicos
Na Chanuquiá há uma outra vela auxiliar, de preferência de cera, chamada Shamash, que fica um pouco acima ou abaixo do que as demais velas ou suportes para o azeite: é importante distinguilo dos demais, senão poderia parecer que a Chanuquiá tem nove braços. Algumas comunidades usam o Shamash para acender as demais velas; outras, uma vela adicional. Uma vez acesas as velas de Chanucá, não se deve apagar o Shamash. 12
Há diferentes tradições sobre o local no lar onde colocar a Chanuquiá. Alguns a colocam em uma entrada central, perto do vão da porta onde está a Mezuzá. Outra opção é colocá-la no peitoral de uma janela de frente para a rua. Essa opção é preferível, pois assim as luzes de Chanucá podem ser vistas pelo público passante. É importante que todos os judeus, de todas as idades, estejam presentes e envolvidos quando o mandamento de acender as luzes de Chanucá é cumprido. Em Chanucá, é tradição comer alimentos ricos em azeite, como sufganiot (sonhos) e latkes (panquecas fritas de batata), celebrando também dessa forma o milagre do azeite.
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acendendo a Chanuquiá Todas as noites, antes de acender as velas pronunciam-se as seguintes bênçãos:
Baruch Atá A-do-nai, E-lo-hê-nu Mêlech haolam, asher kideshánu bemitsvotav, vetsivánu lehadlic ner Chanucá.
A cada noite, após recitar as bênçãos, acendem-se as velas da Chanuquiá com o shamash, que é colocado na Chanuquiá de modo a ficar mais alto do que as demais chamas. Após acender as velas, recita-se em seguida Hanerot halálu:
Bendito és Tu, Eterno, nosso D’us, Rei do Universo, que nos santificaste com Teus mandamentos, e nos ordenaste acender a vela de Chanucá.
Baruch Atá A-do-nai, E-lo-hê-nu Mêlech haolam, sheassá nissim laavotênu, bayamim hahêm, bazeman hazê.
Bendito és Tu, Eterno, nosso D’us, Rei do Universo, que fizeste milagres para nossos antepassados, naqueles dias, nesta época. Apenas na primeira noite, depois de recitar as duas bênçãos, recita-se o shehecheyánu:
Baruch Atá A-do-nai, E-lo-hê-nu Mêlech haolam, shehecheyánu vekiyemánu vehiguiyánu lazeman hazê.
Bendito és Tu, Eterno, nosso D’us, Rei do Universo, que nos deste vida, nos mantiveste e nos fizeste chegar até a presente época.
Costuma-se colocar a Chanuquiá sobre uma mesa no lado esquerdo da porta de entrada, em frente à mezuzá, ou na janela que dá para a via pública. Os seguintes horários são referentes apenas a São Paulo. 1ª noite 25 de Kislev Domingo, 28 de novembro, a partir das 19:03 horas 2ª noite 26 de Kislev Segunda-feira, 29 de novembro, a partir das 19:04 horas 3ª noite 27 de Kislev Terça-feira, 30 de novembro, a partir das 19:05 horas
Hanerot halálu ánu madlikim, al hanissim veal hapurkan, veal haguevurot veal hateshuot, veal haniflaot, veal hanechamot, sheassita laavotênu, bayamim hahêm, bazeman hazê, al yedê cohanêcha hakedoshim. Vechol shemonat yemê Chanucá, hanerot halálu côdesh hem, veen lánu reshut lehishtamesh bahem êla lir’otam bilvad, kedê lehodot lishmêcha, al nissêcha, veal nifleotêcha, veal yeshuotêcha.
Acendemos estas luzes em virtude dos milagres, redenções, bravuras, salvações, feitos maravilhosos e auxílios que realizaste para nossos antepassados, naqueles dias, nesta época, por intermédio de Teus sagrados sacerdotes. Durante todos os oito dias de Chanucá, estas luzes são sagradas, não nos sendo permitido fazer qualquer uso delas, apenas mirálas, a fim de que possamos agradecer a Teu grande nome, por Teus milagres, Teus feitos maravilhosos e Tuas salvações. 13
4ª noite 28 de Kislev Quarta-feira, 01 de dezembro, a partir das 19:06 horas 5ª noite 29 de Kislev Quinta-feira, 02 de dezembro, a partir das 19:06 horas 6ª noite 30 de Kislev Sexta-feira, 03 de dezembro,
18:22 horas, antes de acender as velas de Shabat
7ª noite 1 de Tevet Sábado 04 de dezembro, a partir das 19:20 horas, após a Havdalá 8ª noite 2 de Tevet Domingo, 05 de dezembro, a partir das 19:09 horas
DEZEMBRO 2021
NOSSAS FESTAS
A Rainha Esther e a Festa das Máscaras Em Purim, é costume crianças e mesmo adultos usarem máscaras ou fantasias. a data é conhecida por ser a Festa das Máscaras já que seu tema principal é a ocultação ou a dissimulação: quase tudo em sua história é oculto e secreto e sua narrativa é constituída por uma série de voltas e reviravoltas e uma súbita virada na sorte.
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alando-se metaforicamente, quase todos os personagens da Meguilat Esther1 “usam máscaras”, especialmente sua protagonista, a Rainha Esther, que esconde sua identidade judaica até o final da história. Na verdade, um dos mistérios na história de Purim é o fato de o Rei Achashverosh, que, há quatro anos buscava uma rainha, ter escolhido Esther, após ter analisado mais de 1.400 pretendentes, sem saber praticamente nada sobre sua família e origem. Como alguém se torna rainha de um império sem que sua vida tenha sido previamente escrutinizada? Ademais, é curioso e irônico que Haman, o antagonista da história, que era obcecado pelos judeus e os queria exterminar, um a um, nunca tivesse sequer suspeitado que sua Rainha era judia, era um “deles”! Na Meguilat Esther há muitos outros mistérios e segredos. Até mesmo o próprio nome da Rainha Esther era um disfarce; seu nome verdadeiro era Hadassah (Meguilat Esther 2:7). O Talmud (Chullin 139b) nos ensina que a razão para ela ser chamada Esther, e não Hadassah, é o fato do nome Esther derivar da palavra hebraica Hester
(oculto) e aludir a um versículo da Torá no qual D’us afirma: Va Anochi Haster Astir Panai: “e Eu me ocultarei, certamente ocultarei Minha face” (Deuteronômio 31:18). O outro protagonista na história de Purim, Mordechai, também é uma figura disfarçada. Ele age encoberto, em coordenação com Esther, para frustrar o plano de Haman de uma Solução Final da Questão Judaica. Um aspecto misterioso da vida de Mordechai é que apesar de ser o líder do Povo Judeu, à época, e um conselheiro de confiança do Rei Achashverosh, ele trabalhava na sombra. Por que razão ele não teria usado sua posição de influência – especialmente após desmascarar uma trama para matar o Rei, salvando sua vida – para anular o decreto de Haman? Mordechai também exibe emoções conflitantes ao longo de toda a narrativa de Purim: ele reage com angústia ao ouvir o decreto genocida de Haman contra os judeus e, ainda assim, diz à Rainha Esther que com ou sem sua ajuda, os judeus seriam salvos, de alguma forma: “Pois se ficares em silêncio e nada fizeres desta vez, tenho fé de que socorro e salvação para os judeus lhes advirá de outro lugar” (Meguilat Esther 4:14).
1 O Livro de Esther (literalmente, Pergaminho de Esther), que é um dos livros que fazem parte do Tanach (Torá, Profetas e Escritos).
O arquivilão de Purim, Haman, também é uma figura envolta em mistério. De onde teria vindo e como se 14
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ANTIGO PERGAMINHO MANUSCRITO COM A MEGUILAT ESTHER
havia tornado primeiro-ministro de tão poderoso império? A Meguilat Esther não nos esclarece isso. Apenas revela sua genealogia: ele pertence à nação de Amalek – personificação do mal neste mundo e antítese e arqui-inimigo dos Filhos de Israel. O fato de sabermos que Haman era um amalequita nos basta para entender por que era consumido pelo desejo de aniquilar o Povo Judeu. Era parte de seu DNA espiritual um ódio assassino, inato e obsessivo, aos judeus – assim como o foi para seu futuro alter ego, Adolf Hitler. Somente no Midrash encontramos alguma informação sobre Haman. Lá está escrito que Mordechai e Haman se conheciam há muito tempo – muito antes de Haman se tornar primeiro-ministro. O Midrash também conta que Haman tinha sido cabeleireiro e atendente
dos banhos, em um pequeno vilarejo. E por que essa informação é relevante? Talvez o propósito do Midrash seja alertar o Povo Judeu para o fato de que, muitos
dos homens poderosos e perigosos que nos odeiam, começaram como figuras sem importância. Essa explicação também se aplica a Hitler – pintor fracassado e soldado medíocre, que viria a ser o líder poderoso de uma nação poderosa, e que trouxe ao mundo a morte, exterminando mais de seis milhões de judeus. O Rei Achashverosh também é uma pessoa enigmática. O Talmud não o tem em alta consideração: considera-o pessoa instável e facilmente manipulável. Ainda que não fosse um antissemita raivoso como Haman, de acordo com o Talmud ele também não era muito amigo dos judeus. Na verdade, no Livro de Esther, vemos a facilidade com que ele concorda com o plano diabólico de seu primeiro-ministro de exterminar o Povo Judeu.
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Tudo no Livro de Esther é entrelaçado: não há pontas soltas. Na história de Purim, os temas religiosos são disfarçados. Não há referências explícitas a milagres, profecias ou orações. E, contudo, a Rainha Esther diz a Mordechai que o segredo para a salvação dos judeus do decreto de Haman não está em seus poderes de persuasão e sedução, mas no jejum de todo o Povo Judeu, durante três dias.
Contudo, ao final da história de Purim, é o próprio Achashverosh quem defende sua bela rainha judia e salva o seu povo – o Povo de Israel. É ele quem ordena o enforcamento de Haman e quem dá aos judeus o direito de se defender contra seus inimigos. Também foi o Rei Achashverosh quem prestigiou Mordechai, nomeando-o primeiro-ministro no lugar de Haman. Quem era, na verdade, o Rei Achashverosh? Um inimigo do Povo Judeu que foi influenciado por sua encantadora rainha judia ou um tolo, inconsequente, que foi manipulado pelo mais execrável dos homens, mas que, felizmente, voltou a si, em tempo? Não o sabemos. O rei continua sendo uma figura enigmática. Mas, na Meguilat Esther, não são apenas os protagonistas e os antagonistas que usam máscaras. Em nível mais profundo, toda a história de Purim, em sua essência e conteúdo, é uma história cheia de
disfarces. Ainda que não haja nem um único fenômeno sobrenatural na Meguilat Esther, a história é constituída por uma série de eventos estranhamente bem-sincronizados.
ESTHER (ESTHER 2:7-14). MARC CHAGALL
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Todos os principais participantes na história de Purim estão mascarados, mas é D’us quem usa o maior disfarce. Na Meguilat Esther, D’us não é mencionado – nem uma única vez! – nem mesmo implicitamente. A ausência do Nome de D’us nesse Livro constitui a “máscara das máscaras” de Purim. A Meguilat Esther é, sem sombra de dúvida, um livro sagrado. É um dos livros do Tanach, e quando o estudamos – seja em Purim ou em qualquer outro dia do ano – estamos cumprindo o mandamento de estudar a Torá. Além disso, recita-se uma bênção antes e depois de sua leitura, na festa de Purim, em que agradecemos a D’us por Seus milagres salvando-nos da tentativa de Haman de aniquilar nosso povo. No entanto, a ausência do Nome Divino em Meguilat Esther é muito estranha, dando a entender que Ele não teve participação na história. Máscaras e encobrimento são temas constantes na Meguilat Esther, mas é a ocultação da Face Divina – a máscara usada por D’us ao longo de toda a história – o que está no âmago da festa de Purim. Realmente, a ocultação Divina – Va Anochi Haster Astir Panai, “e Eu me ocultarei, certamente ocultarei Minha face” – é o tema principal dessa festa. Na história do Povo Judeu, o decreto de Haman foi o mais terrível, ainda que tivesse sido frustrado. Somente
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Hitler, Yimach shemó v’zichro2, chegou perto de conseguir o que Haman planejara: exterminar cada um dos judeus, homens, mulheres e crianças, da face da Terra. Quando o decreto de Haman foi enviado aos quatro cantos do reino persa – e tudo indicava que o Povo Judeu houvesse sido condenado ao extermínio –, cada um daqueles judeus deve ter pensado que D’us os abandonara. No entanto, ao final da história, essa ocultação da Face Divina mostrou não ser mais do que uma máscara. Uma vez removida, revelou-se uma Face Divina repleta de misericórdia e favorecimento – uma total reviravolta na sorte do Povo Judeu. Isto porque não apenas Haman foi executado na mesma forca que havia armado para Mordechai; e não apenas porque Mordechai assume o lugar de Haman como primeiro-ministro do Império Persa, mas porque foram os judeus que triunfaram sobre seus inimigos, os mesmos que haviam planejado exterminá-los. Em vez de sofrimento e morte, “luz e júbilo, e felicidade e honra” (Meguilat Esther 8:16) recaíram sobre os judeus. A aterradora ameaça de genocídio não apenas desapareceu, mas foi substituída por júbilo e salvação. E como a história de Purim gira em torno de segredos e ocultações, especialmente a ocultação Divina, celebramos o acontecido usando máscaras e fantasias.
Um mundo de ocultação O mundo em que vivemos é permeado por ocultações e dissimulações. A palavra hebraica Yimach shemó v’zichro – que seu nome e memória sejam apagados. 2
CENAS DO LIVRO DE ESTHER. LITOGRAFIA SOBRE PAPEL, INÍCIO DO SÉC. 20. MONSOHN PRINTING HOUSE, JERUSALÉM
para “mundo”, Olam, deriva-se da palavra Helem, ocultação. O universo físico, que é o mais inferior dos mundos, oculta a Existência Divina. D’us é a única Realidade – somente Ele é realmente real –, ao passo que a existência de todos e tudo é tênue e completamente dependente d’Ele. E, ainda assim, a maior parte de nós não consegue perceber D’us e muitos ainda questionam ou mesmo negam Sua Existência. 17
Podemos entender por que é necessário um certo grau de ocultação Divina para que o mundo exista. Se D’us Se revelasse em toda a Sua glória, toda a Criação, inclusive os mundos espirituais mais elevados – que são finitos – seriam nulos e anulados por Sua Infinitude. No entanto, o fato de a ocultação Divina ser necessária para que nosso mundo possa existir não DEZEMBRO 2021
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significa que essa ocultação tenha de ser absoluta. Na verdade, certas vezes e em certos lugares, D’us efetivamente revelou algo de Sua glória aos seres humanos, particularmente no Monte Sinai, quando Ele deu Sua Torá aos Filhos de Israel. Durante os 40 anos em que Moshé Rabenu liderou o Povo de Israel pelo deserto, a Presença Divina era palpável, particularmente no lugar em que ficava o Mishkan, o Tabernáculo. Da mesma forma, quando os Filhos de Israel viviam na Terra de Israel, eram inúmeras as profecias e era possível comunicar-se com D’us por meio de Seus profetas e do Urim VeTumim3. Mas depois da queda do Primeiro Templo de Jerusalém e consequente expulsão dos judeus da Terra de Israel e do início da Diáspora judaica – onde e quando ocorre a história de Purim –, a Presença Divina deixou de ser evidente, não sendo mais possível consultá-La como no passado. Estava-se diante de uma dupla medida de ocultação Divina. O versículo da Torá em que D’us diz “e Eu esconderei, certamente esconderei o Meu rosto...” (Deuteronômio 31:18) tinha, de fato, se tornado realidade.
tudo se torna encoberto e incerto. Na falta de profecias, o futuro se torna ainda mais imprevisível do que já é e mesmo o presente se torna sombrio. A ocultação do Rosto Divino talvez não incomode os seres humanos quando os seus planos se concretizam e tudo em sua vida
corre bem. Mas em momentos de crise – quando as coisas não saem de acordo com o planejado e o homem se vê diante de uma situação incerta e assustadora –, a incapacidade de perceber D’us e de com Ele se comunicar se torna um problema grave. O Livro de Esther retrata essa escuridão – a ansiedade, confusão e sofrimento que surgiram quando o Povo Judeu se viu diante de uma grave crise – a ameaça de genocídio – e D’us estava incomunicável e, aparentemente, em nenhum lugar onde O pudessem encontrar. A razão pela qual a história de Purim é um relato feliz é o fato de ter terminado bem: os heróis saem vencedores e os vilões perdem. Sof Tov, Hakol Tov, afirmam nossos Sábios: “Quando acaba bem, fica tudo bem”. Mas a geração de judeus que viveu os eventos narrados na Meguilat Esther certamente não sabia que a história terminaria bem. E se não tivesse sido tão fortuita, as coisas poderiam ter terminado de forma bem trágica para eles.
O Nome Divino não aparece na Meguilat Esther porque a história de Purim constitui o exemplo clássico do que ocorre quando D’us Se oculta, fazendo com que Sua Existência e Sua Presença deixem de ser evidentes. Quando isso ocorre, o mundo se cobre de escuridão: Urim V’tumim refere-se a um pedaço de pergaminho que continha a inscrição do Nome Inefável de D’us. Era colocado dentro do peitoral (Choshen) do Cohen Gadol, o Sumo Sacerdote. Nossos Sábios ensinam que, por meio do Urim V’tumim, era possível consultar e se comunicar com D’us.
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PURIM, INÍCIO DO SÉC. 20. LITOGRAFIA COLORIDA, MOSHEH SHAH MIZRAHI, JERUSALÉM. COLEÇÃO DA FAMÍLIA GROSS, TEL AVIV
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Nós, que conhecemos o final da história de Purim, ouvimos a leitura da Meguilat Esther com alegria e nos divertimos fazendo barulho sempre que o nome de Haman é mencionado. Mas Haman não era objeto de riso e deboche para os judeus cuja vida ele pôs em risco. Eles sofreram muitíssimo enquanto a ameaça de genocídio pairava sobre sua cabeça. E, de fato, foi terror e desespero o que levou todo o Povo Judeu a jejuar durante três dias seguidos, noite e dia. E quanto à Rainha Esther, principal personagem da história, ela também enfrentou grandes provações durante todo o tempo em que exerceu um papel que nunca escolheu para si – o de salvadora do Povo Judeu. Há quem considere muito bonita e romântica a história de Esther, a bela, encantadora, moça judia que se tornou rainha persa. Mas não houve nada de romântico no ocorrido. O Talmud traz diferentes opiniões sobre a idade de Esther, mas de acordo com a leitura literal de Meguilat Esther, ela era uma jovem religiosa que foi levada contra sua vontade para ser concubina no harém do Rei Achashverosh. É verdade que o rei se apaixonou por ela e a fez sua rainha. Mas ela desconhecia o fato de que, entre todas as jovens levadas ao palácio real, ela seria aquela a quem o rei escolheria para rainha. E, mesmo que Esther soubesse disso, é provável que ela tivesse escolhido outro destino para si, se lhe tivessem dado o direito de escolha. Uma moça judia religiosa como Esther teria preferido se casar com um judeu religioso e, com ele, construir um lar judaico – a ser escolhida, à força, por um rei estrangeiro, instável e perigoso. O Talmud nos ensina que Esther foi uma das quatro mulheres mais lindas que já existiram. Podemos imaginar
MAIS ANTIGA DESCRIÇÃO PICTÓRICA DE JUDEUS FANTASIADOS EM PURIM. SEFER ZEMANIM, NORTE DA ITÁLIA, ca. 1470. CORTESIA DE SHALOM SABAR
que, ao ser escolhida para ser levada para o palácio real, contra sua vontade, ela deve ter pensado que sua beleza se houvesse convertido em um castigo, uma praga. Foi somente quando Haman subiu ao poder e convenceu o rei de que devia lhe permitir aniquilar todos os judeus que Esther começou a perceber a razão pela qual o destino a levara até o Rei Achashverosh. Como ensina o Talmud, D’us envia a cura antes da doença. Quando Mordechai pede que a Rainha Esther interceda perante o rei em favor dos judeus, ele lhe diz: “Quem sabe você tenha chegado à realeza justamente para um momento como este?” (Meguilat Esther 4:14). Em outras palavras, Mordechai diz a Esther: você chegou a uma posição de poder sem ter planejado isso; e agora se encontra em uma situação em que pode agir de modo a alterar o curso dos eventos e, assim, salvar seu povo. Você não julga significativa essa aparente coincidência? 19
À medida que se desenrola a história de Purim, as coisas começam a se encaixar, as pontas soltas na história de vida da Rainha Esther começam a se conectar. Ela percebe que o fato de ter sido levada para o palácio real contra a sua vontade não havia sido uma ocorrência aleatória nem infeliz. Pelo contrário, ela, a Rainha Esther, foi a cura que antecedeu a doença chamada Haman. E, de fato, ela era a pessoa ideal para frustrar a trama de Haman – não só por ser judia, mas porque era sobrinha de Mordechai, que, como seu tio, pôde compeli-la a arriscar sua vida ao interceder junto ao rei. Mesmo que outra mulher judia tivesse sido alçada à posição de rainha, essa mulher poderia recusar o pedido de Mordechai ou até mesmo ocultar sua identidade judaica de modo a se proteger do decreto genocida de Haman. O autossacrifício de Esther – as provações e tribulações sofridas por ela – foram essenciais para salvar DEZEMBRO 2021
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o Povo Judeu do genocídio. Nós judeus, existimos hoje graças a Esther e a Mordechai, mas especialmente graças a Esther. Por isso, não surpreende o fato de que o livro que narra a história de Purim leve seu nome – Meguilat Esther. Mas há uma continuação a esse livro que muitos desconhecem: a Rainha Esther e o Rei Achashverosh tiveram um filho. Essa criança veio a ser o rei persa que iria permitir que o Povo Judeu retornasse à Terra de Israel e reconstruísse o Templo de Jerusalém.
dois mil anos de exílio. Em outras palavras, nós, Povo Judeu, existimos hoje graças à Rainha Esther e às provações às quais se submeteu.
