Revista Morashá - ed 115

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ANO xxix edição 115 JUN 2022


ANO XXIX - Junho 2022 - Nº 115 AMULETOs PARA COLAR em formato de coração e de yad, mãozinha que acompanha a leitura da torá. MEADOS DO SÉC. 19, INGLATERRA

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Carta ao leitor Tishá b’Av, o nono dia do mês judaico de Menachem Av, é a data mais triste do calendário judaico. Nessa data caíram tanto o primeiro como o segundo Templos Sagrados de Jerusalém, além de ocorrerem outros eventos dolorosos para o Povo Judeu e para o restante da humanidade. Entretanto, menos de uma semana depois, há outra data importante em nosso calendário: Tu b’Av, o 15º dia do mês de Av. Enquanto Tishá b’Av é o dia mais triste do calendário judaico, o dia 15 de Av é um dos mais felizes. Dizem nossos Sábios: “Não há dias tão festivos para o Povo Judeu quanto 15 de Av e Yom Kipur”, pois não há alegria maior do que ter o perdão por seus pecados, em Yom Kipur, e, em Tu b’Av, a alegria pelos sete acontecimentos positivos que ocorreram nesse dia. Entre esses, a celebração, na Antiga Israel, em que as moças solteiras saíam para dançar nos vinhedos, cantando: “Jovens, levantem os olhos e busquem a quem escolher como suas companheiras”. E os rapazes solteiros acorriam aos campos para escolher a sua pretendida. Como não há ocasião judaica mais feliz do que um casamento, o dia 15 de Av foi considerado um dos dias mais felizes do ano. Tishá b’Av simboliza a queda do Templo Sagrado e a destruição de Jerusalém, com a morte de grande número de judeus nas guerras contra Roma. Tu b’Av, por outro lado, celebra casamentos judaicos. Enquanto o tema do dia 9 de Av é a destruição, o do dia 15 é a união para formar novas famílias, garantindo assim a continuidade do Povo Judeu. O fato dessas duas datas tão significativas serem tão próximas transmite uma lição: nunca devemos perder a esperança, porque a escuridão é sempre seguida de luz e a salvação pode vir em um piscar de olhos. Da profunda tristeza de Tishá b’Av, o Povo Judeu se ergue e, pouco depois, comemora um dos dias mais felizes do ano. O dia 15 de Av nos lembra, ano após ano, que não importa quão difícil seja a situação de uma pessoa, sua vida pode mudar por completo. Este mundo, ensina o Talmud, é uma grande roda gigante. Mesmo quem

se encontra à beira de um “precipício” pode ser alçado repentinamente, às “maiores alturas”. Isto é verdade tanto para indivíduos quanto para uma nação ou, até mesmo, para o mundo todo. De fato, alguns dos maiores milagres de nossa história aconteceram após os períodos mais difíceis e dolorosos. Nossa libertação do Egito ocorreu logo após a escravidão e opressão egípcia. Da mesma forma, o Estado de Israel foi fundado pouco após o Holocausto. Elie Wiesel, Prêmio Nobel da Paz, escreveu que sua geração era a de Jó e Jerusalém. Ele vivenciou a destruição orquestrada pelo Nazismo e esteve presente tanto nos campos de extermínio quanto no dia em que Israel reunificou Jerusalém e o Kotel voltou para nossas mãos. Sua geração viveu o momento mais sombrio da História Judaica, mas apenas alguns anos depois, presenciou milagres pelos quais orávamos há quase dois mil anos. O fato de Tu b’Av ocorrer poucos dias após Tishá b’Av não significa que a alegria de uma data anule a tristeza da outra. Os grandes triunfos do Povo Judeu não apagam suas tragédias. Jejuamos e lamentamos em Tishá b’Av, embora um dos dias mais felizes do ano ocorra menos de uma semana mais tarde, e continuamos a lamentar os quase sete milhões de judeus assassinados no Holocausto, apesar do retorno do nosso povo à Terra de Israel e a Jerusalém. Tu b’Av, portanto, nos ensina que nunca devemos perder a esperança, porque não importa quão longa ou escura seja a noite, ela sempre será seguida do amanhecer. Mesmo durante nossos momentos mais sombrios, nunca perdemos a esperança, porque nosso próprio calendário nos ensina que a salvação é sempre iminente, ou seja, podemos dormir chorando, mas haverá risos pela manhã (Salmos 30:5). Entre as inúmeras contribuições inestimáveis que o Povo Judeu deu ​​ao mundo, uma delas é a crença inabalável em que o amanhã será melhor do que o hoje e que, por mais difíceis que sejam as circunstâncias atuais, venceremos e triunfaremos, sempre!


ÍNDICE

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carta ao leitor

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judaísmo O amor a Jerusalém

personalidade O sucesso incomparável de Barbra Streisand

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antisSemitismo Shakespeare e os judeus POR ZEVI GHIVELDER

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HaKotel HaMa’aravi - o Muro Ocidental shoá Vél d’Hiv, símbolo da vergonha nacional francesa

israel

Israel - uma democracia pujante por samuel feldberg

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COMUNIDADES Judeus do Iraque: apogeu e fim de uma comunidade

história Yodfat: arqueologia e história por reuven faingold

A inesperada descoberta do Arquivo Judaico do Iraque

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personalidade Shlomo Hillel, o espião que libertou os judeus do Iraque

tradição

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Amuletos e talismãs no Judaísmo

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cartas

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judaísmo

O amor a Jerusalém Jerusalém é a Morada Divina na Terra. Isso significa que a Presença de D’us é mais perceptível em Jerusalém do que em qualquer outra parte. A cidade mais sagrada dentre todas foi, é e sempre será a capital eterna dos Filhos de Israel.

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m Tishá b’Av – nono dia do mês de Menachem Av, dia mais triste do calendário judaico – o Povo Judeu chora a queda do Templo Sagrado, a destruição de Jerusalém e todos os sofrimentos daí decorrentes, vivenciados por nosso povo em seu longo exílio depois de expulso de nossa Pátria. O ponto central do luto em Tishá b’Av é a destruição da cidade de Jerusalém e, particularmente, do Beit HaMikdash – o Templo Sagrado.

Por isso não apenas o Povo de Israel foi profundamente afetado pelos eventos recordados e pranteados em Tishá b’Av. Na verdade, o mundo todo foi afetado e não voltará a seu estado normal até que a cidade e o Templo Sagrado de Jerusalém sejam reconstruídos. A razão disso é o fato de Jerusalém ser o ponto focal da existência do mundo. O Midrash assim descreve: “Disse Abba Hanan em nome de Shmuel HaKatan: ‘Esse mundo é como um olho. O branco dos olhos é o oceano que circunda o mundo; a íris é o mundo que não é habitado; a pupila é Jerusalém; e o rosto (o observador refletido na pupila) é o Templo Sagrado. E que ele possa ser prontamente reconstruído, em nossos dias’ ” (Derech Eretz Zuta 9). Todo mal infligido sobre Yerushalaim é um mal contra “a menina dos olhos do mundo”, e, de fato, quando a pupila dos olhos é danificada, a luz fica reduzida e comprometida.

A queda de Jerusalém constitui muito mais do que a destruição da capital histórica do Povo Judeu. De fato, a queda da cidade e a destruição do Templo Sagrado representaram um golpe no centro vital do Povo Judeu, pois Jerusalém é o ponto em que o “cordão de prata”1 da influência Divina se conecta com a realidade do mundo. 1

Consciente ou inconscientemente, o mundo inteiro sente a destruição de Jerusalém. Citando o Livro de Isaías, o Talmud diz: “Desde o dia em que o Templo foi destruído, os Céus não se fizeram ver em sua plena

O chamado cordão de prata é uma expressão originária do Tanach, sendo encontrada no livro Cohelet (Eclesiastes), capít. 12, versíc. 6. Subentende-se que essa expressão se refira à Força Divina que mantém o corpo ligado ao espírito. 6


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JERUSALÉM VISTA DO ALTO DO MONTE DAS OLIVEIRAS

pureza, como está dito: ‘Eu encubro os Céus na escuridão e visto-o com vestimentas de luto’ ” (Talmud Bavli, Berachot 59a, citando Isaías 50:3). Portanto, o luto por Jerusalém é universal – uma tragédia que faz sofrer todo o Universo. Nossos Sábios usam linguagem metafórica ao ensinar que até mesmo D’us participa nessa lamentação por Yerushalayim. Em uma famosa passagem do Talmud, um de seus maiores Sábios, o Rabi Yossi, relata o que ouviu ao entrar em uma das ruínas da Cidade Santa: “Uma voz Celestial arrulhava tal qual uma pomba e dizia: ‘Ai dos (Meus) filhos, pois por seus pecados Eu destruí a Minha Morada, queimei Meu Santuário e os exilei entre os povos’ ”. Rabi Yossi ouviu, então, de Eliyahu HaNavi, o profeta Elias, que não transcorria um dia sequer sem que D’us sofresse pela queda do Templo

e o exílio do Povo Judeu (Talmud Bavli, Berachot 3a). Na mesma linha, há um ensinamento metafórico, no Talmud, que diz: “Desde o dia em que o Templo foi destruído, D’us não mais conheceu o riso” (Talmud Bavli, Avodá Zará 3b).

DESTRUIÇÃO DE JERUSALÉM PELOS ROMANOS, COMANDADOS POR TITO, 70 EC. ÓLEO DE DAVID ROBERTS

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Para o Povo Judeu, a destruição de Jerusalém é um manto de tristeza e escuridão que encobre a face da realidade. O lamento pela Cidade Eterna não se limita a um único dia anual de lamentação – Tishá b’Av. Mas grande parte da vida judaica é marcada pelo luto pelo hurbán – a destruição da mais sagrada dentre as cidades. Para nosso povo, não constitui mera poesia o famoso versículo no Livro dos Salmos, “Se eu me esquecer de ti, ó Jerusalém, que perca a minha destra a sua destreza! Que se cole minha língua ao palato, se não me lembrar sempre de Ti, se não mantiver a recordação de Jerusalém acima de minha maior alegria” (Salmos 137:56). De fato, esse versículo traduz uma realidade viva. Portanto, de acordo com a Lei Judaica e sua tradição, o luto pela perda de Jerusalém é recordado mesmo nos momentos de junho 2022


judaísmo

Relevo do Arco de Tito, em Roma, representando soldados romanos levando despojos do Templo de Jerusalém, inclusive a menorá

maior alegria. Por exemplo, quando a mesa está posta para receber hóspedes, deve-se deixar de servir algum alimento em recordação ao hurbán, à destruição. Ao se construir uma casa, uma parte deve ser deixada incompleta, lembrandonos da falta do Templo Sagrado. A lembrança de Yerushalaim deve vir à frente de todas as ocasiões festivas. Mesmo em meio ao júbilo por um casamento, a destruição de Jerusalém é recordada na cerimônia religiosa, que é concluída apenas após o noivo quebrar um copo. Isso nos faz lembrar, mesmo em meio à alegria pelo início de uma nova família de nosso povo – uma ocasião que deve ser o auge da felicidade para os recém-casados – que não nos é possível o júbilo pleno enquanto Jerusalém jaz por terra. Portanto, não apenas nas ocasiões tristes, mas também nas mais felizes, o Povo Judeu, através dos tempos, anseia e lamenta continuamente por Jerusalém, há quase dois mil anos.

lembrança de Jerusalém nunca foi borrada da consciência judaica. Pelo contrário, o tempo transcorrido apenas aumentou e aprofundou nosso amor e reverência por Yerushalaim – ao ponto de a mais sagrada das cidades se ter tornado sinônimo da Terra de Israel em sua totalidade. Durante gerações, todo judeu oriundo da Terra de Israel era chamado de Yerushalmi (cidadão de Jerusalém). Vale mencionar que

ainda que o Talmud da Terra de Israel (diferentemente do Talmud da Babilônia) tenha sido escrito e compilado em Tiberíades e Cesareia, ele é chamado de Talmud Yerushalmi – o Talmud de Jerusalém. Assim sendo, em todas as fontes judaicas, o termo “a cidade”, sem outras especificações, refere-se a Jerusalém – a “Cidade de D’us”. Segundo o misticismo judaico, Jerusalém é muito mais do que uma cidade ou do que o centro espiritual

A Cidade de D’us Ainda que quase dois milênios tenham transcorrido desde a destruição do Templo Sagrado, a

NA CIDADE VELHA DE JERUSALÉM, UM BECO CONSTRUÍDO COM PEDRAS ESCULPIDAS À MÃO

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do Povo Judeu. Trata-se do próprio símbolo da Shechiná – a Presença Divina na Terra. Jerusalém é o ponto de contato e conexão onde o Infinito encontra o finito, onde tempo e espaço tocam aquilo que transcende o tempo e o espaço. Essa cidade é tão central para o Judaísmo que constitui um dos principais temas de nossas preces. Uma das bênçãos da Amidá (o Shemone Esreh) e do Birkat HaMazon (a bênção após as refeições que incluam pão) é um pedido para que D’us reconstrua Jerusalém. A famosa oração do Rabi Shlomo Alkabetz, o Lechá Dodí – que se tornou parte inseparável do serviço de Cabalat Shabat (o recebimento do Shabat) em todas as comunidades judaicas – é essencialmente uma ode a Jerusalém. Lechá Dodí, uma das orações mais ricas e belas na liturgia judaica, entrelaça todo o anseio judaico pela redenção com seu ponto focal – Jerusalém. E, de fato, como reza a canção, a queda de Jerusalém constitui a própria imagem do nosso povo na Diáspora, e simboliza todo o sofrimento e angústia do Povo Judeu. Ao longo das gerações, mesmo nas épocas mais trágicas de opressão e perseguição, quando os judeus estavam impossibilitados de ir a Jerusalém, a cidade nunca deixou de ser centro espiritual e capital do Povo Judeu. Nunca houve e jamais haverá outro centro espiritual e nacional judaico a não ser a Cidade Santa. E é interessante notar que, apesar de ter sido conquistada inúmeras vezes, Jerusalém nunca foi capital de nenhum outro povo a não ser do Povo Judeu. A alma coletiva de nosso povo é completamente entrelaçada com Jerusalém. Quando um judeu ora

TORRE DA DAVID, TERRA SANCTA ARTS. CORTESIA DA BIBLIOTECA DO VICTORIA AND ALBERT MUSEUM, LONDRES

Lechá Dodí, uma das orações mais ricas e belas na liturgia judaica, entrelaça todo o anseio judaico pela redenção com seu ponto focal – Jerusalém.

– em qualquer lugar do mundo onde se encontre – ele se volta para Yerushalaim. Todas as sinagogas mundo afora, independentemente de seus costumes e rituais, em suas diferentes formas e estilos, estão voltadas a uma única direção, apenas – Jerusalém. São vários os costumes judaicos que expressam a saudade e o anseio por Jerusalém. Concluímos o Seder de Pessach, o ritual que celebra a liberdade do Povo de Israel,

MURALHAS DA CIDADE VELHA, JERUSALÉM, ISRAEL

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com um desejo: “O próximo ano em Jerusalém”, Leshaná Habaá b’Yerushalaim! Em muitos lugares era costume, até no contrato de casamento, estar escrito que a cerimônia seria realizada, com a ajuda de D’us, na Cidade Santa, e especificava que – que D’us não o permitisse – se a redenção ainda não tivesse chegado, o casamento seria realizado em outro local. Esse costume expressava a esperança e o ideal inabaláveis de que somente deveríamos estar em Jerusalém. Estar na Cidade Sagrada – viver em seu meio – é a esperança de todos os judeus. E de fato, segundo a Halachá (a Lei Judaica), fazer Aliá (literalmente, subir) – isto é, ir à Terra de Israel, particularmente a Jerusalém, para lá viver – é da maior importância. Ainda que em quase todas as gerações os povos que ocupavam a Terra de Israel não dessem aos judeus o direito de fazer Aliá, nossa esperança de o fazer nunca foi perdida.

Jerusalém Terrena e Jerusalém Celestial O Talmud Babilônico nos ensina que não existe apenas uma Jerusalém – a terrena –, mas também uma Jerusalém Celestial. A Jerusalém terrena – centro espiritual da Terra de Israel, hoje, capital política do Estado de Israel – é paralela à Jerusalém Celestial, onde há um glorioso Templo Divino e se encontra toda a majestade do mundo celestial. A Jerusalém Celestial paira sobre a Jerusalém terrena, da qual depende e floresce. Ensina o Talmud que “O Santo, abençoado o Seu Nome, decretou: ‘Não entrarei em Jerusalém nas Alturas até ter entrado na Jerusalém terrena’ ” (Talmud Bavli, Taanit 5ª). Essas duas cidades – Jerusalém Celestial e Jerusalém terrena – não estarão completas enquanto todo o Povo de Israel não tiver retornado à sua primeira e única capital.

XILOGRAVURA EM MADEIRA DE MAPA DE JERUSALÉM, ALEMANHA, 1581. COLEÇÃO LAOR, JEWISH NATIONAL AND UNIVERSITY LIBRARY, JERUSALÉM

PORTÃO DE DAMASCO: VISTA AÉREA DA CIDADE VELHA

Jerusalém: centro do mundo Jerusalém é um lugar único, onde este nosso mundo terreno e o celestial se fundem e se complementam. A cidade está à margem do material e do físico, à beira do mundo não-físico. O Pirkei Avot – um dos tratados da Mishná, núcleo da Torá Oral, descreve os milagres ocorridos no Templo Sagrado e na própria cidade. É justamente da santidade intrínseca à cidade que se originam esses milagres – que, por sua vez, causam a mudança nas leis da natureza. Jerusalém constitui uma passagem direta entre o mundo terreno e o mundo celestial. É o Portão para os Céus – a passagem do físico para o espiritual. E é justamente por essa razão que oramos voltados na direção de Jerusalém, como está escrito na oração do Rei Salomão: “… e rezarem a Ti voltados na direção da sua terra que deste a seus pais, para esta cidade que escolheste e para esta casa que construí em Teu Nome...” (Reis I, 8:48).

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Todas as nossas orações, proferidas onde quer que estejamos no mundo, são feitas na direção de Yerushalaim, a Cidade Santa, de onde ascendem aos Céus. Jerusalém é o lugar mais sensível no mundo. Tudo o que ocorre na cidade, mais do que em qualquer outra parte, está sujeito a ter implicações para o mundo todo – tanto nos acontecimentos bons quanto nos ruins. As preces proferidas na Cidade Santa têm um peso diferente das que são ditas em outras partes do mundo. Ao se orar na mais sagrada das cidades, sente-se que as palavras chegam mais facilmente aos Céus. A santidade é mais tangível e mais perceptível quando se está em Jerusalém. E o impacto dos atos de alguém que está na cidade são bastante aumentados. Assim sendo, um ato de bondade realizado na Cidade Santa traz bênçãos para o mundo todo, ao passo que uma ação negativa cometida no centro espiritual do Universo pode reverberar muito além de seus limites físicos.

Uma Cidade Sagrada, perfeita em Sua beleza

Tishá b’Av e o Dia de Jerusalém

A conexão de Jerusalém com os mundos superiores produz um fluxo de santidade que permeia a cidade toda. As migalhas de santidade, as provas de espiritualidade que estão no ar, são o que dá beleza física à Yerushalaim – não apenas seus lugares espirituais, mas também os físicos: suas casas, suas pedras e as pessoas que nela habitam. Jerusalém é o “… lugar de mais bela visão, alegria de toda a terra...” (Salmos 48:3). À sua maneira única e própria, é a mais bonita dentre todas as cidades do mundo. Mas sua beleza não provém de altos edifícios, de arquitetura grandiosa. Aliás, em certos bairros da cidade vê-se justamente o contrário. Sua beleza, seu sol e sua luz, e várias outras de suas ricas características, se originam de sua santidade. A espiritualidade que dela flui é o que a torna linda e graciosa.