Conectando os pontos da vida Uma das lições de Purim é que devemos abandonar a ideia de que temos pleno controle de nossa vida por meio de planos racionais e bem calculados. Essa festividade nos ensina que quando D’us Se oculta e não há profetas para nos ajudar a
CONVITE PARA UM BAILE DE PURIM À FANTASIA, ASSOCIAÇÃO PURIM DE NOVA YORK, EM PROL DA SOCIEDADE BENEFICENTE DOS ÓRFÃOS. N.Y., 1881
E ainda que o Segundo Templo viesse a ser destruído e o Povo Judeu fosse novamente mandado para o exílio, o retorno à Terra de Israel, ocorrido após a história de Purim, foi imprescindível para a perpetuação do Judaísmo. Isso porque os Profetas e Sábios que viviam na Terra de Israel durante a existência do Segundo Templo Sagrado de Jerusalém foram aqueles que organizaram o Judaísmo de modo a sobreviver nos subsequentes
prever o futuro, apenas conseguimos compreender nossa vida se olharmos para trás para entender a maneira pela qual a Divina Providência a guiou, de forma quase que imperceptível. Essa lição se aplica a todos os seres humanos bons e meritórios, independentemente de sua religião ou nacionalidade. Ainda que Purim seja uma festa judaica, que celebra a salvação do Povo Judeu, muitos de seus temas são atemporais e universais. 20
Muita gente boa não entende muito do que lhes acontece, especialmente quando as coisas não saem da maneira que planejaram. Muita coisa na vida pode parecer aleatória, sem significado, injusta e mesmo cruel. Uma das mensagens centrais da história de Purim é que só podemos começar a entender certos eventos em nossa vida se olharmos para o nosso passado, vendo que as coisas aconteceram por uma determinada razão, e ver de que maneira se juntaram todas as peças do enorme quebra-cabeça que é a nossa vida. Em alguns casos, no entanto, as pessoas apenas compreendem a sua vida ao deixarem este mundo, pois seus feitos apenas dão frutos quando ascendem às Alturas, ou mesmo gerações depois disso. Essa ideia é um tema comum no Tanach e no Talmud. E, visando a esclarecer que isso se aplicava não apenas em tempos antigos e não apenas a Profetas e Sábios, mas também em nossos dias, oferecemos abaixo um exemplo contemporâneo. Em 1o de abril de 1976, Steve Jobs e Steve Wozniak fundavam a Apple Computers Inc., na garagem da casa dos pais de Steve Jobs. Ele tinha, na época, 20 anos. Em 10 anos, a Apple cresceu e já era uma empresa que valia US$ 2 bilhões e contava com quatro mil funcionários. Ao fazer 30 anos, Steve Jobs foi demitido da Apple, empresa que fundara e construíra. Sentindo-se arrasado – especialmente pelo fato de que sua demissão ter sido noticiada mundo afora –, ele pensou em abandonar a carreira. Mas, após alguns meses de incerteza, decidiu que não ia abandonar sua paixão – o trabalho na área da computação e tecnologia. Decidiu recomeçar. “Na época da minha demissão da Apple eu não percebi isso, mas acabou sendo a melhor coisa que poderia ter-me
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acontecido”, diria vários anos depois. E explicou por que dizia isso: os cinco anos após ter sido despedido da Apple foram os mais criativos em sua vida. Ele conheceu e se casou com aquela que seria o amor de sua vida e fundou duas empresas: a NeXT, de software e computação, e a Pixar, um estúdio de animação computadorizada. A Pixar foi um sucesso tão grande que, em 2006, foi adquirida pela Disney, por US$ 7.4 bilhões. Mas, numa série de eventos ainda mais notável, a Apple comprou a NeXT e, em 1996, Steve Jobs voltou à Apple. A tecnologia que ele desenvolvera na NeXT estava no âmago do renascimento da Apple. A volta de Steve Jobs a essa empresa – que, na época, estava à beira da falência – é lendária. Os produtos que passaria a fabricar, como o iPhone, iriam revolucionar a tecnologia, mudando o mundo para sempre. E a Apple se tornou a primeira empresa americana a atingir o valor de mercado de US$ 1 trilhão, em 12 de agosto de 2018. Em 31 de julho de 2020, superou a Aramco, a petrolífera estatal saudita, tornando-se a empresa de capital aberto mais valiosa do mundo. Em 2020, bateu a marca de US$ 2 trilhões, superior ao PIB de vários países, como Brasil, Itália, Canadá, Rússia e Coreia do Sul. Analisando sua vida extraordinária, lamentavelmente curta, seus altos e baixos, suas reviravoltas, Steve Jobs declarou: “Olhando para a frente, você não consegue ligar os pontos de sua vida; você só os consegue conectar olhando para trás. Portanto deve confiar que esses pontos irão se
conectar no futuro”. Evidentemente, não se pode comparar a demissão de Steve Jobs da Apple com as provações que a Rainha Esther enfrentou ou as enormes tragédias que algumas pessoas sofreram na vida. Mas a percepção de Steve Jobs de que “você só consegue conectar os pontos olhando para trás” é essencialmente o que se depreende da história de Purim. A vida da Rainha Esther sintetiza essa ideia. Seu legado sem paralelo para o Povo Judeu somente pode ser entendido em se olhando para trás. Da mesma forma, todos os fenômenos fortuitos narrados na Meguilat Esther – a cadeia de eventos que culminaram na salvação do Povo Judeu – apenas podem ser apreciados no final da história. Da mesma maneira, a maioria
de nós somente compreenderá a Meguilá de nossa vida – o Livro de nossa vida – bem ao final ou mesmo após ter sido escrita. Isso é válido não apenas para nós como indivíduos, mas para o Povo Judeu em sua totalidade, assim como para toda a humanidade. “No fim, tudo dá certo”, escreveu Fernando Sabino, “e, se não deu certo, é porque ainda não chegou ao fim”. É disso que trata a história de Purim, e é por essa razão que essa festa é um dos dias mais felizes no calendário judaico.
Bibliografia
Steinsaltz, Rabbi Adin Even-Israel, Purim – The Festival of Masks https://steinsaltz.org/essay/Purim5776/ Steinsaltz, Rabbi Adin Even-Israel, Purim: Life is a Masquerade https://steinsaltz.org/essay/ Purimmasquerade/ Steinsaltz, Rabbi Adin Even-Israel, The Steinsaltz Ketuvim, Koren Publishers, Jerusalem DEZEMBRO 2021
história
TRÊS EVENTOS DECISIVOS POR ZEVI GHIVELDER
O POVO JUDEU FEZ UMA TORMENTOSA CAMINHADA ATRAVÉS DO EXÍLIO ATÉ RECONQUISTAR SUA SOBERANIA. ESTA MARCHA CULMINOU COM O TRIUNFO DE HERZL NO PRIMEIRO CONGRESSO SIONISTA, EM 1897, AO QUAL SE SEGUIRAM TRÊS EVENTOS DECISIVOS: A DECLARAÇÃO BALFOUR, EM 1917, O RELATÓRIO DA COMISSÃO PEEL, EM 1937, E A PARTILHA DA PALESTINA sob mandato britânico, EM 1947.
N
a primeira década do século 20 a Inglaterra abrigava cerca de 200 mil imigrantes judeus. Este número expressivo se devia ao fato desse país manter uma condição de liberdade religiosa aliada a uma perspectiva de ascensão econômica e social que seduzia o continente. Os imigrantes judeus provenientes da Europa Oriental, notadamente da Rússia e da Polônia, trabalhavam como operários ou pequenos comerciantes nas cidades de Manchester, Leeds e Londres, onde se concentravam num bairro do East End. Quando começou a 1ª Guerra Mundial, em 1914, 50 mil judeus se alistaram no exército britânico, 10 mil dos quais morreram em combate.
Império Turco Otomano, do Kaiser da Alemanha e do mais influente ministro da Rússia imperial. Chaim Weizmann estava convencido de que o ideal sionista só poderia ser alcançado através do apoio do Império Britânico, a superpotência da época. Weizmann era um cientista respeitado na Inglaterra porque tinha feito uma importante contribuição a seu esforço de guerra ao desenvolver um tipo de acetona que otimizava a capacidade do arsenal bélico da marinha de Sua Majestade. Manteve incontáveis reuniões com os líderes do governo e da oposição do império, aos quais apresentava uma argumentação de caráter geopolítico: era de suma importância que a Inglaterra mantivesse o controle do Canal de Suez, inaugurado em 1869, para garantir a viabilidade de seu comércio exterior e o caminho para a Índia. Portanto, a existência de um estado judeu no Oriente Médio, próximo ao canal e aliado dos britânicos, asseguraria esse domínio estratégico. Nas altas esferas britânicas, Weizmann era favorecido por sua postura pessoal. Era um homem culto e refinado, profundo conhecedor da história, um judeu diferente dos estereótipos. Um parlamentar da época, Richard Crossman, assim o descreveu: “Ele possui o fanatismo de Lenin e o charme sofisticado de Disraeli”.
O judeu Chaim Weizmann era uma exceção à regra entre os imigrantes. Nascido em 1874 na Bielorrússia, tinha conseguido sair de sua aldeia, Motol, para estudar química, primeiro na Alemanha e depois na Suíça, onde obteve o doutorado. Emigrou para a Inglaterra em 1904, passando a lecionar na Universidade de Manchester. Àquela altura já era atuante no movimento sionista. Seguia um conceito do próprio Herzl segundo o qual a questão judaica deveria ser inserida no âmbito de uma conjuntura internacional, tanto assim que Herzl havia tentado, sem sucesso, obter apoio como o do sultão do 22
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David Ben-Gurion, ladeado pelos membros de seu governo provisório, lÊ a Declaração de Independência. Museu Municipal de Tel Aviv. 14 de maio de 1948
Na qualidade de porta-voz do movimento sionista na Inglaterra, Weizmann foi bem recebido por um dos mais destacados membros do Partido Conservador, o judeu Lorde Lionel Walter Rothschild (18881937), que o apresentou a Lorde James Arthur Balfour (1848-1930), que havia sido primeiro-ministro do império e então ocupava o cargo de Secretário de Estado de Assuntos Estrangeiros. Este último ficou sensibilizado com a solicitação de Weizmann para que o Império Britânico emitisse um comunicado no qual declararia apoio à existência de uma pátria judaica. Ao longo de sua argumentação, Weizmann repetiu de forma insistente a palavra “restituição” para enfatizar que os judeus não pretendiam se apoderar de um território alheio, mas obter de volta aquilo que historicamente lhes pertencia. Enfatizou que a questão judaica era uma questão que
A audiência de Weizmann com Lorde Balfour vazou para a imprensa e chegou à rua judaica, provocando controvérsias. Em sua autobiografia, Weizmann escreve sobre o choque que lhe causou a atitude em alguns círculos judaicos que se opunham ao Sionismo, invocando que os judeus eram bem acolhidos na Inglaterra e que deveriam contribuir para a grandeza e glória do império através de sólida e crescente integração com a sociedade britânica.
declaração balfour
se inscrevia na consciência moral da humanidade, insistindo com frequência nessa expressão. Lorde Balfour prometeu que levaria o assunto à consideração do monarca George V. 23
De posse da aquiescência do rei, Lorde Balfour disse que o governo não poderia emitir um documento oficial, mas lhe enviaria uma carta informal de modo a atender o pedido tal como formulado. Weizmann respondeu julgar mais apropriado que a correspondência fosse enviada a Lorde Rothschild em função de sua proeminência junto à comunidade judaica. Assim, no DEZEMBRO 2021
história
dia 2 de novembro de 1917, o líder sionista recebeu a carta que entrou para a história como a Declaração Balfour. “Caro Lorde Rothschild, Tenho o prazer de endereçar a V.S., em nome do governo de Sua Majestade, a seguinte declaração de simpatia quanto às aspirações sionistas, declaração submetida ao Gabinete e por ele aprovada. O governo de Sua Majestade encara favoravelmente o estabelecimento na Palestina de um Lar Nacional para o povo judeu e empregará todos os seus esforços no sentido de facilitar a realização desse
Sionista, realizado 20 anos antes, na Suíça: a reconstrução de um Lar Nacional Judaico. Logo surgiram controvérsias sobre a carta de Balfour. A Declaração se tornou a origem de uma polêmica que jamais arrefeceu, a ponto de perdurar por mais de cem anos desde a sua assinatura.
Lorde Walter Rothschild
Lorde Arthur Balfour em Jerusalém, 1925
objetivo, entendendo-se claramente que nada será feito que possa atentar contra os direitos civis e religiosos das coletividades não judaicas existentes na Palestina, nem contra os direitos e o estatuto político de que gozam os judeus em qualquer outro país. Desde já sou extremamente grato a V.S. pela gentileza de encaminhar esta declaração ao conhecimento da Federação Sionista. (a) Arthur James Balfour”. Na noite do dia 2 de novembro, Chaim Weizmann reuniu um grupo de amigos no seu apartamento, em
Chelsea, para celebrar a Declaração. O grupo brindou, começou a entoar uma canção chassídica (própria dos ortodoxos) e, em seguida, passou a dançar. Longe dali, no East End de Londres, milhares de judeus dançavam nas ruas. Anos depois, Weizmann escreveu em suas memórias: “Não era o que eu esperava, mas foi um grande ponto de partida”. A rigor, apesar de seu conteúdo vago e superficial, a Declaração foi de fato o primeiro passo objetivo para materializar a aspiração expressa no Primeiro Congresso Mundial 24
O escritor judeu Arthur Koestler, que era sionista e depois optou por outra convicção, escreveu na ocasião: “Trata-se de um dos documentos políticos mais improváveis de todos os tempos, no qual uma nação prometeu a uma segunda nação o território de uma terceira”. Esta afirmação engenhosa vem sendo repetida desde então. Embora a Declaração Balfour tivesse sido improvável e emitida a despeito de todas as formalidades governamentais e diplomáticas, a conceituação de Koestler se tornou inócua em face das realidades da época. A diáspora judaica ainda era elusiva como nação e o território em questão, a Palestina, longe de ser uma nação, era parte do império otomano. Isto, sem falar que cinco anos depois a Palestina estaria sob um mandato que a incorporaria ao império inglês. No filtro da história, todos os méritos pela obtenção da Declaração Balfour convergiram para Chaim Weizmann, o que corresponde a uma solidificada injustiça a Nahum Sokolov, que atuou como um dos principais articuladores da Declaração. Entretanto, mesmo hoje em Israel, em cada 10 pessoas talvez uma, mais idosa, saiba de quem se trata. Sokolov soa vagamente familiar porque seu nome está em ruas de algumas cidades do país e também porque se refere ao centro de imprensa de Tel Aviv, o Beit Sokolov. Nahum Sokolov nasceu no shtetl (aldeia) de Visrogod, localizada
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no centro da Polônia, onde, como todas as crianças, recebeu educação estritamente religiosa. No entanto, ao contrário das demais, desde a adolescência foi atraído pelo mundo secular. Estudou russo, inglês, francês e alemão, por conta própria, impressionando os conterrâneos tanto pela fluência nesses idiomas como pelo sólido conhecimento de história judaica, história universal e literatura. Era um indiscutível prodígio. Sokolov se mudou para Varsóvia em 1880. Trabalhou como editor de um jornal publicado em hebraico, primeiro semanal e depois diário, chamado Hassefirah, engajado no movimento Chovevei Tzion, precursor do Sionismo. Em 1897, na qualidade de correspondente do jornal, cobriu na Basileia o Primeiro Congresso Sionista Mundial. Aproximou-se de Theodor Herzl, cujo romance Altneuland (Nova Velha Pátria, em alemão) traduziu para o hebraico, com o título Tel Aviv, antes da fundação da cidade com o mesmo nome. Em 1906, assumiu o posto de secretário-geral da Organização Sionista Mundial, que era alvo de disputas internas desde a morte de Herzl, dois anos antes. Foi nessa qualidade que passou a atuar como emissário diplomático do Sionismo, embora tal função não fosse oficialmente reconhecida e mesmo porque não podia se apresentar como embaixador de um país que não existia. Assim percorreu a maior parte da Europa e rumou até a Turquia, onde retomou os contatos feitos anos antes por Herzl junto às autoridades turcas. Por onde passou, deixou a imagem de um impecável cavalheiro, com postura aristocrática e imbatível poder de persuasão. Em 1913, Nahum Sokolov viajou para os Estados Unidos onde
TEL AVIV, 1925. ARTHUR BALFOUR, NO CENTRO, ACOMPANHADO POR UM EX-MINISTRO DO EXTERIOR INGLÊS E CHAIM WEIZMANN, TERCEIRO À DIREITA. ANOS DEPOIS, ELE FOI O PRIMEIRO PRESIDENTE DE ISRAEL.
escreveu anos mais tarde: “Sokolov foi o nosso Colombo que descobriu Brandeis”.
fez amizade com o juiz Louis D. Brandeis, que aderiu à causa sionista e viria a ser nomeado para a Suprema Corte do país. Foi através do rabino Stephen Wise, de origem húngara, conselheiro informal do presidente Woodrow Wilson, que Brandeis passou a ser recebido na Casa Branca, tendo o movimento sionista como tema central de suas conversas com o presidente. Anos mais tarde, Wilson traria o apoio dos Estados Unidos à Declaração Balfour, dando ao documento um peso político mais consistente por se tratar da aprovação de outra grande potência. A propósito, Weizmann
Em 1914, logo após o início da 1ª Guerra Mundial, convencido de que os destinos do mundo e da causa sionista dependeriam do destino do Império Britânico, radicou-se em Londres onde logo foi acolhido pelo círculo íntimo de Chaim Weizmann, mais jovem do que ele. Na verdade, àquela altura Sokolov era até mais conhecido do que Weizmann pela massa judaica por causa de sua intensa e ininterrupta atuação como jornalista. Enquanto Weizmann
louis d. brandeis
Nahum Sokolov
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percorria os luxuosos salões do império, Sokolov assumiu uma missão crucial, paralela à obtenção de uma possível carta a ser assinada por Lorde Balfour: o reconhecimento de outros países à iniciativa da criação de um Lar Nacional Judaico na Palestina Otomana. Em maio de 1917, apesar dos obstáculos da guerra, viajou para Paris e Roma, obtendo manifestações de simpatia ao Sionismo por parte dos governos da França, da Itália e do Vaticano, na pessoa do Papa Bento XV. A missão em Paris foi um êxito notável. Sokolov recebeu uma carta de próprio punho de Jules Cambon, chefe do Ministério dos Negócios Exteriores, cujo conteúdo assertivo foi surpreendente. Cambon de início se referiu à necessidade de serem resguardados os locais sagrados da Palestina e concluiu: “De fato seria um ato de justiça e reparação a renascença da nacionalidade judaica na terra da qual o povo de Israel foi expulso há tantos séculos. Assim como a França entrou na presente guerra para defender um povo injustamente atacado, devotamos simpatia à sua causa, cujo triunfo se incorpora ao dos Aliados. Fico feliz por poder através desta lhe dar essa garantia”. Esta carta, inserida na história como a Carta Cambon, jamais foi publicada. Porém Weizmann repassou seus termos para os governantes britânicos, chamando particular atenção para duas palavras de Cambon: reparação e renascença. Além desta carta, Weizmann pode exibir outra, assinada por Bento XV, na qual o pontífice escreve que o retorno dos judeus à Palestina “é providencial conforme a vontade de D’us”. Os historiadores do século 20 concordam que a Carta Cambon foi uma conquista pessoal de Nahum
secretaria-executiva da Organização Sionista Mundial e, em seguida, sua presidência. Nahum Samuel Ben Yossef Sokolov morreu em Londres, no dia 17 de maio de 1936. Seus restos mortais foram trasladados vinte anos depois para o monte Herzl, em Jerusalém.
O CONDE PEEL, PRESIDENTE DA COMISSÃO REAL, À ENTRADA DO HOTEL KING DAVID. JERUSALÉM, 1936
Por coincidência, no mesmo mês e ano da morte de Sokolov, o movimento sionista se defrontou com uma iniciativa impactante dos mandatários ingleses, destinada a conter os sucessivos conflitos entre árabes e pioneiros judeus.
conselho geral sionista, solokov sentado, ao lado de Yitzhak Ben-Zvi. Jerusalém, 1935
Sokolov, decisiva para a emissão da Declaração Balfour. Pouco mais de um ano após a emissão da Declaração, Sokolov assumiu a chefia da delegação judaica, admitida como observadora na Conferência de Paz de Paris, em fevereiro de 1919. Em 1920, tornou a brilhar como delegado-observador à Conferência de San Remo, na qual a Liga das Nações ratificou o tratado que conferiu ao Império Britânico o mandato na Palestina. Nos anos seguintes, assumiu a 26
Os conflitos tinham em seu rastro um massacre perpetrado em 1929 por milícias árabes que vitimou centenas de judeus nas cidades de Jerusalém, Hebron e Safed. Esses choques foram agravados por uma greve geral, ordenada pelo Mufti de Jerusalém, líder máximo dos muçulmanos, cujas milícias sabotaram ferrovias, bloquearam estradas e instalações telefônicas, incendiaram plantações e propriedades pertencentes ao Ishuv (judeus residentes no território sob mandato), além de atacarem
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militares ingleses em operações de guerrilha. Para encontrar condições de restabelecer a ordem foi instituída em Londres a Comissão Peel, assim nomeada por ter a chefia confiada ao Lorde William Peel, importante político e empresário britânico. A Comissão chegou à Palestina sob Mandato Britânico em novembro, já ciente de um comunicado emitido pelo Mufti segundo o qual os árabes não prestariam à Comissão qualquer forma de colaboração. O Ishuv e o movimento sionista tiveram uma reação oposta. Foi elaborado, para ser entregue à Comissão, um extenso relatório. Primeiro, uma dissertação de caráter histórico, evidenciando a presença judaica naquele território desde a antiguidade. A seguir, uma relação dos sucessos ali obtidos pelos judeus desde o início do século sobretudo na criação dos kibutzim (colônias agrícolas coletivas) e na recuperação de vastas áreas até então desertas. No final, foi acrescentado um eloquente capítulo chamando a atenção para o fato de o partido nazista ter assumido o poder na Alemanha, constituindo grave ameaça para os judeus. Entre novembro de 1936 e fevereiro de 1937, David Ben-Gurion, Chaim Weizmann e Zeev Jabotinsky, os mais proeminentes líderes sionistas, prestaram depoimentos perante a Comissão Peel e outras autoridades britânicas. Ben-Gurion, em Jerusalém, foi o mais enfático: “Nossos direitos nesta terra não têm como origem o Mandato Britânico, nem a Declaração Balfour de 20 anos atrás. Nossos direitos decorrem da Bíblia que nós mesmos escrevemos, em nosso próprio idioma”. Jabotinsky falou perante a Câmara dos Comuns, que teve a galeria lotada, além de uma vigília de milhares de judeus
dos judeus que pretendem reconstruir o templo de Salomão em nossas sagradas propriedades”. Finalizou: “A Palestina está plenamente ocupada e nela não há lugar para dois povos”.
Zeev Jabotinsky com jovens do Movimento Juvenil Betar
No dia 7 de julho de 1937, a Comissão Peel divulgou seu relatório constante de 435 páginas. O documento acentuou principalmente o desenvolvimento que os judeus haviam conferido à Palestina graças a um grande afluxo de capitais. A par da revolução agrícola, o relatório fez menção aos hospitais construídos por judeus que também beneficiavam
Lorde Peel e Sir Horace Rumbold, presidente e vice-presidente da Comissão Real Palestina, deixam a sede da Comissão após obterem os depoimentos do Comitê Árabe Superior
em torno do prédio. Weizmann prestou depoimento ao gabinete, cujos membros se impressionaram quando ouviram que a Grã-Bretanha não deveria ser aliada do Mufti de Jerusalém, notório entusiasta do nazismo. Em face da positiva repercussão internacional dos três depoimentos, o Mufti reconsiderou sua obstrução. Emitiu uma declaração na qual ressaltou que os termos da Declaração Balfour deveriam ser invalidados porque haviam sido obtidos “por pressão 27
a população árabe, sobretudo no tratamento da malária. O relatório causou espanto ao afirmar que o maior problema não eram os ataques dos árabes contra os judeus, mas dos árabes contra setores árabes que se opunham à tirania do Mufti. Concluiu com outra afirmação inusitada: o nacionalismo árabe, em vez de fomentar pontos positivos, só tinha como meta o ódio aos judeus. Ao fim de tudo, apesar das obviedades que favoreciam o Ishuv, DEZEMBRO 2021
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a Comissão Peel apresentou uma proposta desprovida de um mínimo de bom senso no tocante a uma sugerida divisão do território: aos árabes competiriam 80% do território, aos judeus 13% e o restante à Inglaterra, incluindo Bethlehem e Jerusalém. Apesar de sua absurda parcialidade, o relatório foi encarado de forma pragmática e aprovado pelo 20º Congresso Mundial Sionista, em Zurique, por 300 votos a favor, 158 contra e 26 abstenções. O Whiter Paper, emitido pelos ingleses, passou a coibir a imigração de judeus para a então Palestina e anulou o relatório da Comissão Peel. Todavia, restava a preciosa semente da ideia de dividir território. Durante a 2ª Guerra Mundial, de 1939 a 1945, prevaleceu no Ishuv o enunciado de Ben-Gurion: “Nós lutaremos contra o White Paper como se não houvesse guerra e lutaremos na guerra como se não houvesse White Paper”. Quando terminou a 2ª Guerra Mundial a Inglaterra se encontrava numa situação insustentável no território sob seu mandato. A organização clandestina Irgun,
os tamanhos | British soldiers in Palestine circa 1930's | Flickr – Compartilhamento de fotos!
abba eban, 1947
chefiada por Menachem Begin, era incansável em sua luta contra o Mandato Britânico. Em 1947, teve início em Londres uma série de conversações entre árabes e judeus, ouvidos separadamente pelas autoridades britânicas. Mas não houve consenso face à proposta britânica de prorrogar o mandato por mais quatro anos, depois dos quais seria discutida a divisão da Palestina. Durante esse tempo permaneceria a proibição da entrada de novos imigrantes, uma desumanidade com as centenas de milhares de sobreviventes do Holocausto.
SOLDADOS BRITÂNICOS NA PALESTINA SOB MANDATO BRITÂNICO, C. 1930 Está procurando o código HTML e o link do arquivo de foto? Verifique esta pergunta frequente.
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Diante do fracasso das negociações, Ernest Bevin, ministro do exterior da Grã-Bretanha, obstinado antissionista, decidiu entregar às Nações Unidas a solução do problema da então Palestina sob Mandato Britânico. Sugeriu a criação de uma comissão, à semelhança da Comissão Peel. A nova comissão nominada Unscop, relativa à sigla de United Nations Special Committee on Palestine, apresentaria suas conclusões à Assembleia Geral. Bevin acreditava que poderia manipular o texto final em favor dos árabes e assim se livrar da pressão exercida pelo presidente americano Harry Truman, que demandava a concessão de 100 mil vistos para os judeus refugiados na Europa. Em perspectiva histórica, alguns autores acreditam que os ingleses abriram mão do mandato por causa das ações do Irgun. Por outro lado, o historiador do Sionismo Martin Kramer argumenta que depois das inúmeras batalhas já travadas pela Inglaterra, sobretudo o estoicismo durante os bombardeios nazistas, os feitos do Irgun não lhe eram tão assustadores. O pavor britânico era no sentido de que a entrada de 100 mil novos imigrantes, sob bandeira inglesa, arruinaria sua posição geopolítica no Oriente Médio na qual a adesão dos árabes avultava como o foco central. A delegação da Agência Judaica incumbida de acompanhar os acontecimentos na ONU, em Flushing Meadows, perto de Nova York, era chefiada por Moshe Sharret, que tinha o economista David Horowitz como braço direito. Este mandou chamar em Londres um militante da Agência chamado Audrey Sachs, 32 anos, cuja competência diplomática ganharia reconhecimento internacional nos anos seguintes com o nome de Abba Eban. Ele escreve em
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sua autobiografia que, antes de partir para os Estados Unidos, constatou em Londres um enraizado ambiente contrário à causa sionista, a ponto de Bevin ter recusado receber Chaim Weizmann em audiência. Eban e Horowitz se debruçaram sobre os nomes dos 11 membros da Unscop, comandada por Emil Sandstrom, magistrado da Corte Suprema da Suécia, conhecido por suas ações em causas humanitárias. No âmbito latino havia componentes do Peru, Uruguai e Guatemala. A Unscop chegou à Palestina sob Mandato Britânico em junho, poucas semanas depois de um acontecimento que fez exultar a delegação judaica nas Nações Unidas: um inesperado discurso de Andrei Gromyko, jovem representante da União Soviética. Gromyko começou com uma crítica violenta à Inglaterra, acentuando que sua incumbência como mandatária havia resultado num enorme fracasso pela incapacidade de obter um mínimo de entendimento entre árabes e judeus. Referiu-se ao horror sofrido pelos judeus no Holocausto e enfatizou que “é hora de o mundo ajudar este povo, não com palavras, mas com iniciativas concretas”. No final do discurso, ressaltou que os judeus tinham pleno direito à autodeterminação através da divisão da Palestina em dois estados, uma árabe e outro judeu. Suas palavras tiveram ampla repercussão internacional e evidenciaram a posição de Stalin. O ditador soviético não tinha especial simpatia pelos judeus, muito pelo contrário, mas julgava que a existência de um estado judeu, mesmo em parte do território até então sob mandato, seria importante fator para diminuir a influência e a presença da Grã -Bretanha no Oriente Médio.
sessões da unscop, jerusalém
No dia 19 de julho, enquanto percorria a Palestina sob Mandato Britânico, a Unscop chegou a Haifa e, no porto da cidade, se deparou com um espetáculo deprimente: a apreensão do navio Exodus e a humilhação a que estavam submetidos seus passageiros, homens, mulheres e crianças sobreviventes do Holocausto. Longe de ter sido um fator determinante, não resta dúvida de que o drama do Exodus sensibilizou de forma significativa os componentes da Unscop em favor da implantação de um estado judeu. David Ben-Gurion e Moshe Sharett, Jerusalém, 1947
Semanas depois, em Genebra, a Comissão Especial apresentou seu
Dr. Chaim Weizmann, chefe da Comissão Sionista, explica a Declaração Balfour aos habitantes de Rishon-LeTsion
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relatório final do qual constava um mapa com o traçado da Partilha da Palestina em dois países independentes, um abrigando 1 milhão e 250 mil árabes, outro com 570 mil judeus, cabendo a Jerusalém tutela internacional. Aos árabes também competiria a maior parte do território. Este era o relatório que seria levado à apreciação da Assembleia Geral da ONU. Sharret, Horowitz e os demais integrantes da delegação trabalhavam de forma incessante. Disparavam telegramas e telefonemas para os quatro cantos do mundo. Alguém conhecia alguém que conhecia o governante de determinado país?
Oswaldo Aranha presidiu a Segunda Assembleia Geral da ONU, que votou o plano que RESULTARIA na criação do Estado de Israel
Como apurar qual seria o importante voto da França? Pedir ao diplomata Garcia Granados, embaixador da Guatemala, conhecido apoiador do Sionismo, que influenciasse os representantes de outros países. Abba Eban escreveu em suas memórias: “Nós tínhamos bons aliados. O presidente da Assembleia, Oswaldo Aranha, do Brasil, estava religiosamente devotado ao direito da existência de um estado judaico”. No dia 27 de novembro, quando a Assembleia Geral se reuniu, Sharret e os demais companheiros estavam a ponto de perder a esperança. A contagem por intuição indicava que não seriam alcançados os 2/3 de votos necessários para a aprovação
VOTAÇÃO DA ONU EM 29 DE NOVEMBRO DE 1947
da partilha. A angustiante solução foi pedir aos embaixadores favoráveis à partilha que ocupassem a tribuna pelo maior tempo possível, fazendo com que a sessão tivesse que ser encerrada sem votação em função do esgotamento do horário. Assim, num gesto de boa vontade para os representantes judeus, Oswaldo Aranha suspendeu os trabalhos e marcou a retomada para dois dias depois, porque o dia seguinte era o do feriado americano de Ação de Graças. Moshe Sharret disse, anos depois, que aquelas 24 horas tinham sido cruciais para a obtenção dos votos ainda em dúvida. No dia 29 de novembro, na abertura da sessão, o embaixador do Líbano, Camille Chamoun, propôs o adiamento da votação do relatório da Unscop. Foi obstado por Aranha: “Votar ou não votar, eis a questão”. Os países foram chamados para se manifestar por ordem alfabética e o voto favorável da França assegurou a proporção necessária para a aprovação da partilha, com o seguinte resultado final: 23 votos a favor, 13 contra, 10 abstenções e uma ausência. Por causa do fuso horário, era madrugada na Terra Santa. Milhares de pessoas saíram às ruas de Jerusalém, Tel Aviv, Haifa e outras cidades, onde cantaram e dançaram até o amanhecer. Em Jerusalém, sozinho na mesa de seu gabinete no prédio da Agência Judaica, David Ben-Gurion sentou, apoiou os braços, abaixou a cabeça e a sustentou entre as palmas estendidas das duas mãos. Sabia que no horizonte daquela vitória avultava uma guerra com consequências imprevisíveis. Zevi Ghivelder é escritor e jornalista
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Israel e o fim da era Merkel POR JAIME SPITZCOVSKY
Angela Merkel aterrissou em Israel em outubro, em sua oitava e última visita ao país como primeira-ministra. Tratava-se de uma despedida diplomática, pois ela, uma das principais aliadas do Estado judeu no cenário internacional, optou pela aposentadoria política após 16 anos no comando do governo alemão.
U
ma bússola moral da Europa”, declarou o anfitrião e premiê israelense Naftali Bennett, ao receber Merkel. Uma semana depois da recepção, mais um fato histórico: aviões israelenses e alemães sobrevoaram Jerusalém, em exercício militar conjunto.
O episódio militar despontou como um dos vários resultados do aprofundamento das relações entre Israel e Alemanha ao longo dos quatro mandatos de Angela Merkel, iniciados em 2005. Seus esforços para avançar e consolidar as relações bilaterais se espelham no fato de Berlim se tornar um dos principais interlocutores de Jerusalém no cenário global e o maior parceiro comercial do Estado Judeu na Europa.
Era a primeira vez, desde a 1ª Guerra Mundial, que os céus da capital israelense recebiam uma aeronave germânica. A iniciativa seguiu eventos de agosto, quando jatos de Israel sobrevoaram o campo de concentração de Dachau e a base aérea de Fuerstenfeldbruck, onde ocorreu um dos momentos mais trágicos do atentado terrorista responsável pela morte de 11 israelenses em 1972, nas Olimpíadas de Munique.
Na última visita ao Yad Vashem como chefe de governo, Merkel declarou: “Os crimes contra o povo judeu aqui documentados são uma lembrança perpétua da responsabilidade que nós, alemães, carregamos”. E acrescentou: “Desejo usar esta oportunidade para enfatizar que o tema da segurança de Israel será sempre de importância central e um tópico central para todo governo alemão”.
“O sobrevoo expressa a forte parceria e conexão entre as forças aéreas e os países, assim como o compromisso com a cooperação contínua no futuro”, afirmou o Exército de Defesa de Israel, em nota oficial sobre o exercício realizado em Jerusalém. E, além de pilotarem os jatos, os chefes da aeronáutica israelense e alemã, Amikam Norkin e Ingo Gerhartz, visitaram o Yad Vashem, Museu do Holocausto localizado na capital israelense.
Em suas declarações, Merkel ressaltou também os desafios inerentes a uma relação bilateral a carregar para sempre cicatrizes da tragédia do Holocausto. “Desperta em mim muita emoção”, afirmou ela sobre o fato de Israel confiar na Alemanha do pós-guerra, e admitiu que tal confiança precisa sempre ser reforçada, com iniciativas permanentes do lado alemão. 31
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“Toda visita ao Yad Vashem me emociona profundamente”, declarou a primeira-ministra, que esteve diversas vezes no museu. Na última ocasião, percorreu as instalações acompanhada de Bennet e do rabino Yisrael Meir Lau, presidente do Yad Vashem e sobrevivente do Holocausto. Ele também foi um dos rabinos-chefe de Israel entre 1993 e 2003. Em 2008, Merkel discursou na Knesset (Parlamento) no sexagésimo aniversário da independência de Israel. “A Shoá cobre a nós, alemães, de vergonha”, afirmou. “A ruptura
ministro Ehud Olmert. “Creio que ninguém mais poderia haver dito isso melhor do que Angela Merkel”, comentou ele. Num sinal de que as relações bilaterais ainda suscitam dúvidas e reações negativas em setores da sociedade israelense, cinco deputados boicotaram a sessão. Controvérsias marcam os laços entre os dois países desde seu início, no pós-guerra. Em 1951, o então premiê alemão-ocidental, Konrad Adenauer, fez um famoso discurso, no qual propôs a reconciliação
MERKEL SE REÚNE COM O NOVO PREMIÊ BENNET PELA PRIMEIRA VEZ, EM JERUSALéM
com a civilização representada pela Shoá não tem paralelo... Eu acredito com muita firmeza que, apenas se a Alemanha aceitar sua responsabilidade pelo desastre moral em sua história, nós seremos capazes de construir um futuro humano”. A primeira-ministra classificou ainda como “razão de Estado” para a Alemanha o comprometimento com a segurança de Israel. As palavras, ditas em alemão, ecoaram com força na Knesset, em cerimônia acompanhada pelo então primeiro-
ao recém-criado Estado de Israel, à época governado por David Ben-Gurion. O arquiteto da independência e líder socialista acatou o gesto, apesar das reações negativas de importantes setores da sociedade israelense. BenGurion apoiou sua argumentação em dois pontos. Primeiro, afirmou confiar na construção de uma Alemanha Ocidental democrática sob a liderança do democratacristão Adenauer. Apontou ainda a importância de o jovem país, cercado por vizinhança hostil, com 32
necessidades de investimentos pesados em segurança e infraestrutura para receber ondas migratórias, contar com um leque amplo de aliados capazes de proporcionar apoio político, militar e econômico. Em 1952, Israel e Alemanha Ocidental firmaram um acordo sobre indenizações, aprovado na Knesset, apesar de fortes resistências oriundas sobretudo de setores da direita, à época liderados por Menachem Begin. E, no final daquela década, armas enviadas por Bonn ajudaram a reforçar as Forças de Defesa de Israel. Relações diplomáticas plenas, no entanto, vieram apenas em 1965. Com a comunista Alemanha Oriental, que deixou de existir após a reunificação de 1990, tais laços jamais existiram. Ben-Gurion e Adenauer deixaram, em seus legados, os pilares de uma cooperação baseada nas iniciativas de desnazificação, na responsabilidade histórica, no combate ao antissemitismo e no comprometimento com a segurança de Israel. E nenhum sucessor do pai da reconstrução alemã investiu tantos esforços no fortalecimento dos vínculos bilaterais como Merkel. Seu padrinho político, Helmut Kohl, por exemplo, também permaneceu 16 anos no poder, mas visitou Israel apenas duas vezes. Premiês como Helmut Schmidt e Willy Brandt, ambos da social-democracia, chegaram a protagonizar momentos de crises nas relações bilaterais. Merkel, da democracia-cristã como Adenauer, aprofundou a dinâmica bilateral. Explicações para esse empenho podem estar em sua biografia. Ao vencer as eleições de 2005, transformou-se em primeira
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ANGELA MERKEL EM VISITA A AUSCHWITZ
chefe do governo alemão nascida após a 2ª Guerra Mundial. A física transformada em política nasceu em 1954. Ela, portanto, buscaria liderar gerações do pósguerra empenhadas em se afastar das atrocidades cometidas por seu país no Holocausto e na 2ª Guerra Mundial. Embora tenha nascido na Alemanha Ocidental, em Hamburgo, Merkel cresceu no lado oriental. Seu pai, um pastor protestante, optou por viver no regime comunista para realizar trabalho religioso. A filha mergulhou na política ao participar do desmonte da ditadura imposta pela União Soviética depois da guerra. A primeira-ministra construiu, portanto, uma carreira política ligada à defesa de liberdades individuais e de direitos humanos. Para Merkel, o desenvolvimento das relações com Israel também seria uma extensão
da sua agenda ideológica, formatada a partir das batalhas contra a tirania e a favor da democracia, no final da década de 1980. No entanto, a tendência, nos últimos anos, de fortalecimento de discursos ultranacionalistas e de extrema direita, observada em vários países europeus, acabou chegando também à Alemanha. E, devido a tragédias do passado, a preocupação aumenta quando se fala em extremismo e intolerância alemães. O governo alemão registrou, em 2020, 2.351 casos de antissemitismo, o maior número desde 2001 e 15% superior ao índice de 2019. Ativistas comunitários criticam autoridades federais e estaduais por falhas nos sistemas de segurança e, recentemente, Merkel aumentou o repasse de verbas governamentais para aumentar a segurança em edifícios da comunidade judaica. 33
Críticas a Merkel surgem também no universo comunitário judaico alemão e em setores da sociedade israelense devido à sua posição favorável à solução de dois Estados para o conflito israelo-palestino. Tal abordagem dificultava, por exemplo, o diálogo da primeira-ministra com Binyamin Netanyahu, quando ele governou Israel, entre 2009 e 2021. Outro expoente da direita israelense, Naftali Bennett, hoje adversário de Netanyahu, enfatizou os pontos de convergência ao receber a visitante alemã. E, sem esconder as diferenças de opinião, chamou-a também de “querida amiga de Israel” e destacou a solidez dos laços alcançada ao longo de uma era política que se aproxima do final: o reinado de Angela Merkel. Jaime Spitzcovsky COLUNISTA DA “FOLHA DE S.PAULO”, FOI CORRESPONDENTE DO JORNAL EM MOSCOU E EM PEQUIM.
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Shaltiel, primeiro Embaixador de Israel no Brasil Por PAULO VALADARES
Em poucos meses, em abril de 2022, completam-se 70 anos do estabelecimento das relações diplomáticas entre o Brasil e Israel. Tudo começou com uma cerimônia solene no Palácio Rio Negro, em Petrópolis, em 8 de abril de 1952, às 16 horas, quando o Presidente brasileiro Getúlio Vargas recebeu as credenciais do General israelense David Shaltiel – o primeiro embaixador de Israel no Brasil.
o
movimento foi simultâneo com a abertura da representação brasileira em Tel Aviv, tendo como embaixador brasileiro o diplomata José Fabrino de Oliveira Baião (1892 – 1971), em 5 de março de 1952. A escolha dos diplomatas por Israel mostrava o cuidado na seleção e a importância geopolítica dada à área latinoamericana. Eram homens de reconhecida atuação na restauração do estado israelense – como David Shaltiel – os enviados para o Brasil e regiões vizinhas.
Sua vida David Sealtiel nasceu em Berlim (16/01/1903) - ele hebraicizaria o nome para Shaltiel, em Israel. Como descendia de uma velha linhagem portuguesa, o seu barmitzvá foi realizado entre os “portugueses” de Hamburgo, com a leitura de uma haftará (trecho dos Profetas). Sua militância em prol da restauração de Israel não seguiu a fórmula religiosa de seus ancestrais de manter seu judaísmo; ele a trocou por uma solução política, o Sionismo formulado pelo jornalista húngaro Theodor Herzl (1860-1904), de origem parcialmente sefaradi. Participou do movimento juvenil Blau-Weiss, o primeiro grupo da história sionista, que fora organizado em Berlim em 1912, com o fim de preparar os jovens para a construção de Estado Judeu.
Shaltiel, sobrevivente do Holocausto, foi um herói da Guerra da Independência de Israel, um dos homens que lutaram arduamente para a restauração de um Estado Judeu. A luta pelo judaísmo estava enraizada em sua alma, pois descendia de uma velha linhagem portuguesa cuja genealogia conseguimos apurar até Portugal e que apresentaremos mais adiante. Descendia dos chamados “Gente da Nação” que, em 1497, foram obrigados a se converter à força, tornando-se anussim, em hebraico, também chamados de cristãos-novos ou conversos. 1
A militância deu resultado, pois em 1923, ele “subiu”1 para a Terra de Israel, onde foi agricultor numa plantação de fumo por algum tempo, retornando depois à Europa. Em Nice, a 15 de janeiro de 1925, engajou-se na Legião Estrangeira, de onde deu baixa como sargento em 1930. Desapareceu por algum tempo no Haiti, reapareceu na Alemanha, onde é preso em 6 de novembro de 1936
Entre os judeus, emigrar para a Terra Santa, Israel, é considerado uma “subida”, caracterizada pelo termo “aliá”, proveniente do verbo “laalot”, subir. 34
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Palácio Rio Negro, Petrópolis, onde o Presidente Vargas recebeu as credenciais de Shaltiel
por tentar comprar armas para o futuro Estado de Israel das mãos de um agente duplo alemão. Esteve nos campos de concentração de Dachau e Buchenwald, onde foi torturado pela Gestapo, mas através de influência externa foi solto e voltou à então Palestina sob Mandato Britânico. Em 1948 tornou-se Comandante-chefe da Defesa de Jerusalém durante a Milchemet Hashichrur (Guerra da Independência).
SIONISMO, BRASIL & SHALTIEL A idéia lusitana de recriar uma pátria territorial para os judeus é antiga; tanto em Portugal, com Damião de Góis, ou no Brasil, com o Padre Bartolomeu de Gusmão, que, graças à invenção de um balão, acreditava poder recriar um Estado para os judeus em Israel. Em 1899,
o Engenheiro afro-brasileiro André Rebouças (1838-1898), descendente de um sacerdote cristão-novo, levou o plano de criação de um Estado Judeu, que estaria encravado no Paraná, na disputada fronteira com a Argentina, a D. Pedro II (18251891). Este estado seria destinado 35
aos ashquenazim, que, naquele momento, eram vítimas da política antissemita do governo russo. Muitos desses judeus, nomeadamente provenientes da região da Bessarábia, emigraram para o Brasil na época, para cá trazendo o Sionismo político. Tanto que a partir dos anos de 1920 foram criadas várias sociedades sionistas, de todas as vertentes políticas, para a construção desse objetivo. Gente como o comerciante Jacob Schneider (1887-1975), o advogado Samuel Malamud (1908-2000) ou Israel Dines (1898-1980), dentre tantos outros, trabalharam incansavelmente, no Rio de Janeiro, na arrecadação de fundos para a criação de uma infraestrutura e principalmente no convencimento de não-judeus da justiça do propósito, trazendo para estas fileiras personalidades importantes socialmente como Inácio Manuel Azevedo do Amaral (1883-1950), Reitor da Universidade do Brasil, DEZEMBRO 2021
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no Rio de Janeiro, e o líder católico, Senador Hamilton Nogueira (18971981), que se transformaram em denodados militantes sionistas. Graças a esse trabalho de esclarecimento, não foi surpresa a condução favorável da Assembleia Geral da ONU de 1947, pelo Ministro Oswaldo Aranha (18941960), que só colocou em votação a proposta de criação do Estado Judeu quando ficou seguro de seu resultado. Mesmo assim, o Brasil demorou em reconhecê-lo diplomaticamente, pois
Em 31 de março de 1952, ele e a esposa, a psicóloga Judith Irmgard Schoenstadt (“Yehudit”, 1913-2010), chegaram ao Rio de Janeiro, onde uma multidão formada por judeus de todo o País foram esperá-los no Aeroporto do Galeão, algo que se repetiria em todas as suas aparições públicas. Ele tinha como objetivo fortalecer os laços de Israel com a comunidade judaica e criar simpatia ao Estado de Israel dentro do governo brasileiro, que era reticente a um estado visto como socialista, algo que repugnava o establishment
Sua agenda era notícia nos jornais. Sua área de atuação era extensa, já que, estacionado no Brasil, ele respondia também pela Venezuela, Cuba e México. No Brasil, visitou as comunidades judaicas do Rio de Janeiro, de São Paulo, Minas Gerais, Pernambuco e Rio Grande do Sul; autoridades civis e militares, deu entrevistas, fez palestras; trouxe artistas plásticos, músicos e escritores israelenses para o Brasil. Pleiteou a Ordem do Cruzeiro do Sul, a mais importante condecoração brasileira, para a pediatra Vera Weizmann, viúva do primeiro Presidente israelense, que lhe foi concedida no grau de comendadora, por Getúlio Vargas. Uma testemunha da época, Myriam Rozansky (1912 – 2004), tia da atriz Dina Sfat, registrou em suas memórias o clima que se viveu quando da presença de Shaltiel no Brasil.
General David Shaltiel, DE ÓCULOS, E O CEL. ABDULLAH EL-TEL (À ESQ.) NEGOCIAM EM JERUSALÉM O ACORDO DE ARMISTÍCIO ENTRE ISRAEL E JORDÂNIA, ASSINADO EM RODES EM 3 DE ABRIL DE 1949
somente em 10 de agosto de 1949, o Marechal Eurico Gaspar Dutra (1883-1974), Presidente do Brasil, reconheceu o novo Estado. É para este nosso país que o Coronel (e depois General) David Shaltiel foi enviado duas vezes, primeiro numa rápida visita como Inspetor-Geral das FDI (o exército israelense) para contatos na área militar e, depois, como primeiro Embaixador de Israel no País.
nacional. O General David Shaltiel, fardado com o uniforme militar israelense, apresentou as credenciais ao Presidente Getúlio Vargas (18821954) em 8 de abril de 1952 e ficou no cargo até 11 de dezembro de 1955, quando então foi transferido para o México e depois para a Holanda, onde encerrou a carreira pública em 1966. Shaltiel sabia construir relações e usar as comunicações da época. 36
“De repente dera-se o milagre. Nós tínhamos a nossa Mediná, o nosso presidente e o nosso embaixador [Shaltiel]! Há sentimentos difíceis de descrever, mas sei que todos ainda têm na memória aqueles dias de delírio. A nossa geração fora a eleita para viver este momento de importância histórica inigualável. Tivera o privilégio de assistir à vinda do Messias, isso jamais será esquecido”.