Em Tishá b’Av, nono dia do mês de Menachem Av, no ano de 70 da Era Comum, legiões romanas destruíram o segundo Beit HaMikdash – o segundo Templo Sagrado de Jerusalém, marcando a queda da cidade. Durante quase dois mil anos, o Povo de Israel, que havia sido expulso de sua terra, sonhou com sua Pátria, ansiou por retornar, em particular a Jerusalém – símbolo da alma da Terra de Israel. Durante quase dois mil anos, o Povo Judeu orou – no mínimo três vezes diariamente, todos os dias do ano – pedindo pela reconstrução da Cidade Santa e a ela ser reconduzido. Após a Guerra de Independência de Israel, em 1948, Jerusalém foi dividida, e a Cidade Velha, particularmente o local onde se erguia o Templo Sagrado, foi tomada pelas tropas jordanianas. A cidade permaneceu dividida até junho de 1967, quando Israel, vencedor da Guerra dos Seis Dias, a reunificou. Para celebrar esse grande milagre – sonho de dois

JERUSALÉM, JUDEUS NO MURO DAS LAMENTAÇÕES. GRAVURA PONTILHADA, WILLIAM HENRY BARLETT (1809-1854). museu de ISRAEL, JERUSALÉM

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mil anos finalmente realizado – foi instituído o Dia de Jerusalém, Yom Yerushalaim, celebrado em 28 do mês de Iyar. O Rabinato Chefe de Israel declarou o Dia de Jerusalém como uma data especial, por celebrar o retorno do livre acesso ao Kotel – o Muro Ocidental ou Muro das Lamentações. Há quem pergunte se o Dia de Jerusalém anula o dia de Tishá b’Av. Será que o retorno do Povo de Israel à Terra de Israel e a reunificação de Jerusalém tornaram irrelevante o luto de Tishá b’Av? A resposta a essa pergunta: não. O jejum de Tishá b’Av e as outras restrições desse dia ainda permanecem em vigor, especialmente porque o Templo Sagrado continua em ruínas, significando claramente que Jerusalém ainda não foi reconstruída em toda a sua magnitude. Ademais, o nome Yerushalaim tem vários significados, sendo um deles “Cidade da Paz”. E, como vivenciamos, todos os dias, a paz ainda não se instalou em Jerusalém nem no restante do mundo. Portanto, a lamentação e o jejum de Tishá b’Av ainda têm razão de

de termos merecido – ainda neste mundo terreno – o privilégio de viver na Cidade Santa, ponto físico e espiritual de conexão com o Mundo Superior.

MURO DAS LAMENTAÇÕES, 1880. óleo sobre tela JEAN-LÉON GÉRÔME

ser, independentemente do júbilo pelo Dia de Jerusalém. Contudo, hoje, especialmente para os judeus que têm o privilégio e a honra de viver em Israel, especialmente em Jerusalém, o sentimento de luto no dia 9 de Av não é tão intenso quanto antes do retorno de nosso povo à Terra de Israel – quando éramos impedidos de viver em nossa pátria ancestral, mais especificamente na Cidade Velha de Yerushalaim. E, de fato, não apenas no Dia de Jerusalém, mas até mesmo em Tishá b’Av – o dia mais triste de nosso calendário – podemos nos alegrar pelo fato

Como profetizou Isaías: “Regozijaivos com Jerusalém, e alegrai-vos por ela, todos vós que a amais! Juntem-se em seu júbilo, todos vocês que choraram por ela” (Isaías 66:10). O Templo Sagrado ainda jaz em ruínas e a paz ainda não cobre o mundo com seu manto. Portanto, em Tishá b’Av, todos os judeus têm a obrigação de chorar por Jerusalém, mesmo os que nela habitam. Mas cada judeu, onde quer que viva, também deve amar esta cidade, a mais especial e sagrada dentre todas. E esse amor se justifica não apenas pelo fato de ser a capital e o lar do Povo Judeu, mas porque como Yerushalaim não há outra cidade no mundo. Há uma Jerusalém terrena e uma celestial – e, às vezes, é difícil distinguir uma da outra. BIBLIOGRAFIA

Steinsaltz, Rabbi Adin Even-Israel, Change and Renewal: The Essence of the Jewish Holidays, Festivals & Days of Remembrance. Maggid Books.

Noite na Cidade Velha de Jerusalém com suas muralhas ancestrais, vendo-se a Torre de David

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JUDAÍSMO

HaKotel HaMa’aravi - o Muro Ocidental A “Shechiná”, a Presença Divina, repousa sobre HaKotel HaMa’aravi, o Muro Ocidental, nos ensina o Zohar, obra fundamental da Cabalá. Por essa razão, nunca foi e nunca será destruído. Para pessoas de todas as religiões, etnias e nacionalidades, o Kotel é um local de oração, esperança e inspiração, a partir de onde se dirigem a D’us, abrindo seus corações para pedir ajuda e orientação. Para nós, judeus, no entanto, o Kotel HaMa’aravi é algo mais: é o símbolo de nossa eternidade como povo.

o

Muro Ocidental, na Cidade Velha de Jerusalém, é uma das quatro paredes de sustentação do Monte do Templo que permaneceram intactas após a destruição do segundo Templo Sagrado de Jerusalém. É chamado de Muro Ocidental por estar voltado para Oeste e é o mais próximo do local onde ficava o Santo dos Santos – o ponto mais sagrado do Templo Sagrado. Devido às restrições de entrada no Monte do Templo, o Kotel é o lugar mais sagrado onde os judeus podem rezar e, especialmente durante as festas judaicas, é aí que milhões de pessoas fazem suas orações.

Monte Moriá, em cujo topo se erguia, majestoso, o Grande Templo de Jerusalém. O Muro Ocidental é tudo o que resta do segundo Templo de Jerusalém, destruído pelos romanos no ano 70 EC. Como se explica o fato de que o HaKotel HaMa’aravi tenha sobrevivido à destruição romana? O Midrash relata o seguinte episódio: As forças de Roma, sob o comando do General Vespasiano, já haviam sitiado Jerusalém. Ele, que estava prestes a se tornar o próximo imperador romano e voltar a Roma, incumbiu seu filho Tito de continuar sua campanha e consignou a destruição dos quatro baluartes do Templo a quatro de seus generais. O Muro Ocidental, o Kotel, ficou a cargo de Pangar.

O segundo Templo Sagrado foi construído após a volta de judeus da Babilônia, sob a liderança de Ezra e Nehemias. Inaugurado em 516 AEC, era uma construção simples e foi totalmente reformado, em 20 AEC, pelo rei Herodes. Para expiar seu terrível pecado de ter assassinado a maioria dos Sábios judeus, Herodes transformou o Templo em uma das construções mais majestosas da época. O Kotel Ha’Maaravi não era, como muitos acreditam, um dos muros do segundo Templo, propriamente dito. Era a muralha ocidental dentre as quatro que serviam de arrimo à plataforma construída por Herodes, ao redor do Monte do Templo, o chamado

Quando Tito, liderando os exércitos romanos, finalmente conseguiu entrar em Jerusalém, os generais seguiram as ordens recebidas por Vespasiano e demoliram a parte que lhes tocara. Apenas um, Pangar, não o fez. Ao voltar a Roma, o já imperador Vespasiano o chamou à sua presença e lhe perguntou: “Por que não destruíste aquilo de que te encarreguei?” Ao que ele respondeu “Por tua vida, agi em honra de teu império, pois se tivesse 13

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demolido aquele muro, ninguém, nos anos vindouros, teria ideia da grandiosidade do que destruíste. Mas quando as pessoas virem o Muro Ocidental, hão de exclamar: ´Contemplai o poder de Vespasiano, basta ver pelo que ele não destruiu!’ ” (Midrash Raba, Lamentações 1:31). A verdadeira razão pela qual o Muro Ocidental não foi destruído não foi essa que conta o Midrash – a realidade é que o general designado para o demolir foi incapaz de o fazer. O Midrash revela que o Muro Ocidental permaneceu de pé graças a um juramento de D’us prometendo sua sobrevivência eterna. E, de fato, ensina que a Presença Divina nunca se retirou do Muro Ocidental. É curioso o fato de que o imperador Vespasiano e seu filho Tito, responsáveis ​​pela destruição de Jerusalém e pela queda do Templo Sagrado, tenham sido os responsáveis pela ​​ construção do Coliseu – o maior anfiteatro antigo já erguido, que foi usado para disputas de gladiadores e espetáculos públicos, incluindo execuções de centenas de milhares de cristãos. Esse símbolo icônico do Império Romano constituía a antítese do Templo Sagrado de Jerusalém.

BARACK OBAMA, O ENTÃO CANDIDATO À PRESIDÊNCIA DOS EUA, 24/07/2008

ORANDO NO MURO OCIDENTAL, EM JERUSALÉM, ISRAEL

O Coliseu é uma das principais atrações turísticas de Roma, assim como o Kotel é um dos locais mais visitados em Israel. Mas as diferenças entre essas duas edificações não poderiam ser maiores. O Coliseu é uma construção enorme – uma

OS “BILHETINHOS” COLOCADOS NO MURO DAS LAMENTAÇÕES

Príncipe William DA INGLATERRA visita o kotel, 28/06/2018

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lembrança do poder e da brutalidade do Império Romano. O Kotel, por outro lado, é apenas uma parede de calcário – tudo o que resta do Templo Sagrado. Mas, ao contrário do Coliseu, onde se celebravam a crueldade, a violência e a morte, o Muro das Lamentações é um local de oração e esperança e inspiração não apenas para os judeus, mas para as pessoas de todas as religiões, etnias e nacionalidades que se dirigem ao Kotel para rezar. Muitos líderes políticos e religiosos visitaram e rezaram no Muro Ocidental, incluindo o atual presidente do Brasil, os presidentes americanos Clinton, Bush, Obama e Trump – assim como vários papas, incluindo o

O PRESIDENTE MACRON, DA FRANÇA, 22/01/2020


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Papa Francisco. Inúmeros visitantes, independentemente de sua origem e de seu poder e influência, deixam seus bilhetinhos entre suas pedras, pois aprendemos que D’us é particularmente atento aos pedidos feitos nesse local sagrado. Além de ser o ponto onde a Presença Divina é mais palpável, o Kotel é um símbolo da eternidade do Povo Judeu, pois assim como o Muro Ocidental não pôde ser destruído, também o Povo de Israel nunca deixará de existir. A singularidade do Kotel – a razão pela qual permaneceu de pé apesar daqueles que tentaram destruí-lo – reside em sua força espiritual. Assim também, nosso povo, o Povo Judeu, permaneceu em existência por milhares de anos, apesar de todos aqueles que tanto tentaram aniquilá-lo, por causa de sua força espiritual. Como ensina o Zohar, a Presença Divina habita entre a Nação

o Templo, permanece de pé. No entanto, quase dois mil anos após a destruição do Templo Sagrado, o Povo Judeu permanece vivo, enquanto os antigos romanos não mais andam na terra: o poderoso Império Romano caiu e nunca mais se levantou. Roma não é habitada pelos antigos romanos, enquanto o Povo de Israel retornou à sua pátria eterna, a Terra de Israel, de onde fomos expulsos pelas legiões do imperador Vespasiano e seu filho Tito. de Israel. Podemos ser um povo pequeno, assim como o Kotel é uma construção pequena, mas somos uma nação eterna que já fez e continua fazendo contribuições grandiosas à humanidade, desproporcionais a seu tamanho. O Kotel é o que resta do Templo Sagrado de Jerusalém, que ainda se encontra destruído, enquanto o Coliseu, obra de quem derrubou 15

De fato, o retorno do Povo de Israel à Terra de Israel – especialmente a Jerusalém – é um prelúdio para o dia – muito esperado não apenas pelo Povo Judeu, mas por toda a humanidade – em que o Templo Sagrado de Jerusalém será reconstruído. Quando este dia acontecer, a Presença Divina encherá o mundo inteiro e a paz finalmente será concedida a toda a humanidade. junho 2022


SHOÁ

VÉl d’Hiv, símbolo da vergonha nacional francesa Há 80 anos, em julho de 1942, a polícia francesa prendeu 13.512 judeus – homens, mulheres e crianças, levando quase todos para o Vélodrome d’Hiver, em Paris. Essa foi a maior operação de detenção de judeus na França, durante o Terceiro Reich, e foi executada exclusivamente por policiais franceses, sem o envolvimento de um alemão sequer. A maioria desses judeus foram assassinados em Auschwitz.

o

brutal evento de 17 e 18 de julho em Paris, tornou-se conhecido como La Rafle de Vél d’Hiv, o Cerco Policial do Velódromo

A França se rende oficialmente em 22 de junho, e assina um armistício com Alemanha e Itália. O país é, então, dividido: 3/5 do território – o Norte e a costa do Atlântico, inclusive Paris – ficam sob ocupação nazista, enquanto o Sul e o Sudeste, a chamada Zona Livre, passam a ter um governo leal à Alemanha, o Regime de Vichy, com sede na cidade deste nome. Uma área da região Sudeste fica nas mãos da Itália fascista. Cerca de 150 mil judeus refugiam-se na Zona Livre, na esperança de que ali estariam a salvo dos nazistas, porém, encontram uma realidade idêntica à dos judeus que haviam permanecido na Zona Ocupada.

de Inverno. Foi nessa mesma Paris que, em 1791, de acordo com a Assembleia

Nacional Constituinte, os judeus tornaram-se cidadãos plenos pela primeira vez, na Europa. Com a eclosão da 2ª Guerra Mundial, em setembro de 1939, na França da “igualdade, liberdade e fraternidade”, seus cidadãos judeus acreditavam erroneamente estar seguros, sem correr o risco de serem perseguidos. Os anos seguintes foram de muita perseguição, sofrimento e tragédia.

A França na 2ª Guerra Mundial

A França de Vichy desfrutava de certo grau de autonomia em sua colaboração com a ocupação alemã. Sob a liderança de marechal Philippe Pétain, o governo de Vichy seguia sua própria política antissemita. Em 4 outubro de 1940, voluntariamente, promulga as primeiras leis contra os judeus. O “Statut des Juifs”, que se baseava nas “diretrizes” nazistas já postas em prática na zona de ocupação alemã, impunha segregação racial e a obrigatoriedade aos judeus de se identificar

No dia 3 setembro de 1939, França e GrãBretanha declararam guerra à Alemanha nazista que invadira a Polônia dois dias antes. Em maio de 1940, exércitos alemães invadem a França e, no dia 14 de junho, tomam Paris. A Itália de Mussolini, que no dia 10 de junho entrara na guerra ao lado do Terceiro Reich, invade o território francês. 16


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PRAÇA DOS MÁRTIRES JUDEUS DO VéLoDROMe d’hiver, paris. homenageia todas as vítimas de antissemitismo e racismo na frança. “n’oublions jamais” – esquecer, jamais

como tal junto às autoridades e usar a estrela amarela em suas roupas. Foram excluídos da vida pública e militar, da indústria e do comércio, das profissões liberais e das artes. O governo da Zona Livre concedeu, também, à Gestapo permissão para agir dentro das fronteiras do território que tinha Vichy como capital.

não apenas da Zona Norte, ocupada pelas forças alemãs, mas também da Zona Livre. Na primavera e no verão de 1942, ocorre em toda a França uma série de operações para prender e deportar judeus, que levaram o codinome “Opération Vent Printanier” (Operação Vento da Primavera). Vél d’Hiv foi uma delas.

O futuro seria até mais sombrio. O assunto foi abordado na Conferência de Wannsee, um elegante castelo nos arredores de Berlim, na qual, em 20 de janeiro de 1942, os líderes do Terceiro Reich optaram pela Solução Final, ou seja, o extermínio em massa dos judeus europeus. Todos os países sob ocupação nazista, incluindo a França, eram obrigados a aderir a essa política.

Em 11 de novembro de 1942, alemães e italianos invadem o território francês, ocupando a Zona Livre e quebrando o Armistício. foto à época

Preparação para o cerco policial surpresa O Vélodrome d’Hiver era uma pista de ciclismo coberta, localizada no 15º Distrito de Paris, construído em 1901 próximo à Torre Eiffel. O teto do complexo era de vidro. Orgulhosos do local, os parisienses referiam-se a ele apenas como Vél d’Hiv. Ali eram, também, realizados disputas de boxe, luta livre, jogos de hockey e shows. O planejamento da operação envolveu René Bousquet, chefe da polícia francesa, Louis Darquier de Pellepoix, comissário de Vichy para “Assuntos Judaicos”, e os membros das SS, Theodor Dannecker e Helmut Knochen. Para garantir a participação da polícia francesa, os oficiais nazistas concordaram em ter como alvo apenas judeus estrangeiros e

Em colaboração com o regime nazista, o governo de Vichy trabalhou na deportação de judeus 17

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Foi a própria polícia francesa quem compilou a lista de “alvos” judeus. Até a ocupação alemã, em 1940, a elaboração de tais listas não teria sido possível, pois a França não realizara, desde 1874, nenhum censo com identificação de religião. Com a chegada dos nazistas, os judeus foram forçados a se registrar como tal. Cerca de 150 mil pessoas em Paris e seus subúrbios se identificaram como judeus. Uma corrida de bicicleta no Vélodrome d’Hiver, 3/11/1931, Paris FOTO: Georges Devred

apátridas, poupando, assim, inicialmente, a população judaica francesa da deportação. Havia também os “casos sensíveis”, como eram denominados os judeus britânicos ou americanos que, em um primeiro momento, foram deixados de lado. Entre os detidos havia judeus da Alemanha, Áustria, Polônia, Checoslováquia e Rússia.

um membro da família ficasse para tomar conta deles. Entre os detidos em Paris havia 4.115 crianças. Num excesso de zelo, para manter registros detalhados da operação, os policiais foram obrigados a informar aos seus distritos o número exato de detidos por hora.

A data inicial marcada para a ação foi de 13 a 15 de julho, o que incluiria a comemoração nacional do Dia da Bastilha. Este feriado não era celebrado nas zonas ocupadas da França, mas para evitar a eclosão de distúrbios locais, os oficiais nazistas permitiram que a operação fosse adiada para os dias 16 e 17 de julho. O diretor da polícia municipal local, Émile Hennequin, informou de forma precisa aos distritos policiais quais as expectativas em relação à operação três dias antes de sua execução. A meta era recolher 28 mil judeus estrangeiros e apátridas em Paris e seus arredores.

Nas primeiras horas da manhã de 16 de julho de 1942, mais de quatro mil policiais franceses saíram pelas ruas da Paris ocupada, levando consigo ordens de prisão para milhares de pessoas inocentes.

16 e 17 de julho

JUDEUS PORTAM A ESTRELA DE DAVID. Paris, 1942

A cena se repetia de apartamento em apartamento: fortes batidas nas portas, seguidas pela entrada de dois ou três policiais dando ordens bruscas aos moradores, sem nenhuma explicação; e mães suplicando que as levassem, mas deixassem seus filhos. Os idosos também eram levados, ainda que doentes, assim como as grávidas e os recém-nascidos. Cinquenta ônibus foram mobilizados para levar os detidos até os campos de internação. Os judeus, assustados, obedeciam e entravam nos ônibus. A operação estendeu-se no dia seguinte, com um número menor de prisões. Embora muitos tivessem sido avisados sobre o perigo, presumiram que o alvo da deportação seria apenas homens, como ocorrera no passado. Portanto, mulheres e crianças não se esconderam. Muitos não acreditavam no “boato” de que o “país dos direitos humanos” prenderia mulheres, crianças e idosos. No dia 16 de julho, a polícia arrancou de seus lares 2.573 homens, 5.165 mulheres e 3.625 crianças. No total, ao final de dois dias, 13.152 judeus (3,118 homens, 5,919 mulheres e 4,115 crianças) foram presos e, em um segundo momento, enviados para os campos de morte. Destes, nem 100 sobreviveriam aos campos. Entre os sobreviventes, nem uma criança.

Embora inicialmente as autoridades alemãs tivessem concordado em isentar crianças menores de 16 anos, o primeiro-ministro francês, Pierre Laval, sugeriu que, “por razões humanitárias”, as crianças fossem detidas com seus pais, a menos que 18


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Nenhum soldado alemão participou em quaisquer das fases da operação. Vél d’Hiv foi uma operação 100% francesa, organizada pelas autoridades francesas e executada por policiais franceses. Cerca de seis mil dos presos foram imediatamente transferidos para Drancy, nos subúrbios, ao norte de Paris. Drancy era, então, um campo de trânsito para os judeus deportados da França. Casais sem filhos e pessoas solteiras eram internadas em Drancy, enquanto os outros eram levados a Vél d’Hiv.

Dias de horror em Vél d’Hiv O Velódromo de Inverno não tinha capacidade para abrigar uma população tão grande. As condições locais eram deploráveis e subumanas. Cerca de sete mil judeus, dentre os quais mais de quatro mil crianças, lá foram largados, uns sobre os outros. Não havia espaço para se deitarem, nem alimentos ou água suficientes para tantos. O pouco que havia era fornecido pela Cruz Vermelha e pelos Quakers. Famintas e sedentas, as pessoas desmaiavam de fraqueza. Poucos médicos e enfermeiras tinham autorização para tratar os internados. As condições se deterioraram rapidamente.

Por ordem da Wehrmacht, o fotógrafo Harry Croner documentou o transporte das famílias judias pariSIenses

transmitidas por alto-falantes. Não havia condições sanitárias. Os banheiros com janelas foram trancados para evitar fugas e os poucos banheiros sem janelas que havia no velódromo rapidamente ficaram entupidos e as pessoas se viram obrigadas a fazer suas necessidades no chão. O cheiro era atroz e elas viviam literalmente em meio a excrementos. Crianças corriam diante de seus pais, silenciosos. Alguns se suicidaram e os que foram pegos tentando fugir foram assassinados a tiros pelos guardas.

ÚNICA FOTOGRAFIA DE VÉL D’HIV DE QUE SE TEM NOTÍCIA, DURANTE O CERCO POLICIAL DE JULHO DE 1942

O teto de Vél d’Hiv era de vidro e foi pintado de azul escuro para que o local não fosse detectado pelos aviões aliados. Todos os pontos de ventilação e janelas foram vedados para evitar fugas, elevando a temperatura interna durante o dia. Por causa do reflexo do teto as pessoas pareciam esverdeadas. As luzes eram mantidas acesas dia e noite para facilitar a vigilância dos presos, e as ordens eram

NUNCA MAIS O 16 DE JULHO DE 1942! ato EM MEMÓRIA DO CERCO POLICIAL DE VÉL D’HIV, 1957

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Fotos de crianças judias deportadas da França. museu de Auschwitz

“Quando perguntávamos aos policiais o que aconteceria conosco, diziam que seríamos enviados à Alemanha para trabalhar”, lembra Sarah Lichtsztejn-Montard, uma das poucas pessoas que conseguiu fugir de Vél d’Hiv. A presença dos idosos e doentes evidenciava o fato de que os policiais mentiam. Após cinco dias, os prisioneiros foram transferidos para os campos de concentração de Pithiviers e Beaune-la-Rolande, na região de Loiret, ao sul de Paris, e para Drancy, perto da capital francesa, para depois serem enviados a Auschwitz, onde a grande maioria deles foi morta. A administração de Vichy dera orientações bem claras sobre o transporte dos judeus: “As crianças não devem partir nos mesmos comboios que seus pais”. No final de julho, os adultos que ainda se encontravam no velódromo foram brutalmente separados de seus filhos e enviados para Auschwitz. Milhares de bebês e crianças continuavam detidos. Os guardas franceses disseram-lhes que em breve se reuniriam a seus pais. No final de agosto e durante o mês de setembro foram todos deportados em vagões totalmente lacrados para Auschwitz,

onde foram assassinados. Morreram sozinhos, por serem judeus.

Estado na deportação dos judeus para os campos de morte nazistas.

Nos dois meses seguintes a Vél d’Hiv cerca de mil judeus foram deportados da França para Auschwitz a cada dois ou três dias. No final de setembro de 1942, aproximadamente 38 mil judeus já haviam sido enviados para esse campo de extermínio. Os judeus continuaram a ser deportados da França até agosto de 1944.

No dia 16 de julho de 1995, durante o 53º aniversário de Vél d’Hiv, o ex-presidente Jacques Chirac foi o primeiro presidente francês a se desculpar pelo papel que as autoridades do país tiveram na operação do Vélodrome d’Hiver. “A França, naquele dia, cometeu um ato irreparável. Falhou em cumprir sua promessa e entregou aqueles sob sua proteção a seus executores”, disse Chirac.

Quando a Alemanha invadiu a França em 1940, aproximadamente 350 mil judeus viviam no país, muitos refugiados da perseguição nazista. Durante a 2ª Guerra Mundial, 77 mil judeus foram deportados da França para os campos de extermínio — a maioria para Auschwitz. Um terço deste total eram cidadãos franceses, dos quais apenas 2.500 retornaram.

Confrontando o Holocausto Durante décadas, a participação sombria da França durante os anos de Guerra foi negada e deliberadamente ignorada. A 2ª Guerra Mundial não fazia parte do currículo escolar até 1962. Os livros didáticos raramente mencionavam o Holocausto. Até 1995, nenhum líder francês reconhecera a participação do

Em 2012, no 70º aniversário da operação Vél d’Hiv, o presidente François Hollande declarou que “um crime foi cometido na França, pela França”. Na mesma data, pela primeira vez, a Polícia Nacional francesa exibiu documentos que registraram de forma clara os detalhes administrativos dos acontecimentos. Durante décadas após a guerra, o acesso a esses arquivos foi restrito para evitar que viesse a público o papel da polícia durante o Holocausto. Pouco restou desse material, pois, numa tentativa de apagar o passado, o governo do pós-guerra determinou que fossem destruídos todos os documentos relacionados ao tratamento dado aos judeus durante a ocupação alemã. A exposição “The Vél d’Hiv Roundup: The Police Archives” (O Cerco Policial

Memorial das crianças judias do Vélodrome D’Hiver. Lista das crianças capturadas no cerco policial de Vél D’Hiv

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de Vél d’Hiv: Arquivos da Polícia) incluiu listas de prisioneiros judeus, levantamento dos bens apreendidos, entre outros. Expôs, também, documentos com as diretrizes de 1946 para todos os prefeitos do país, que determinavam: “Não deve restar nenhum traço da lei de exceção instituída durante a ocupação e todos os documentos referentes à situação judaica devem ser destruídos”. Desses documentos constou uma circular policial, amarelada, de nove páginas, classificada como secreta, que especificava que judeus não franceses eram o alvo da operação, homens entre 16 e 60 anos e mulheres de 16 a 55. “Crianças menores de 16 anos serão levadas ao mesmo tempo que seus pais”, informava o documento. E continuava: “As equipes encarregadas das prisões deverão agir o mais rápido possível, sem palavras desnecessárias e sem nenhum comentário... Além disso, no momento da prisão, os fundamentos ou a falta de fundamentos desta detenção não serão discutidos”. A circular enfatizava, ainda, que “as janelas dos ônibus deveriam permanecer fechadas” ao transportar os prisioneiros. Um documento datado de 16 de julho de 1942 ressalta: “A operação contra os judeus está sendo desacelerada por uma série de casos excepcionais. Muitos homens deixaram suas casas ontem; mulheres ficaram com crianças muito pequenas; outros estão se recusando a abrir as portas – teremos que chamar um chaveiro”. Uma nota exposta na mostra informa que no dia 17 de julho uma enfermeira em Vél d’Hiv telefonou para a polícia pedindo “cobertores, bacias e tigelas, os quais eram muito necessários para os prisioneiros”. Este pedido prova que era sabido que as condições no local

CELEBRAÇÃO DO 75o ANIVERSÁRIO DO CERCO POLICIAL DE VÉL D’HIV. O PRESIDENTE FRANCÊS, MACRON E O ENTÃO PRIMEIRO-MINISTRO NETANYAHU, NA OCASIÃO

eram de extrema pobreza. Também em exposição está uma nota datada de 21 de julho de 1942, cinco dias depois do início da operação, anunciando uma sinistra contabilidade: Homens: 3.118. Mulheres, 5.919. Crianças, 4.115. Total, 13.152 prisões”. Em 2017, o presidente Emmanuel Macron foi mais longe que seus pares, reconhecendo a responsabilidade do Estado francês em relação àqueles eventos e ao Holocausto. E reafirmou condenar “todos os truques e subterfúgios

daqueles que alegam que Vichy não era França…, mas era, de fato, governo e administração da França. Os crimes de 16 e 17 de julho de 1942 foram trabalho da polícia francesa, obedecendo ordens do governo… Nem um único alemão tomou parte”. O velódromo Vel’ d’Hiv foi demolido em 1959. Em 1994, um memorial foi erguido para homenagear os judeus transportados de Paris para os campos de concentração durante a 2ª Guerra Mundial. A operação Vél’ d’Hiv permanece como símbolo da culpa e da vergonha nacional francesa. Está gravada na memória nacional dessa nação como um símbolo de sua responsabilidade pelo Holocausto dos judeus na França. BIBLIOGRAFIA

Nota datada 21/07/1942 contabilizando os Judeus presos no Cerco de Vél D’Hiv

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France Reflects on Its Role in Wartime Fate of Jews, artigo publicado pelo The New York Times por Scott Sayare em 28 de julho de 2012 Speech by the President of the Republic Emmanuel Macron at the Vel d’Hiv commemoration, artigo publicado pelo site https://www.elysee.fr/en/ em 18 de julho de 2017 Vél dhiv roundup, artigo publicado no site https://www.yadvashem.org/holocaust/ france The velodrome dhiver roundup, artigo publicado no site https://encyclopedia. ushmm.org/content JUNHO 2022


personalidade

O sucesso incomparável de Barbra Streisand Barbra Streisand chegou ao topo da indústria do entretenimento COMO NINGUÉM O FIZERA, ATÉ ENTÃO. Atriz, cantora, produtora e diretora, ela é a única artista que recebeu todos os grandes prêmios por seu trabalho na TV, no cinema e no teatro. Em 24 de abril de 2022, a atriz completou 80 anos.

A

garotinha judia de Brooklyn, alvo constante de zombaria por sua aparência “muito judaica”, que ouvia que não era bonita o suficiente para ser atriz, tornouse uma das mulheres mais conhecidas e respeitadas do show business. E com isso conseguiu mudar os padrões de beleza e glamour, tornando-se uma das maiores estrelas de Hollywood.

Essa medalha é o maior prêmio outorgado a um civil, nos Estados Unidos. Fora das fronteiras de seu país recebeu a Legião de Honra (Légion d’Honneur), da França.

Ademais de ser a cantora com maior número de discos vendidos, é também uma aclamada atriz ganhadora de Oscar, atriz da Broadway e conceituada diretora e produtora de filmes. Com uma carreira que já cobre seis décadas, Barbra dominou como ninguém os gêneros da comédia, drama e musical.

Sua Vida

Barbra Streisand é imensamente popular, sendo atuante politicamente e muito envolvida em inúmeras causas públicas.

Barbara Joan Streisand nasceu em 24 de abril de 1942, no Brooklyn, filha de Diana Rosen e Emmanuel Streisand, ambos filhos de imigrantes judeus da Europa Oriental. A família de seu pai emigrou da Polônia e a de sua mãe, da Rússia. Ela tem um irmão mais velho, Sheldon.

Entre vários outros reconhecimentos públicos, ela ganhou dois Oscars, cinco Emmys, 10 Grammys, um Tony Award, 11 Globos de Ouro e ainda três Peabodys. Realmente, conquistas que não são para qualquer um... Foi a primeira mulher a receber o Globo de Ouro de Melhor Diretor e o conjunto de seus prêmios ultrapassa o de qualquer outra pessoa no show business, em todos os tempos. Em 2015, recebeu a Medalha Presidencial da Liberdade das mãos do presidente Barack Obama.

Assim que começou a carreira artística, Barbara removeu o “a” da sílaba do meio de seu nome, querendo ser “diferente” – e assim nascia Barbra Streisand. Sua mãe, Diana, era filha de um chazan – cantor litúrgico, que tinha uma linda voz e também trabalhava na indústria de confecções. Ela se ocupava com a casa e os filhos. O marido, Emmanuel, tinha mestrado em 22


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Barbra Streisand em “o principe das marés”

Educação e era superintendente do Reformatório Elmira, onde também dava aulas de inglês. Pelo que Barbra ouvia das histórias familiares, seu pai era “um homem muito religioso”, que cursou a New York University e o Columbia Teachers College, e que, certa vez, voltara a pé para o Brooklyn em vez de usar o transporte público, após assistir uma aula na 6ª feira à tarde, para não correr o risco de violar o Shabat.

figura paterna, que criou um enorme vazio e uma tremenda saudade daquele pai que não tivera a chance de conhecer. Com a morte dele, a situação financeira da família sofreu um grande baque e pouco tardou para que eles se vissem quase na linha da pobreza. Para sobreviver, tiveram que se mudar para a casa de seus

avós. A mãe, Diana, passou os três anos seguintes na cama, chorando e se sustentando com a pensão do Exército por invalidez que a família recebia pelo irmão falecido em batalha. Quando terminou o prazo de pagamento, ela arrumou um emprego como secretária na Secretaria de Educação Pública, em Nova York. Pouco tempo lhe sobrava para cuidar dos dois filhos. “Meu irmão dormia numa cama dobrável e minha mãe e eu dividíamos uma cama”, conta Barbra. “Meus avós usavam o outro quarto e, num terceiro, ficava uma mesa e um aparador. Nunca tivemos um sofá, que, para mim, era coisa de rico...”. Ela se recorda de passar os dias nos corredores do edifício em que viviam, aceitando lanches que os vizinhos lhe davam. Em pequena, Barbra frequentava a Escola Bais Yakov, colégio judaico ortodoxo para

1949, Brooklyn, NY

Infelizmente, ele faleceu aos 35 anos de idade, por complicações de um ataque epilético. Barbra era um bebê de apenas 15 meses. Já crescida, ela soube que o pai morrera devido a um erro médico no tratamento, muito provavelmente devido a uma overdose de morfina que lhe teria sido administrada. Sua infância foi moldada pela ausência da 23

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personalidade

fracassada ambição de se tornar cantora. Seu sonho era cantar publicamente, mas nunca foi atrás dele.

BARBRA NA BICICLETA, COM AMIGOS, AOS 8 ANOS. BROOKLYN, NY, 1950

meninas, no Brooklyn. Mais tarde, passou a frequentar a escola pública. Em 1950, sua mãe, Diana, volta a se casar com um vendedor de carros usados, Louis Kind, enquanto a filha estava na colônia de férias. Ao voltar, Barbra descobre que sua família se mudara para outra casa e que sua mãe estava grávida. Kind era divorciado, tinha três filhos. Com Diana eles tiveram uma filha, Rosalind (Roslyn), nascida em 1951.

Em criança, Barbra era tímida e ela classifica sua infância como “dolorosa”. “Foi muito deprimente e eu bloqueei grande parte de minha infância para sobreviver”, conta. No colégio e em casa implicavam com ela, chamando-lhe nomes feios. Assim sendo, ela também se via como “uma criança realmente bem feia”, sentindo-se rejeitada pelas outras porque tinha uma aparência diferente. Os colegas de classe sempre a provocavam por causa de seu nariz “bicudo”. Era ligeiramente vesga e, na adolescência, tinha tanta acne que a maquiagem não bastava para esconder suas espinhas. Depois dessa infância infeliz e do ostracismo a que fora relegada, Barbra só pensava em fugir do Brooklyn e seguir carreira.

emmanuel e diana streisand

Desde seus nove anos, ela sofria de tinito, um problema popularmente conhecido como “zumbido no ouvido”, que causa um barulho

Pelo que Barbra conta, sua mãe era muito má com ela; e o padrasto, ainda pior. Ele era verbalmente abusivo, chamando-a de “a fera”, enquanto a filha Rosalind era “a bela”. Quando ela pedia dinheiro para comprar um sorvete, ele lhe dizia: “Você não merece sorvete, não é bonita o suficiente”. Em suas palavras, “Ele não falava comigo. Não me via. Não gostava de mim”. Considerava a mãe uma mulher egoísta, fria, nada compreensiva. E para a mãe, Barbra era pouco atraente para ir atrás de seus sonhos de se tornar atriz. Para a filha, a frieza da mãe se devia à sua

1.

2. 1. COM A MEIA-IRMÃ ROSLYN KIND 2. A TURMA DE BARBRA NA ESCOLA PÚBLICA, 1955

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característico, como um zumbido. Quando pequena, ela apoiava a cabeça numa garrafa de água quente, numa tentativa de diminuir os sintomas. Com o tempo, passou a ver esse problema como um “dom” especial que a tornava profundamente ciente do som, de cada nota, cada instrumento – ainda que aquilo continuasse a atormentá-la. Já adolescente, gostava de subir no telhado e sonhar em se tornar uma grande estrela. Começou a ter aulas de teatro em Manhattan, onde novamente teve que enfrentar comentários maldosos sobre sua aparência. O dono de uma trupe de teatro chegou a se referir assim acerca dela: “Seu talento é inegável, mas, Céus, como é feia... O que vamos fazer com ela???”

que suas duas cachorrinhas eram clones criados de células tronco da Samantha, sua cachorrinha de estimação!

Carreira Em 1960, poucos meses após se formar no colegial, Barbra mudouse para Manhattan em busca de seu sonho de ser atriz. Apesar dos protestos de sua mãe, ela fez o que desejava, sem ajuda nem incentivo de ninguém.

Pouco depois, venceu um concurso de talentos cantando em um bar pequeno, em Manhattan, quando teve sua primeira oportunidade. Sua apresentação foi um tremendo sucesso, dando início a uma série de apresentações em diferentes bares, sempre mantendo seu público fiel, que a seguia por toda parte. Fez um teste para conseguir o papel principal no musical da Broadway, I Can Get It for You Wholesale – mas o produtor achou-a muito feia

Em 1959, Barbra se diploma no Erasmus High School, onde conheceu o cantor Neil Diamond, seu futuro parceiro musical. Ela era uma aluna excelente e se formou em quarto lugar da turma, com média altíssima e um enorme desejo de ser atriz. Barbra Streisand não fez faculdade. Mas isso não a impediu de receber títulos honoríficos, posteriormente, da Brandeis University e da Universidade Hebraica de Jerusalém.

BARBRA STREISAND E ELLIOTT GOULD CHEGANDO EM LONDRES, 1966

Casou-se duas vezes. A primeira delas em 1963, com Elliott Gould, o ator de Mash, judeu, de avós imigrantes vindos da Ucrânia, Polônia e Rússia. Ficaram casados durante oito anos e tiveram um filho, Jason. Ela se casou uma segunda vez, em julho de 1998, com o ator James Brolin, com quem está até hoje. Temos que admitir que Barbra foi excêntrica... Em 2018, ela chocou muita gente com sua declaração de

COM O FILHO JASON GOULD, NO SET DE FILMAGEM DE “HELLO, DOLLY”, 1969

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para ser a protagonista. Mas, como cantava muito bem, ele lhe deu um papel cômico, secundário, como Miss Marmelstein. Esse musical estreou na Broadway em 22 de março de 1962. Essa Miss Marmelstein era a secretária judia de Harry Bogen (principal papel masculino), estrelado por Elliott Gould, que pouco depois seria o primeiro marido de Barbra. Com sua voz e habilidade de comediante, ela conseguiu roubar o show, a despeito de seu pequeno papel. Por essa, que foi sua primeira aparição na Broadway, ela recebeu o Prêmio da New York Drama Critics e uma indicação para o Tony! junho 2022


personalidade

Seu début na Broadway lhe proporcionou um contrato com a gravadora Columbia Records, em 1962, e seu primeiro álbum rapidamente foi para o topo das paradas musicais1 americanas. Era o início do ano 1964 e ela já tinha três álbuns de sucesso. Em 1966, o seu The Barbra Streisand Album já tinha vendido mais de um milhão de cópias, no mundo todo. Em 1964, Barbra se consagrou como uma importante atriz da Broadway, no papel de uma comediante judia chamada Fanny Brice, no musical

Barbra liderou o elenco de Funny Girl durante mais de dois anos, o que lhe valeu sua segunda indicação para o Tony Award. A música People, leit-motif do espetáculo, tornou-se o primeiro disco seu a figurar nos Top 10 Singles. Em 1965, ganhou dois prêmios Emmy por seus especiais para a televisão intitulados My Name Is Barbra. Sua estreia no cinema foi em 1968, novamente como Fanny Brice, no filme Funny Girl, que lhe valeu um Oscar e um Globo de Ouro como Melhor Atriz.

seu segundo single em primeiro lugar nas paradas, com Evergreen. Ainda que tivesse lido o conto de Isaac Bashevis Singer, Yentl, O Menino da Ieshivá em 1968, logo depois de seu primeiro filme, ela levaria 15 anos até conseguir transformá-lo em filme. Yentl, produzido em 1983, foi seu primeiro trabalho como diretora e com ele, se tornou a primeira mulher a produzir, dirigir, escrever e estrelar um filme de longa-metragem. Este conta uma história sobre uma adolescente que se veste como rapaz para poder estudar em uma ieshivá. O filme recebeu cinco nomeações ao Oscar, levando o de Melhor Partitura Original, e ganhou os Globos de Ouro como Melhor Diretor e Melhor Longa – Musical ou Comédia. A trilha sonora do filme também ficou no Top 10. Barbra dedicou o filme a “meu pai... e a todos os nossos pais”.

Barbra Streisand em “FUNNY GIRL”

Funny Girl. Esse personagem tinha muito a ver com sua própria vida. O enredo contava a transição de Fanny de um patinho feio, na infância, para uma atriz sofisticada e elegante, e contava suas origens judaicas permeadas por uma grande persistência e determinação. 1

Paradas musicais – classificação das músicas de acordo com sua popularidade, durante determinado período.

Pouco depois de deixar o Brooklyn ela já estava no topo de sua carreira – como cantora e como atriz – na Broadway, na TV e no cinema. Barbra já atuou em 16 filmes importantes, três dos quais também dirigidos por ela. Em 1972, fundou sua produtora, a Barwood Films. Em 1976 ela produz Nasce uma Estrela, um sucesso retumbante, que levou seis Globos de Ouro e lhe proporcionou 26

Streisand desempenhou alguns papeis dramáticos, como em O Príncipe das Marés (1991) e O Espelho tem Duas Faces (1996), também dirigidos por ela, sendo que o primeiro recebeu sete nomeações ao Oscar. Seus papeis mais recentes foram nas comédias Entrando numa Fria Maior Ainda (2004), Entrando numa Fria Maior Ainda com a Família (2010), e Minha Mãe é uma Viagem (2012). Seu primeiro livro, como autora e fotógrafa, My Passion For Design (Minha Paixão pelo Design, não traduzido ao português), foi aclamado pela crítica, figurando como o No. 2 na lista dos Mais Vendidos do The New York Times. Obstinada em sua insistência em ter controle absoluto sobre seus filmes e discos, ela sempre foi tida como uma perfeccionista ao extremo.