Judeus portugueses Para entender as raízes de David Shaltiel precisamos dar um breve resumo da história dos judeus portugueses. Quando, no dia 31 de março de 1492, os Reis Católicos da Espanha, Isabel de Castela e Fernando II de Aragão, assinaram o Edito de Expulsão, o decreto que expulsava do Reino todos os judeus e mouros que não aceitassem a conversão
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ao Cristianismo, proeminentes membros da comunidade judaica castelhana procuraram o Rei D. João II de Portugal. Conseguiram negociar com o Rei a acolhida dos judeus em troca de vultosos impostos de entrada. Mas, em 5 de dezembro de 1496, Manuel I, sucessor de João II, e às vésperas do casamento com Isabel da Espanha, assina o decreto que prevê, em dez meses, a expulsão dos judeus de Portugal. A expulsão dos “hereges” do país era um dos itens do contrato de casamento exigido pela noiva. A única alternativa para evitar a expulsão seria a conversão ao cristianismo. As famílias que haviam deixado a Espanha quatro anos antes para não se batizar, não estavam dispostas a se converter, e preparam-se para deixar o país. Mas, D. Miguel I não queria a partida daquela minoria tão necessária à expansão ultramarina, em pleno auge, e que faria de Portugal um dos países mais ricos e poderosos da Europa. O rei ofereceu inutilmente uma série de vantagens numa vã tentativa de convencê-los a adotar o cristianismo. Mesmo assim, os judeus preferiam o exílio à conversão e se prepararam para deixar Portugal. A ideia de uma conversão forçada foi levantada, em fevereiro 1497, pelo monarca e seus conselheiros. O mais cruel dos atos governamentais contra os judeus aconteceria em abril daquele ano, durante Pessach, quando o Rei Venturoso mandou retirar, batizar e entregar a famílias cristãs todas as crianças judias até a idade de 14 anos. Os fatos que se seguiram definiriam o futuro dos judeus portugueses, dos “representantes da Gente da Nação”, que seriam “batizados em pé”, à força, e, assim, transformados em anussim, em
General Shaltiel entrega ao RabinoChefe Yitzhak Herzog a bandeira da Brigada de Jerusalém, 1948
hebraico, conversos ou cristãos novos. Praticamente nenhum judeu escapou desse batismo forçado.
De Vila Flor a Jerusalém Vila Flor é uma pequena localidade no distrito de Bragança, nos Trásos-Montes, Portugal, estendida em um vale, com montanhas em volta. Percebe-se a terra cultivada, frutas, oliveiras e rebanhos de ovelhas. Ela surgiu pelo século 13. É uma região de passagem, de quem vem do litoral atlântico e demanda a Espanha. D. Dinis passou por ali, a caminho de Trancoso, para casar-se com a rainha Isabel e batizou-a como Vila Flor. Casas de dois pavimentos, poucas ruas e numa delas, chamada posteriormente de Rua Nova, estava a comunidade judaica até a conversão forçada dos judeus portugueses, em 1497. Usando uma estimativa baseada em processos inquisitoriais e outras fontes correlatas, no século 17, dos três mil habitantes, cem deles eram descendentes de conversos ou cristãos-novos, termos esses utilizados pelos cristãos. Há séculos esses criptojudeus não se misturavam à população geral. O que fazia socialmente um cristãonovo em Vila Flor? Precisava 37
esconder, a todo custo, da Inquisição, o seu judaísmo. Então frequentava a igreja de S. Bartolomeu (que desabou em 1700 e depois foi reconstruída); mas, tinha o cuidado de conhecer as rezas católicas, ajoelhar-se da forma adequada e persignar-se na hora certa; conversar com os cristãosvelhos apenas assuntos neutros, notadamente negociais. Desaparecer do cenário durante a Semana Santa para evitar insinuações e assim conflitos, ou chamar muita atenção sobre si. Não estabelecer relações de comensalidade, algo que daria acesso ao interior de suas casas. Agir como um católico discreto, reprimir qualquer expressão judaica em público. Mas, em casa, incentivar a endogamia, escolhendo pares conjugais dentro de sua parentela. Viver a sua agenda secreta, que incluía cumprir o Taanit Esther (jejum de Esther) e celebrar a Páscoa Judaica, como era chamado Pessach, e o Dia Grande, como era chamado Yom Kipur. A perseguição inquisitorial, provocada por denúncias sobre a sobrevivência dos costumes judaicos entre eles, provocou a fuga dos “judeus de Vila Flor”. Vieram para o Brasil, foram em busca de Amsterdã, foco de atração para quem pretendia voltar à religião ancestral. Dois judeus importantes são ligados a Vila Flor: o comerciante Abraham Israel Pereira (Tomás Rodrigues Pereira, 1601-1674), filho de pais vilaflorenses. Seguidor de Shabetai Tzvi, o autoproclamado “Mashiach”. Subiu a Jerusalém para esperar o Messias. Frustrou-se. O segundo deles, é Antônio de Montezinos ou Aarón Levi, nosso personagem. Antônio de Montezinos nasceu em Vila Flor nos primeiros anos de 1600. Não há precisão na data; além de uma vida modesta, ele viveu DEZEMBRO 2021
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em trânsito, fugindo da perseguição inquisitorial e da pobreza. Chegou a ser preso e processado pelo Tribunal do Santo Ofício da Inquisição de Cartagena de las Indias, entre 3 de setembro de 1639 e 19 de fevereiro de 1641, mas escapou “entregandosele los pocos bienes que se le avian sequestrados”. Tornou-se conhecido não por estas desgraças, mas por um episódio interessante, de que teria vivido na região amazônica e onde encontrara uma tribo indígena que praticava a circuncisão, cujos integrantes sabiam algumas palavras de hebraico e seriam possíveis descendentes das Dez Tribos Perdidas. Para a angústia de Antônio de Montezinos, não bastou ir à Holanda e relatar a história aparentemente inverossímil ao Rabino Menasseh Ben-Israel. O Rabino Menasseh Ben-Israel (Manuel Dias Soeiro, 1604-1657), deu-lhe crédito e a registrou no livro “Esperança de Israel”, publicado em 1650. Antônio de Montezinos recusou a ajuda financeira oferecida pelos dirigentes da comunidade de Amsterdã e retornou à América para buscar confirmação entre os índios Tabajaras da veracidade de sua história. Ele morreu em Recife e foi sepultado no cemitério dos Coelhos, em 1646. Ainda que haja poucos registros sobre a sua vida, é possível seguir a sua descendência até David Shaltiel, primeiro Embaixador de Israel no Brasil, graças à preservação da documentação holandesa e também por seu nome incomum.
descendente de David HaMelech. O casal Gracia e David são pais de Eliau, Isaac, Débora, Ester, Luna Cohen Pereira, Rachel Cassuto, Joseph David e Benjamin.
Berta Kogan cumprimenta o Embaixador de Israel David Shaltiel no Copacabana Palace. Coleção Revista Brasil-Israel
uma família de cristãos-novos de Mogadouro, ao lado de Vila Flor. A mãe de Deborah, Rachel Lopes Velozino, dos Velozinos de Recife, cujo patriarca foi o chazan (cantor litúrgico) Joshua Velozino, da Congregação Tzur Israel de Recife. Isaac e Deborah são os pais de Benjamin, Rachel, Isaac e Gracia. Gracia de Isaac Levi Montezinos, filha do casal anterior, nasceu, viveu e morreu em Amsterdã (1767-1842). Casou-se com David Sealtiel (17741837?), também de Amsterdã, filho de Elias Sealtiel e Esther Mendes Monteiro Preto, de família originária do Porto. Elias era filho de inglês, cuja família viera anteriormente de Creta e que antes da expulsão de Espanha vivera em Barcelona, onde se diziam descendentes de um certo Shealtiel ben Sheshet (circa 1100), General Shaltiel (de pé), Vila Militar, RJ
Isaac de Joseph Levi Montezinos, neto ou bisneto, nasceu em Amsterdã (1732-1796). Casou-se também com portuguesa, Deborah de Isaac Lopes Crespo, cujo pai era nascido no Suriname, mas de 38
Benjamin de David Sealtiel (18031882), filho do casal anterior, foi para Hamburgo em 1826, onde tinha um parente próximo, Joseph de Eliau Sealtiel e sua esposa Débora Querido (descendente de família do Porto, mas, que vivera na Bahia), vivendo naquela cidade desde 1808 num programa de auxílio da comunidade de Amsterdã aos muito pobres. A comunidade fornecia um dinheiro para a passagem e sua instalação em troca do compromisso de que o assistido não retornasse à Amsterdã nos 15 anos seguintes. No final do século 18, viviam em Amsterdã 2800 sefaraditas e destes, a metade vivia nos limites da pobreza absoluta, sendo sustentados por organizações comunitárias. Pois Benjamin foi para Hamburgo e, como era praxe, teve que registrar-se na sinagoga portuguesa. Tendo sido recusado, tentou mais duas vezes e só quando o seu pai, em Amsterdã, prometeu responsabilizar-se por suas despesas é que pode filiar-se à congregação. Um ano depois de aceito, em 1829, casou-se com Jehudit Goldschidt (1800-1877) com quem teve cinco filhos: Gracia, Miriam, Sipora, Sara e David. Ele ganhava a subsistência como lotteriekollekteur (vendedor
REVISTA MORASHÁ i 113 foto: Peter Scheier/AHJB SP
de loterias). O único filho, David, recebeu posteriormente o prenome Chaim (Vida) para afastar o anjo da morte, que ceifara precocemente a filha mais velha. Chaim David Sealtiel (18421892), filho do casal anterior, viveu em extrema pobreza; mas era profundamente religioso, tanto que abria a janela da casa todas as manhãs para verificar se o Mashiach havia chegado. Foi vendedor ambulante e chazan na Esnoga der Portugiesisch-Jüdischen Gemeinde Bet Jisrael, de Hamburgo. Para os atos mais solenes se vestia exatamente como os ancestrais ibéricos. Possuía livros luso-judaicos muito antigos, escritos nos séculos 17 e 18, como o Livro dos Min’hagim, por onde se guiava. Era bastante respeitado, apesar de ser ironizado por sua fé inabalável na chegada do Messias. Ele casou-se com Pauline Juliane Nussbaum (1845-1917), uma ashquenazi já “aportuguesada” e tiveram os filhos Benjamin, Jacob, Joseph e Gracia (“Gretchen”) Bachrach, esta assassinada no campo de extermínio em Auschwitz. Benjamin Sealtiel (1874-1934), filho do casal anterior, foi um pequeno comerciante de couro de cabra (marroquim) para fazer bolsas, encadernações e sapatos. Coincidentemente, esta profissão, até a metade do século 20, nos Trásos-Montes dos seus ancestrais, ali chamada de “peliqueiro”, foi privativa dos descendentes de cristãos-novos e servia até como sinônimo de judeu. Eram ridicularizados como os “caniqueiros”, já que usavam excremento de cães para curtir as peles. Por esse motivo, seus filhos eram apupados com uma trovinha ofensiva. Benjamin casou-se com Helena Wormser (1871-1938), de Karlsruhe. Tiveram cinco filhos:
General Shaltiel, a esposa Judith e o casal Klabin
o primogênito Raphael Kaufman, que morreu aos nove anos; a seguir, David, nascido em 1903, que se tornaria o primeiro Embaixador de Israel no Brasil; depois, Joseph (1905 – Campo de Extermínio de Dachau, 1945), o último Presidente da Esnoga der Portugiesisch-Jüdischen Gemeinde Bet Jisrael, no nº 37 da Innocentiastrasse, em Hamburgo; e uma filha, Juliane Pauline Izaak (1900-1941), também assassinada na Shoá, o Holocausto.
EPÍLOGO Apresentar a parentela do General David Shaltiel foi uma oportunidade para recolocar em circulação vários momentos da história sefaradi: o trauma da conversão forçada, a pobreza e humilhações nas gerações atingidas pela Inquisição, o expatriamento forçado, os assassinatos na Shoá e, finalmente, a redenção na construção de um novo Estado Judeu após quase dois milênios de sua queda. Não há como não lembrar, nesta trajetória pessoal, o poema do escritor argentino Jorge Luís Borges (1899-1986), aparentado aos Borges de Torre do Moncorvo – vizinho à Vila Flor dos ancestrais de Shaltiel – que aderiram à “Obra do Resgate”, criada pelo Capitão Barros Basto para acolhê-los ao Judaísmo. Poema escrito 39
para comemorar a vitória de Israel na Guerra dos Seis Dias, que fala deste cotidiano de humilhações até a vitória, quando então é comparado com o leão totêmico do Rei David, o ancestral de Shaltiel: “(...) un hombre condenado a ser el escarnio / la abominación, el judio / un hombre lapidado, incendiado y ahogado em camaras letales, / un hombre que se obstina en ser inmortal / y que ahora ha vuelto a su batalla, / a la violenta luz de la victoria, / hermoso como un león al mediodia (...)” . David Shaltiel terminou a sua jornada em Jerusalém, em 23 de fevereiro de 1969, e foi sepultado próximo a Herzl, o formulador do Sionismo político. BIBLIOGRAFIA
Gazette Shaltiel, Amsterdã, vol. IV, nº III, maio de 2000 – circulação familiar Halévy, Michael. “Sioniste au parfum romanesque. La vie tourmentée de David Shaltiel (1903-1964)”. Em: Los Muestros nºs 37-45, 1999, p. 22 Vasconcellos, J. Leite de. Etnografia Portuguesa, IV. Lisboa: Imprensa Nacional, 1958 Bibliografia na íntegra disponível no site www.morasha.com.br Paulo Valadares é Mestre em História Social (USP), autor (com Guilherme Faiguenboim e Anna Rosa Campagnano) de “Dicionário Sefaradi de Sobrenomes / Dictionary of Sephardi Surnames”, dentre outros trabalhos.
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SER FELIZ OU ESTAR FELIZ? por Rabino Gabriel Aboutboul
Muitas pessoas acreditam que o objetivo da vida é ser feliz. O Judaísmo acredita na força e na importância da alegria. Contudo, a felicidade não é uma meta, e sim, uma forma de viver a vida. Não corremos atrás da felicidade, pois quem a persegue só acaba se afastando dela. OBTÉM-SE A FELICIDADE por meio de nossas atitudes e de nossa forma de VER a vida e de como vivemos neste mundo. Vejamos como o Judaísmo e alguns de nossos Sábios VEEM a felicidade e qual o caminho que nos recomendaram percorrer para alcançá-la.
A
felicidade e alegria constituem uma Mitzvá, um mandamento da Torá. Vários de seus versículos claramente ordenam ao ser humano servir a D’us com alegria. O Baal Shem Tov – fundador do Movimento Chassídico – ensinou que é por meio da alegria que o ser humano verdadeiramente serve a D’us. Um de seus ensinamentos fundamentais era a necessidade de uma pessoa estar sempre feliz e alegre.
Nosso objetivo neste mundo não é a busca pela felicidade, mas certamente faz parte da nossa missão trazer felicidade a outras pessoas. De fato, é nisso que reside o segredo da verdadeira alegria. Somos verdadeiramente felizes quando conseguimos fazer outras pessoas felizes.
Felicidade versus Diversão É importante ressaltar que existe uma enorme diferença entre diversão e felicidade. A diversão é algo passageiro e sem muita consistência. A felicidade, por outro lado, é um sentimento interiorizado e bastante forte. Diversão, por exemplo, pode ser passar um dia em um parque de diversões; já um exemplo de felicidade é olhar nos olhos de uma pessoa amada.
Encontramos no Tanach a ideia de que a alegria era um pré-requisito para que um profeta conseguisse profetizar. Por exemplo, quando o Rei David quis profetizar, ele pediu que tocassem instrumentos musicais para levantar seu ânimo. Por outro lado, a profecia deixou de recair sobre o nosso Patriarca Jacob durante todos os anos em que ele viveu imerso em melancolia em virtude da ausência de seu filho Yossef.
No Judaísmo, a felicidade não é sinônimo de passividade: não significa deitar-se em uma rede, sem ter de enfrentar desafios. A verdadeira felicidade se obtém por meio da luta, da dor e das conquistas alcançadas. É um estado de espírito que nos ajuda a alcançar nossos objetivos: ela nos dá força e nos torna mais ágeis, levando-nos a fazer as coisas com mais vontade.
A alegria é, portanto, um elemento fundamental do Judaísmo. Por outro lado, a Cabalá ensina que se a felicidade constituísse o objetivo da vida, nossa alma não faria a viagem até este mundo, pois seria muito mais feliz no Mundo das Almas, onde não existem sofrimentos ou preocupações. 40
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CASAMENTO JUDAICO COM UMA ORQUESTRA DE MÚSICA KLEZMER, EM UM SHTETL, NA RÚSSIA. PINTURA DE ISAAK ASKNAZIY, 1893
E cabe ressaltar que a felicidade requer uma boa dose de humildade. Em muitos casos, uma pessoa arrogante não se permite ser feliz porque acredita que tudo que recebeu da vida é muito pouco. Uma pessoa arrogante nunca está satisfeita, pois acredita que merece mais e que deveria ser ainda mais valorizada do que é. Felicidade, portanto, é saber usufruir e apreciar o que nos é dado.
sobre nosso estado de espírito. Como impedir que afetem a nossa felicidade? Uma famosa história chassídica ensina como lidar com tais desafios:
As portas de nossa mente Antes de mais nada, devemos saber que ser feliz é um sentimento que depende de nós – de nossa mente, nossas atitudes e nossos sentimentos. Se nossa felicidade depender de fatores externos ou do estado de espírito de outras pessoas, será muito difícil sermos felizes. É inegável, porém, que pessoas e fatores externos tenham influência
CAÇANDO O PÁSSARO AZUL. CHAGALL, LITOGRAFIA, 1969
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Uma certa pessoa estava tendo muita dificuldade em lidar com seus problemas. Não conseguia se manter tranquila – vivia sempre angustiada e preocupada. Um dia, procurou seu Rebe para pedir um conselho de como lidar com seu estado de espírito. O Rebe lhe disse: “Viaje para tal cidade e procure tal rabino. Lá você encontrará a resposta que busca”. Apesar do inverno rigoroso, o homem fez uma longa viagem até chegar à casa do rabino. Do lado de fora da casa, percebeu que o rabino estava sentado em frente à lareira. O homem, passando muito frio, bateu na porta da casa repetidamente, mas ninguém abriu a porta. Finalmente, depois de um tempo, o rabino abriu a porta e o convidou para entrar. Serviu-lhe uma bebida quente e deixou seu hóspede à vontade até que se aquecesse. O viajante, que havia vindo de tão longe para encontrar DEZEMBRO 2021
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uma ocasião especial – toda vez que toca o telefone ou recebemos uma mensagem no celular.
uma resposta para seus tormentos, antes de abordar os assuntos que lhe afligiam, perguntou ao rabino: “Percebi que o senhor estava em casa enquanto eu batia na porta. Gostaria de entender por que demorou tanto para abrir e permitir que eu entrasse”. E ele lhe respondeu, “Não abri a porta antes porque a casa é minha e abro a porta apenas quando eu quiser. Agora você já pode voltar para casa: foi para aprender essa lição que você veio até mim”. Essa famosa história chassídica transmite uma lição importante: cada um de nós tem o poder de escolher quando abrir as nossas portas. Metaforicamente, temos em mão a chave da nossa mente e do nosso coração – podemos escolher quem e o que deixamos entrar. Não devemos permitir que pessoas negativas, palavras negativas, pensamentos negativos, problemas e pressões externas entrem em nossa mente e nosso coração e acabem com a nossa felicidade. Se adentram em nosso coração, é porque permitimos sua entrada. Nós temos as chaves de nossa felicidade. Vale ressaltar que a palavra hebraica Besimchá, “com alegria” tem as
mesmas palavras que a palavra Machshavá, “pensamento”. Não devemos permitir que problemas dominem nossos pensamentos e tirem nossa serenidade. Pensar em um problema constantemente, só trará angústia em vez de soluções. Podemos também escolher não dar ouvidos a tudo que nos dizem. Temos o poder de abrir nossas portas apenas quando o desejarmos. Isso significa que não é necessário interromper o que estamos fazendo – um jantar de família, uma aula ou
GRUPO DE MÚSICOS KLEZMER. ÓLEO SOBRE TELA. TULLY FILMUS
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À medida que dominamos nossa mente e nosso tempo, alcançamos mais felicidade. Assim, quando falamos em felicidade, estamos falando, acima de tudo, sobre o controle de nossa mente, de nossos sentimentos e de nossa capacidade de manter uma postura ativa e proativa. Mas controlar a mente e nossos sentimentos depende – como qualquer outra habilidade adquirida na vida – de treinamento. É por meio do controle de nossa mente que nos fortalecemos e nos tornamos mais felizes.
Rir e Chorar ao mesmo tempo Havia um chassid chamado Rav Peretz que rezava de forma singular: ele chorava com um olho e sorria com o outro. Os amigos lhe perguntavam como era possível chorar e se alegrar simultaneamente. Rav Peretz lhes respondeu: minha alegria advém da minha consciência a respeito da grandeza de D’us; já a fonte das minhas lágrimas é a minha conscientização dos meus defeitos e das minhas falhas. O Zohar, livro fundamental da Cabalá, explica de forma profunda esses dois sentimentos simultaneamente expressos por Rav Peretz. Ensina que a alegria advém de estar próximo de D’us e as lágrimas do fato do ser humano ser falível. Rav Peretz nos ensinou uma importante lição: que mesmo ao rezar, um dos olhos pode ser usado para que a pessoa reflita a respeito de seus atos e de si mesma. Por meio da expressão simultânea desses sentimentos aparentemente antagônicos, Rav Peretz demonstrou como aprimorar
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o caráter com alegria. Ele via suas fraquezas, mas não permitia que elas o tornassem infeliz. O ser humano vive esse conflito continuamente. Por um lado, vemos nosso lado bom – nossa alma Divina – e nos alegramos com o privilégio de poder fazer o bem e ajudar os outros. Por outro lado, todo ser humano tem falhas e defeitos e tem dificuldade de vê-los e se libertar deles. Fazer uma autoavaliação sincera requer muita força e coragem, pois uma autorreflexão genuína nos leva a ver em nós mesmos uma série de falhas, erros e defeitos de caráter. A pessoa que ama D’us e faz uma reflexão séria a respeito de si, aceita seus defeitos com alegria sabendo que esses são desafios que D’us lhe deu. Ela sente alegria porque sabe que parte da missão de sua vida é crescer e se autocorrigir. Se conseguir identificar o que precisa ser trabalhado e melhorado, isso lhe servirá como um trampolim para seu crescimento. Sob este olhar, as falhas não são vistas como fraquezas, pois a pessoa que tem fé em D’us sabe que lhe foi dada a capacidade de enfrentar tal desafio e prevalecer.
qualidades constitui uma Mitzvá ainda maior.
Retificação Rabi Menachem Mendel Schneerson, o Lubavitcher Rebe, traz em seus escritos um conceito muito bonito sobre pecado e felicidade. Ele escreve que o próprio fato de saber que, mesmo quando erramos, D’us sempre nos dá outra chance, é, por si só, uma grande fonte de alegria. Em outras palavras, saber que é sempre possível mudar a nossa situação e a nós mesmos é uma grande fonte de alegria. VIOLINISTA VERDE. MARC CHAGALL, 1923-24
defeitos de outros seres humanos não é nossa missão de vida. Nossa missão é encarar nossas próprias falhas e fraquezas e utilizá-las como o ímpeto necessário para o nosso crescimento pessoal. O Rabi Yosef Yitzhak Schneerson – o sexto Rebe de Lubavitch, conhecido como o Rebe Anterior – ensinou que admitir nossos defeitos é uma Mitzvá, mas reconhecer nossas
Cada pessoa pode, de maneira alegre e positiva, modificar sua maneira de ser ou viver: pode escolher tomar um outro caminho. É a própria alegria que nos dá a força para mudar e crescer e, assim, transformar a nossa situação. Portanto, a alegria é o sentimento que leva a pessoa a se retificar.