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Cantora Ainda que muito admirada como produtora e atriz, Barbra talvez tenha inspirado uma devoção ainda maior entre os fãs como cantora. Apesar de se ter empenhado muito, quando jovem, em desenvolver suas aptidões como atriz, sonhando com o estrelato, ela nunca teve treino algum para ser cantora. Contudo, consegue arrastar verdadeiras multidões em suas apresentações e seus discos bateram todos os recordes de venda. Barbra é famosa pela vibrante voz de soprano e pelo seu fraseado, cantando baladas românticas ou rock com a mesma facilidade.

Ela arrebatou 10 Grammys, entre os quais o Prêmio Lenda Viva e o Prêmio pelo Conjunto da Obra, e, em 1977, com o prêmio por Evergreen, tema de Nasce uma Estrela, tornou-se a primeira compositora mulher a levar o Oscar por Melhor Canção.

Seu Judaísmo

Barbra prefere cantar para grupos pequenos e raramente se apresenta em público devido a um pavor de palco, que a paralisa – um pavor que a acomete desde que, em 1967, ela esqueceu a letra de uma de suas canções, em um concerto no

Em uma entrevista em 1982, ela afirmou: “Sou total e completamente judia, ainda que não seja religiosa. Não faço nada para ferir o outro, intencionalmente. Sinto que sou uma boa pessoa. Sinto que isso é muito judaico. Não há muito apoio

Barbra Streisand tem muito orgulho de ser judia, demonstrando-o em todas as ocasiões. Como costuma dizer, “Trago o Judaísmo na alma e no espírito, e sou judia por hereditariedade”.

Lançou seu primeiro álbum solo em 1963, The Barbra Streisand Album, com o qual arrebatou dois Grammys, por Melhor Desempenho Vocal Feminino e por Melhor Disco do Ano, marcando um começo sensacional do que seria uma carreira brilhante. Na época, era a artista mais jovem a conquistar esse prêmio e, num fechar de olhos, havia-se convertido na sensação do momento. Desde 1962, a Columbia Records tem sido sua gravadora. Já lançou 71 discos – 53 dos quais levaram o Disco de Ouro e 31, de Platina – tornando-a uma das cantoras mais populares de todos os tempos. Desde 1960, seus discos estiveram entre os Top 10, década após década. A única outra pessoa a atingir tal feito foi Bob Dylan. Nas paradas musicais de todos os tempos, Barbra vem em 2o lugar, apenas perdendo para Elvis Presley e ultrapassando até os Beatles!

PÔSTER DE SEU FILME “YENTL”, 1983

Central Park, diante de 135 mil pessoas. Após uma ausência de 27 anos, ela retornou aos palcos em um concerto, em 1994, sempre batendo o recorde de ingressos vendidos. Entre suas últimas gravações estão o disco Partners (2014), com duetos com Stevie Wonder, Billy Joel e John Legend. Sua última gravação foi o CD Release Me 2, que saiu ao mercado em 2021. 27

aos artistas judeus e à cultura judaica, e eu quero apoiá-los”. No início de sua carreira as pessoas afirmavam com tom de insulto que ela agia e parecia “muito judia”. Na época, ter a aparência judaica significava ser relegada a papeis de 2ª, de coadjuvantes. Disseram-lhe inúmeras vezes que não havia lugar para ela em Hollywood se não fizesse plástica de nariz. Apesar de brincar junho 2022


personalidade

2013. A pedido dele, cantou Avinu Malkeinu – Nosso Pai, Nosso Rei e Peres afirmou que “valeu a pena esperar 90 anos para ouvir uma voz tão celestial”.

BARBRA STREISAND COM OS PRESIDENTES SHIMON PERES E BILL CLINTON, E O PRIMEIROMINISTRO BIBI NETANYAHU, EM UMA DAS COMEMORAÇÕES PELO 90o ANIVERSÁRIO DE PERES. JUNHO 2013, JERUSALÉM

com o feitio de seu nariz, ela sempre se recusou a mudar sua aparência.

1.

Apesar das críticas, ela alcançou uma fama impressionante sempre desempenhando personagens judeus, como Fanny Brice em Funny Girl, Yentl no filme homônimo, e como uma psiquiatra judia em Príncipe das Marés. Ela até insistiu em tornar judeus alguns de seus personagens, como em Nasce uma Estrela e em As Duas Faces do Espelho. Ela foi a primeira grande atriz a ter os papeis principais como personagens judias.

Sua própria produtora, a Barwood Films (fundada em 1972), produziu filmes para a TV como Histórias de Coragem (1997–1998), série que homenageava não-judeus que salvaram judeus durante o Holocausto. Barbra Streisand é uma grande apoiadora de Israel, descrevendo o país como “um farol de luz e esperança no mundo” e se apresentou na festa do aniversário de 90 anos do falecido presidente Shimon Peres, em Jerusalém, em

1.

Algumas vezes Barbra mencionou sua preocupação com o antissemitismo moderno, dizendo ser um assunto constante em suas anotações para um ensaio biográfico a que se vem dedicando, há alguns anos. Em 2019, em uma entrevista para o The Chicago Tribune, afirmou: “Como judia orgulhosa de minha herança, isso é profundamente preocupante. Não há dúvida de que o antissemitismo é uma das questões mais inquietantes e aterradoras de nossos tempos. Mas esse ódio e raiva já existem há 3.500 anos, revelando-se de diferentes formas ao longo dos milênios, em uma ameaça onipresente. Os judeus sempre foram os bodes expiatórios, injustamente culpados por os males do mundo”. Convertendo seu Judaísmo em uma metáfora para os excluídos, ela se tornou um exemplo para todos os que se sentem marginalizados e destituídos de poder.

2. 1. Princesa Diana na prémière do filme “Príncipe das Marés”. Londres, 1992 2. Na Casa Branca, recebendo a Medalha Presidencial da Liberdade das mãos do Presidente Barack Obama, 24/11/2015

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Fundação Streisand Além de artista excepcionalmente talentosa, Barbra Streisand também se dedica à filantropia. A Fundação Streisand, que ela criou em 1986, ocupa muito de sua energia e recursos. Ela faz questão de deixar claro que os valores judaicos alimentam grande parte de seu ativismo. E tem sido muito generosa com as causas judaicas e o trabalho filantrópico nos Estados Unidos e em Israel, tendo sido homenageada, várias vezes, por suas generosas contribuições para a comunidade judaica. No Hospital Cedars-Sinai ela fundou o The Barbra Streisand Women’s Heart Center e colaborou na fundação da Women’s Heart Alliance, ajudando a aumentar a conscientização e as pesquisas sobre os problemas cardíacos em mulheres, principal causa de fatalidades entre elas. Ao responder a uma pergunta sobre a razão para ter fundado esse centro no Hospital Cedars-Sinai, ela mencionou “a grande contribuição do Povo Judeu à Medicina, dando como exemplo o Prof. Jonas Salk”, que desenvolveu a primeira vacina contra a poliomielite. A fundação que leva seu nome tem abraçado inúmeras causas, destacando-se seu trabalho em prol do meio ambiente, financiando muitas das primeiras pesquisas sobre mudanças climáticas. Há muito, a atriz tem sido uma fiel defensora da igualdade racial, dos direitos humanos, dos direitos civis, entre outras causas importantes. A Fundação Streisand já doou milhões de dólares a mais de 2.100 organizações sem fins lucrativos. E a atriz, pessoalmente, já doou vários milhões provenientes de seus

Barbra Streisand com o filho Jason e o marido, James Brolin, após receber o Chevalier de la Légion d’Honneur no Palácio do Eliseu, em Paris, 28/06/2007

shows. Ela é uma apoiadora declarada do Partido Democrata e usa seu talento e fama para apoiar e arrecadar fundos para inúmeros candidatos e causas, entre os quais Al Gore, Bill Clinton, Barack Obama e Hillary Clinton. Na inauguração da Presidência de Bill Clinton, Barbra fez uma apoteótica apresentação.

Carreira duradoura Ela percorreu um longo caminho desde o Brooklyn de sua infância e o início de sua carreira quando removeu um “a” de seu prenome para se tornar “Barbra”. Sua fama e seu sucesso são perenes. Seus discos e suas apresentações continuam a quebrar recordes. E os fãs professam em uníssono seu amor por ela em seus inúmeros fã-clubes, websites e constantes demonstrações entusiasmadas. Nenhum outro artista foi mais bem-sucedido do que ela em tantas áreas distintas. Barbra conseguiu redefinir o estrelato feminino na década de 1960 e 70. Superou tremendas dificuldades e, para as inúmeras pessoas que afirmavam que ela não teria sucesso por não ter a aparência convencional exigida aos artistas, ela demonstrou que estavam redondamente 29

enganados. Desenvolveu seu senso único de estilo e beleza e venceu todos os prêmios importantes no mundo do entretenimento. E continua a bater recordes. Em um mundo de fazde-conta e aparências, ela triunfou recusando-se a se parecer com todos os demais. Sua imensa popularidade só se compara com sua franqueza, sempre dizendo o que pensa e defendendo aquilo em que acredita. Ela é um verdadeiro ícone da cultura judaicoamericana. A superestrela que tinha a aparência “muito judaica” e tinha modos “muito judeus” para ter sucesso como atriz, brilhou mais intensamente ao expressar seu Judaísmo, sua identidade e seu orgulho judeu em cada passo de seu caminho. Barbra Streisand se tornou uma das mulheres mais poderosas do show-business com uma fama e um sucesso incomparáveis. BIBLIOGRAFIA

Barbra Streisand, artigo publicado no site https://www.biography.com Barbra Streisand, artigo publicado no site https://jwa.org/encyclopedia How Streisand turned looking ‘too Jewish’ into stardom, artigo publicado no Times of Israel pela Redação do jornal em 3 de abril de 2016 junho 2022


Antissemitismo

SHAKESPEARE E OS JUDEUS POR ZEVI GHIVELDER

ESTA INCURSÃO NUMA POLÊMICA QUE ATRAVESSA SÉCULOS PODERIA SER INTITULADA “SHAKESPEARE E UM JUDEU”, SENDO ESTE JUDEU O PERSONAGEM SHYLOCK NA PEÇA “O MERCADOR DE VENEZA”. ESTUDIOSOS APONTAM NESTA OBRA UMA NÍTIDA POSTURA ANTISSEMITA, ENQUANTO HÁ QUEM TENHA UMA VISÃO MAIS INDULGENTE SOBRE O DITO JUDEU. EMBORA ASSINALADA COMO COMÉDIA, A PEÇA TEM UM DESFECHO DESONROSO PARA SHYLOCK E SUA FÉ.

A

té o final do século 15, os poucos judeus, na realidade, conversos1, que viviam na Inglaterra, além de esconder suas práticas religiosas, começaram a acolher moderada quantidade de irmãos de fé que haviam sido expulsos da Espanha e Portugal. Os conversos ocultavam suas origens, conservando nas sombras, na medida do possível, seu Judaísmo, suas leis e tradições. Durante o reinado de Henrique VIII (1491-1547) esses conversos viviam com relativa tranquilidade em Londres e Bristol devido à influência da família Mendes junto ao trono real. Os Mendes, conversos portugueses, controlavam grande império comercial e inclusive haviam concedido um vultoso empréstimo ao soberano. Um dos mais destacados membros da comunidade era o médico e comerciante Heitor Nunes, em cuja residência funcionava em sigilo uma sinagoga. Outro famoso converso foi Rodrigo Lopes, que se estabeleceu em Londres, fugitivo

1

2

da Inquisição em Portugal. Ele foi alçado à condição de médico particular da rainha Elisabeth I. Em 1594, vítima de intrigas políticas e palacianas, foi acusado de tentar envenenar a rainha. Foi preso, julgado e condenado à morte. O trágico destino de Lopes fez com que muitos conversos deixassem a Inglaterra. William Shakespeare nasceu em 1564 em Stratfordupon-Avon, a cerca de 150 quilômetros de Londres. Tinha, portanto, 30 anos de idade quando Lopes foi executado. Em função do contexto histórico da época, é pouco provável que o dramaturgo tivesse conhecido algum judeu, a não ser que frequentasse a chamada “casa dos conversos”, existente em Londres, local destinado aos procedimentos litúrgicos pelos quais, em caráter formal, os judeus se convertiam ao Cristianismo. Em nenhuma das muitas biografias de Shakespeare há qualquer alusão à sua eventual passagem ou presença naquele lugar. Ademais, o fato de ter escolhido o inusitado nome Shylock2 para seu personagem, indica que não tinha contato com nomes usuais dos judeus provenientes da Europa Central.

Desde a expulsão dos judeus em 1290, pelo rei Eduardo I, era proibido aos judeus praticantes viver na Inglaterra; quem lá queria permanecer devia se converter ao Cristianismo. Shylock teve sua figura de judeu pintada com cores tão fortemente antissemitas, que esta palavra, na língua inglesa, entrou para o seu dicionário com o significado de agiota, usurário.

Por que, então, o jovem William Shakespeare fez avultar a figura de um judeu, o vilão Shylock, na peça O Mercador de Veneza, que escreveu entre 1596 e 1598? 30


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ILUSTRAÇÃO ANTIGA DAS CASAS DO PARLAMENTO INGLÊS E DA PONTE DE WESTMINSTER, PONTOS EMBLEMÁTICOS DA LONDRES VITORIANA. SÉC. 19

A resposta mais provável é que tenha sido influenciado por uma das obras teatrais mais populares e aplaudidas de sua época, O Judeu de Malta, escrita por Christopher Marlowe (1564-1593) pelo menos cinco anos antes de O Mercador de Veneza. Se a peça de Shakespeare até hoje suscita controvérsias quanto à forma com que sintetiza o perfil do Povo Judeu na figura de Shylock, a obra de Marlowe é de um antissemitismo tão explícito e tão calunioso que um texto acadêmico a descreveu como um culto da estética da crueldade. O protagonista da peça de Marlowe é um judeu muito rico chamado Barrabas, que tem como únicas motivações na vida o dinheiro e o ódio a seus inimigos cristãos. Ele não hesita em cometer assassinatos e viver cercado por pessoas cujos comportamentos são tão desprezíveis quanto os seus. Barrabas é vingativo,

morre no último ato, legando uma impressionante imprecação contra turcos e cristãos.

GRAVURA DE ÉPOCA COLORIDA RETRATANDO WILLIAM SHAKESPEARE

desonesto, astucioso e, mesmo assim, o autor lhe confere uma porção de ambiguidade, fazendo com que a plateia o contemple com comiseração, mas não com simpatia, porque ele despeja ácidas verdades sobre uma sociedade maltesa assentada em hipocrisia. Barrabas 31

A par da influência de Marlowe, é natural que Shakespeare ficasse impregnado pelos conceitos sociais, econômicos e políticos do Renascimento italiano, emoldurado por monumentais valores artísticos que floresceram no continente europeu desde o século 15 e se estenderam pelos cem anos seguintes. Assim como os artistas italianos da Renascença buscaram inspiração em eventos e personagens bíblicos, Shakespeare recorreu ao mesmo tipo de inspiração ao longo de suas comédias e tragédias. Apesar de os cristãos terem assimilado a história do povo de Israel, tal como narrada a partir do Gênesis nos Cinco Livros de Moshé, suas relações com os judeus JUNHO 2022


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transcorriam numa sucessão de acentuadas hostilidades, preconceitos e difamações que ensejavam uma inescapável situação de segregação contra aqueles que, a rigor, eram considerados infiéis face à fé cristã. Uma tese de doutorado apresentada no Campus Erechim (Universidade do Alto Uruguai, RS) sustenta que a literatura do Renascimento reflete de forma muito clara as admoestações contra os judeus, revelando a aversão provocada por suas profissões3, que, por imposição dos cânones da Igreja ou de regras determinadas por artesãos das cidades, se resumiam ao comércio e atividades financeiras. A Igreja Católica proibira aos cristãos emprestar dinheiro a juros, mas permitia que judeus o fizessem. A percepção negativa acerca dos judeus, incluindo a repulsa a eles, atravessou o continente, cruzou o Canal da Mancha e, logicamente, chegou até Shakespeare. O genial autor decerto pressentiu o potencial em termos dramáticos proporcionado pela insólita situação dos judeus: um povo estigmatizado e caluniado ao longo dos séculos devido, principalmente, à sua recusa 3

Ver box

Elisabeth I, RAINHA DA INGLATERRA E DA IRLANDA, CHEGA A LONDRES, 23/12/1558

em se converter ao Cristianismo. Este foi o contexto histórico que, sem dúvida, motivou Shakespeare a começar a escrever, em 1596, a peça O Mercador de Veneza, concluída dois anos mais tarde. A peça conta a história de Shylock, um rico comerciante judeu que empresta dinheiro a um veneziano chamado Antonio, que dele necessita para cortejar a jovem Portia. Como garantia ambos estipulam que caso o pagamento não seja honrado, o rapaz lhe dará uma libra da própria carne. Trata-se de uma óbvia perversidade, porque essa modalidade de fiança

A CASA DOS CONVERSOS JUDEUS – DOMUS CONVERSORUM, EM OXFORD. ILUSTRAÇÃO EM “BREVE HISTÓRIA DO POVO INGLÊS”, DE J.R.GREEN (MACMILLAN, 1892)

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é inexistente em qualquer narrativa histórica ou literária da época. Antonio descumpre a quitação do empréstimo e o caso é levado a um tribunal onde Portia, disfarçada como homem, assume a defesa de seu pretendente. Ela elabora um argumento que surpreende o juiz: é inegável que Shylock tem direito a uma libra da carne de Antonio, porém não tem direito a seu sangue e, portanto, a garantia se esgota por se tornar inválida e o devedor não pode ser punido. Como consequência, Shylock é acusado de conspirar de forma vil contra um cristão veneziano e tem a sua fortuna confiscada. No entanto, é permitido ao judeu ficar com metade da sua fortuna caso se converta ao Cristianismo. Em termos dramáticos, a punição de Shylock se torna ainda mais acentuada ao ser tecida uma trama na qual sua única filha foge com um cristão e renega o Judaísmo. A peça tem um momento icônico, quando Shylock apresenta sua defesa no monólogo a seguir, que se tornou alvo de inesgotável controvérsia: “Ele me humilhou, impediu-me de ganhar meio milhão. Zombou dos meus lucros, zombou da minha nação. E tudo por quê? Por eu ser judeu. Os judeus não têm olhos? Os judeus não têm mãos, órgãos, dimensões, sentidos, inclinações e paixões? Não comem os mesmos alimentos, não se ferem com as mesmas armas, não são sujeitos às mesmas doenças, não se curam com os mesmos remédios, não se aquecem no mesmo inverno e se refrescam no mesmo verão, como os cristãos? Se nos espetarem não sangraremos? Se nos fizerem cócegas não riremos? Se nos derem veneno não morreremos? E se nos ofenderem não devemos nos vingar? Se, em tudo mais, somos iguais a vocês, teremos de ser iguais também nesses respeitos. Se um judeu ofende um cristão, qual é a


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resposta deste? Vingança. Se um cristão ofende um judeu, qual deve ser a sua resposta, de acordo com o exemplo do cristão? Ora, vingança. Colocarei em prática a maldade que me foi ensinada, devendo ser censurada se eu não a fizer melhor do que a encomenda”. Os analistas da obra de Shakespeare que discordam de sua suposta atitude antissemita, apontam este monólogo como uma defesa dos judeus, porque de forma enfática Shakespeare os iguala de corpo e alma a todos os demais seres humanos. Além disso, argumentam que o fato de Shylock ser obrigado a se converter ao Cristianismo representava mais uma “redenção” do que uma punição, de acordo com os padrões sociais e religiosos do final do século 16, a ponto de ser estendida à sua própria filha. O ator e diretor de teatro americano Stephen Byk, radicado em Israel, escreveu um livro intitulado Vindicating Shakespeare ( Justificando Shakespeare), no qual faz um minucioso estudo de O Mercador de Veneza e conclui que Shylock é mais uma vítima do que um vitimador. Quanto à conversão forçada, diz que a intenção de Shakespeare foi no sentido de a plateia captar uma condição de afinidade com o judeu e lhe dedicar simpatia, sobretudo em função do famoso monólogo que, conforme sua opinião, é revestido de surpreendente humanidade. Há também quem sustente que Shylock foi concebido como uma figura cômica, porque o título original da peça era A Cômica História do Mercador de Veneza, tendo sido encurtado, sem nenhuma explicação convincente, a partir do século 18, a não ser a intenção de demonizar a figura de Shylock. Entretanto, o viés simpático para

SHYLOCK, EM “MERCADOR DE VENEZA”, DE SHAKESPEARE: “É ESSA A LEI?”, ATO IV. LITOGRAFIA DA ILUSTRAÇÃO DA BIBLIOTECA SHAKESPERIANA, POR JOHN GILBERT, GEO CRUIKSHANK E R. DUDLEY, 1885

o vilão tornou a prevalecer por causa da interpretação de Edmund Kean (1787-1833), lendário ator britânico que representou Shylock de Shakespeare, em 1814, em Londres, e depois também nos Estados Unidos, sempre repetindo sua apreciação sobre o personagem: “A ele empresto dignidade e humanidade”.

A Invenção do Humano). Este livro consta como definitivo no tocante à análise e interpretação das obras do dramaturgo e, a certa altura, Bloom vai direto ao ponto: “É preciso ser cego, surdo ou mudo para não reconhecer que a grande e equivocada comédia O Mercador de Veneza é uma obra profundamente antissemita”.

A professora Michele Osherow, da Universidade de Maryland, diz que a simpatia a Shylock se deve a uma atitude do pós-Holocausto. Osherow sustenta que a intenção de Shakespeare, mais do que humilhar Shylock, era zombar dos cristãos que ainda se curvavam ao poder papal depois de o rei Henrique VIII ter implantado na Inglaterra a Igreja Anglicana, alheia ao poder de Roma. A professora insiste que os personagens cristãos da peça, embora pareçam heróis, na verdade agem de maneira oposta, tanto que dois amigos do devedor Antonio sugerem que Shylock seja enforcado.

No Brasil, o escritor judeu Moacyr Scliar também foi contundente: “Intenções à parte, o que resta da peça é uma mensagem antissemita repetida à saciedade através dos tempos. O grito de Shylock ainda ecoa como os gritos das vítimas dos campos de concentração. Falam de seres humanos oprimidos pela intolerância e pela prepotência”.

Harold Bloom, consagrado como o mais importante crítico literário dos Estados Unidos no século passado, é autor de Shakespeare: The Invention of the Human (Shakespeare: 33

Uma observação desapaixonada sobre O Mercador de Veneza evidencia o diagnóstico de Harold Bloom ao serem destacadas as falas de outros personagens da peça quando se referem ao judeu. São todas depreciativas e insidiosas ao gravitarem em torno a figura de Shylock, assumindo dimensões e formas malignas que não podem ser descartadas do conjunto da obra. Na verdade, os meios acadêmicos relutam JUNHO 2022


Antissemitismo

RODRIGO LOPES, PORTUGUÊS, MÉDICO-CHEFE DA CORTE DE Elisabeth I, ACUSADO DE TRAMAR O SEU ENVENENAMENTO JUNTAMENTE COM EMISSÁRIOS DA ESPANHA

em corroborar o antissemitismo contido na peça de Shakespeare porque isso pode resultar num demérito na biografia do maior autor teatral que a humanidade até hoje conheceu. A objetividade recomenda que o conteúdo de O Mercador de Veneza seja dissecado no contexto da época em que a peça foi escrita. Isto significa que Shakespeare não deve ser visto como pessoa intolerante, mas como um artista inserido nas virtudes e malignidades do seu tempo – no caso, no antijudaísmo que permeava a elite e a plebe da Inglaterra. Os defensores de Shakespeare se apegam ao monólogo de Shylock como a evidência de que o autor foi

benevolente com seu personagem. No entanto, o monólogo é apenas uma pequena fração do total da peça, em cujo decorrer Shylock é invariavelmente citado de forma desprezível e insultuosa, e o célebre monólogo chega a se diminuir em razão da impertinente atitude irredutível do judeu perante o tribunal. Além de rejeitar um acordo inicial, Shylock insiste em cobrar a fiança tal como fora acertada e apontando que a porção de carne a ser extraída de Antonio deve estar situada perto do coração. A rigor é dispensável recorrer a um autor do porte de Bloom, ou do escritor brasileiro, para detectar a repulsa aos judeus presente no decorrer dos quatro atos da peça de

JEWS COURTS, CONSTRUÇÃO MEDIEVAL DO SÉC. 12, TIDA POR ALGUNS HISTORIADORES COMO TENDO SIDO A MAIS ANTIGA SINAGOGA DO REINO UNIDO

Shakespeare porque sua encenação é marcada por significativos desdobramentos históricos. Entre 1933 e 1939 houve cerca de 50 representações de O Mercador de Veneza na Alemanha nazista, com destaque para uma superprodução realizada em Viena, em 1943, para celebrar o Judenrein, ou seja, a Áustria livre dos judeus. Em Berlim, numa determinada encenação patrocinada pelo líder da juventude nazista Baldur von Shirach, este chegou ao requinte de colocar seus asseclas em diferentes pontos da plateia, encarregados de vaiar e proferir pesados xingamentos cada vez que Shylock aparecesse em cena. Os estudiosos da obra de Shakespeare ainda indagam qual teria sido a sua motivação para escrever algo com um conteúdo tão agressivo sobre os judeus. Um fator inegável foi a peça O Judeu de Malta, de Marlowe, seu contemporâneo. É possível também que Shakespeare tivesse se mobilizado com o desenrolar do caso do médico Lopes, o converso enforcado por suposta traição à rainha. O mais provável é que a popularidade de Marlowe, ao explorar o antissemitismo, o motivasse a se engajar nesse mesmo tema já apreciado pelo público. De qualquer maneira, a presença conversa na Inglaterra, no final do século 16, era insignificante porque os judeus haviam sido expulsos do país em 1290 e só retornariam 350 anos depois. A par dessa especulação, há uma certeza: o elo de Shakespeare com os judeus não se esgotou com O Mercador de Veneza. Depois desta peça, escreveu, entre 1599 e 1601, A Tragédia de Hamlet, Príncipe da Dinamarca. A obra inclui dois personagens de pouca presença em cena, mas que, em certa passagem,

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interferem no destino do príncipe. São eles dois jovens chamados Rosenkrantz e Guildenstern, dois nomes tipicamente judaicos, bem ao contrário do exótico nome dado a Shylock. Ambos são incumbidos pelo rei Claudio, tio de Hamlet e assassino de seu pai, de cumprir uma missão destinada a culminar com a morte do príncipe. Trata-se, portanto, de dois personagens dispostos a uma vilania, mas não são apontados como judeus. Ambos ganharam uma existência mais digna ao serem resgatados pelo famoso dramaturgo inglês Tom Stoppard na peça de sucesso Rosenkrantz e Guildenstern Estão Mortos, de 1966. (O verdadeiro nome de Tom Stoppard é Tomas Straussier, judeu nascido na Checoslováquia, em 1937). Nesse viés de apreciação dos personagens de Shakespeare, um estudo acadêmico concluiu que, na essência, Shylock sequer é o personagem central de O Mercador de Veneza, razão pela qual um possível antissemitismo por parte do autor também se torna uma preocupação secundária por parte de alguns acadêmicos. Segundo o referido texto, a principal personagem da peça é a bela Portia, que não foi apontada no título da comédia porque o autor deve ter optado por um título com mais apelo para o público. O renomado crítico literário britânico John W. Draper (18111882) faz um breve retrospecto da história dos judeus na Inglaterra em que diz que, na época de Shakespeare, estes emprestavam dinheiro a juros. Isto o levou à conclusão de que o tema central de O Mercador de Veneza é a economia e não a origem étnica ou a religião dos personagens. Segundo o crítico, Shakespeare é um produto de sua

época na qual havia um contraponto ético entre as atividades comerciais dos cristãos e as dos judeus. A análise do renomado crítico literário, porém, não tem respaldo histórico. Na Inglaterra no século 16, as poucas famílias de conversos que lá viviam eram médicos ou grandes comerciantes como os Mendes, e não praticavam “empréstimo a juros de forma constante”, como afirma Draper. Ademais, após a condenação à morte de Rodrigo Lopes, em 1594, grande parte dos conversos

O objeto de seu trabalho é uma produção de O Mercador de Veneza realizada em 2016, no Kennedy Center, em Washington, tendo o ator britânico Jonathan Price no papel de Shylock. De início, a introdução do texto já contém uma indagação inquietante: “Se O Mercador de Veneza perpetua um estereótipo dos judeus, por que esta obra continua a ser encenada?”. Depois de enfatizar a caracterização de antissemitismo feita por Harold Bloom, o professor Frank é incisivo: “É hora de dizer ‘nunca

MERCADOR DE VENEZA. FILME DE 2004 COM AL PACINO

deixou o país e, os que ficaram foram expulsos por James I, em 1609. Passaram-se algumas décadas, até que nova leva de conversos se estabelecessem em Londres. Eram, na maioria, respeitados comerciantes com atividades econômicas que se estendiam ao Oriente, às Américas e, principalmente, aos Países Baixos, Espanha e Portugal. Dentre os críticos mais recentes, tem especial relevância um artigo assinado por Steve Frank, professor da Universidade de Colúmbia, NY. 35

mais’ para essa aberração histórica que quando encenada propõe para novas plateias noções medievais de ódio, que há muito tempo deveriam ser deixadas para trás”. O articulista se mostra indignado em face da turnê mundial então prevista para o espetáculo, culminando com uma apresentação comemorativa dos 500 anos da implantação do gueto de Veneza, o primeiro do mundo, no próprio gueto de Veneza. Frank diz que, por mais liberal que alguém seja, é impossível ignorar tanto a linguagem como a doentia colocação JUNHO 2022


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antissemita de Shakespeare em sua peça, na qual Shylock é referido como o demônio no formato de um judeu, como um demônio cruel, como cão execrável, como miserável ser humano e judeu inferior. A par disso, a peça recorre às mais antigas calunias e ofensas contra o Povo Judeu, falsamente acusado de ser o assassino de Jesus e de extrair sangue de crianças cristãs para a prática de rituais. Steve Frank é implacável quando observa a cena do tribunal tal como representada em Washington: o personagem Antonio, cuja carne deveria ser cortada, é colocado à frente de um grande corrimão sobre o qual estende os dois braços e a cabeça pende para um lado, como se estivesse sendo crucificado. O professor rejeita as teorias segundo as quais Shylock corresponde a uma síntese de todos os oprimidos e minorias do mundo. Afirma que essas teses são inaceitáveis nos dias atuais, marcados pelo legado do Holocausto, pois não faz o menor sentido evocar num monólogo que, a título de humanização, exibe o fato de um judeu sangrar como quaisquer outros seres humanos. Na peça A Tragédia de Júlio César, de Shakespeare, há uma célebre fala dita pelo personagem Marco Antonio: “O mal que os homens fazem sobrevive a eles. O bem é frequentemente sepultado com seus ossos”. De fato, o mal causado por William Shakespeare à imagem do Povo Judeu perdura séculos. Quanto ao bem, se é que houve essa intenção, Shylock permanece insepulto.

BIBLIOGRAFIA

Shapiro, James. Shakespeare and the Jews, Columbia University Press, 2016, EUA. Zevi Ghivelder é escritor e jornalista.

A

ssim que o Cristianismo se tornou a religião dominante na Europa, no séc. 4, a Igreja introduziu várias leis que discriminavam os judeus – todas cerceando sua liberdade e atingindo praticamente todos os aspectos da vida judaica. Na sociedade feudal estratificada, os judeus não podiam ser alçados a lordes nem ser camponeses, sendolhes negado o direito de ocupar cargos governamentais, militares ou na polícia. Não podiam ser proprietários de terra, tampouco podiam ser agricultores. Eralhes vedada a participação nas corporações cristãs e, à medida que um número crescente de artesãos se associava às mesmas, a opção de trabalho para os judeus ia sendo drasticamente reduzida. Restava-lhes o comércio, uma das poucas profissões na época que lidava com dinheiro. A princípio, os judeus atuavam no comércio com escambo de mercadorias como produtos da lavoura, tecidos, entre outros, até migrarem para o uso de dinheiro. A maioria mal ganhava o sustento. Porém, os mais bem-sucedidos, passaram a realizar funções econômicas vitais para o comércio, tendo a seu cargo o financiamento e garantia das lavouras. Essa garantia mantinha os fazendeiros ou outros produtores de commodities em atividade durante as secas ou outras quebras de safra. Após as primeiras Cruzadas alguns judeus expandiram suas atividades comerciais e seus lucros importando produtos de outros países e do Oriente. Em todo o norte do continente europeu, o século 12 testemunhou uma rápida expansão econômica e o dinheiro se tornou uma necessidade – e uma oportunidade. A Igreja proibia o empréstimo e cobrança de juros entre os cristãos, sob pena de excomunhão. No entanto, pela leitura da Igreja

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ROSSO BANCO. CASA DE PENHORES NO GUETO JUDAICO DE VENEZA, HOJE MUSEU. É MENCIONADO NA PEÇA “O MERCADOR DE VENEZA”

sobre as passagens bíblicas contrárias à usura (Deuteronômio 23:20-12), era permitido aos judeus conceder empréstimos em dinheiro a cristãos, mediante a cobrança de juros. Foi então natural que o comércio de dinheiro na Europa Ocidental inicialmente caísse em mãos dos judeus. As feiras medievais contribuíram para o crescimento dessas transações. Os “cambistas” emitiam documentos resgatáveis em outras feiras, em troca de divisas. Tais documentos podiam ser descontados em diferentes países ou mantidos para uso futuro. Os governantes cristãos foram vendo, pouco a pouco, os benefícios de contar com uma classe de pessoas como os judeus, que lhes podiam fornecer capital para seu uso, sem que eles se tornassem passíveis de excomunhão. E, não raro, os judeus perdiam a vida ou tinham suas comunidades expulsas pelo fato de alguns monarcas tomadores de empréstimos a um judeu simplesmente não quererem honrar sua dívida. Em meados do século 13, os habitantes de Cahors (atualmente na França) e da Lombardia (atualmente na Itália) “conceberam” maneiras de contornar a proibição cristã da cobrança de juros – disfarçando-os na forma de pagamentos para cobrir possíveis perdas e prejuízos, e similares. A concorrência com esses banqueiros – conhecidos como “agiotas do Papa” – tornou os judeus menos vitais para os reis, ao ponto de muitos terem expulsado os judeus de seus territórios.


israel

Israel – uma democracia pujante POR samuel feldberg

Aos 74 anos Israel pode ORGULHAR-SE de sua trajetória. Única democracia em uma região mergulhada nas trevas, é considerada “uma luz entre as nações” e um modelo para aqueles que almejam a liberdade e a prosperidade.

e

um dos melhores parâmetros para esta avaliação é a condição da minoria árabe que vive no país. Compondo 20% da população, esta minoria, que desfruta de todos os direitos civis e religiosos como cidadãos plenos, conseguiu manter a sua proporção na população ao longo de quase 75 anos, período em que as levas imigratórias ampliaram a população judaica em quase 15 vezes.

esta função aos representantes políticos no Parlamento. E somente 20% da população árabe em Israel vê a questão palestina como uma prioridade. Ao longo das últimas décadas houve uma clara evolução da identidade árabe em Israel, um processo que se tornou conhecido como “israelização”. Os jovens árabes reconhecem os progressos da sociedade israelense e a educação como a chave para participarem deste processo. Assim, está ocorrendo uma profunda transformação da estrutura social da minoria árabe, com uma transferência dos jovens para os grandes centros urbanos (quando não fisicamente, então no âmbito de suas atividades) e uma diminuição da importância do modelo patriarcal.

Durante muitos anos, as lideranças políticas árabes mantiveram seus representados à margem, recusandose a reconhecer a legitimidade do Estado de Israel e almejando uma reversão à realidade anterior a 1948. Mas o progresso israelense, a liberdade proporcionada pelo Estado e especialmente o contraste com o restante da região, erodiu pouco a pouco esta posição, convencendo a população das vantagens de se tornarem cidadãos plenos.

Os fundamentos das relações entre árabes e judeus em Israel se têm demonstrado extremamente resilientes, também graças à emergência de uma classe média árabe preocupada em consolidar o seu status socioeconômico. Assim, parte importante daqueles que buscavam uma representação política baseada na identidade e na “islamização” agora estão engajados na melhora dos padrões de vida da minoria árabe em Israel. E para isso têm que encontrar o seu lugar na sociedade israelense.

O trajeto não transcorreu sem percalços; no início a minoria árabe era vista com suspeitas e foi isolada no interior do país, longe das fronteiras. Mas raramente a população árabe em Israel se engajou contra o Estado no contexto do conflito contra os palestinos, deixando 37

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Mansour Abbas, líder do PARTIDO RAAM

Khaled Kabub, Juiz da suprema corte

As mulheres têm obtido mais oportunidades e, ao longo dos anos, melhoraram a sua escolaridade, não só terminando o ensino médio, mas também aumentando significativamente a sua proporção nas universidades. Como consequência natural, têm-se casado mais tarde e têm menos filhos, o que lhes permite conciliar a maternidade com uma vida profissional produtiva, como engenheiras, médicas, arquitetas e em uma série de atividades técnicas amplamente demandadas no mercado. Também no âmbito político o número de mulheres é cada vez mais significativo.

ao longo dos últimos anos, em todo o país, e que representa uma tendência inexorável: a crescente integração da minoria árabe na sociedade israelense. Quase que imediatamente foram identificados os radicais e extremistas responsáveis pelo incitamento e ficou claro que a maior parte da população não só não esteve envolvida como condenava os atos ilegais. A polícia tomou as medidas necessárias e hoje, um ano após os eventos, quase não se pode identificar sinais do ocorrido.

O sucesso de Israel como “StartUp Nation” não se restringe ao universo judaico; amplos setores da minoria árabe vêm participando desta evolução, inclusive com a criação, por parte do governo, de parques tecnológicos e incubadoras em cidades predominantemente árabes no norte do país. Os eventos do ano passado, com ondas de violência atingindo principalmente as cidades em Israel com população significativa de árabes e judeus, como Haifa, Lod e Jaffa – não devem ofuscar uma realidade que vem sendo constatada

E isso somente é possível pelo fato de Israel funcionar como uma democracia parlamentar na qual todos os cidadãos são representados e têm seus direitos reconhecidos, ao contrário do que foi exposto PELAS RUAS DE JERUSALÉM

no ultrajante relatório da Anistia Internacional que condenou Israel pela prática de apartheid e equiparou o país às mais abjetas ditaduras, como Afeganistão, Burkina Faso, Irã, Líbia, Myanmar e o Iêmen. É este país, acusado de apartheid, que promulgou há 30 anos a Lei Básica da Dignidade e Liberdade Humanas. Nela estão resguardados os direitos dos cidadãos em um estado judeu e democrático. Estes incluem a liberdade de expressão e o direito à propriedade, dignidade e liberdade pessoais e à liberdade de todos os cidadãos de entrar e sair do país. Garante ainda o direito à intimidade e privacidade, bem como a proibição de buscas ilegais sem mandados e a violação da confidencialidade em conversas ou gravações ilegais. E os legisladores se preocuparam também em garantir que a lei não pudesse ser alterada pelo Parlamento, nem anulada por medidas emergenciais, o que assegura os direitos das minorias, preservados pela Suprema Corte. De acordo com o Prof. Samy Smooha, da Universidade de Haifa, os árabes em Israel estão se adaptando ao Estado e à maioria judaica, comprometendo-se com o caráter democrático da sociedade, e almejam alcançar uma condição de paridade socioeconômica. Os recentes eventos políticos em Israel demonstram também que os árabes endossam cada vez mais o processo democrático e o fato de que a maioria absoluta dos jovens se identificam como israelenses, como parte integrante do país, desejosos de uma integração plena na sociedade. Aceitam, também, a existência de Israel como um Estado judaico, algo que foi recentemente endossado por Mansur Abbas, o líder do partido Raam que integra o atual governo de coalizão.


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O ANTIGO PORTO, JAFFA, ISRAEL

Ao longo dos últimos anos, a questão do conflito israelopalestino tem perdido importância na agenda da minoria árabe em Israel, o que possibilitou a cisão da chamada Lista Unificada que levara o partido Raam ao governo. Curiosamente, é o Partido Islâmico que reconhece a legitimidade do Estado judeu e deixa nas mãos da liderança palestina a luta pela autodeterminação. Sua plataforma eleitoral se baseia na representação de seus constituintes junto à administração do Estado, como em qualquer democracia funcional. O partido luta no Parlamento, e agora também no governo, pelo aumento do número de alvarás de construção, de recursos para os orçamentos de saúde e educação e, em conjunto com parlamentares judeus, por diversas demandas dos setores civis da sociedade.

A integração desta minoria se dá através dos exemplos mais corriqueiros da vida diária. Árabes e judeus compartilham salas de aula nas universidades e, cada vez mais, também em escolas conjuntas nas mais diversas regiões do país.

O atendimento a pacientes judeus é feito por um número crescente de profissionais árabes do setor de saúde, de enfermeiros e farmacêuticos a médicos nos hospitais. E são árabes israelenses 20% dos médicos, 25% dos enfermeiros e 50% dos farmacêuticos.