Confiar em D’us Conta-se a história de um grande rabino que se encontrava em uma situação muito difícil. Tanto ele como
Portanto, a alegria de conseguir enxergar seus próprios defeitos não constitui um sentimento contraditório. O ser humano que vive com essa perspectiva e faz esse tipo de autorreflexão nunca será uma pessoa infeliz. Pois ao reconhecer suas fraquezas e se arrepender pelos seus atos, seu choro será uma expressão de alegria. Por outro lado, o ser humano que teme ver seus defeitos ou que acredita que não tem o poder de mudar e crescer, certamente será uma pessoa infeliz. É importante procurar conhecer nossos defeitos. É muito fácil analisar e enxergar as falhas de outras pessoas. Contudo, ver os 43
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seus alunos não tinham o que comer ou beber, mas enquanto os alunos choravam, o rabino cantava. Os alunos não entendiam a atitude de seu mestre. Perguntaram ao rabino: “Como o senhor consegue cantar em meio a essa situação difícil?” Ele respondeu: “Meus alunos têm motivo para chorar, pois eles esperam que eu os tire dessa situação. Eles depositaram sua confiança em mim. Eu, por outro lado, estou feliz e alegre porque confio em D’us”. Essa história nos ensina que nossa alegria e tranquilidade depende de nossa escolha em quem confiar. Quando confiamos em seres humanos, que são falíveis – quando esperamos que eles resolvam nossos problemas ou que sejam a chave do nosso sucesso – sempre teremos motivo para chorar. Mas confiar em D’us significa viver com felicidade. O ser humano que confia em D’us de verdade tem bons motivos para viver com alegria, pois aquele que acredita que D’us pode mudar toda uma situação difícil e, em um piscar de olhos, passa a viver com mais tranquilidade. A confiança em D’us nos dá a capacidade de reduzirmos a preocupação, que é tão nociva e destruidora. Mas confiar em D’us não significa apenas rezar. Toda pessoa precisa trabalhar e perseguir seus objetivos, pois D’us abençoa nossos esforços. Como ensina a Torá, D’us abençoa o trabalho das nossas mãos. Isto é, o esforço do ser humano é o meio que atrai as bênçãos Divinas. É necessário se esforçar para resolver problemas, mas com a alegria e tranquilidade que advêm da confiança em D’us. Portanto, mesmo em momentos de frustração ou preocupação, é possível ser feliz. Essa é a ideia de chorar com um olho e rir com o outro, simultaneamente.
Obtendo Felicidade Em certa ocasião, Rabi Yosef Yitzhak Schneerson – o sexto Rebe de Lubavitch – escreveu uma carta para uma pessoa que precisava ser encorajada a ser feliz. Ele escreveu: “Seja tão alegre como você seria se seus problemas já tivessem sido resolvidos”. Em outras palavras, viva com a alegria que você viveria se esses problemas não mais existissem.
Surpreendidas com sua reação, as pessoas lhe perguntaram como ele havia conseguido manter a calma. E ele respondeu: “Daqui a um ou dois anos, isso não mais me abalará. Fará parte do meu passado e eu continuarei a viver a minha vida. Por que então devo passar um ou dois anos aborrecido e permitir que esse sentimento me consuma, que paralise a minha vida, se já posso olhar para frente?”
Quadro de Boris Shapiro
Quando se vive com a fé em D’us de que todos os problemas serão resolvidos, é possível viver com tranquilidade e alegria. Conta-se a seguinte história sobre um tio do Rebe de Lubavitch: ele era dono de uma fazenda de criação de ovelhas que, em certa ocasião, foi destruída por um incêndio. Como já era um senhor de idade avançada, as pessoas tinham receio de lhe informar que sua fazenda havia sido destruída. Mas quando ele ficou sabendo do ocorrido, permaneceu tranquilo. 44
É natural que certas situações na vida nos deixem tristes, frustrados e irritados. Mas nosso problema é que, em muitos casos, esquecemos o bom e só nos lembramos dos incêndios em nossa vida. Nossos problemas nos consomem por muitos anos – mesmo depois de terem sido resolvidos há tempos. Na maioria dos casos, o que nos preocupa tanto hoje – os assuntos que parecem ser tão importantes na atualidade – irão passar e nem sequer nos lembraremos deles. Por que, então, sofrer tanto por algo passageiro? Por que permitir que
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tais assuntos preencham nossa mente e nossos sentimentos? Por que não seguir o conselho do Rebe Yosef Yitzhak e agir hoje como se nossos problemas já tivessem sido resolvidos? Por que levar anos para superar uma situação que pode ser superada no presente? Uma pessoa que só se foca nas coisas que deram errado em seu dia a dia – e não em tudo que deu certo – será uma pessoa infeliz. Alguém que se coloca em situações que lhe fazem mal, será infeliz. E quando condicionamos nossa felicidade a algum fator externo – ganhar na loteria ou conseguir o trabalho de nossos sonhos – a felicidade se torna difícil de alcançar. É errado passar a vida à espera da felicidade. A verdadeira felicidade não depende de situações externas, e sim, da capacidade de viver uma vida que leve à felicidade. Isso significa optar por ver o que há de bom em nosso dia a dia; significa se colocar em situações positivas; significa, acima de tudo, escolher ser feliz. Adquirese a felicidade a partir do momento em que se cria o espaço para que ela cresça e se desenvolva. Quando o ser humano tem uma atitude positiva e alegre, ele naturalmente se torna uma pessoa mais feliz. Quando substitui uma visão negativa por uma positiva, o ser humano se abre para a alegria e para mudanças positivas em sua vida.
Alegria e espiritualidade Está escrito em nossos livros sagrados que a alegria é o recipiente para a espiritualidade. Isto é, as rezas são ouvidas e as Mitzvot têm seu efeito desejado se rezarmos e cumprirmos os mandamentos de D’us com alegria. Quando se reza por mera obrigação, não há como saber se os efeitos da reza se perpetuarão. Mas quando essa oração é acompanhada por um sentimento de alegria e felicidade, essa reza valerá para muitas gerações. Isso vale também para as Mitzvot. Toda Mitzvá que é feita com alegria se perpetua ao longo das gerações. Quando o Judaísmo é praticado com felicidade, torna-se muito mais fácil transmiti-lo para a próxima geração. Quando os pais cumprem as Mitzvot com alegria, eles transmitem aos filhos a ideia de que o Judaísmo atrai bênçãos, paz e felicidade. Isso incentiva os filhos a seguir o mesmo caminho espiritual dos pais. Por outro lado, se as
cerimônias e os rituais do Judaísmo forem praticados com má vontade – em meio a discussões e discórdia – os filhos podem vir a associar a prática das Mitsvot ao oposto da felicidade, e isso pode fazer com que eles se distanciem de sua herança espiritual. É interessante notar que a palavra Mashiach – a personificação da salvação – possui as mesmas letras que a palavra Simchá – alegria. Está escrito, portanto, que o “salvador” que habita dentro de nós é a própria alegria. Segundo o Judaísmo, a alegria é a expressão da essência da nossa alma. O Lubavitcher Rebe sempre enfatizava a importância de viver com alegria. Ele ensinava que em nossa geração não há espaço para amargura, melancolia ou tristeza. Hoje, há espaço apenas para alegria e felicidade. E não há maior alegria do que gerá-la na vida de outras pessoas. Rabino Gabriel Aboutboul é rabino da Sinagoga de Ipanema no Rio de Janeiro e palestrante
Cena do casamento: bênção da noiva e do noivo, Ilya Schor
O Rebe Yosef Yitzhak nos deu uma lição valiosa para evitarmos problemas e preocupações: ao nos concentrarmos no bom e no positivo, direcionando nossas emoções para o bem, conseguiremos viver como se o que nos aflige já tivesse sido resolvido. Por meio de alegria e felicidade, torna-se possível nos transformarmos e transformar a própria vida. 45
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Realidade ou Ficção? Por André Lajst
Hoje, todos nós conhecemos um Israel tecnológico, moderno e próspero. Seu exército é um dos mais avançados do mundo em termos qualitativos e quantitativos, tendo uma posição de superioridade militar ante todas as nações do Oriente Médio. Podemos afirmar com convicção que Israel está mais seguro hoje do que no passado e não enfrenta perigos existenciais gritantes, a não ser o programa nuclear iraniano.
P
orém, em um passado não muito distante, a realidade de Israel era bem diferente. Após sua independência e o início da guerra de 1948 contra nações árabes, foi imposto à região um embargo internacional que dificultava, ao recém-criado Exército de Defesa de Israel, a compra de armamentos para lutar a guerra pela sobrevivência do novo Estado Judeu. Para tanto, os israelenses precisariam ser criativos, superando as investidas das forças aéreas egípcias e sírias, enquanto encontravam caminhos alternativos a fim de constituir uma Força Aérea capaz de impedir os inimigos de destruírem o país. Era necessário encontrar uma reação digna dos filmes de ação.
após a queda do Xá Reza Pahlevi, durante a revolução islâmica no Irã. Tony viaja ao país sob domínio dos aiatolás e convence os iranianos a permitir que seu território seja usado como locação. Uma vez aprovado o início das filmagens, os diplomatas se passaram por membros da equipe técnica e, tendo em mãos falsos passaportes canadenses, conseguiram sair do Irã em segurança.
Acredito que alguns dos leitores deste artigo tenham visto o filme Argo, dirigido e protagonizado pelo ator norte-americano Ben Affleck. Ganhador do Oscar 2013 em sete categorias, inclusive a de Melhor Filme, o longa conta a história verídica de um agente da CIA, Tony Mendez, que cria toda uma produção cinematográfica e se disfarça em diretor de cinema para resgatar, em 1979, diplomatas americanos que fugiram da sua embaixada em Teerã, quando esta foi invadida e tomada por manifestantes radicais anti-Estados Unidos,
No verão daquele ano, Israel enfrentara com dificuldade os exércitos árabes, mais numerosos em todos os aspectos, especialmente no céu. A Força Aérea de Israel possuía apenas 10 aviões pequenos do modelo Piper, com apenas um motor, enquanto a força aérea egípcia dominava os céus da região e bombardeava Tel Aviv. Apesar das tentativas, nenhum diplomata israelense no exterior conseguiu comprar aviões por conta do impedimento internacional. Sabendo da urgência em mudar o cenário da guerra, Ben-Gurion convoca Emmanuel Zurr para uma
Pois saibam que o primeiro Argo foi em Israel. Sob o embargo militar de 1948, o país procurava maneiras criativas para garantir sua sobrevivência durante a guerra em andamento. A alternativa encontrada por Emmanuel Zurr, enviado do primeiro-ministro David Ben-Gurion, é praticamente inacreditável.
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Zurr foi um dos fundadores da aviação israelense, pioneiro em abrir uma escola de pilotagem onde formaria pilotos para os grupos paramilitares judaicos Haganá e Palmach, ainda antes da fundação do Estado. Pelo fato de ter estudado na França e ter voado profissionalmente por toda a Europa, ele mantinha muitos contatos importantes no ramo da aviação. Um homem elegante, bem-vestido, fluente em francês e em alemão, Zurr conseguiu transitar pela Europa, disfarçandose sob diversas identidades com facilidade. Na Europa, em especial na Inglaterra, havia grande quantidade de aviões sem uso, sobras da 2ª Guerra Mundial. Por conta dos
Foto: Zoltan Kluger, Governo de Israel
reunião onde lhe pede que viaje à Inglaterra. Uma vez lá, ele teria que encontrar aviões militares usados na 2ª Guerra Mundial para os comprar e enviar, a qualquer preço, para Israel.
EMMANUEL Zurr. Piloto-chefe e instrutor de vOo da Aviron, 1938
seus contatos, Zurr montou um esquema para contrabandear aviões desmontados, burlando o embargo. Conseguiu enviar para Israel oito aviões, bem debaixo do nariz dos ingleses, quando então Ben-Gurion lhe pede que também providencie bombardeiros. 47
Enquanto o serviço de inteligência britânico já começa a procurar Zurr, que usava uma identidade fictícia quando estava em Londres, ajudado por um parceiro judeu inglês, o agente israelense continua tentando encontrar soluções das mais diversas - e arriscadas - para transportar os bombardeiros requisitados pelo primeiro-ministro. Certo dia, soube que em uma mecânica de aviões, no sul da Inglaterra, havia aviões bombardeiros britânicos do modelo Beaufighter. Tratava-se de uma arma de guerra grande, com dois motores e quatro canhões de artilharia. Emmanuel compra as quatro aeronaves disponíveis, porém não era possível enviá-las a Israel da forma como vinha fazendo até então. Como contrabandear quatro aviões gigantes da Inglaterra para Israel enquanto a Scotland Yard estava atrás do emblemático Zurr? DEZEMBRO 2021
Foto: Instituto Ben-Zvi
israel
Membros do Israel Flight Club com um planador capotado em Kfar Ha-yeladim, 1934
Ainda sem saber como solucionar a questão, o destemido aviador viaja a Paris. Lá, após algumas semanas, em um café ele conhece uma jovem da Nova Zelândia, que desejava ser atriz. Ela conta a Emmanuel que seu grande sonho era fazer um filme sobre os pilotos neozelandeses que lutaram na 2ª Guerra Mundial para ajudar a salvar o mundo livre. Após a reunião, Zurr entende que a jovem acabara de lhe entregar a história de que tanto precisava para retirar os bombardeiros da Inglaterra e levá-los para Israel.
compraram filmes de cinema para fazer os registros, realizaram testes com atores e atrizes famosos, enfim, respeitaram todos os quesitos para que, aos olhos dos britânicos, tudo indicasse que, de fato, estava sendo produzido um filme. Chegaram a publicar um anúncio no jornal procurando roteiristas para servir de pano de fundo ao filme e entregaram às autoridades britânicas um roteiro completo do filme. Chamou a atenção da Scotland Yard a requisição de autorização
A estratégia de Zurr, na verdade, é idêntica à usada pelos agentes da CIA para resgatar os diplomatas americanos durante a Revolução Iraniana, em 1979, na operação de que trata o filme Argo. Trinta anos antes, a criatividade judaicoisraelense, a audácia própria de nosso povo já transformavam ideias altamente improváveis em realidade. Na época, ele abriu uma produtora de filmes, que, na teoria, começaria as filmagens de uma produção sobre os heroicos pilotos neozelandeses que lutaram contra os japoneses na 2ª Guerra Mundial. Montaram um escritório no exclusivo Hotel Savoy, contrataram cinegrafistas locais de primeira linha, bem como figurantes, designers, estilistas;
Zurr apontando para uma placa alertando contra o movimento de aeronaves no aeródromo. Sodom, 1938-9
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para filmar aviões bombardeiros Beaufighter decolando, e, por isso, tiveram que realizar, de fato, alguns dias de filmagens com o objetivo de despistar os investigadores. No primeiro e no segundo dia pela manhã, os ônibus saíram de Londres com a equipe de filmagem. Os atores chegavam em um aeroporto ao lado da capital britânica e, de lá, os aviões decolavam e pousavam com autorização da aviação civil local. Já no terceiro dia, os Beaufighter decolaram e pousaram em outro aeroporto para indicar à torre de controle que, nas filmagens para o suposto filme, nem sempre pousariam no mesmo lugar. Fora Emmanuel Zurr e os pilotos, ninguém sabia do verdadeiro plano. Todos pensavam se tratar de uma produção cinematográfica, até que veio o quarto dia e, com ele, o clímax da história. Era o dia 2 de agosto de 1948. No aeroporto Thames, 40 figurantes abanavam lenços brancos para os pilotos que corriam para os aviões, enquanto tudo era acompanhado pelas lentes das câmeras. As aeronaves decolaram na frente de toda a produção, atores e figurantes. Seria apenas um voo para a Escócia, a fim de continuar as gravações do suposto filme. Nenhuma pessoa da equipe técnica ou do elenco desconfiou de nada, encerrando então sua participação no filme. Na prática, os quatro aviões bombardeiros Beaufighter que decolaram do aeroporto ao lado de Londres pousaram em Ajaccio, capital da ilha francesa de Córsega. Emmanuel Zurr convenceu os fiscais de voo no aeroporto que não reportassem os pousos. No dia seguinte, as aeronaves voaram para Podgorica, na então Iugoslávia, e, no dia 4 de agosto, cerca de 48 horas
REVISTA MORASHÁ i 113 Foto: Instituto Ben-Zvi
depois de saírem da Inglaterra, os aviões pousaram no aeroporto de Ekron, hoje em dia Tel Nof, em Israel. Os aviões brilhantemente contrabandeados foram usados pelo exército de Israel na Guerra da Independência, que terminou com a vitória israelense, em 1949. Ben-Gurion pediu a Emmanuel Zurr que voltasse à Europa para trazer mais aviões. Cumprindo ordens, o aviador faz novas tentativas de burlar o embargo. Um mês depois da bem-sucedida importação clandestina de bombardeiros, a história foi exposta na mídia britânica, com manchetes de capa, nos jornais: “Aviões desaparecidos Beaufighter. Scotland Yard procura diretor do filme e sua esposa”. E completam: “Emmanuel Zurr, tomando conhaque sob o sol na Champs-Élysées, disse: ‘Eu fui o cérebro de todas as operações. Os aviões estão agora em Tel Aviv e fazem parte da Força Aérea judaica’”.
Décadas depois, sua filha Dafna contou a história de seu pai para a equipe de soldados da Força Aérea israelense que serviam na base de Tel Nof. Os aviões serviram principalmente nos embates contra o exército egípcio. Um deles caiu em combate e seus destroços estão expostos no Museu da Força Aérea Israelense, perto de Beer Sheva.
O legado de Emmanuel Zurr ultrapassa o fato de ele ter criado um enredo hollywoodiano para lidar com um impasse da vida real. Esses aviões contrabandeados e o seu empenho em ensinar novos pilotos a voar foram a base da aviação israelense que conhecemos nos dias de hoje, concreta e ideologicamente. A criatividade e a resiliência de Emmanuel Zurr ainda são fonte de inspiração para aqueles que defendem os céus do país, e que transformou sua Força de Defesa em uma das melhores do mundo. Como condecoração pelos seus atos de bravura e criatividade, ele foi nomeado por Ben-Gurion como o primeiro diretor-geral do então
Aeroporto de Lod, atualmente Aeroporto Ben-Gurion. E, em algum depósito da Scotland Yard, está a caixa com os quatro filmes dos quatro dias de gravações do fictício longa, que mostrou ser muito menos interessante do que a história real. Bibliografia
“A solução quase inconcebível encontrada por Emmanuel Zurr”, N12, 2013. Disponível em <https://www.mako.co.il>, acessado em: 2021. “The Israeli Air Force : An Operation Out Of The Movies, Israel Air Force”, 2014. Não mais disponível em <https://www.iaf.org.il >, acessado em: 2018. André Lajst foi oficial acadêmico da Força Aérea de Israel. Cientista Político, é hoje diretor executivo da StandWithUs Brasil
Foto: Stuart Carr
Durante meses após a divulgação do ocorrido, a mídia britânica lidou com a história e o deboche contra a Scotland Yard, sustentado pela ideia de como fora possível que um único homem conseguisse contrabandear 16 aviões, enganando oficiais ingleses. Obviamente, após a exposição na mídia e sua recémconquistada fama, Zurr teve que voltar para Israel.
EMMANUEL Zurr (à esquerda) e formandos do primeiro curso de pilotos diante de um avião RWD-8, 1939
Destroços do avião Beaufighter que caiu em combate na Guerra da Independência, 1948. Monumento no Museu da Força Aérea de Israel
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50 anos do Hospital Israelita Albert Einstein Gestão, excelência, inovação e infraestrutura de ponta aliam-se às práticas de humanização e incorporação de um número cada vez maior de serviços cujo objetivo central é o benefício do paciente – uma missão definida há cinco décadas e que permeia a visão para o futuro.
A
história da Sociedade Beneficente Israelita Brasileira Albert Einstein (SBIBAE) teve início com um sonho do médico Manoel Tabacow Hidal: construir um hospital para a comunidade judaica e para a população da cidade de São Paulo, em retribuição ao acolhimento dado aos imigrantes no Brasil.
hospital por Hans Albert Einstein, filho do famoso físico judeu, Albert Einstein, em um terreno doado no Morumbi por Emma Klabin, em memória de seu pai, Hessel Klabin, emigrado da Lituânia para o Brasil em 1895. Dezesseis anos após a assinatura do Manifesto à Coletividade e da criação da SBIBAE por um grupo de médicos e empresários judeus, era inaugurado, em 28 de julho de 1971, o Hospital Israelita Albert Einstein, que ao longo dos anos, se tornaria parte fundamental do progresso nacional na área da saúde.
Era então a década de 1950, quando São Paulo celebrava o IV Centenário de sua fundação e as diferentes comunidades de imigrantes lhe prestavam sua homenagem. A forma que a comunidade judaica escolheu para demonstrar seu apreço está expressa no Manifesto à Coletividade Israelita de São Paulo, lançado em 4 de junho de 1955: “Apelam os signatários para a Coletividade Israelita de São Paulo no sentido dela obterem os elementos necessários e indispensáveis para a realização de obra tão meritória (...) cujas finalidades visam proporcionar conforto e assistência a doentes e menos favorecidos, constituindo também uma contribuição da Coletividade para a solução do problema assistencial de São Paulo”. Três anos depois, em 1958, era colocada a pedra fundamental do futuro
No ano seguinte à inauguração tornou-se um dos primeiros hospitais do Brasil a implantar uma Unidade de Terapia Intensiva (UTI), com quatro leitos de cuidado intensivo e seis de semi-intensivo. A iniciativa ajudou a disseminar um modelo de atendimento fundamental para pacientes em estado crítico, com um índice de 35% de recuperação. Número impactante para a época; hoje, esse número está acima de 90%.
Cinquenta anos depois da inauguração do primeiro prédio, no ranking World’s Best Specialized Hospitals 2022, da revista americana Newsweek, divulgado em setembro último, o Einstein obteve 50
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unidade morumbi
posição de destaque em nove das dez especialidades avaliadas. Em três delas - Oncologia, Ortopedia e Gastroenterologia -, foi considerado o melhor hospital do Brasil e da América Latina. O hospital também foi reconhecido em outras seis áreas: Cardiologia, Cirurgia Cardiovascular, Neurologia, Neurocirurgia, Endocrinologia e Pediatria. O ranking inclui organizações de 21 países e foi elaborado a partir da recomendação de profissionais, pesquisas com pacientes e diferentes indicadores de desempenho médico. O título de “melhor hospital da América Latina” também lhe foi conferido em um ranking da América Economía Intelligence – pelo 12º ano consecutivo. A classificação considera critérios de segurança, capital humano, experiência do paciente. O Hospital
Municipal M’Boi Mirim - Dr. Moysés Deutsch, único do setor público nessa lista e gerido pelo Einstein, ocupou a 29ª posição. Suas conquistas incluem, ainda, em 1997, a Certificação ISO 9002: 1994 do Centro de Terapia Intensiva, tendo sido o primeiro no mundo a receber tal certificação; em 1999 foi
Estátua de Albert Einstein em frente ao hospital
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o primeiro hospital fora dos Estados Unidos a obter a acreditação da Joint Commission International, entre outras. Esses primeiros 50 anos são apenas o começo de uma história que ainda terá muitas novas páginas. Desde os primeiros passos, o Einstein inspirou-se em quatro princípios judaicos básicos, que norteiam sua atuação até hoje: os mandamentos de boas ações (mitzvá), assistência à saúde (refuá), justiça social (tzedaká) e educação (chinuch). Nas várias gestões que se sucederam desde 1955 tais valores têm-se mantido no atendimento às crescentes demandas da sociedade, sob o olhar atento de suas diretorias, encabeçadas por Manoel Tabacow Hidal (1955-1979), Jozef Fehér (1979-1995), Reynaldo André Brandt (1995-2001), Claudio Luiz Lottenberg (2001-2016) e Sidney Klajner (a partir de 2016). DEZEMBRO 2021
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Desde o início estabeleceu-se que um terço dos leitos de internação seriam destinados ao atendimento gratuito. Convênio firmado em 1973 com a Federação Israelita do Estado de São Paulo garante atendimento gratuito aos pacientes encaminhados pelo seu serviço social. Desde então, ações de filantropia e programas voltados à comunidade estão na agenda do hospital com os Programas Einstein na Comunidade Judaica e Residencial Israelita Albert Einstein (antigo Lar Golda Meir). Os planos de expansão sempre fizeram parte do projeto. Assim, em 1958, comprou-se um terreno vizinho ao primeiro edifício, no Morumbi; em 1973, outro no mesmo local, e, em 1977, mediante autorização municipal para a incorporação da área entre os terrenos, teve início a construção de um novo prédio, com a colocação da Pedra Fundamental do Edifício Safra, que passaria a abrigar o Centro Médico de Diagnóstico e Tratamento. Quatro anos após a sua inauguração, em 1982, já oferecia 23 serviços de diagnóstico (em 1980
Foto da diretoria do Einstein na década de 1970
eram apenas três), além de um Day Clinic, então um novo conceito de internação para pequenos procedimentos e exames. Em 2009 foi inaugurado o Pavilhão Vicky e Joseph Safra, possibilitando a implementação de um novo modelo de atendimento em Medicina Ambulatorial, combinando humanização, agilidade e soluções. O cuidado centrado no paciente e as práticas humanizadas nas diversas frentes de atuação – promoção,
prevenção, diagnóstico, tratamento e reabilitação – levaram o Einstein a ser o primeiro Hospital da América Latina a receber, em 2011, a designação Planetree, que reconhece as instituições que atuam dentro destes conceitos.