CIDADÃOS ÁRABES ISRAELENSES EM ABU GOSH VOTAM NAS ELEIÇÕES NACIONAIS. 17/09/2019

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israel

E jogadores árabes nos maiores e mais importantes times de futebol de Israel são um fenômeno cada vez mais comum. Artistas e jornalistas também estão cada vez mais em evidência. Na semana em que Israel celebrava o seu aniversário, um juiz muçulmano foi empossado, pela primeira vez, na Suprema Corte israelense; e, há alguns dias, Loai Sakas, um árabe israelense de Kafr Yasif, venceu o campeonato mundial de kickbox na Turquia e se envolveu na bandeira israelense ao receber a medalha de ouro. Analisemos de perto o que acontece no sistema político israelense, no qual o maior partido não tem conseguido compor uma maioria capaz de formar um governo de coalizão. Como uma democracia parlamentar representativa, uma infinidade de partidos representam uma enorme variedade de interesses, entre outros o eleitorado árabe, representado tanto por partidos árabes quanto por partidos judaicos de esquerda. A maioria dos protestos não são violentos e são acordados antecipadamente com a polícia (ainda que só façam manchetes os episódios de violência) e os grupos radicais representam uma ínfima minoria, com uma influência negligenciável. Agora, pela primeira vez na história de Israel, um partido árabe participa de um governo de coalizão, produzindo mais uma realidade que deita por terra as acusações sobre desigualdade e discriminação no país. O partido se propõe a participar do processo decisório respeitando as regras democráticas para ajudar a solucionar os clássicos problemas da minoria árabe, problemas que também afetam os mais diversos setores da população judaica.

CONVIVÊNCIA UNIVERSITÁRIA EM CENTRO DE TECNOLOGIA

ENFERMEIRO DO MAGUEN DAVID ADOM ADMINISTRA VACINA EM CIDADÃ IDOSA

A questão tornou-se claramente social, baseada no conceito de cidadania e deixou para trás o viés nacional, que durante gerações impediu esta integração política. E as lideranças judaicas reconhecem a importância do setor árabe da população e vem atuando para integrá-lo na vida e na economia do país, tornando a integração um elemento de interesse nacional.

Em uma recente entrevista ao Washington Institute, o líder do Raam, Mansur Abbas, declarou: “Nosso destino é conviver neste território e podemos decidir como fazê-lo. Podemos nos opor ao ódio e aos conflitos com os valores que temos a oferecer: paz, tolerância e segurança. É isso que propomos”. Soa como um bom começo para esta parceria inédita.

O mesmo vem acontecendo nas relações de Israel com os países muçulmanos da região, que veem nas relações com Israel uma vantagem irrefutável e que não pode ficar à mercê de um acordo entre Israel e os palestinos.

Obviamente não faltam problemas ao setor árabe em Israel: os níveis de violência, atribuídos ao crime organizado e à violência doméstica, ainda são altos. Somente agora, depois de décadas, começam a ser legalizados bairros inteiros de

MAHDI TARABIA, ENFERMEIRO-CHEFE DA UNIDADE DE NEFROLOGIA PEDIÁTRICA, CENTRO MÉDICO RAMBAM, HAIFA

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construções ilegais (algo equivalente à urbanização de favelas no Brasil), e os recursos destinados ao setor árabe, equivalentes a US$ 10 bilhões, começam a ser distribuídos. E o potencial de avanço é enorme: metade da população árabe ainda tem um nível de renda abaixo da linha de pobreza e boa parte dos jovens abandonam a escola antes de terminar o secundário. O sucesso da participação do Raam no governo também será fundamental para aumentar a participação do eleitorado árabe nas próximas eleições, o que contribuiria para um aumento do número de parlamentares eleitos pelos constituintes árabes. A questão da segurança nas comunidades árabes é um dos principais temas que ocupam este governo de coalizão, constituindose em uma rara oportunidade para transformar as relações entre judeus e árabes no país. Um dos principais objetivos é aumentar a confiança da população árabe na polícia e na vigência da lei e, para isso, estão sendo tomadas as mais diversas medidas, entre outras o aumento dos contingentes de policiais árabes que atuam nessas regiões. A periferia judaica, com a presença dos setores mais frágeis da população, compartilha dos mesmos problemas.

LÍDERES RELIGIOSOS JUDEUS, CRISTÃOS, MUÇULMANOS E DRUZOS EM ORAÇÃO CONJUNTA PELAS VÍTIMAS DA COVID-19. JERUSALÉM, 22/04/2020

Os árabes cidadãos de Israel se diferenciam de seus familiares no Oriente Médio, desfrutando de liberdades civis e religiosas, representatividade política, educação e liberdade de expressão, como em nenhum outro país da região. Os árabes cidadãos de Israel têm direito a voto desde as primeiras eleições em Israel, em 1949. Em relação às mulheres, é um dos poucos país no Oriente Médio onde mulheres árabes podem votar. Como vimos, a realidade interna de Israel entre árabes israelenses e judeus israelenses se distancia TEATRO Árabe-Hebraico, YAFFO, ISRAEL

Uma das mais importantes constatações dos eventos do último ano é a de que a violência e o crime na sociedade árabe não têm cunho nacionalista, não refletem uma revolta contra o Estado nem representam uma ameaça à segurança ou à integridade territorial. Devem ser combatidos pela polícia como crimes contra o patrimônio, de comum acordo com a população civil.

cada vez mais do conflito israelopalestino. Os árabes cidadãos de Israel hoje passam a olhar mais para o futuro do que para o passado. Esse é um futuro otimista. O país vive um momento de prosperidade, com uma sociedade israelense pujante, níveis socioeconômicos invejáveis até mesmo nos países desenvolvidos e uma crescente expectativa de um futuro ainda melhor. Desfrutam do privilégio de fazer parte da única democracia no Oriente Médio e reconhecem cada vez mais esta realidade. BIBLIOGRAFIA

Amnesty International Report 2021/2022 – The State of the World’s Human Rights, publicado no site https://www.amnesty. org/en/wpcontent/uploads/2022/03/ POL1048702022ENGLISH.pdf https://achord.huji.ac.il/sites/default/files/ achord.hebrew/files/mdd_hshvtpvt_2021_2. pdf The Arab Minority in Israel and the Normalization Agreements with Arab Countries, artigo publicado por Arik Rudnitzky em 2 de maio de 2021 no site do Moshe Dayan Center for Middle Eastern an African Studies da Universidade de Tel Aviv - https://dayan.org

Samuel Feldberg é doutor em Ciência Política pela USP, professor de Relações Internacionais, Pesquisador do Centro Moshe Dayan da Universidade de Tel Aviv e fellow em Israel Studies da Universidade de Brandeis.

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COMUNIDADES

Judeus do Iraque: apogeu e fim de uma comunidade Os judeus viveram na região que hoje é o Iraque durante mais de 2700 anos. No século 20 eram cidadãos integrados, com importante participação no desenvolvimento econômico e administrativo do país. Era uma comunidade próspera que se orgulhava de suas sinagogas, instituições comunitárias e suas escolas. No entanto, em um período de 20 anos todos os caminhos lhes foram sendo fechados. Em 1935 havia 135 mil judeus no Iraque, hoje restam cinco indivíduos.

À medida que o Império Otomano começa a entrar em lenta decadência, a vida dos judeus piora, fazendo com que a partir do final do século 18, uma leva de judeus iraquianos deixasse Bagdá em busca de onde viver – indo parar na Índia e em países do Oriente. Entre estes, aqueles que prosperaram, como os Sassoon e os Kadoori, iriam ter importante papel para a população judaica iraquiana, devido às polpudas contribuições que enviavam a suas comunidades de origem.

O Império Otomano Desde 1534, quando os otomanos tomaram Bagdá e, em seguida, anexaram toda a Mesopotâmia a seu Império, os judeus viviam na região como súditos do Império Otomano. Sob o regime vigente, a vida da população era determinada pela lei islâmica, a shari’a, e isso se manteve até os britânicos conquistarem o que hoje é o Iraque. Judeus e cristãos lá podiam viver na condição de dhimmis, desde que reconhecessem a superioridade do Islã e pagassem os tributos devidos. O Islã lhes garantia a vida, a liberdade e a autonomia comunitária. Com exceção da jizya, tributo per capita cobrado anualmente a não-muçulmanos, as políticas dos governantes otomanos referentes aos judeus eram improvisadas e sempre decorrentes da sua “utilidade” ou não, no momento.

As Tanzimat e o novo estado civil judaico No século 19, era numerosa a população judaica na região que hoje constitui o Iraque, sendo que a maior comunidade era a de Bagdá, onde, em 1831, viviam cerca de sete mil judeus e havia nove sinagogas. Havia outras comunidades na região norte do país, sendo a maior a de Mossul1, com cerca de 450 famílias judias.

No decorrer dos 400 anos de domínio otomano, a vida da população judaica dependeu do humor de sultões e de califas, alguns dos quais agiram com crueldade. Tudo, porém, é relativo; se comparada à vida de seus irmãos na Europa cristã, a vida dos judeus era quase um “mar de rosas”. 1

Em 1839, melhora a situação da população otomana, bem como a dos judeus em seu meio, quando o governo de Istambul decide modernizar o Império com uma série de reformas que ficaram conhecidas como as Tanzimat Fermani. Foi criado o sistema dos millets,

Essa cidade é a antiga Nínive citada na Torá.

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Sefarim EXPOSTOS NO CENTRO DA HERANÇA JUDAICA BABILÔNICA, OR YEHUDA, ISRAEL

que garantia às minorias autonomia comunitária e o controle sobre suas propriedades e instituições. A jizya foi extinta, mas a partir de então recai sobre os não-muçulmanos um novo imposto de isenção do serviço militar ou bedel-i-askeri. Em 1856, todos os súditos passam a desfrutar de igualdade civil e, dez anos mais tarde, da cidadania, sem distinção religiosa ou étnica. O novo status civil permitia que os judeus galgassem importantes postos governamentais. Em 1876, quando é convocado o primeiro Parlamento em Istambul, os judeus de Bagdá já são representados por um deputado.

A chegada da Alliance Israélite Universelle Até as reformas do Império de 1839 o sistema educacional da população judaica ficava a cargo

das escolas religiosas que, com o empobrecimento das comunidades iraquianas, tornara-se precário. Em 1840, foi fundada em Bagdá a Yeshivat Bet Zilkha para formação de rabinos. Por mais de um século não existira na região nenhuma instituição do gênero. Mas, a verdadeira revolução educacional judaica ocorreu depois que a Alliance Israélite Universelle (AIU) passou a abrir escolas que ofereciam educação moderna. Em dezembro de 1860, foi inaugurada, em Bagdá, a primeira escola primária para meninos. Posteriormente, o currículo foi ampliado para incluir o curso secundário. As meninas, porém, tiveram que esperar até 1890 para que a AIU abrisse a primeira escola profissionalizante. E, mais três anos se passariam até começar a funcionar a primeira escola primária para meninas. Nos anos seguintes foram 43

sendo fundadas Escolas da AIU em outras cidades: Basra, Mossul, Hilla, Amara e Kirkuk. A instrução dada às crianças judias foi um divisor de águas, que lhes deu uma distinta vantagem sobre os muçulmanos, 95% dos quais eram analfabetos.

A vida no Século 20 Com a inauguração do Canal de Suez, em 1869, muda a rota comercial do Oriente Médio, que deixa de ser terrestre para singrar os mares. No Iraque essa mudança favorece o porto de Basra, fazendo com que algumas centenas de judeus migrassem para essa cidade. Mesmo assim, no início do século 20, dois terços dos 80 mil judeus iraquianos viviam em Bagdá. Com a Revolução dos Jovens Turcos, em 1908, os judeus otomanos, inclusive os iraquianos, vislumbram JUNHO 2022


COMUNIDADES

Os Judeus e o Mandato Em julho de 1914, eclode a 1ª Guerra Mundial e os otomanos se posicionam contra a França e a Grã-Bretanha, alinhando-se com a Alemanha, Áustria e Itália.

FAMÍLIA JUDIA, BAGDÁ, 1928

um futuro no qual não mais seriam “cidadãos de 2ª classe”. O movimento revolucionário visava criar uma sociedade laica e igualdade de direitos a todos os habitantes do Império. O novo status civil permite aos judeus ascender a importantes postos governamentais. Em Istambul, um dos deputados do recém-criado Parlamento era um judeu iraquiano, Sir Sassoon Heskel (1860 - 1932). No ano seguinte, Heskel passa a ser o representante do Império Otomano nas negociações com a Grã-Bretanha. No Iraque, porém, o movimento revolucionário criou uma forte tensão. Enquanto os judeus o apoiavam, os árabes eram contrários. Eles não queriam ver não-muçulmanos com o mesmo status civil que eles. E, em Bagdá, furiosos com o apoio dos judeus aos Jovens Turcos, o populacho muçulmano ataca a comunidade judaica em 15 de outubro de 1908. 2 3

Graças a um relatório de 1910 escrito por um funcionário judeu do Consulado Britânico em Bagdá, temos informações sobre a vida judaica, no início do século 20. Nele o autor confirma o papel da AIU para a ocidentalização dos judeus. Afirma ainda que “a comunidade judaica em Bagdá é, depois da Salonica, a mais numerosa, importante e próspera do Império Otomano (...). Dos 60 mil judeus que habitavam no vilayet2 de Bagdá, 50 mil havitavam na cidade, espalhados em diversos bairros, principalmente no bairro cristão (...) e representavam um terço da população total de Bagdá. Contudo, monopolizavam o comércio local”.

Para impedir o avanço dos inimigos no Oriente Médio, os britânicos despacham tropas para a região. Em novembro de 1914, ocupam Basra e, em seguida, o sul do atual Iraque. Nesse meio tempo, os britânicos se aliam a Hussein bin Ali, Sharif e Emir3 de Meca, que, em 1916 iria ajudá-los liderando a Revolta Árabe contra os otomanos. Hussein recebe dos ingleses a promessa de ser recompensado, como de fato foi, pois Faisal, seu terceiro filho, é posteriormente alçado a rei do Iraque. Os britânicos entraram em Bagdá em 26 de março de 1917. Cansados da crueldade otomana, os judeus comemoram e declaram a data “um dia de milagres”. Na época viviam na cidade 80 mil judeus em meio a uma população de 202 mil habitantes. Nas duas primeiras décadas do século 20, os judeus de Bagdá tiveram um papel de destaque na

AULA DE PIANO, ESCOLA LAURA KADOORI DA ALLIANCE ISRAÉLITE UNIVERSELLE, BAGDÁ

Vilayet era uma divisão administrativa do Império Otomano. Sharif, ou nobre, em árabe, considerado descendente direto do profeta Maomé. Emir é um título que designava o chefe do mundo muçulmano, também tido como descendente do Profeta.

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economia e no desenvolvimento do sistema judicial. Mas a tranquilidade judaica adquirida após a ocupação britânica ficou abalada com os rumores sobre a possibilidade de os britânicos transferirem o poder político para os “árabes sunitas, que não possuíam experiência administrativa alguma e eram conhecidos por seu fanatismo e intolerância religiosa”. Preocupados, em 1918 e em 1919, os judeus pediram, inutilmente, para se tornarem súditos de Sua Majestade. Em abril de 1920, na conferência de San Remo, a Grã-Bretanha recebe o mandato sobre três províncias otomanas, Basra, Bagdá e Mosul, comprometendo-se a transformálas em um estado que passaria a ser conhecido como Al-Iraq. Entre os árabes era forte a oposição à colonização inglesa e, em julho, eclode uma rebelião armada nas áreas rurais. Sufocada a revolta, a Grã-Bretanha decide estabelecer uma “fachada árabe” para o Mandato, “entregando” o governo a uma monarquia sunita, sem levar em conta que a grande maioria da população muçulmana do Iraque era xiita. Os britânicos criam um governo temporário composto por oito membros, sendo um deles Sir Sassoon Heskel, a quem mencionamos acima e que se tornara uma das personalidades mais importantes do país. Heskel ocuparia o Ministério da Fazenda nos cinco primeiros gabinetes do Reino do Iraque.

em vão, que lhes fosse outorgada a cidadania britânica. Faisal bin Al-Hussein, árabe sunita originário de Meca e um desconhecido no Iraque, tornase monarca do Reino do Iraque, em 23 de agosto de 1921, com o nome de Faisal I4. Faisal era um dos filhos de Hussein bin Ali. Durante o reinado de Faisal I os judeus gozaram de cidadania plena e tiveram importante participação no desenvolvimento econômico e administrativo do país.

Com ele tem início o Reino Hashemita do Iraque, que duraria até 1958.

Em fevereiro de 1921, o Alto Comissariado concede uma licença de funcionamento à recém-criada Associação Sionista de Bagdá. Pedia, porém, que seus membros evitassem atividades públicas. A necessidade de discrição tornouse mais premente, em 1922, quando os sionistas não conseguiram renovar essa licença. O Iraque era um centro ativo do Arabismo e embora ainda não

COLEGIADO RABÍNICO DE BAGDÁ ENCARREGADO DA COMUNIDADE JUDAICA DA CIDADE

houvesse uma resistência ativa ao Sionismo, para os árabes “qualquer simpatia ao Movimento Sionista era uma traição à causa árabe”.

Perante as novas manobras políticas, os judeus voltam a pedir ao Alto Comissariado Britânico, novamente

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Atividades Sionistas

SIR SASSOON Heskel

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No início da década de 1930, a população judaica iraquiana já totalizava 135 mil pessoas, a maior parte das quais vivia em Bagdá. Basra abrigava a segunda maior comunidade. Os judeus despontavam em importantes cargos governamentais e judiciais, no Parlamento, na medicina, nas artes e, principalmente, no comércio. Eram mais da metade dos grandes comerciantes. JUNHO 2022


COMUNIDADES

Em setembro de 1934, o governo iraquiano estabeleceu uma cota, não-oficial, para o número de judeus permitidos no serviço público e, no ano seguinte, para os que podiam ter acesso ao ensino superior. O ensino do hebraico em escolas judaicas foi proibido e se tornou cada vez mais difícil a viagem de judeus à Palestina Britânica.

VISITA DO REI FAISAL I À COMUNIDADE JUDAICA, 1924

A comunidade orgulhava-se, também, de suas sinagogas, suas instituições comunitárias e hospitais, e de suas quatro escolas judaicas. Mas a vida judaica mudaria para pior depois que os conflitos entre árabes e judeus na Palestina Britânica atingiram altos níveis de violência. Um massacre perpetrado em Hebron por milícias árabes contra judeus, em 1929, desencadeou conflitos violentos por toda a Palestina Britânica. Os ingleses consideram Haj Amin al-Husseini, o Grande Mufti de Jerusalém, antissemita convicto e admirador de Hitler, o principal instigador da violência que ceifou a vida de centenas de judeus. Os conflitos repercutiram em todo Oriente Médio e, aos poucos, vai desaparecendo a tênue distinção que, nos vários países árabes, a mídia e o poder mandatário ainda mantinham sobre ser judeu e ser sionista. No Iraque os jornais publicam notícias forjadas sobre o assassinato de milhares de árabes na Palestina Britânica, atiçando os muçulmanos contra a população judaica do país. Em 30 de agosto de 1929, em Bagdá, 10 mil árabes tomam as ruas atacando os judeus. Em seguida, o

governo bane todas as atividades sionistas. O Sionismo underground, no entanto, nunca se deixou abater.

Nazismo e Antissemitismo Em outubro de 1932, a GrãBretanha concede a independência ao Reino do Iraque, mas continua mantendo na região sua presença militar e suas bases. Em setembro do ano seguinte, morre o rei Faisal I. Seu filho, Gazi, sobe ao trono como rei. Nacionalista e sem o “jogo de cintura” do pai, foi uma mera figura decorativa até sua morte, em 1939. Durante seu reinado o poder de fato ficou nas mãos de políticos e militares que se alternavam no governo. O rei Gazi não nutria apreço pelos judeus. Seu primeiro-ministro, Rashid Ali al-Gaylani, era um nacionalista profundamente antissemita. Desde que Hitler subira ao poder, a embaixada alemã, além de exercer grande influência sobre o governo, distribuía propaganda nazista e fundos para grupos pró-Nazismo. O livro Mein Kampf, escrito por Hitler, é traduzido para o árabe e publicado em capítulos em um jornal local. 46

A pressão e intimidação contra a população judaica se intensificam, em 1936, com a eclosão, na Palestina Britânica, da Revolta Árabe contra o domínio colonial britânico e a imigração judaica. Em setembro daquele ano, na véspera de Rosh Hashaná, os judeus iraquianos são acusados de “apoiar os sionistas da Palestina”, e dois judeus são assassinados. Em Yom Kipur uma bomba é lançada em uma sinagoga repleta de fiéis. Felizmente não explodiu. Nos meses seguintes, intensificam-se os atentados a bomba contra instalações judaicas, sob o pretexto de que as mesmas abrigavam atividades sionistas. Nos três anos seguintes o “bemestar” judaico passou a depender da posição de cada um dos primeirosministros que se sucediam no poder acerca da causa árabe na então Palestina. Se quem estivesse no cargo demonstrasse maior simpatia em relação aos árabes palestinos, intensificavam-se os incidentes contra os judeus iraquianos. O rei Gazi morreu em abril de 1939 e seu filho, Faisal II, de quatro anos de idade, foi coroado rei. A Regência foi assumida pelo Emir Abdul-Illah, primo e cunhado do falecido. Na época, cerca de 150 mil judeus viviam no Iraque, 90 mil em Bagdá e 10 mil em Basra. Os demais


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espalhavam-se através de muitas cidades pequenas e vilas. Eles ainda constituíam uma comunidade populosa, organizada e rica. Em outubro de 1939, temendo ser preso pelos britânicos, al-Husseini, o Grand Mufti de Jerusalém, foge da então Palestina e se refugia em Bagdá. Falando em nome do Islã, continua a apoiar os nazistas e a incitar a violência dos árabes contra judeus e britânicos. Em março de 1940, Rashid Ali al-Gaylani assume mais uma vez o cargo de primeiro-ministro, e proíbe a passagem de tropas aliadas através do Iraque. O novo gabinete é formado por antissemitas. Seguiramse meses difíceis para a população judaica, incessantemente acusada de ajudar o exército britânico, e que resultam no assassinato de 13 dos nossos. Em abril de 1941, Rashid Ali alGaylani dá um golpe militar e declara guerra à Grã-Bretanha. Os ingleses decidem então ocupar o Iraque para assegurar o fornecimento de petróleo aos Aliados e, no final de maio, ajudados por forças iraquianas leais ao Regente, já estavam no controle do país. A estratégia militar adotada pelos ingleses era deixar que as forças iraquianas fossem as primeiras a entrar nas cidades. Em Bagdá, essa estratégia teve consequências terríveis para os judeus. Na tarde de 1º de junho, o governo do Regente estava retornando a Bagdá quando uma multidão de judeus, que se aventurava pelas ruas para celebrar Shavuot, decide cruzar a margem do rio Tigre para receber os dignitários. Para a população árabe, que observava o desenrolar dos eventos,

os judeus estavam celebrando a vitória britânica. Militares que apoiavam o governo de al-Gaylani incitam os árabes de Bagdá contra os judeus e violentos tumultos tomam conta das ruas. Esse pogrom, conhecido como Farhud, terminou apenas no dia seguinte, 2 de junho, quando tropas curdas foram trazidas para restabelecer a ordem e o Regente deu ordens para atirar contra os perpetradores do pogrom. De acordo com as fontes judaicas, os dois dias de violência

março de 1942, o Movimento Sionista clandestino volta à atividade em Bagdá, Basra e Mossul. Preocupados com a situação em que se encontravam os judeus do Iraque, o Ishuv da então Palestina envia a Bagdá emissários para estimular os jovens a emigrarem de modo clandestino.

Pós Guerra Após o fim da 2ª Guerra Mundial e a retirada dos ingleses do país, uma

O Farhud, O POGROM DE 1941

custaram a vida de 300 judeus. Outros relatos colocam o número de mortos entre 150 e 180. Mais de 1.000 são feridos; muitas mulheres foram estupradas e mais de 1.500 propriedades judaicas, destruídas. Com o retorno dos ingleses ao Iraque, a comunidade judaica em Bagdá volta a experimentar uma prosperidade econômica, havendo entre seus membros quem julgasse que o pior passara. Mas os jovens haviam perdido as esperanças e acreditavam não haver mais futuro para os judeus no Iraque. E, em 47

grave crise econômica e política toma conta do Iraque. Em termos políticos, a maioria dos muçulmanos é contra o governo do Regente, favorecendo os nacionalistas árabes. Diante dos problemas internos e do clamor árabe por “unir forças contra os inimigos sionistas”, o governo passa a tomar medidas antijudaicas oficiais. De acordo com um relatório de um americano em Bagdá, em 1945, o governo passa a censurar os contatos dos judeus com a Palestina Britânica. Volta a ser limitado o ensino do JUNHO 2022


COMUNIDADES

recomendações do Comitê estavam a revogação dos White Papers e a admissão imediata de 100 mil judeus na Palestina Britânica.

INTERIOR DA GRANDE SINAGOGA DE BAGDÁ

hebraico nas escolas judaicas, bem como o número de judeus autorizados a cursar faculdades ou ser funcionários públicos. No comércio os judeus encontram grandes dificuldades em conseguir os documentos necessários para exercer suas atividades e muito são obrigados a estabelecer parcerias com comerciantes árabes. Enquanto isso, na Palestina Britânica, a situação tornouse insustentável. Os britânicos mantinham as portas do país praticamente fechadas a judeus enquanto centenas de milhares de sobreviventes do Holocausto apodreciam na Europa nos campos de pessoas deslocadas. Em maio de 1946, pressionados por Henry Truman, presidente americano, os ingleses concordaram em criar o Comitê de Inquérito Angloamericano que ficou encarregado de examinar as condições na então Palestina e consultar representantes árabes e judeus. No Iraque, aos serem entrevistados por tal Comitê, os governantes culparam os sionistas pela “precariedade” na qual se encontravam os judeus de seu país. Muhammed Fadhil al-Jamali, diretor das Relações Exteriores,

declarou que os judeus, em seu país, viviam “há milhares de anos” como “nossos irmãos ... em perfeita paz... o Sionismo político veio para envenenar a harmonia.... É um grande fardo para nosso governo manter essa paz ...”, dizia. Entre os árabes a tensão aumentou quando, apesar dos ingleses se recusarem a adotá-las, entre as

Em junho de 1946, a recémcriada Liga Árabe exigiu de seus membros a detenção e o confisco das propriedades de judeus suspeitos de “ativismo sionista”. Os fundos “recolhidos” serviriam para financiar a “resistência às ambições sionistas na Palestina”. O governo iraquiano prontamente adotou as medidas da Liga, ainda impondo outras. No início de 1947, determinou que os judeus só poderiam sair do país mediante o depósito de uma garantia, em dinheiro, de 1.500 dinares iraquianos – soma essa de que poucos dispunham.

Partilha da Palestina Em 14 fevereiro de 1947, o governo britânico renunciou ao mandato sobre a Terra de Israel, delegando às Nações Unidas a “questão da Palestina”. Três meses mais tarde, a ONU cria o Comitê Especial das Nações Unidas sobre a Palestina (UNSCP), encarregado de dar um parecer sobre uma possível Partilha da região do Mandato Britânico. As declarações do governo iraquiano foram ameaçadoras. Muhammed Fadhil al-Jamali, que se tornara Ministro das Relações Exteriores, disse ao UNSCP que “o destino dos judeus nos países muçulmanos dependia dos acontecimentos na Palestina”, ao passo que o primeiroministro, Nuri as-Sa’id, foi ainda mais sinistro: “Os judeus são nossos reféns”.

SEFER TORÁ, EM BELA CAIXA DECORADA. IRAQUE, SÉC. 19

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As ameaças iraquianas levaram o Ishuv, a comunidade residente na ancestral Terra de Israel, a acelerar os planos para tirar os judeus do


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Iraque, e, em agosto de 1947, o Mossad, aborda Shlomo Hillel com o plano de resgatar judeus iraquianos por transporte aéreo. (Ver artigo à pág. 66) As ameaças árabes, porém, não impedem a ONU de marcar para o dia 26 de novembro a votação sobre a Partilha, na sede das Nações Unidas, em Nova York. Ao discursar perante a Assembleia Geral, o delegado egípcio, Heykal Pasha, afirmou: “A solução proposta poderá pôr em perigo milhões de judeus que vivem nos países muçulmanos. A Partilha da Palestina poderá criar um antissemitismo ainda mais difícil de extirpar do que o Nazismo. Se a ONU aprovar a divisão da Palestina, será responsável pelo massacre de grande número de judeus”. No dia 29 de novembro de 1947, os milenares anseios judaicos finalmente se realizaram. A Assembleia Geral das Nações Unidas votou a favor da partilha da Palestina em dois estados, um árabe e um judaico. Em Bagdá, Alepo, Beirute e outros países do Oriente Médio, enquanto os judeus festejavam a criação de seu Lar Nacional, os árabes saíam às ruas prometendo vingança e morte. Em 27 de abril de 1948, uma sinagoga em Bagdá foi atacada e profanada por um grupo de manifestantes enfurecidos.

sobre a população judaica. O terror toma conta dos 150 mil judeus iraquianos. Eles sabiam que os árabes não faziam mais distinção entre Judaísmo e Sionismo e ser sionista tornara-se uma ofensa capital. O governo toma severas medidas antissemitas e os judeus passam a sofrer abusos de todo tipo e, não bastante, os militares criam um campo de concentração no deserto para detentos comunistas e judeus.

MÚSICOS JUDEUS, BAGDÁ, 1933

judeus para o “resgate da Palestina” e um grupo de “voluntários árabes” é enviado à região. A ação militar desses voluntários foi catastrófica. No dia 14 de maio de 1948, David Ben-Gurion proclama a independência do Estado de Israel. No dia seguinte, os exércitos do Egito, Síria, Jordânia, Líbano e Iraque atacam o recém-criado Estado Judeu. No Iraque é decretada a lei marcial. O primeiro-ministro Muzahim al-Pachachi assegura aos árabes que os abusos do aparato estatal militar contra liberdades individuais iriam recair apenas

Um flagrante exemplo do tipo de “justiça” que os militares reservavam para os judeus foi o julgamento e a execução de Shafiq Adas, um dos judeus mais ricos do Iraque. Os iraquianos o acusavam de ter “vendido, para a Itália, em 1946, um equipamento militar britânico, posteriormente encontrado em Israel, em mãos do inimigo sionista”. Apesar de sua culpa nunca ser comprovada, Adas foi condenado e seus bens, avaliados em £5.000.000, foram confiscados. Ele foi enforcado publicamente em Basra, em 27 de setembro de 1948, diante de sua casa. O terrível desfecho foi acompanhado por grande publicidade, em meio ao júbilo popular. A partir de 1948, a vida dos judeus iraquianos vai de mal a pior. Não podiam comprar ou vender imóveis e

INTERIOR DA GRANDE SINAGOGA DE BAGDÁ, RECONSTRUÍDA NO CENTRO DA HERANÇA JUDAICA BABILÔNICA, OR YEHUDÁ, ISRAEL

Judeus do Iraque e a Guerra da Independência de Israel O governo iraquiano aproveita-se do ódio árabe em relação à Partilha da Palestina para desviar a atenção de sua população das dificuldades econômicas vigentes. Para agradar os muçulmanos mais “esquentados”, são arrecadados fundos dos próprios 49

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eram poucas as profissões que lhes permitiam exercer. Entre outros, o Ministério da Saúde deixou de emitir ou renovar licenças para médicos judeus. Os bancos de propriedade judaica eram proibidos de fazer transações com instituições estrangeiras. Os poucos judeus que ainda ocupavam cargos no governo foram demitidos. Um deles, Ibrahim el-Kabir, estava em Londres para negociar um acordo financeiro entre o Iraque e a Grã-Bretanha quando foi sumariamente afastado do cargo. Centenas de judeus foram presos e condenados, torturados – às vezes até a morte; suas propriedades, confiscadas. Uma campanha oficial de extorsão foi iniciada, resultando em milhões de libras iraquianas que foram “coletadas” entre eles. O governo decretou que os judeus iraquianos que viviam no exterior perderiam suas propriedades caso não retornassem ao país na data estabelecida. Quarenta grandes empresários judeus foram presos, sendo soltos somente após o pagamento de quantias exorbitantes. Estima-se que um total de £20.000.000 tenham sido “coletados” dos judeus. Parte desses fundos foram utilizados para cobrir a “aventura militar” do país na Guerra de Independência de Israel. Quando a Guerra se encerrou, em meados de 1949, com a derrota geral dos países árabes envolvidos, armistícios são assinados entre Israel e os demais países. O Iraque foi o único a não assinar um armistício, simplesmente retirando suas tropas da área do conflito. Em 1949, o país vivia uma profunda depressão econômica quando Nuri as-Sa’id volta a ocupar o posto de primeiro-ministro. A perseguição

Até 1950, cerca de 12 mil judeus fugiram do Iraque por essas vias. Ao chegar no Irã, a maioria deles eram direcionados ao grande acampamento de refugiados administrado pelo Joint Distribution Committe ( JDC), perto de Teerã, e de lá eles eram levados para Israel.

REGISTRO DAS LEIS QUE REGIAM OS ATIVOS DE JUDEUS QUE HAVIAM ABERTO MÃO DA CIDAdania IRAQUIANA. BAGDÁ, 1951

contra os judeus se intensifica, incentivada pela retórica antissemita e disfarçada de antissionismo. Aumentam as restrições de caráter econômico assim como uma constante violência física. Centenas de judeus foram presos e submetidos a torturas generalizadas. Os que sobreviveram nunca mais foram os mesmos. Em 1949, os delegados de Israel nas Nações Unidas e a mídia mundial começaram a expor a incessante perseguição do Iraque aos judeus que viviam no país. Ainda que a emigração ilegal para Eretz Israel nunca tivesse realmente sido interrompida, o fluxo diminui quando entra em vigor a lei marcial. Assim que essa foi suspensa, o movimento underground sionista voltou a trabalhar a todo vapor para tirar os judeus do Iraque. Entre os vizinhos na região, o Irã, ainda que fosse um país muçulmano, não perseguia os judeus. Assim sendo são usadas exaustivamente as rotas de fuga clandestinas através desse país, principalmente através de Basra e Shat al-Arab, ao sul, e através das fronteiras montanhosos ao norte. 50

A situação começa a melhorar quando Tawfiq Suweidi se torna primeiro-ministro. Suweidi ocupara esse posto em três momentos diferentes da história do país – inclusive entre 5 de fevereiro de 1950 e 15 de setembro de 1950. Tendo estudado na escola judaica da AIU, em Bagdá, considerada a melhor do Iraque, ele não nutria pelos judeus o ódio de muitos de seus compatriotas. A maciça fuga judaica já não podia ser mantida em segredo. Diante de tal determinação – e vendo que nem o exército nem a polícia eram capazes de detê-la, o governo iraquiano decide legalizar a emigração dos judeus. Em 2 de março de 1950, é votada uma lei, com duração de apenas um ano, permitindo que os judeus deixassem o país mediante a renúncia de sua nacionalidade iraquiana. Salih Jabr, então Ministro do Interior, apontara para o fato de que “não era de interesse público forçar as pessoas a permanecerem no país se assim não o desejassem”. Ao sancionar a lei o governo iraquiano supunha que uns sete mil judeus, no máximo dez mil, se utilizariam dessa nova legislação. Aliás, essa estimativa era compartilhada por diplomatas ingleses em Bagdá e por israelenses. Mas estavam todos enganados. Em abril de 1950, no último dia de Pessach, árabes jogaram uma bomba num café que vivia lotado de judeus


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e, em 14 de janeiro do ano seguinte, outra bomba explodiu na Sinagoga Mas’uda Shemtob, que se tinha tornado um ponto de encontro para os judeus que se preparavam para deixar o país. Um garotinho de sete anos foi morto e 20 judeus ficaram feridos. As autoridades chegaram a culpar “elementos judeus” por esse e outros incidentes contra eles próprios. O governo de Tawfiq Suweidi caiu em setembro de 1950 e Nuri Said voltou ao cargo de primeiro-ministro. Isso trouxe grandes preocupações. Em 9 de março de 1951, no dia em que expirava a lei que permitia aos judeus deixar o país, praticamente toda a população judaica, excetuando-se umas seis mil pessoas, já se tinham inscrito para partir. Foi então que o governo iraquiano desfechou dois golpes. O primeiro era uma lei congelando e confiscando os bens de todos os judeus que estavam em vias de partir. Uma segunda determinava que todos os judeus iraquianos que estavam fora do país e não retornassem dentro de um prazo determinado, perderiam tanto sua nacionalidade quanto seus bens. Ainda que algumas famílias tivessem conseguido enviar para o exterior algum dinheiro, a maioria delas viu-se totalmente destituída, só podendo levar consigo uma cifra irrisória. A maciça ponte-aérea que ficou conhecida como Operação Ezra e Nehemias foi realizada com relativa facilidade, apesar do número de emigrantes ter superado todas as estimativas iniciais. Israel havia se preparado para receber cerca de 300 imigrantes/dia – e isso, por si só, já era uma grande dificuldade – mas o fluxo diário chegou, em seu

A República do Iraque (1958-1979)

JUDEUS IRAQUIANOS EM AVIÃO A CAMINHO DE ISRAEL. ARQUIVO DA FAMÍLIA DANGOOR

momento de pico, ao gigantesco número de 1.400 pessoas. Em 5 de julho de 1951, cerca de 104 mil judeus iraquianos haviam chegado a Israel. No ano seguinte, em represália, o governo proibiu os judeus que ainda estavam no país de emigrar e, em 1954, nacionalizou o Hospital Judaico Meir Elias, o maior e mais moderno no país, e o Hospital Rima Kheduri, que tratava pacientes oftalmológicos. Em 1957 viviam no Iraque apenas 4.700 judeus.

No dia 14 de julho de 1958, a monarquia hashemita é derrubada pelos militares liderados pelo general Abd al-Karim Qasim. O rei Faisal II, bem como grande parte de sua família são assassinados. É fundada a República do Iraque e o general Qasim torna-se primeiroministro. O novo governante tem um comportamento benigno face aos grupos minoritários e a situação dos judeus melhora sensivelmente. Eram cerca de quatro mil deles em Bagdá. As restrições contra os mesmos são revogadas e muitos passaram a acreditar que a violenta tempestade que marcara a vida de seus irmãos chegara ao fim. Mas, a ilusão se desfez quando Qasim ordenou o confisco e destruição do cemitério judaico, para construir no lugar uma torre que imortalizava seu nome. Essa pretensa calmaria duraria apenas cinco anos, até a ocorrência de um golpe do partido Ba’ath, em 1963. Saddam Hussein era então um jovem oficial.

MALAS E BAÚS DOS JUDEUS QUE DEIXARAM O IRAQUE A CAMINHO DE ISRAEL. CENTRO DA HERANÇA JUDAICA BABILÔNICA. OR YEHUDA, ISRAEL

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Alegando que uma “5ª coluna” israelense estava atuando no Iraque, o novo governo restabelece todas as antigas medidas antijudaicas, e ainda acrescenta outras. Os passaportes pertencentes a judeus são confiscados. Não podiam descontar suas notas promissórias e foi proibido conceder-lhes crédito nos bancos, que acabavam de ser nacionalizados. Os estudantes judeus foram banidos das faculdades públicas. Foi proibido aos judeus acesso aos bancos, a realização de transações financeiras, e a venda de todo e qualquer tipo propriedades. Os importadores e farmacêuticos perderam sua licença. Como se isso tudo não bastasse, foi proibida qualquer cooperação dos cidadãos árabes com os judeus. Muitos judeus chegaram a passar fome. Em 1967, o Iraque uniu-se às forças árabes na Guerra dos Seis Dias contra Israel. Após a derrota árabe, não tardaram as represálias no Iraque. Os dois mil judeus que permaneciam no país viram-se privados de trabalhar e muitos estavam em prisão domiciliar. Seus telefones haviam sido confiscados e aumentaram os ataques nas ruas. Após outro golpe, que trouxe de volta ao poder al-Bakr e seu vice, Saddam Hussein, os judeus começaram a ser presos como espiões. Durante a vigência do regime Ba’ath (1968-2003), sua situação se deteriorou ainda mais. Alguns foram acusados de espionar, como vimos acima, e eram mantidos na prisão sem qualquer acusação formal. Em janeiro de 1969, Saddam Hussein foi encarregado de organizar um “evento espetacular”, ao qual foram trazidas centenas de milhares de pessoas em

CASAMENTO DE UM CASAL DE JUDEUS IRAQUIANOS. CORTESIA DE MAURICE SHOHET

ônibus, de todas as partes do país. Era o “espetáculo” macabro do enforcamento de 13 homens acusados de espionar a favor de Israel, enquanto os cidadãos iraquianos circundavam os patíbulos, dançando e cantando. Assim que termina a guerra com os curdos, em 1970, abriu-se um caminho possível. Famílias inteiras de judeus começam a fugir pelas montanhas em direção ao Irã. Em abril de 1973, o número total de judeus enforcados, assassinados ou simplesmente desaparecidos já chegava a 46. Dezenas mais continuavam encarcerados. O choque após a execução sumária de judeus inocentes causara repercussões no mundo todo e o governo do Iraque reagiu aliviando – ainda que temporariamente – suas medidas discriminatórias contra a pequena população judaica. Por volta de 1974, eram apenas 280 os judeus que permaneciam no país; a tensão com o governo se acalma e eles permitem que os judeus recebam passaporte e deixem o país. Na década de 1980, Saddam 52

Hussein foi pressionado pelos americanos a proteger o que restava da comunidade judaica. Com esse fim, o Ministério Nacional de Segurança criou um departamento especial para garantir sua segurança. Após a invasão do Iraque em 2003, a Agência Judaica lançou uma campanha para rastrear todos os judeus iraquianos que ainda se encontravam no país e lhes oferecer a oportunidade de emigrar para Israel. Hoje, ao que se sabe, são apenas cinco os judeus que ainda vivem em Bagdá. A queda de Saddam Hussein em 2003 não trouxe a normalização das relações entre Israel e o Iraque, país que foi uma das principais forças a liderar o boicote econômico de Israel pelos demais países árabes.