Mitzvá e Tzedaká Em 1959 coube a Joana Wilheim, Fanny Aronis e Judith Schachnik a criação do Departamento de Voluntárias, inicialmente formado apenas por mulheres e voltado
Marcos Históricos 1955 – Fundação da Sociedade Beneficente Israelita Brasileira Albert Einstein (SBIBAE) 1959 – Criação da Comissão de Atividades Femininas, embrião do Corpo de Voluntárias e atual Departamento de Voluntários. 1969 – Início da Pediatria Assistencial 1971 – Inauguração do Hospital Israelita Albert Einstein 1972 – Inauguração da UTI 1981 – Inauguração do Centro de Estudos
1986 – Chegada do primeiro aparelho de Ressonância Magnética da América Latina 1987 – Realização do primeiro transplante de medula óssea em hospital privado 1989 – Inauguração da Faculdade de Enfermagem Einstein 1991 – Realização do primeiro transplante de fígado
1999– Conquista a acreditação da Joint Commission International
1997 – O Centro de Terapia Intensiva é o primeiro do mundo a receber a certificação ISO 9002–1994
1999 – Inauguração da primeira Unidade Avançada Einstein, em Alphaville (SP)
1998 – Criação do Instituto Israelita de Ensino e Pesquisa (IIEP)
2001– Parceria com o Sistema Público de Saúde (SUS)
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à criação de grandes eventos para arrecadação de fundos, paralelamente a construção do Hospital. Com o olhar atento às demandas da sociedade, o Departamento de Voluntárias criou, em 1969, antes mesmo da inauguração do Hospital, o Serviço de Pediatria Assistencial que, a partir de 1977, incluiu uma enfermaria destinada às crianças do ambulatório que necessitassem de internação ou cirurgia, contando com leito na UTI pediátrica e retaguarda de todas as especialidades. Naquela época, as atividades coordenadas pelo voluntariado já contribuíam para atenuar os efeitos das primeiras internações no Einstein. A atuação do voluntariado tem sido essencial para o êxito das várias iniciativas do Hospital, principalmente na continuidade de seu compromisso com as populações carentes, em parceria contínua com as equipes profissionais. O Programa Einstein na Comunidade de Paraisópolis (PECP) foi criado em 1998 e integra educação, serviço social, esportes, artes, saúde e capacitação profissional,
Solenidade de inauguração oficial do HIAE, pelo Presidente da República Emílio Garrastazu Médici
tendo realizado mais de seis milhões de atendimentos desde a sua implantação. O trabalho de atenção e desenvolvimento da comunidade local é realizado pela equipe multidisciplinar do Einstein e do Voluntariado Einstein, que financia atividades de capacitação profissional, oficinas de artes e comunicação, esportes e reformas de infraestrutura. Em 2001, o PECP passou a ser conhecido como “Complexo Telma Sobolh”, em referência à presidente do Voluntariado e idealizadora do programa.
AULA INAUGURAL DA FACULDADE DE ENFERMAGEM DO HIAE- DR. JOZEF FEHÉR, à DIREITA, E O PROFESSOR JOSÉ GOLDEMBERG
Marcos Históricos 2002 – Inauguração da Escola de Saúde 2004 – Criação do Programa de Residência Médica 2004 – Criação do Centro de Educação em Saúde Abram Szajman (Cesas) 2007– Valorização dos cuidados com o AVC - Certificado de Primary Stroke Center pela Joint Comission International
2013 – Parceria com o Institute for Healthcare Improvement (IHI) 2014 – Criação do Programa de Residência Multiprofissional 2015– Início do Projeto Parto Adequado 2016 – Inaugurada a graduação em Medicina da Faculdade Israelita de Ciências da Saúde Albert Einstein
2008 – Primeira cirurgia robótica. O hospital é atualmente considerado centro de excelência no segmento
2017 – Início das atividades da Academic Research Organization (ARO) Einstein, que coordena projetos multicêntricos de pesquisa clínica
2009 – Inauguração do Pavilhão Vicky e Joseph Safra
2017 – Inauguração da Eretz.bio Incubadora de Startups
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2020 – Preparo e atendimento para casos de Covid-19 2021 – Goiânia tem o primeiro hospital do Einstein fora de São Paulo 2021– Revista Newsweek considera o Einstein um dos melhores centros de saúde do mundo. DEZEMBRO 2021
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PAVILHÃO VICKY E JOSEPH SAFRA
O complexo tem 5.500 metros quadrados de área construída, sendo formado por seis grandes núcleos: Arte e Comunicação, Capacitação Profissional, Educação, Esportes, Saúde e Serviço Social. Tudo isso é possível graças a um time dedicado e comprometido formado por colaboradores Einstein, parceiros, prestadores de serviços e mais de 120 voluntários, peças fundamentais para garantir que todas as atividades aconteçam de forma integrada e focadas na evolução social de cada cidadão. Os 20 anos mais recentes do Einstein mostram como parcerias com o sistema público melhoram a saúde da população. O primeiro contrato com o SUS foi firmado em 2001 e, atualmente, o Hospital administra mais de duas dezenas de unidades de saúde. E mais: desde 2009 participa, com outros hospitais de excelência, do Programa de Apoio ao Desenvolvimento Institucional do SUS (Proadi-SUS), realizando pesquisas, avaliação de tecnologias, gestão e assistência especializada para o fortalecimento do SUS em todo o Brasil. No triênio encerrado em 2020, o Einstein aplicou recursos próprios no valor de R$ 620 milhões
em cerca de 40 projetos. No contexto de Parcerias com o Poder Público o Einstein administra 27 unidades de saúde na cidade de São Paulo, tendo já realizado 3,8 milhões de atendimentos. O Programa Integrado de Transplante de Órgãos é composto, em 93%, por pacientes do SUS.
Educação, cura e tecnologia A educação é um valor fundamental no judaísmo, assim o Ensino, a Pesquisa e a Inovação sempre estiveram no DNA do Einstein, tendo a instituição avançado muito Sala do Futuro
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ao longo de sua trajetória. Na Assembleia Geral Ordinária da SBIBAE, de 6 de março de 1972, Manoel Tabacow Hidal já dizia: “É tal o conceito de que goza esta instituição nos meios educacionais da nação, que, por três vezes, a diretoria foi consultada para transformar este Hospital em Escola de Medicina”. Mencionou, então, iniciativas do governo do Estado e da Universidade de São Paulo, em 1967, do Ministério da Educação e de uma universidade particular paulista, ambas em 1971. A implantação da Faculdade de Enfermagem aconteceu em 1989.
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O sonho de Manoel Tabacow Hidal – o Curso e Graduação em Medicina da Faculdade Israelita de Ciências da Saúde Albert Einstein - foi concretizado com a autorização do MEC, com nota máxima, em 2 de julho de 2015. Seu funcionamento iniciava-se já no ano seguinte.Um dos seus diferenciais é a abordagem da atitude profissional, que visa formar médicos com participação responsável no sistema de saúde. Em 1991, disse o então o presidente da SBIBAE Jozef Fehér: “É chegada a hora de investirmos em pessoas. São as pessoas que fazem das construções, maquinário e medicamentos uma instituição hospitalar. São elas que sentem as alegrias e tristezas dos que delas dependem, são as que prestam serviços e representam a interface paciente-hospital”. A estrutura atual de ensino do Hospital reflete esta filosofia através dos programas e ações do Centro de Educação em Saúde Abram Szajman (CESAS). Este Centro oferece imensa gama de cursos – desde as graduações em Enfermagem e Medicina, até residências médica e multiprofissional, mestrados, doutorados, cursos de atualização,
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AUDITÓRIO MOISE SAFRA
especialização, cursos técnicos e ensino a distância. Em 2006 foi inaugurado o Centro de Cirurgia Minimamente Invasiva. Dois anos depois, mais uma inovação: a aquisição do robô cirúrgico Da Vinci, tornando o Einstein pioneiro no Brasil em cirurgia robótica e, atualmente, o detentor do maior parque robótico da América Latina. O Centro de Simulação Realística (CSR), inaugurado em 2007, foi um complemento importante à infraestrutura voltada à educação, com a missão de ampliar opções metodológicas de ensino e oferecer
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novas formas de aprendizado e treinamento aos alunos do CESAS. Suas instalações reproduzem diferentes cenários clínicos e cirúrgicos, com uso de simuladores, robôs e atores, para o treinamento dos conhecimentos adquiridos. Além de ser referência em pesquisa através do Instituto Israelita de Ensino e Pesquisa (IIEP), que abriga o Centro de Pesquisa Clínica, o Centro de Pesquisa Experimental e o Instituto do Cérebro, suas pesquisas confirmam que o IIEP é a instituição brasileira com o maior número de citações em artigos científicos. Em 1987 foi realizado
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1. Equipamento de Ressonância Magnética 2. Cirurgia realizada com robô Da Vinci 3. Análise de imagens da Ressonância Magnética
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como quimioterapia e Clínica de Imunização. As unidades oferecem Medicina Diagnóstica e Pronto Atendimento Adulto e Pediátrico, com a possibilidade de remoção em UTI móvel.
O desafio da Covid-19
Centro de Oncologia e Hematologia Einstein Família Dayan – Daycoval
o primeiro Transplante de Medula Óssea no Einstein, iniciando um serviço pioneiro em hospital privado. Em 1995, o Hospital realizou o primeiro transplante de células de cordão umbilical não aparentado do País e criou um banco de cordão umbilical. Em 2002 deu início ao Programa Integrado de Transplante de Órgãos, com o objetivo de realizar, por meio do SUS, transplantes de fígado, rim, pâncreas-rim, coração e pulmão. Em 2018, o Hospital tornou-se o maior centro transplantador de fígado da América Latina, com quase dois mil procedimentos realizados até esse ano. O Hospital está também na vanguarda dos tratamentos de câncer. O Centro de Oncologia e Hematologia Einstein Família Dayan-Daycoval foi pioneiro na aplicação do conceito de medicina integrativa e se apoia no uso de terapias complementares com resultados comprovados no bemestar psicossocial. “O papel do Einstein é criar soluções inovadoras para os principais desafios do sistema de saúde. Nós buscamos a melhor forma de entregar saúde, bemestar e sustentabilidade, não apenas
Hospital de Campanha do Pacaembu
diagnóstico e tratamento. E isso não tem fim”, afirma o atual presidente, Sydney Klajner. Em 1999 foi inaugurada a primeira Unidade Avançada Einstein em Alphaville, visando acolher uma demanda para expansão dos atendimentos para outras regiões de São Paulo. Em 2006 foi inaugurada a Unidade Avançada Ibirapuera, em 2010, Perdizes-Higienópolis e a nova casa de Checkup da Unidade Jardins, com um modelo personalizado de avaliação integral e multidisciplinar de saúde. O atendimento também foi ampliado nas Unidades Avançadas, com Day Clinic, tratamentos 56
O maior desafio enfrentado pelo Einstein nos últimos anos foi a pandemia da Covid-19. O Hospital recebeu o primeiro brasileiro diagnosticado com a doença e, a partir de então, teve um papel de destaque no seu combate ao lado das autoridades sanitárias. Envolveu-se na geração de informações sobre a doença, pesquisas sobre testes, vacinas e tratamentos, entre outros. Testou medicamentos por meio da Academic Research Organization (ARO) Einstein, que coordena projetos multicêntricos de pesquisa clínica desde 2017. E ajudou a preparar a rede pública, inclusive com a implantação do hospital de campanha no Estádio do Pacaembu e expansões físicas relevantes, erguidas em cerca de um mês e meio, no Hospital Municipal Vila Santa Catarina – Dr. Gilson de Cássia Marques de Carvalho e no Hospital Municipal M’Boi Mirim – Dr. Moysés Deutsch. No Einstein, gestão, excelência, inovação e infraestrutura de ponta aliam-se às práticas de humanização e incorporação de um número cada vez maior de serviços, cujo objetivo central é o benefício do paciente. Missão definida há 50 anos e que permeia sua visão para o futuro. Fotografias
Acervo do Centro Histórico da Sociedade Beneficente Israelita Brasileira Hospital Albert Einstein
SHOÁ
A história secreta do povoado holandês que salvou judeus O pequeno vilarejo holandês de Nieuwlande foi palco de um dos principais resgates coletivos de judeus, durante o Holocausto. Ao longo da 2ª Guerra Mundial, a população local decidiu que cada lar esconderia uma família judia ou pelo menos um judeu. Esta história extraordinária, no entanto, ainda é pouco conhecida, inclusive na própria Holanda. Durante a guerra, o silêncio era essencial, mas, atualmente, é importante que esta história seja contada e recontada.
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ocalizado no nordeste da Holanda, o pequeno vilarejo de Nieuwlande se tornou, em 1985, um dos dois únicos lugares homenageados pelo Museu do Holocausto Yad Vashem por salvarem judeus, de forma coletiva, durante a Shoá. O outro local, cuja história é mais conhecida, é Chambon-sur-Lignon, na França.
para salvar judeus. A geografia do território holandês dificultou a fuga da população judaica, portanto, muitos tiveram que se esconder. Entre 25 mil e 30 mil judeus conseguiram se esconder auxiliados pela Resistência clandestina holandesa. Dois terços dos que conseguiram se esconder sobreviveram à Shoá. A deportação dos judeus começou no verão de 1942. Entre 1942 e 1943 a população de Nieuwlande decidiu que cada lar esconderia uma família ou pelo menos um único judeu, o que muitos fizeram ao longo da Guerra. A maioria dos moradores da cidade e dos arredores envolveram-se nessa operação e salvaram centenas de judeus, dentre os quais muitas crianças. Não é possível saber o número exato de pessoas salvas porque a Resistência clandestina as mudava constantemente de lugar, usando documentos falsos para identificar os resgatados.
A maior parte da população de Nieuwlande era composta por protestantes religiosos; acredita-se que a fé tenha sido um elemento importante nesta operação de resgate tão singular. Durante a Guerra A invasão da Holanda começou em 10 de maio de 1940. As autoridades alemãs encontraram muitos colaboradores no país e esse país teve um dos maiores índices de mortalidade entre judeus da Europa Ocidental ocupada. Dos 140 mil judeus holandeses, mais de 100 mil foram assassinados.
Dada a natureza coletiva do esforço em salvar os judeus, reduziu-se parte do perigo para seus moradores: não havia medo de denúncia, já que todos os moradores da aldeia eram parceiros no “crime”. O sentimento comunitário e religioso também os impedia de informar às autoridades oficiais.
Por outro lado, o país tem, também, o segundo maior número documentado de indivíduos que se arriscaram 57
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Localizado em uma área rural, Nieuwlande era um vilarejo composto por pouco mais de 150 fazendas distantes umas das outras e separadas por valas. A configuração da cidade era favorável à manutenção do segredo, e até a igreja local era usada como esconderijo. “Nieuwlande era um bom lugar para a Resistência, pois as pessoas não sabiam necessariamente o que ocorria na fazenda de seus vizinhos, e muitos não tinham sequer interesse em descobrir”, conta Hanneke Rozema, moradora do local.
Douwes, Post e a Resistência trabalhavam para esconder judeus e outras pessoas que fugiam dos nazistas. Era uma empreitada complexa e perigosa. Envolvia recrutamento, gerenciamento e arrecadação de recursos para garantir documentos, cartões de racionamento, assistência médica e, o mais importante, encontrar pessoas dispostas a abrigar os fugitivos. Cada um dos que os procuravam recebia alimentos, novos documentos e dinheiro. Douwes e Post criaram um código para identificação de cada refugiado de acordo com o sexo e idade.
Johannes Post
Quando, em 1943, tornou-se arriscado para Johannes Post permanecer na região, Douwes assumiu o seu lugar e passou a administrar, sozinho, toda a rede de resgate.
Rede de apoio À frente de toda a operação de resgate estavam Johannes Post e Arnold Douwes. O primeiro era fazendeiro e conselheiro do povoado, e foi responsável pelo recrutamento do segundo, filho de um pastor. Post foi um herói muito famoso da Resistência holandesa. Mesmo não sendo muito próximo dos judeus ou do judaísmo, dedicou-se incansavelmente a ajudá-los à medida que o antissemitismo se tornava cada vez mais evidente.
Imbuído do objetivo de salvar o maior número de pessoas, Arnold Douwes atravessava grandes distâncias, de bicicleta, parando de casa em casa, de fazenda em fazenda, perguntando se os moradores aceitariam abrigar uma criança judia. Em alguns casos, quando tinha seu pedido negado, forçava as pessoas a aceitar e dar abrigo a um fugitivo dizendo que eram ordens da Resistência.
Arnold Douwes
Nesse processo de percorrer o campo em busca de novos refúgios, Douwes contou também com a ajuda de Max (Nico) Leons, judeu refugiado em Nieuwlande. Nico teve uma participação cada vez mais ativa na Resistência, inclusive tomando parte em missões clandestinas mais perigosas para ele do que para alguém com uma aparência mais ariana.
FEVEREIRO DE 1941: NAZISTAS REÚNEM OS JUDEUS EM AMSTERDÃ
Além de Nico, alguns judeus escondidos na cidade tiveram forte participação na Resistência. Entre eles, Isador Davids e Lou Gans, dois jovens judeus 58
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MONUMENTO EM MEMÓRIA DOS JUDEUS ESCONDIDOS E SEUS PROTETORES, NIEUWLANDE
refugiados que produziam cartões e panfletos antinazistas ridicularizando os alemães. Estes cartões eram vendidos para arrecadar recursos para o esforço de resgate. Depois de serem convocadas para o processo de deportação, as famílias judias – muitas das quais viviam em Amsterdã – eram encaminhadas a Arnold Douwes, para que a rede pudesse auxiliá-los a viver na clandestinidade. Muitas vezes ele mesmo entrava em contato com essas famílias, em Amsterdã, incentivando-os a permitir que seus filhos fossem levados para outros lugares mais seguros. Ele mesmo os buscava em Amsterdã ou na estação de trem de seu distrito e os levava – adultos e crianças – para locais seguros. Além de refúgios adicionais para as novas pessoas que chegavam, muitas vezes era necessário encontrar novas casas para os que
já estavam escondidos. A situação mudava repentinamente e de um minuto a outro um determinado lugar deixava de ser seguro. Em inúmeras ocasiões, Douwes, de bicicleta, transferia os foragidos de esconderijo. Membros da Resistência também construíam esconderijos na floresta, logo além da linha das casas,
MONUMENTO QUE RECORDA A BRAVURA DE NIEUWLANDE DURANTE O NAZISMO
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onde os judeus poderiam se refugiar temporariamente se alguma incursão nazista estivesse se aproximando. De certa forma, as pessoas escondidas em Nieuwlande desfrutavam de alguma liberdade e alguns até trabalhavam nos campos. A liderança estava consciente de que o povoado inteiro poderia ser punido se a operação fosse descoberta, por isso foram adotados medidas e procedimentos de segurança para garantir o sigilo, como, por exemplo, a proibição de qualquer comunicação entre os escondidos e o mundo exterior. Arnold Douwes foi logo incluído na lista dos mais procurados pela Gestapo e, para não ser preso, mudou até a sua aparência. Mas acabou sendo preso em 1944. Enquanto aguardava a execução foi resgatado em uma surpreendente operação executada pela Resistência. DEZEMBRO 2021
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Permaneceu escondido até a libertação da Holanda. Johannes Post foi capturado pelos nazistas e executado em 1944. A Holanda foi libertada pelos aliados em 5 de maio de 1945. Colega de Anne Frank Apesar do layout de Nieuwlande, favorável para a manutenção em segredo de toda essa ação, ainda assim ocorriam incursões e buscas nazistas atrás dos judeus. Sally Kimmel, um menino judeu e excolega de classe de Anne Frank, viveu um ano escondido no vilarejo sem saber que seu tio, sua tia e dois primos estavam escondidos a poucos quilômetros de distância, até que finalmente conseguiu se reunir com a família. Em fevereiro de 1945, durante uma patrulha feita por uma unidade nazista holandesa, um homem próximo a uma fazenda despertou a atenção dos nazistas, por sua aparência de estrangeiro. O proprietário, Jan van der Helm, foi abordado pela patrulha e morto a tiros ao tentar fugir. O esconderijo de Sally Kimmel e sua família foi descoberto, e seu tio, Szaya Reiner, foi espancado até a morte diante da esposa, filhos e sobrinho. Os quatro foram enviados para um campo de concentração e, felizmente, sobreviveram ao Holocausto. Os nazistas, entretanto, não descobriram o grande segredo de Nieuwlande.
além dos cartões já mencionados, produziam um jornal escrito à mão, De Duikelaar, termo em holandês para “pessoa escondida”, nome que foi dado ao novo museu de Nieuwlande, inaugurado em 2018, em sua homenagem. A publicação incluía caricaturas dos políticos nazistas e histórias sobre a vida na clandestinidade. Os dois adolescentes sobreviveram à guerra e permaneceram na Holanda.
Arnold Douwes (à direita) com Isador Davids e Lou Gans
Somente duas cópias dos jornais ainda existem e uma destas está exposta no museu da cidade. Violando seus próprios protocolos de segurança, Arnold Douwes escreveu um diário sobre suas atividades, deixando-as registradas em detalhes. Escrevia uma página do diário, colocava dentro de uma garrafa e a enterrava. Somente as desenterrou no final da guerra. Em 2018, foi publicada uma edição de seus escritos em inglês e em holandês, com o título de Os Diários Secretos de Arnold Douwes.
Sally Kimmel
Amsterdã em abril de 1944
Um diário e um jornal As atividades e ações da Resistência e a vida subterrânea dos foragidos estão bem documentadas. Lou Gans e Isador Davids, por exemplo, passaram a maior parte da Shoá sob as tábuas de uma antiga igreja, em Nieuwlande, onde, 60
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Ele foi um dos poucos membros da Resistência que manteve um diário durante a 2ª Guerra Mundial. Depois da Guerra Ao término da Guerra Arnold Douwes se casou com Jet Reichenberger, uma mulher judia a quem havia resgatado. Na década de 1950, eles emigraram para Israel, onde viveram em um moshav e criaram três filhas. Acabaram se divorciando e, após a separação, Douwes retornou à Holanda. Ele foi homenageado pelo Estado de Israel com o título de “Justo entre as Nações”, honraria concedida a não judeus que arriscaram a vida para salvar nossos irmãos durante a Shoá. E Yad Vashem guardou seu nome para a posteridade com o plantio de uma árvore no início da Avenida dos Justos entre as Nações, em frente à entrada do Museu. Temperamental que era, como ele próprio se descrevia, Douwes ameaçou queimar sua árvore no Yad Vashem se todo o seu povoado não fosse também homenageado. Em 1988 o Museu dedicou um monumento ao vilarejo e a todos seus habitantes.
MULTIDÃO CELEBRA A LIBERTAÇÃO DA HOLANDA. HAIA, 8 DE MAIO DE 1945
Max “Nico” Leons, o judeu que trabalhava para a Resistência em Nieuwlande, também sobreviveu à Shoá, falecendo em 2019. Nos últimos anos, Nieuwlande começou a contar sua história. Um dos esconderijos usados para abrigar judeus foi restaurado e transformado em monumento em lembrança à Guerra. Na fachada vê-se uma cópia do certificado do Yad Vashem, em hebraico, concedido à cidade (foto à pág. 59).
Johannes Post, responsável por recrutar Douwes e iniciar as atividades para esconder judeus em Nieuwlande, também foi homenageado postumamente com o título de “Justo entre as Nações”. Em 1985, em uma rara entrevista concedida ao jornal regional Nieuwsblad van het Noorden, Arnold Douwes declarou: “Eu fiz tudo isso porque não tinha outra escolha”. Douwes faleceu em 1999, aos 93 anos.
Em 2018, foi inaugurado em uma velha escola da cidade o primeiro museu em homenagem ao resgate, com o nome de “De Duikelaar”, nome do jornal clandestino de Lou Gans e Isador Davids. “Contar a história é dizer que o que aconteceu aqui foi extraordinário, mas para muitos dos que participaram da operação e suas famílias, era tão evidente que era a coisa certa a se fazer que não era algo a se orgulhar”, disse Hanneke Rozema, moradora da cidade e uma das fundadoras do museu. “Eu acredito que esta seja uma das razões, pelo menos parcialmente, dessa história ser relativamente desconhecida”, completou.
Bibliografia
RECONSTRUÇÃO DE ESCONDERIJO SUBTERRÂNEO DE JUDEUS, NIEUWLANDE
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The Memorial Honoring the Village of Nieuwlande, artigo publicado no site https://www.yadvashem.org/righteous/ about-the-righteous/related-sites-html This Dutch village is finally ready to tell its unique Holocaust rescue story, artigo publicado por Cnaan Liphshiz na edição on line do jornal Times of Israel em 16 de fevereiro de 2021 DEZEMBRO 2021
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JUDEUS NA MODA E NOS NEGÓCIOS DO RIO IMPERIAL Por Maria Luiza Tucci Carneiro
No próximo ano de 2022 iremos comemorar o bicentenário da proclamação da independência do Brasil, então colônia de Portugal, ocorrida em 7 de setembro de 1822. Este processo é distinto daquele vivenciado pelas demais colônias da América, porque aqui a Família Real Portuguesa ficou instalada de 1808 a 1820, dificultando a alteração do status político de colônia para nação independente. Nessa época, a rainha de Portugal era D. Maria, e D. João VI, o príncipe regente, a quem coube a decisão de trazer a família e a Corte portuguesa para a colônia.
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om a chegada da Família Real ao Brasil, em 1808, seguida da abertura dos portos, assim como da assinatura do Tratado de Amizade e Paz com a Inglaterra, em 1810, centenas de imigrantes judeus começaram a ingressar no Brasil, contribuindo para diversificar as atividades econômicas, intelectuais e culturais até então atrofiadas pelo controle imposto pelo Império Colonial português.
D. João VI e os imperadores D. Pedro I e D. Pedro II – formou-se, na cidade do Rio de Janeiro, uma importante comunidade judaica dita “moderna”, que ampliou o círculo dos cristãos-novos também chamados de conversos, ali presentes desde os tempos coloniais. A população do Rio de Janeiro, no início do século 18, era de cerca de 20 mil habitantes, incluindo os escravos. E, ainda que seja difícil calcular a população de origem judaica, no Rio de Janeiro, à época, já que até então não existiam censos, essa presença não era insignificante.
Atualizados com as novidades europeias no campo da moda, das artes, da economia e das ciências, esses imigrantes judeus acarretaram importantes mudanças na vida econômica, social e política do país. A liberdade de religião garantida em um dos artigos desse tratado incentivou a vinda de cidadãos não-católicos, dentre os quais estavam os protestantes ingleses e os judeus franceses. O mesmo aconteceu após a assinatura do Tratado de Amizade, Comércio e Navegação, em 1826, que permitia a liberdade de consciência em matéria religiosa, direito de propriedade e isenção do serviço militar obrigatório, de empréstimo forçado e de requisições militares, além de garantir liberdade de residência e de comércio e navegação em todos os portos brasileiros. Entre 1808 e 1889 – longo período em que permaneceram no Brasil o príncipe Regente
Segundo pesquisas realizadas por Lina Gorenstein, cerca de 325 cristãos-novos foram presos no Rio de Janeiro entre 1703 e 1740, e enviados para Lisboa, onde foram julgados como hereges pela Inquisição. Com base nos processos inquisitoriais, essa historiadora descobriu que muitos cristãos-novos atuavam como comerciantes e, até mesmo, ocupavam cargos públicos, apesar das restrições contidas nos Estatutos de Pureza de Sangue impostos pela legislação e pela Igreja Católica portuguesa. Em sua maioria, eles se destacavam no mundo dos negócios como corretores e negociantes e, nas profissões liberais, como médicos, advogados, militares e, educadores. Vários deles frequentaram o círculo de estudantes brasileiros 62
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Representação do embarque da Familia Real para o Brasil, no cais de Belém, 29/11/1807. Pintura de Nicolas Louis Albert de LaRiva, Óleo sobre tela. Museu Nacional dos Coches, lisboa
inscritos nos cursos de Medicina e Direito da Universidade de Coimbra. No Rio de Janeiro, concentravamse na zona nobre da cidade, principalmente nos trechos entre a Rua da Cruz, a Rua do Ouvidor próxima à Sé, no caminho para o Campo de Santana (hoje Praça da República), bem como na Rua da Misericórdia, Rua da Quitanda, Rua das Flores, Rua do Sucucurará e na Rua Direita, sendo esta a de maior movimento comercial. Outros se instalaram em pequenas chácaras nos arredores do núcleo urbano, onde viviam como abastados senhores de engenho e, até mesmo, como simples lavradores de cana e mandioca. A partir da primeira década do século 19, este perfil da população judaica do Rio de Janeiro
começou a ser alterado. A cidade – transformada em capital do Império – metamorfoseou-se para receber a Corte portuguesa e as grandes levas de estrangeiros que ali chegavam para investir nos novos rumos da economia, cultura e política brasileiras.
“Dia do Fico”. Rio de Janeiro, c. 1822, Jean-Baptiste Debret
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Muitos eram comerciantes, empresários, eruditos, artistas, educadores, naturalistas, cientistas e profissionais liberais. Podemos afirmar que desde 1815, imigrantes franceses provenientes da Alsácia e Lorena começaram a chegar no Brasil, mas ainda de forma esporádica, aumentando o afluxo em 1871 com a anexação da AlsáciaLorena pela Alemanha. Alguns vislumbraram o Brasil como refúgio político e, dentre esses, destacou-se Joachim Lebreton (1760-1819), que fora expulso por Napoleão do cargo de secretário perpétuo da Classe de Belas-Artes do Institut de France. Lebreton aportou no Rio de Janeiro em março de 1816, liderando a Missão Artística Francesa, integrada por JeanBaptiste Debret e Nicolas-Antoine Taunay, dentre outros artistas que iriam documentar o cotidiano do Rio de Janeiro. DEZEMBRO 2021
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Segundo pesquisas realizadas por Fania Fridman, o grupo radicado na capital do Império constituiu o chamado “Bairro Arábe” (ou “Turquia Pequena”), compreendido pelas ruas da Alfândega, Buenos Aires, Senhor dos Passos e Tomé de Sousa, e ali organizaram a primeira entidade comunitária, por volta de 1840, a União Israelita Shel Guemilut Hassadim, em plena atividade até hoje, primeiramente na esquina da Praça da República com a Rua Senhor dos Passos, mudando-se, em 1866, para a Rua da Alfândega, 358, e há décadas, para Botafogo. Muitos galgaram as trilhas do sucesso chegando a ostentar o brasão imperial nos seus “cartões de visita” e em suas notas fiscais. Essa proximidade se fez notar com os imperadores D. Pedro I e D. Pedro II, ambos simpáticos e identificados com a maneira de ser da comunidade judaica local.
Para além da escravidão que preenchia todos os caminhos do Rio de Janeiro, a vida na Corte Imperial nos remete ao luxo da moda, ao requinte dos móveis e às residências sofisticadas. Grande parte dos comerciantes franceses concentravam-se no Distrito de Sacramento, local privilegiado para moradias, associações e comércio. No entanto, era no centro da capital do Império que a elite com sua escravaria transitava, exibindo seus coches, seu vestuário e seu poder. Grandes armazéns e lojas sedutoras é o que não faltava. Dentre os
e Cia alcançou grande projeção social sendo, inclusive, citada pelo médico e escritor Joaquim Manuel de Macedo (1838-1905) em suas Memórias da Rua do Ouvidor. Interessante lembrar que o papel de parede importado era um dos grandes modismos ditados pela corte imperial do século 19. Eles transformavam o visual das residências imperiais e dos magníficos salões onde a nata da sociedade cortesã se reunia para ouvir recitais de piano, instrumento transformado em “mercadoriafetiche”. De valor ostentatório, o
Biblioteca Nacional Digital/RJ
Profissionais judeus franceses e ingleses misturaram-se à elite de fala portuguesa e à massa de negros escravos, recompondo, diariamente, o visual citadino. Um mosaico de nacionalidades e interesses começou a se delinear no novo contexto da cidade. Firmas importadoras gerenciadas por proprietários judeus passaram a atender os gostos sofisticados da aristocracia, ávida para ter pianos importados, champagne, roupas de seda, papéis aveludados nas paredes, chocolates, bijuterias, cristais e porcelanas da mais fina qualidade. Aliás, o valor social e a qualidade do estabelecimento comercial se faziam através da ligação com uma matriz internacional (geralmente em Londres e Paris) ou pelo fato da loja atender o consumo sofisticado das Suas Majestades Imperiais – SS.MM.II, tema que será o principal objeto deste artigo: os círculos dos judeus que serviam à Família e à Corte imperiais.
Passagem de Sua Majestade D. João VI sob os arcos da Rua Direita (atual 1º de Março), em frente à Rua do Ouvidor. Rio de Janeiro, 1817. T. M. Hippolyte Taunay
importantes comerciantes judeus próximos à Família Real estavam Bernard Wallerstein e Samuel Phillips. O francês Wallerstein, conhecido como o “Rei da Moda” e o “Carlos Magno da Rua do Ouvidor”, celebrizou-se por seus leilões de jóias, objetos de decoração, cristais, sedas, calçados, camisas e papéis de parede, atendendo às preferências da Casa Imperial. A firma B. Wallerstein 64
piano era comercializado pelas grandes firmas importadoras de instrumentos musicais. A firma de Wallerstein apresentavase como fornecedora das casas de SS.MM.II. e se especializava em papeis pintados, dourados e aveludados com ricas paisagens, obras de ouro lavradas com rara perfeição, pêndulos artísticos,
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sedas, florões, pinhas de cristal, porcelanas, vidros, candelabros, charutos de Havana e do melhor vinho de Champagne conhecido naquela corte. Por volta de 1850, Wallerstein alterou sua razão social ao aceitar como sócio M. Masset. Esta loja era a preferida da corte. Naquele mesmo armazém, as mulheres podiam assinar o Jornal das Senhoras, que informava sobre a chegada de vestidos prontos do estrangeiro e os “inimitáveis, lindíssimos” cortes de seda das mais variadas cores. Sabe-se que a loja funcionou até 1859 e, em 3 de janeiro de 1861, o Diário do Rio de Janeiro anunciava, com pesar, a morte de Wallerstein, em Paris. Entre 1824-1842 atuou também no Rio de Janeiro a firma Samuel, Phillips & Cia. cujos proprietários judeus eram, assim como Wallerstein, próximos da família imperial. Os Phillips tinham suas raízes na Alemanha, sendo que, no século 19, dirigiram-se à Inglaterra onde se uniram, por casamento, à família Samuel. Seus descendentes radicaram-se no Rio de Janeiro, mesmo antes do Tratado de 1810 que confirmou a liberação dos portos brasileiros às nações amigas. Desde então, ganharam grande visibilidade. Em 1826, a firma ingressou como representante da Companhia Britannica e Estrangeira Alliança, de Seguros de Vida e Fogo, com um capital de cinco milhões de libras esterlinas. Além de servir ao Imperador, Samuel, Phillipps & Cia atuava também junto ao governo inglês intermediando taxas mais atrativas para os empréstimos brasileiros. Mantinha estreitas ligações com os banqueiros Rothschild, judeus ingleses, dentre
os quais os barões Leonel de Rothschild, Antony Rothschild e Mayer Rothschild, que, em 1859, receberam a comenda da Ordem da Rosa, título de prestígio entre a nobreza brasileira. O fato da firma
sido contruída na Inglaterra, apenas dois anos antes, ligando Liverpool a Manchester. A proposta, sustentada em parceria pela firma Aguiar, Viúva, Filhos & Cia., era construir um caminho “de ferro” por “terra ou por rios, ou ambos, ligando o Porto de Santos à Porto Feliz e suas ramificações”. O porto de Santos era, desde aquela época, o principal porto escoador da produção agrícola paulista, onde o café despontava como gênero de exportação.
Aclamação do jovem Pedro II como Imperador do Brasil, após a Abdicação de D. Pedro I. 09/04/1831
Samuel, Phillips & Cia também ser exportadora de café, couros e outros produtos brasileiros e importadora de armamentos destinados à Armada brasileira, explica seu envolvimento, em 1832, com um projeto inovador para aqueles tempos em que a estrada de ferro despontava como símbolo de modernidade. Até então, a única estrada de ferro desse tipo havia 65
Por ocasião da abdicação de D. Pedro I, em 7 de abril de 1831 – em nome de seu filho Pedro de Alcântara, com apenas cinco anos de idade – a firma Samuel, Phillips & Cia tornou-se procuradora geral da família imperial cuidando, em distintos momentos, da venda de imóveis e doações mediante procuração assinada por D. Pedro I em 11 de abril, quatro dias após a DEZEMBRO 2021
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Rua do Ouvidor, ponto de consumo da sociedade carioca do século 19. Rio de Janeiro, 1862. Fotografia de Rafael Castro Y Ordoñez
sua abdicação. Nesse documento aparecia o nome de José Buschental, judeu alsaciano, financista, casado com Maria Benedita de Castro Pereira, irmã da Marquesa dos Santos, figura conhecida da Corte, à qual atendera por ocasião do aumento da dívida externa brasileira, na primeira metade do século 19. Mesmo após o embarque para Portugal do imperador D. Pedro I e da imperatriz Amélia Augusta Eugênia Napoleona de Leuchtemberg–Beauharnais, acompanhados de vários membros da Família Real, o Rio de Janeiro não perdeu o seu glamour. Em meio ao burburinho do comércio carioca, duas lojas chamam a nossa atenção: A Judia, na Rua Uruguaiana, que comercializava fazendas, modas e armarinho por atacado e varejo, tendo como proprietário o marroquino Benjamin Messod Benzaquen, que vivia no Brasil desde 1879. Negociante naturalizado brasileiro, Benzaquen integrou as diretorias da Sociedade União Israelita do Brasil, em 1886, da Sociedade Israelita Shel Guemilut Hassadim,
em 1888, e da Sociedade do Rito Portuguez, em 1888 e 1889. A outra loja era conhecida como “Loja das Judias” ou Dois Oceanos, localizada na Rua do Ouvidor, numa casa quase fronteira à “Loja da Madame Gorda”, ironias do linguajar popular. O proprietário – judeu alsaciano cujo nome não
A JUDIA, O Paiz 20/11/1887
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identificamos – era, segundo Joaquim Manuel de Macedo, “pai de três bonitas filhas, três judias jovens, solteiras e espertas, que eram as principais recomendações da loja”. Em sua crônica, Macedo recupera as várias aplicações do verbo judiar procurando detalhar a postura das jovens judias reconhecidas pela fama de namoradeiras e que, como tais, judiavam dos moços soberbos, frequentadores da Rua do Ouvidor. Uma “judiação”, afirma o cronista, repetindo a expressão jurídica medieval e racista, hoje em desuso por atribuir aos judeus uma atitude criminosa, nitidamente antissemita. Nessa época, a Rua do Ouvidor era o ponto alto da moda e do luxo no Rio de Janeiro, uma espécie de passarela por onde todos desfilavam, uma verdadeira vitrine enfeitada para agradar aos estrangeiros e à elite da terra. Entre as “vitrines” cobiçadas, estava a loja de flores artesanais de Sarah Conseil, pioneira nesta especialidade desde 1873:
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A moda masculina e feminina exibida durante a visita da Família Imperial à quinta de Mariano Procópio Ferreira Laje. Fotografia de Revert Henry Klumb (c.1826 – c.1886)
as casacas, reafirmando assim sua imagem de imperador-cidadão combinada com a de monarca ilustrado e moderno. Enfim, vestiase “como um imperador de seu tempo, um representante à altura da casa de Bragança”. Era assim que o imperador gostava de ser retratado: vestindo casaca e calça pretas, camisa branca, gravata, relógio de ouro e
D. Pedro II, por sua vez, era servido pela firma “Gabriel & Segrè”, agraciado com o título de “Alfaiate de Sua Majestade”, com permissão para colocar o brasão das armas imperiais no frontispício do estabelecimento. Essa empresa pertencia a um grupo de judeus italianos, dentre os quais destacavam-se vários escritores, militares e professores. Importante ressaltar que, a partir dos anos de 1850, D. Pedro II, dando-se conta do simbolismo das casacas e roupas pretas, deixou de portar uniformes militares para usar gradativamente
comendas, sua vestimenta preferida neste país tropical.
Museu Histórico Nacional Digital
A partir do Segundo Reinado, o modismo de comprar nas lojas Wallerstein e Lecarriere já havia passado. As grandes costureiras atendiam agora na Rua da Quitanda, enquanto na Rua do Ouvidor brilhava a Mme. Ottiker, “modistacostureira” de Sua Alteza, a Princesa Imperial Senhora Condessa d’ Eu, da Mme. Guion e da Mme. Gudin. Os artigos de moda eram vendidos nas lojas de Mme. Cretan, à Rua do Ouvidor, esquina dos Latoeiros.
Biblioteca Nacional Digital/RJ.
flores confeccionadas em seda, rendas, plumas, escamas de peixe e asas de borboletas, delicadamente arrematadas com lantejoulas, pérolas, fitas de veludo, etc. Segundo pesquisas realizadas por Egon e Frida Wolff, Marcos Rosenwald, junto com Sarah Conseil, e com o inglês Allan D. Gordon e o alemão Alberto Landsberg, fundou, em 1884, a firma M. Rosenwald, Gordon & C., para o comércio de flores artificiais e congêneres, com sede no Rio de Janeiro, à Rua do Ouvidor. Sarah Conseil casara-se em 1871 com Marcos Rosenwald, sócio de Maurice e David Bloch, e fundador do Banco Predial e da Empresa Predial.
Embarque da guarda nacional da corte. Revista Ilustrada, 26/02/1865. Desenho de H.F.
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Outros imigrantes judeus devem ser lembrados por suas presenças marcantes nos tempos do Império, dentre os quais François Leon Cohn, corretor de gêneros alimentícios cuja firma Cohn e Filho funcionava na Rua da Alfândega. Seu filho, Francisco Leão Cohn, desligou-se dos negócios para seguir carreira militar. Tornou-se Tenente-Coronel da Guarda Nacional, sendo agraciado com as comendas da Ordem de Cristo e da Ordem da Rosa, por sua participação na guerra contra o Paraguai (1865-1870). Por ocasião do seu embarque para aquele país, enquanto encarregado de um dos batalhões do primeiro contingente do Rio de Janeiro, Cohn foi quem recebeu a bandeira brasileira das mãos do próprio imperador. Na década de 1860, destacaramse também os irmãos Henrique, Charles e George Nathan, conhecidos corretores do Rio de Janeiro. Em fevereiro de 1855, a imprensa registrou a entrada de Charles Nathan (1865-1870) em DEZEMBRO 2021
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terras brasileiras, entre vários outros ingleses embarcados no paquete Great Western. Em abril de 1866, o Diário do Rio de Janeiro anunciou o lançamento da obra Esposição do Contador Público, de Charles Nathan, reverenciada como “de grande utilidade ao commercio, por isso que nella se descreve os defeitos do processo de fallencia, e os meios de remedial-os [sic]...”.
Pátria, fato que os coloca como cidadãos integrados e partícipes do seu grupo comunitário e envolvidos com os problemas da sociedade mais ampla. Hime, além de fazer parte do conselho do Banco Comercial do Rio de Janeiro em janeiro de 1873, foi indicado conselheiro da Sociedade de Beneficiência Israelita, ao lado de Arthur Aron, G. Nathan e Ludwig Rée, em 1879.
A fantástica imagem da Baía da Guanabara veiculada nos impressos das companhias de navegação e revistas ilustradas alimentava o slogan do “Rio de Janeiro, cidade maravilhosa”. Enquanto porto de desembarque e capital do Brasil, o Rio de Janeiro se prestava também como parada provisória para aqueles que se dirigiam para outros estados brasileiros.
Atrelado ao nome de Hime, vem o de seu cunhado Isey Levi, jornalista e criador das Taboas de Juros, amplamente divulgadas pela imprensa carioca quando de sua publicação, em Bruxelas. Estas tabelas facilitavam os cálculos de juros sobre qualquer quantia.
Em 1891, atuavam nos meios comerciais e financeiros do Rio de Janeiro vários judeus de origem européia, dentre os quais estavam Isidore e Marx Haas, Abraham Amzalak, Emmanuel Israel Salomon, A. Landesberg, A. Dreyfus, Elkin Hime e seu filho Harold. Em 1872, a firma Hime, Zenha & Silveira se destacava entre os contratos de sociedades arroladas no Diário do Rio de Janeiro. Foi como diretor da Casa de Correcção da Corte que, em maio de 1874 e novembro de 1875, Elkin Hime foi recebido no Paço Imperial, ao lado de comendadores, viscondes, barões, deputados, doutores e conselheiros de SS. MM. II.
d. Pedro II, Imperador do Brasil FOTO DE Joaquim Insley Pacheco
mercadorias com escritório na rua da Alfândega e, posteriormente, na Praça do Comércio. Em 1855, os corretores Elkin Hime (natural de Liverpool) e George Huston (natural de Londres) têm seus nomes citados no “Mappa dos estrangeiros naturalisados que têm feito declarações na Ilma. Câmara Municipal da Corte”, arrolados como de religião hebraica e/ou israelita. Em 1865 encontramos seus nomes relacionados entre os doadores do Asylo de Inválidos da
Harold Elkin Hime (18421890) era filho de Elkin e Frances Hime, família inglesa judaica radicada no Rio de Janeiro há mais de 50 anos. Em 1842, Elkin Hime atuava como corretor para compra e venda de 68
Os irmãos Isidore e Arthur Haas, oriundos da Alsácia-Lorena, foram importantes comerciantes da comunidade judaico-francesa atuando no ramo de importação. Isidore desembarcou no Brasil, proveniente de Nova Iorque, estabelecendo-se no Rio de Janeiro desde 1879. Em 1883, aparece como sócio da firma I. & Hass Irmãos, sediada na rua do Hospício, dedicada à importação de velas, louças, artigos de armarinhos, máquinas para lavoura de café e cana e para fábricas. Era representante da casa francesa Egrot Granjes Sucres, de aparelhos para destilação de açúcar. Mais tarde abriu uma serraria em Grama (Paraíba do Sul) e a Mate Laranjeiras, no sul do país. Isidore, por sua vez, integrou várias diretorias das sociedades filantrópicas União Israelita do Brasil e Communauté Israélite, sendo ainda membro do Conselho da Câmara do Comércio Franco-Brasileira, do Comitê Centenário da Tomada da Bastilha, além de tesoureiro da
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Alliance Française. Alguns imigrantes dedicaram-se ao comércio de carne verde, vendendo certas partes do gado para os judeus observantes. Há registros de que a firma A. Levy e Cia requereu, em dezembro de 1892, o abate de carnes verdes junto ao Conselho Municipal do Rio de Janeiro. Outra figura de destaque na comunidade judaica carioca foi Abraham Amzalak, filho da triestina Anna Levi e do rabino inglês de Gibraltar, Isaac Amzalak, dono de armazéns e armador bemsucedido, radicado na Bahia desde 1829. Abraham teve três filhas (Mary, Simi e Ester) que ficaram conhecidas como as “três graças”, sendo uma delas a musa inspiradora do poeta Castro Alves (18471871) que compôs, em Salvador, o poema A Hebréia. Neste poema, Castro Alves a exalta como uma “pomba d’esperança”, um “lírio do vale oriental, brilhante”, “o orvalho oriental”. Aquela brilhante hebreia, segundo Castro Alves, é o “lótus que cai para o chão pendido”.
imagens etnográficas, com destaque para a série de retratos de africanos e afrodescendentes.
Anúncio do Dr. Samuel Mesquita, dentista do Imperador D. Pedro I, 1876
ano, abriu a Photographia Allemã em sociedade com seu irmão José. Ao longo de 16 anos, Henschel manteve intensa atividade no país, com quatro ateliês instalados em Recife (1866), Salvador (c. 1868), Rio de Janeiro (1870) e São Paulo (1882). Henschel ficou conhecido por produzir retratos de estúdio, dentre os quais crianças, fotografias de paisagens e
Em 23 de setembro, SS.MM. II visitaram a Photographia Allemã, onde se fizeram retratar. Em 7 dezembro de 1874, a firma recebeu o título de Photographos da Casa Imperial, estando assim habilitados a retratar o cotidiano da monarquia brasileira durante o Segundo Império, inclusive fotografando o imperador D. Pedro II e sua família. Albert Henschel faleceu em 30 de junho de 1882 e está enterrado no setor judaico do Cemitério de São Francisco Xavier, no Rio de Janeiro. Em meio aos franceses, judeus de outras tantas nacionalidades somaram suas diversidades para compôr o mosaico da comunidade judaica no Rio de Janeiro. Entre estes estava o dinamarquês Emmanuel Israel Salomon, que, além de banqueiro, trabalhava como corretor de fundos públicos, assim como Albert Landsberg, que chegou ao
Em 1870, Simi Amzalak (18511920) casou-se com Albert Henschel, fotógrafo teutobrasileiro, nascido em Berlim em 13 de junho de 1827. Sabe-se que Henschel provinha de uma família de gravadores, reunindo seu pai, Moritz e três tios que, em Berlim, se assinavam como Irmãos Henschel. Ele tinha 37 anos quando desembarcou no porto de Recife, em maio de 1866, acompanhado de Carl Heinrich Gutzlaff. Nesse mesmo
BibLIoteca Nacional Digital
Mary Roberta Amzalak (1854-1932) casou-se, em 1873, com o imigrante parisiense, de origem portuguesa, Dr. Samuel Edouard da Costa Mesquita (1837-1894), dentista do Imperador D. Pedro I.
O retorno de D. Pedro II À EUROPA, COM A IMPERATRIZ E SUA COMITIVA, A BORDO do vapor ‘Congo’, 1888
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FAMÍLIA IMPERIAL DO BRASIL
Brasil no século 19, via Alemanha. Este era descendente de uma família de rabinos da Polônia cujas raízes remontam até Salomon Kaliphari, médico espanhol que havia saído da Espanha após a expulsão dos judeus pelos Reis Católicos Fernando e Isabel, decretada em 1492. Os Landsberg são hoje reconhecidos por sua contribuição à indústria naval brasileira. No comércio carioca destacaram-se também: Maximiliano Nothmann, radicado no Rio de Janeiro desde 1871 e proprietário da firma Nothmann & C., instalada na rua do Ouvidor. O local era apresentado como um “depósito internacional de machinas de costuras de Singer, Howe, entre outras marcas, sob o nome de Princeza Imperial”. Vendia também “machinas a vapor, serras circulares, moinhos, tornos, motores e caixas de gelo”. Em 1891, Nothmann foi indicado pelo Brasilianische Bank für Deutschland para fornecer ao Comitê Central para Ajuda aos Judeus Russos, com sede em Berlim, as diretrizes para um projeto de colonização judaica planejada na América Latina, concretizado 12 anos mais tarde
Anúncio da empresa Ruston Proctor & Co, Revista de Engenharia. Rio de Janeiro, 28/12/1886
pelo Barão de Hirsch, em terras do Rio Grande do Sul. Enfim, diante das grandes transformações urbanas, econômicas e culturais registradas a partir de 1810, podemos afirmar que os imigrantes judeus contribuíram para acelerar o processo de modernização da sociedade brasileira. Após o Tratado da Amizade, que estendeu privilégios aos não católicos, a comunidade judaica teve seu perfil ampliado com a presença de sefarditas e asquenazitas de múltiplas nacionalidades. Caracterizados pelas diferenças herdadas das 70
suas comunidades de origem e pelas conquistas de novos status na comunidade de acolhimento, os judeus formaram redes de sociabilidade integrando-se ao cotidiano do país. Adaptados à vida nos trópicos, identificados com o cosmopolitismo proporcionado pela presença da Corte no Rio de Janeiro e familiarizados com os padrões sociais dominantes, os judeus alteraram seus modos de vestir, de preparar seus alimentos e de falar, sem perder os elementos constitutivos de sua judeidade. Ao preservarem os valores essenciais ao judaísmo, contribuíram para a construção do humanismo cívico e do bem comum, expandido-se por todas as áreas do conhecimento. Importante papel tiveram suas associações filantrópicas, congregações religiosas e comitês de auxílio aos recémchegados e aos mais pobres. Entre a Regência, Império e a República, eles abriram novos caminhos para a implementação dos ideais de liberdade, igualdade, dignidade da pessoa humana e da justiça, infelizmente tão desrespeitados neste século 21. Bibliografia
Fridman, Frida. Paisagem Estrangeira. Memórias de um Bairro Judeu no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2007. Samet, Henrique. Poucos e muitos: a comunidade judaica e seus desviantes na cidade do Rio de Janeiro (1850-1920)- Anexos. Rio de Janeiro: Garamond Universitária, 2019. Wolff, Frida, “Firmas francesas israelitas no Brasil no século XIX”, em: Revista do IHGB, n. 147 (351), - 546, abr/junho, 1986. Bibliografia na íntegra disponível no site www.morasha.com.br MARIA LUIZA TUCCI CARNEIRO É HISTORIADORA E PROFESSORA LIVRE-DOCENTE DO DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA, FFLCH-UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO. DESDE 2006 COORDENA O LABORATÓRIO DE ESTUDOS SOBRE ETNICIDADE, RACISMO E DISCRIMINAÇÃO-LEER/USP, ONDE É RESPONSAVEL PELO ARQSHOAH – ARQUIVO DIGITAL SOBRE HOLOCAUSTO E ANTISSEMITISMO. AUTORA DE: DEZ MITOS SOBRE OS JUDEUS; CIDADÃO DO MUNDO. O BRASIL DIANTE DO HOLOCAUSTO E DOS JUDEUS REFUGIADOS DO NAZIFASCISMO; IMPRESSOS SUBVERSIVOS: ARTE, CULTURA E POLÍTICA NO BRASIL; JUDEUS E JUDAÍSMO NA OBRA DE LASAR SEGALL, DENTRE OUTROS.
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david julius, vencedor do Nobel de Medicina Dois neurocientistas norteamericanos, David Julius, judeu de origem russa, e Ardem Patapoutian, um libanês de ascendência armênia, foram homenageados em conjunto pela descoberta, individual, dos principais mecanismos que ampliam o conhecimento das nossas sensações de calor, frio e pressão. Seu trabalho aborda a grande questão de como sentimos o ambiente que nós cerca. “A descoberta revolucionária dos laureados, este ano, nos permite entender de que maneira o calor, o frio e a força mecânica podem desencadear impulsos nervosos que nos permitem perceber e adaptarnos ao mundo”, afirmou o júri do Nobel. “Suas descobertas dos receptores de temperatura vêm melhorando o tratamento da dor causada por várias doenças. Em nossa vida, aceitamos essas sensações sem tentar entendê-las, mas de que
York, onde, à época, viviam grandes contingentes de imigrantes judeus russos. Os avós de Julius haviam fugido do antissemitismo na Rússia czarista em busca de uma vida melhor. Ele é professor na Universidade da Califórnia, em São Francisco.
David Julius
maneira os impulsos nervosos são desencadeados de modo a tornar perceptíveis a temperatura e a pressão? É esta a pergunta que os laureados, este ano, com o Prêmio Nobel, responderam”. avid Julius nasceu em 1955 e D cresceu em Brighton Beach, Nova
Alguns cientistas expressaram seu desapontamento com o fato de os comitês do Nobel não terem dado importância às pesquisas por vacinas contra a COVID-19 desenvolvidas usando a tecnologia do RNA mensageiro. Mas, as indicações tinham que ser enviadas até 1o de fevereiro, pouco mais de dois meses após as primeiras vacinas com o mRNA terem sido administradas, antes, portanto de que seu impacto sobre a pandemia fosse claro. Esse timing impossibilitou que a tecnologia da vacina concorresse ao prêmio, este ano.
IsraAID RESGATA afegãos IsraAID (Agência internacional humanitária de Israel) organizou a retirada secreta de 167 refugiados afegãos. Foram, até agora, duas operações resultantes do empenho humanitário colaborativo de governos, organizações, ativistas e patrocinadores. O complicado processo foi idealizado e liderado por ativistas como Aaron G. Frenkel, empresário e filantropo internacional. Na década de 1980, Frenkel utilizou suas conexões no setor aeronáutico para ajudar a Agência Judaica a transportar judeus da Europa Oriental e da ex-União Soviética, antes de seu colapso. Seu papel foi
fundamental na emigração de cerca de um milhão de judeus. “Quando ocorrem eventos perturbadores como a atual situação no Afeganistão, temos a obrigação de agir como verdadeiros líderes”, disse. Em 6 de setembro, 42 mulheres, meninas e seus familiares, todos em estado de grande vulnerabilidade, foram retirados do Afeganistão e levados para os EAU. Novamente, em 2 de outubro último, 125 afegãos, entre os quais juízes, ciclistas, jornalistas, apresentadores de TV, ativistas de direitos humanos, familiares de diplomatas afegãos, 71
artistas, policiais e cientistas foram retirados do país e levados para a Albânia. Todas essas pessoas são especialmente vulneráveis de acordo com a lei do Talibã e correm o risco de sofrer represálias por parte deles. Muitas das mulheres e mocinhas desses grupos eram símbolo do empoderamento e liderança femininos em seu país. Após escapar do Afeganistão, os refugiados passaram a salvo por países vizinhos a caminho dos EAU e da Albânia, antes de se estabelecerem no Canadá, França ou Suíça. DEZEMBRO 2021
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Joshua Angrist, americano-israelense, leva o Nobel de Economia Os norte-americanos Joshua Angrist e Guido W. Imbens foram agraciados com a metade do prêmio Nobel de Economia, ficando a outra parte para o canadense David Card. Joshua Angrist, nascido nos Estados Unidos, fez aliá para Israel em 1982, onde viveu até 1985. Retornou ao país, posteriormente, como professor de Economia na Universidade Hebraica de Jerusalém, antes de voltar para os EUA para lecionar no Massachusetts Institute of Technology (MIT). Segundo o comitê do Nobel, os três economistas dividiram o prêmio por seus “novos insights sobre a economia do trabalho” e por demonstrarem “as conclusões sobre causa e efeito a que se pode chegar a partir de experimentos naturais”. Esses experimentos usam situações da vida real para
Joshua Angrist
descobrir seus impactos no mundo. Permitem que os economistas tirem conclusões sobre causa e efeito em situações sociais complexas quando não podem realizar estudos controlados. Tal abordagem se disseminou por outras áreas, revolucionando a pesquisa empírica.
Angrist iniciou seu trabalho com experimentos naturais em pesquisas realizadas sobre o sistema israelense de educação. “Percebi que havia muita coisa interessante acontecendo no sistema educacional de Israel. Uma delas, por exemplo, que ditava o tamanho das turmas, remonta-se à era talmúdica”, explica o pesquisador. Em Israel, o número máximo de alunos por classe é 40, determinação essa baseada em uma teoria desenvolvida no século 12 por Maimônides. Se o número de alunos for 41, eles são divididos em duas turmas. Seu trabalho sobre a economia da educação discute uma série de questões sobre as abordagens e resultados educacionais. O desempenho das escolas, sua eficácia e desigualdade no sistema educacional são o foco do trabalho de Joshua Angrist.
Médico, cientista e sionista O Dr. Morton Scheinberg, médico clínico, reumatologista e pesquisador de renome mundial em doenças autoimunes, que desenvolveu seu trabalho no Hospital Israelita Albert Einstein, no Hospital e Centro de Reabilitação da AACD e nos hospitais da Beneficência Portuguesa deixou este mundo em 27 de setembro de 2021. O Dr Morton era um judeu e sionista apaixonado. Durante anos foi um dos colaboradores da Morashá, enriquecendo nosso
conhecimento com seus artigos sobre o legado dos médicos judeus e a medicina na Alemanha nazista. Ele era parte de um movimento, entre as sociedades médicas, que prega a alteração do nome de uma doença quando seu descobridor tinha um passado nazista ou foi um criminoso de guerra, ainda que tivesse feito descobertas de vulto para a história da Medicina. Vale lembrar que um dos grandes reconhecimentos na vida de um médico é quando o seu nome é atribuído a uma enfermidade por ele descoberta. 72
DR. MORTON Scheinberg
Entre os casos apontados pelo Dr. Morton em seus artigos sobressaía-se o do patologista alemão e nazista “dedicado”, o Dr. Friedrich Wegener, que identificou uma enfermidade que passou a ser
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Colin Powell, o Secretário de Estado americano que falava iídiche Colin Powell, falecido em 18 de outubro de 2021, foi o primeiro Secretário de Estado negro dos Estados Unidos. Amigo verdadeiro do Povo Judeu, apreciava a importância fundamental da relação Estados Unidos-Israel. Colin Powell falava iídiche como segunda língua e adorava surpreender os judeus com essa habilidade. Dos 13 anos até seu segundo ano no City College de Nova York, Powell trabalhou para a Sickser’s, uma loja no Bronx cujos proprietários eram judeus. Muitos dos clientes da loja também o eram e o iídiche era o idioma oficial. Em um discurso proferido em 2017 perante o Congresso Judaico Mundial, Powell falou da “alegria em todo o bairro” do Bronx quando David Ben-Gurion
conhecida como Doença de Wegener. Outro foi Hans Reiter, que descobriu uma forma de artrite conhecida como Síndrome de Reiter. No período do pós-guerra, descobriu-se que Reiter conduzira experimentos humanos nos campos de concentração nazistas. Desde o início de sua carreira, o Dr. Morton foi pioneiro em suas pesquisas, desenvolvendo tratamentos inovadores para doenças autoimunes, doenças inflamatórias em que o sistema imunológico ataca seus próprios tecidos. Foi o caso, por exemplo, de sua abordagem ao Lúpus. Desenvolveu um tratamento que se tornou o padrão ouro para a doença, passando também a
Ele era também um admirador das forças armadas de Israel. “Passei a conhecer e a admirar os soldados das Forças de Defesa de Israel”, declarou, certa vez. “Passei a entender o compromisso de sangue que tínhamos com Israel. Estudei as guerras de 1948, 1956, 1967 e 1973. E como soldado profissional americano, fico maravilhado com o profissionalismo e o sucesso das Forças de Defesa de Israel”. Colin Powell
declarou a independência de Israel, em 1948. “Lágrimas correram, celebrações por toda parte, e não eram apenas os judeus que celebravam, todos nós estávamos comemorando com os judeus. Todos compartilhando sua alegria, a alegria de ter uma pátria”, disse Powell.
ser aplicado em outras doenças autoimunes. Em 2002, no Hospital e Centro de Reabilitação da AACD (Associação de Assistência à Criança Deficiente), Dr. Morton criou o centro de pesquisas clínicas dedicadas a tratamentos inovadores nas doenças reumáticas autoimunes inflamatórias, que acarretam em sua progressão deficiências físicas e perda de movimento. Em 2019 iniciou a implantação do primeiro núcleo no Brasil dedicado à educação médica continuada, e de pesquisa e tratamento das doenças autoimunes nos hospitais 73
Quando Colin Powell conheceu Yitzhak Shamir, então primeiroministro de Israel, antes da primeira Guerra do Golfo, em 1991, ele disse: Men kent reden yiddish, “podemos falar em iídiche”, para a surpresa de Shamir. Pelo menos duas vezes, dirigindo-se ao American Israel Public Affairs Committee (Comitê de Relações Públicas Estados UnidosIsrael), ele brincou sobre suas habilidades nessa língua.
da Beneficência Portuguesa de São Paulo. O projeto, visava ao diagnóstico mais rápido dessas enfermidades, que acometem um em cada cinco indivíduos. O projeto inclui treinamento de médicos e estudantes, organização de seminários e congressos. Médico e cientista apaixonado, Morton Scheinberg teve sua vida marcada por uma constante busca da melhora clínica de seus pacientes. Fez avanços importantes no tratamento de doenças autoimunes, como no caso da Psoríase e Esclerose Múltipla e na introdução das terapias biológicas. Publicou 250 trabalhos em revistas indexadas. DEZEMBRO 2021
LIVRO
DICIONÁRIO DOS REFUGIADOS DO NAZIFASCISMO NO BRASIL Eram músicos, escritores, pintores, atores, cientistas, matemáticos, arquitetos, médicos, fotógrafos, dançarinos, empresários e até palhaços de circo, policiais e técnicos de futebol. Todos refugiados e refugiadas do nazifascismo, que buscaram salvação a partir de 1933. São relembrados em 300 biografias ilustradas, representando os milhares de fugitivos que fizeram ou refizeram a vida e a carreira em nosso país e
Walter LEWY Pintor Alemanha, 10/11/1905
No Brasil, de 1937 a 1995
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alter Max Lewy era filho único de uma família judia alemã de classe média, que lhe proporcionou uma educação liberal e laica. Ainda criança, mudou-se com os pais para Dortmund, onde diplomouse pela Escola de Artes e Ofícios em 1927. Sua formação artística foi fortemente influenciada pela chamada Neue Sachlichkeit (Nova Objetividade), movimento estético que marcou a vida cultural da Alemanha durante a República de Weimar (1918-1933), identificandose especialmente com sua vertente conhecida como Realismo Mágico.
muito contribuíram para a sociedade brasileira. Cada trajetória uma epopeia, desde o nascimento e a formação no Velho Mundo, os terríveis perigos e sofrimentos enfrentados com a chegada do nazismo, as lutas e peripécias para conseguir escapar, obter vistos e embarcar rumo à liberdade.
pelo historiador Israel Beloch, relata tudo isso. É mais uma publicação da Casa Stefan Zweig, sediada em Petrópolis, voltada para a divulgação e o estudo da obra do grande escritor austríaco aqui falecido e do papel dos refugiados que, como ele, escaparam do totalitarismo.
O Dicionário dos refugiados do nazifascismo no Brasil, coordenado
A biografia do pintor, desenhista e gravador Walter Max Lewy está contida no Dicionário dos refugiados do nazifascismo no Brasil, livro que está sendo traduzido ao inglês e publicado com o patrocínio do Banco J. Safra Sarasin.
Após concluir seu curso, trabalhou como designer gráfico e, paralelamente, iniciou uma carreira de pintor, participando de exposições coletivas em várias cidades alemãs no final da década de 1920. Em 1929, com a crise econômica, perdeu o emprego de designer e voltou a morar com os pais, que, a essa altura, haviam se mudado para a pequena cidade de Bad Lippspringe. Ali, Lewy produziu ilustrações humorísticas para jornais locais e realizou sua primeira exposição individual como pintor. Por conta da perseguição aos judeus promovida pelo regime nazista, mudou-se em 1935 para a cidade
holandesa de Roterdã, onde morou com parentes. Assustado com o crescimento do antissemitismo por toda a Europa, embarcou no final de dezembro de 1936 para o Brasil,
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onde já morava um primo seu, com um visto de turista obtido junto ao consulado brasileiro em Hamburgo. Praticamente toda a obra artística que produzira até então foi deixada na Europa, e se perdeu durante a Segunda Guerra Mundial. Lewy nunca mais veria seus pais, que seriam confinados no campo de concentração de Theresienstadt, em 1942, posteriormente deportados para Auschwitz e executados em maio de 1944. Chegando ao Brasil em janeiro de 1937, Walter Lewy fixou-se em São Paulo, onde trabalhou por alguns anos como diagramador e artefinalista em agências de publicidade. Em 1939, retomou sua atividade como pintor e logo travou contato com vários artistas brasileiros, especialmente os paulistanos do Grupo Santa Helena. Participou então ativamente dos salões promovidos pelo Sindicato dos Artistas Plásticos na década de 1940, e realizou sua primeira exposição individual no Brasil em 1944, no ateliê do pintor Clóvis Graciano.
surrealismo: “Na verdade eu ainda não estava resolvido, precisava conhecer melhor o Brasil. Porque assim que pisei aqui me tornei brasileiro, esqueci a Alemanha, que tinha deixado de existir. Nessa época eu comecei a saber tudo sobre Magritte, Max Ernst, e decidi começar a pintar novamente.” Tendo conquistado prestígio no cenário artístico nacional, Walter Lewy participou da I Bienal de São Paulo, em 1951, e de diversas outras edições do evento até 1975. Integrou também o Salão Nacional de Arte Moderna, no Rio de Janeiro, em 1952 e 1957; e várias edições do Salão Paulista de Arte Moderna nas décadas de 1950 e 1960, tendo sido por diversas vezes premiado. Individualmente, expôs com frequência na capital paulista, com destaque para a mostra realizada em 1956 no Museu de Arte Moderna de São Paulo, mesmo local que abrigaria, em 1974, a retrospectiva “Lewy: 35 anos de pintura no Brasil”. Em 1976, expôs na Galeria Debret, em Paris.
Sobre sua obra, escreveu o crítico de arte José Roberto Teixeira Leite: “A despeito de absurdas, suas rochas suspensas no ar e mulheres-cactos são de uma realidade pictórica a toda prova, impondo-se pela construção, pela qualidade do desenho e pela sensibilidade do colorido, sem deixar de lado o apuro da execução e sua extrema tipicidade. Porque, se é justo detectar, em sua arte, influências de outros pintores, notadamente Max Ernst e Tanguy, não menos justo é constatar a mestria com que as aglutinou Lewy, sobrepondo-lhe sua própria personalidade.” Walter Lewy trabalhou também como ilustrador de livros, destacando-se nesta área os desenhos produzidos para a obra Metamorfose, de Franz Kafka, em edição lançada pela Editora Civilização Brasileira, em 1956. Dedicou-se também à gravura e ao paisagismo. Foi casado com a pintora Dirce Pires, que durante muito tempo fora modelo de Di Cavalcanti. Em 2013, realizou-se na Estação Pinacoteca, na capital paulista, a mostra retrospectiva Walter Lewy: mestre do Surrealismo no Brasil, que contou com 134 obras, entre pinturas, gravuras, desenhos e ilustrações de livros. Foi a primeira exposição de sua obra desde sua morte, em 1995.
A retomada de sua carreira artística no Brasil praticamente coincide com sua adesão ao surrealismo, estilo a que permaneceria vinculado pelo restante da vida e de que seria um dos principais expoentes no país. Anos mais tarde, o próprio Lewy constataria que a vinda para o Brasil foi um marco importante em sua trajetória artística, relacionando-a inclusive com a opção pelo
por Rogério Alves de Barros
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