BIBLIOGRAFIA

Rejwa, Nissim, The Jews of Iraq: 3000 Years of History and Culture. eBook Kindle Gat, Moshe, The Jewish Exodus from Iraq, 1948-1951 (English Edition). eBook Kindle


comunidades

A INESPERADA DESCOBERTA DO ARQUIVO JUDAICO DO IRAQUE Quando as tropas americanas invadiram o Iraque, em 20 de março de 2003, jamais poderiam imaginar que, numa missão de busca e apreensão, acabariam recuperando dezenas de milhares de documentos, 2.700 livros e outros tantos objetos narrando a vida, os hábitos e a herança de uma das mais antigas comunidades judaicas do mundo.

E

comunitárias. Membros da comunidade haviam relatado editos os obrigando a levar seus livros em hebraico e outros textos judaicos às sinagogas, onde caminhões aguardavam para transportá-los não se sabia para onde. Também não estava claro o que, exatamente, a Mukhabarat esperava encontrar neles. Quaisquer fossem os motivos, a captura do material cultural judaico pela polícia iraquiana fez lembrar pilhagens semelhantes perpetradas pelos nazistas, durante a 2a Guerra Mundial.

sse verdadeiro tesouro recebeu o nome de Arquivos Judaicos Iraquianos e se estende de meados do século 16 à década de 1970. E fornece um registro vívido e sem paralelo da vida judaica em Bagdá. Em 6 de maio de 2003, poucos dias após as forças de coalizão assumirem o controle de Badgá, uma equipe exploratória do Exército Americano, composta por 16 soldados a quem fora atribuída a busca por armas nucleares, biológicas e químicas, entrou no porão do Mukhabarat, a polícia secreta de Saddam Hussein. Inundado com mais de 1,5 metros de água fétida, esse porão continha, boiando nessa água, um patrimônio inestimável de livros, artefatos e documentos judaicos. O porão abrigava material relacionado à vida da comunidade judaica iraquiana.

O TREMENDO EMPENHO EM RECUPERAR E TENTAR IDENTIFICAR O MATERIAL, 2003

Não ficou claro como e por que razão esses registros de valor incalculável sobre a vida dos judeus e seus textos religiosos tinham ido parar nos porões da Mukhabarat. O fato é que claramente haviam sido pilhados de sinagogas e organizações 53

Resgatando os documentos Não tardou para que o exército norte-americano percebesse a importância de sua descoberta e prontamente procurasse ajuda. No clima quente e úmido de Bagdá, os documentos e livros encharcados junho 2022


comunidades

1. LIVROS E DOCUMEnTOS DO JUDAÍSMO IRAQUIANO JÁ EMPACOTADOS PARA EMBARQUE, JUN. 2003 2. HAGADÁ DE PESSACH MANUSCRITA, BAGDÁ, 1902 3. LIVRO “HISTÓRIA DO MILAGRE DE CHANUCÁ”, BAGDÁ, 1926

rapidamente se emboloravam, apesar dos esforços para os secar. O material foi armazenado em um caminhão refrigerado, de modo a impedir que se deteriorassem ainda mais. Congelamento é um método comum para se estabilizar material úmido. Em 2003, encontrarse caminhões refrigerados em Bagdá era uma façanha das mais impossíveis, mas eles não pouparam esforços para salvar os Arquivos Judaicos Iraquianos.

que os documentos fossem levados aos Estados Unidos para serem recuperados, sob a vaga premissa de que seriam devolvidos ao Iraque após sua recuperação. As forças armadas transportaram o material ainda congelado em mais de 20 caixas de metal para o Texas e, de lá, para a Administração de Arquivos e Registros Nacionais, na capital norte-americana.

lama, insetos e mofo, além de alguns estarem rasgados e outros colados devido à umidade. O trabalho foi gigantesco, buscando remover o bolor, consertar o que estava rasgado, limpá-los e até mesmo voltar a encaderná-los. A transformação foi milagrosa, de fato. De folhas bolorentas, os milhares de livros e documentos se transformaram em acervo de museus.

Preservação e restauro

Solicitaram auxílio à Administração de Arquivos e Registros Nacionais, em Washington, DC, e, em junho de 2003, foram enviados especialistas em conservação para Bagdá. Essa instituição é conhecida pela manutenção e preservação de documentos antigos de grande valor, como o original da Declaração da Independência dos Estados Unidos.

Essa instituição não mediu esforços para recuperar a coleção. Investigado o estado de cada item, tomaram as devidas medidas para estabilizar os documentos a fim de poderem ser manuseados. Cada um deles foi fotografado e catalogado.

Visando facilitar o acesso a esse rico material, os Arquivos Nacionais dos Estados Unidos e seus parceiros catalogaram e digitalizaram os livros e documentos, criando um inventário de banco de dados na Internet. Após mais de uma década de trabalho diligente e um investimento de milhões de dólares, o acervo judaico iraquiano está hoje preservado.

As autoridades iraquianas deram seu consentimento para

Foram vários os agentes que causaram danos ao rico material: Caixa da Torá (Tik, em hebraico), em madeira. revestida de veludo com ornamentos em metal

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Documentos e livros recuperados Alguns datam de muitos séculos, outros são mais recentes. E fazem a crônica da vida judaica no Iraque. Entre os milhares de itens contam-se livros de oração, fragmentos de Rolos da Torá, livros sobre a Lei Judaica e documentos da vida comunitária judaica nesse país. A maioria dos


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livros religiosos são escritos em hebraico e muitos dos documentos estão em árabe.

Sobre os documentos e materiais Perto de 1.200 livros judaicos foram recuperados do porão da Mukhabarat, sendo mais de 400 deles livros de oração. Com início em 1862 e durante mais de 100 anos, as prensas de impressão em caracteres hebraicos produziram uma enorme variedade de livros, entre os quis trabalhos litúrgicos que seguem os costumes locais. Cerca de um quarto das obras recuperadas foram impressas em Bagdá, no final do século 19 ou no século 20; as demais foram importadas de centros gráficos, em língua hebraica, como a França, Lituânia, Alemanha e Índia. Entre os livros de rezas impressos no país, contam-se um livro de orações para as festas de Pessach, Shavuot e Sucot (1912); um livro de orações (Sidur Kehilat Ya’akov) para os dias da semana (1962); um guia religioso para mulheres, de 1906, de nome Kanun al Nisa (Leis para as Mulheres), de autoria de Ben Ish Hai. Esse guia religioso é um texto em árabe transcrito em letras hebraicas. Entre os livros religiosos nãoiraquianos que conseguiram ser preservados estão uma Bíblia de Veneza, em hebraico e com comentários rabínicos, datada de 1568, e um Talmud Babilônico de mais de 200 anos atrás, de Viena (1793), que discute leis e tópicos referentes a Yom Kipur. Foi encontrada, também, uma pequena Hagadá de 1902, escrita à mão, bem como um livrinho de orações colorido, em francês, de

1930, e ainda uma linda edição de 1692, feita na Alemanha, com uma coletânea de sermões feitos por um rabino. Entre os objetos resgatados encontra-se uma caixa para Sefer Torá, de Bagdá, do século 19-20. Apesar de não terem sido encontrados Rolos completos da Torá, foram recuperados 48 fragmentos de pergaminhos de Torá, provenientes de Badgá.

solicitação para o fornecimento de Matzá aos prisioneiros judeus durante a festividade de Pessach, no ano de 1917. Interessante, também, uma carta de 1918, enviada pelo Gabinete do Governador Militar Britânico em Bagdá ao Rabino-Chefe, sobre o provisionamento de carneiros para a festa de Rosh Hashaná. Os Arquivos Judaicos Iraquianos narram décadas e mesmo séculos da vida judaica no Iraque. E são de particular importância para que se entenda a vida dos judeus iraquianos na segunda metade do século 20, quando a maior parte da comunidade fugiu desse país levando quase nada consigo – e os que ficaram foram alvo de severas consequências. Graças ao trabalho incansável para sua conservação, o material encontrado no porão da sede do serviço de inteligência de Saddam Hussein está disponibilizado online. Esses milhares de documentos nunca foram devolvidos ao Iraque e, desta forma, o Arquivo Nacional Judaico Iraquiano se tornou propriedade cultural disputada pelo Governo dos Estados Unidos, grupos judaicos e a diáspora judaica iraquiana – e pelo governo iraquiano.

Boletim Escolar de Edwin Shaul Shukur, 1967

A grande maioria dos documentos recuperados pertencem a organizações comunitárias judaicas, como o gabinete do Rabino-Chefe, hospitais e escolas. Entre eles, mais de 200 fichários com registros escolares da década de 1920 até 1975, bem como fotos escolares. Entre os inúmeros documentos interessantes encontra-se uma Carta do Gabinete do Governador Militar Britânico, em Bagdá, ao Rabino -Chefe da cidade acerca de uma 55

A notável sobrevivência desse incalculável registro histórico da vida judaica no Iraque nos fornece uma oportunidade inesperada de melhor entendermos essa comunidade que conta 2.500 anos de História. Bibliografia

Preserving the Iraqi Jewish Archive, artigo publicado pelo site https://www.archives. gov/exhibits/ija/ Archives readies a schoolgirl’s records and a trove of Jewish treasures for return to Iraq, artigo publicado por Michael Ruane pelo jornal Washington Post em 13 de Agosto de 2013 junho 2022


TRADIÇÃO

Amuletos e Talismãs no Judaísmo Amuletos e talismãs são encontrados entre os mais diferentes povos, em todos os continentes, desde os primórdios da História até nossos dias. Entre nós, judeus, SUA história se estende ao longo de vários milhares de anos.

e

o que são amuletos e talismãs? São objetos geralmente usados no pescoço ou no pulso, com o intuito de proteger ou ajudar aquele que os porta contra forças espirituais negativas. É preciso, no entanto, ressaltar que há uma nítida diferença entre amuletos e talismãs. Os primeiros são usados pela pessoa como forma de proteção e defesa contra algum mal. Já o talismã age de forma oposta, pois acredita-se que empodere aquele que o usa, atribuindo algum poder ou energia positiva à pessoa que o possui.

ídolos, o papel dos amuletos e talismãs é servir como canal condutor para as bênçãos Divinas. Assim sendo, o Judaísmo permite apenas aqueles amuletos e talismãs feitos e usados de acordo com as leis da Torá. O Talmud nos ensina que esses objetos geralmente contêm nas palavras que trazem inscritas um dos Nomes de D’us ou mesmo passagens da Torá (Talmud Babilônico, Shabat 115b). No entanto, cabe perguntar, por que razão a Torá sanciona o uso dos amuletos e talismãs? Uma das razões seria a seguinte: como ensina a Cabalá, misticismo judaico, o ser humano vive em um mundo físico, portanto precisa usar da materialidade para atrair e transmitir a plenitude Divina para o mundo. O cajado usado por Moshé e Aaron para realizar milagres – as 10 pragas, no Egito, e a abertura do Mar de Juncos – são um ótimo exemplo disso.

Historiadores e arqueólogos acreditam que praticamente todos os ornamentos usados pelas pessoas, na Antiguidade, eram originalmente amuletos. Esta premissa se baseia no fato de que a maioria desses ornamentos costuma trazer a imagem de ídolos ou a estes eram consagrados. No Livro de Gênesis, por exemplo, lemos que nosso Patriarca Yaacov enterrou sob uma árvore “todos os deuses estranhos que (aqueles que viviam em sua casa) tinham em seu poder, e os aros de suas orelhas” (Gênesis 35:4).

Os amuletos judaicos geralmente são feitos de textos (letras ou símbolos gráficos) gravados sobre algum tipo de material; podem até conter plantas ou pedras preciosas. Têm, na maioria das vezes, um propósito específico como, por exemplo, facilitar o nascimento, promover a recuperação ou a cura de uma enfermidade,

No Judaísmo, religião puramente monoteísta que rejeita completamente tudo o que se pareça à adoração de 56


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XALE BORDADO PARA PROTEÇÃO DE MULHERES GRÁVIDAS, TURQUIA, C. 1900. TIARA EM VELUDO PARA PROTEGER PARTURIENTE, ORNADA COM AMULETOS. PAR DE BRAcELETES EM PRATA COM O NOME DA PARTURIENTE, TZIPORA. IRÃ, C. 1900. TEL AVIV, ACERVO DA FAMÍLIA GROSS

promover uma melhora nos negócios e assim por diante. A palavra hebraica para amuleto, kamêa1, relaciona-se com a noção de amarrar ou unir. Um amuleto judaico, portanto, deve ser “ligado ou amarrado em torno de algo”. Na maior parte das vezes, os amuletos são usados em volta do pescoço da pessoa ou amarrados em seu pulso; ou, no caso de um bebê, presos em sua roupa. Às vezes, os amuletos são usados diretamente no corpo da pessoa, de forma oculta. Na Antiguidade, era comum encontrarse amuletos no corpo dos valentes guerreiros judeus. Kamêa, interessante mencionar, é como são chamados os Quadrados mágicos, um dos métodos de organização numérica. 2 Tosefta é uma segunda compilação da Lei Oral, no período de redação da Mishná, c. 200 desta Era. 1

no Tratado Shabat, junto com uma resposta afirmativa – podia-se usar o amuleto desde que quem o tivesse confeccionado fosse um judeu especializado em sua produção ou que o amuleto fosse, de fato, um objeto cuja eficácia tivesse sido comprovada (Mishná, Shabat 6.2; Talmud Babilônico, Shabat 61a).

SHMIRÁ, AMULETO DE PROTEÇÃO. SÉC. 19

As maiores evidências do uso de amuletos pelos judeus remontam à época dos Sábios do Talmud. A discussão que girava em torno de ser ou não permitido portar amuletos no Shabat encontra-se 57

O Talmud assim define um amuleto forte: como ensinaram os Sábios no Tosefta2, o que constitui um amuleto eficaz? É aquele que curou uma pessoa uma vez, e a curou novamente, e a curou uma terceira vez. Este é o critério para um amuleto eficaz e se aplica tanto a um amuleto escrito quanto a um feito com raízes de ervas; sendo necessário que sua eficácia tenha sido comprovada na cura de um doente em estado grave ou na cura de um doente em estado não tão grave. junho 2022


TRADIÇÃO

1. COLAR-AMULETO EM PRATA ESMALTADA, FILIGRANA, PéROLAS DE CORNALINA, COLEÇÃO ROUACH. 2. AMULETO EM PRATA PARA SER PENDURADO EM CARRINHOS DE BEBÊ, CAMA ETC., ARGÉLIA, SÉC. 19, MUSEU DE ARTE E HISTÓRIA DO JUDAÍSMO, PARIS. 3. COLAR-AMULETO PARA PROTEÇÃO DE MULHERES GRÁVIDAS, CURDISTÃO, C. 1920. COLEÇÃO FAMÍLIA GROSS

O valor e a eficácia de um amuleto ou de um talismã dependem, também, da espiritualidade de seu autor, já que seus poderes espirituais são o que irá determinar a força do amuleto ou do talismã. Os amuletos considerados válidos eram compostos e gravados por mestres no assunto, conhecidos como os Ba’alei Shem (os Mestres do Nome Sagrado).

Consequentemente há várias menções sobre amuletos na literatura rabínica. Como o Talmud não proíbe o uso de amuletos, vemos que através da História seu uso foi muito difundido e praticado entre

Os amuletos podiam ser tiras de pergaminho com letras do Nome de D’us, anagramas e transposições do mesmo, passagens da Torá e outros textos do gênero. Frequentemente eram uma pequena plaquinha de metal contendo as letras do Nome Divino. Os amuletos eram usados enrolados no braço ou no pulso; ou excepcionalmente eram carregados na mão. As mulheres e crianças os portavam geralmente em correntes no pescoço, anéis ou em outros adornos.

Os Cinco Livros da Torá apenas fazem menção a amuletos, ao passo que as passagens da era do Talmud e pós-Talmud, bem como os textos da Cabalá, fornecem mais informações sobre esse assunto. Até mesmo o Livro dos Provérbios, escrito pelo Rei Salomão, Shlomó HaMelech, o mais sábio dos homens que já viveu, refere-se a concepções consagradas sobre os amuletos. O uso de amuletos genuinamente judaicos – e não os emprestados de fontes não-judaicas, foi muito intenso no período rabínico, a dizer, de cerca do século 1 até cerca do século 7 da Era Comum.

os judeus. Floresceu na Espanha, no Oriente e em toda a Europa. No continente europeu, a crença nos poderes ocultos dos amuletos era muito difundida entre judeus e não-judeus, em todos os níveis da sociedade.

Opiniões contraditórias acerca dos amuletos

TOUCA USADA NA CIRCUNCISÃO, IRAQUE, INÍCIO DO SÉC. 20. MUSEU de ISRAEL, DOAÇÃO DE MARGALIT SHACHAR

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Rav Hai Gaon, rabino e erudito que foi o mestre da Academia Talmúdica de Pumbedita, na Babilônia, no início do século 11, negava os poderes de certos amuletos, como, por exemplo,


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COLEÇÃO FAMÍLIA GROSS, TEL AVIV: 1. SACOLA PARA COLOCAR OS TEFILIN, ARGÉLIA, 1942, E TRÊS AMULETOS DO IRÃ: ESPELHOAMULETO PARA NOIVA (1900), PINGENTE AMULETO (SÉC. 19) E UM SHIVITI, OU REPRESENTAÇÃO DE VERSÍCULO DOS SALMOS (1880). 2. AMULETO, IRÃ, C. 1875. 3. PINGENTE-AMULETO PARA AJUDAR UMA MULHER A ENGRAVIDAR, MARROCOS, 1918

No entanto, importantes rabinos do século 18, como o Rabi Yonatan Eybeschütz e o Rabi Naftali haKohen Katz (que serviu como rabino em Poznan e em Frankfurt am Main), eram conhecidos por escrever amuletos. Em seu testamento, Rabi Katz determinou que seu grande amuleto fosse dividido em cinco partes, uma para cada um de seus cinco filhos.

que um pedaço de papiro, inscrito com o Nome de D’us, pudesse afugentar os ladrões; ou que esse Nome Sagrado gravado em uma telha nova pudesse acalmar os mares. No entanto, é interessante notar que ele admitia que os amuletos pudessem ter eficácia como meio de cura e proteção. Como escreveu, “tudo dependia do autor do texto e do momento de sua aplicação”. Rabi Moshé ben Nachman, Nachmanides, permitia o uso de uma placa de metal com a imagem de um leão como remédio contra uma forte tosse. Esse tipo de crença era universal e também é mencionado por Manasseh ben Israel, de Amsterdã – rabino português, cabalista, escritor, diplomata, pintor, editor e fundador da primeira gráfica em caracteres hebraicos em Amsterdã, em 1626. Vale ressaltar, porém, que nem todos os nossos Sábios concordavam sobre o uso e poder dos amuletos. Houve uma forte

Muitos dos livros escritos por Cabalistas nos séculos 17 e 18 incluem textos sobre amuletos. Seu uso foi também praticado pelos Hassidim, tendo sido escritos e gravados por uma série de Rebes ilustres. oposição a seu uso entre certos Sábios, ao longo dos séculos, entre os quais se contava Maimônides, que declaradamente os condenou. Ele negava que tivessem qualquer força ou virtude, escrevendo sobre “a loucura dos que fazem os amuletos, que esperam conseguir milagres com as permutações do Nome Divino”. 59

É interessante notar que os amuletos não foram apenas um fenômeno da vida judaica medieval. Mesmo hoje em dia, muitos judeus creem em seu poder. Como demonstra um artigo escrito pelo Hospital Assaf HaRofeh, em Tel Aviv, os amuletos e talismãs continuam sendo parte da prática judaica contemporânea. junho 2022


TRADIÇÃO

dos portais de Israel,” em alusão à proteção dada pela Mezuzá. Em vista disso, nas Responsas da época pós-Talmúdica, há uma discussão sobre o seguinte: a proteção pode ser obtida apenas com uma Mezuzá colocada de forma correta, segundo o mandamento – ou pode advir de qualquer Mezuzá?

Colar-amuleto com pingentes em ouro e turquesa, Iraque, 1893

Durante dois meses, os funcionários do hospital pediram aos pais de todas as crianças internadas na UTI Pediátrica, para preencher um questionário com dados demográficos sobre o paciente e seus familiares, o uso de talismãs ou outras práticas de medicina popular, bem como sua percepção sobre os efeitos de tais práticas no bem-estar do paciente. E constataram, surpresos, que 30% das famílias judias usavam amuletos e talismãs na UTI, independentemente da situação socioeconômica da família ou da gravidade da enfermidade da criança internada. Os resultados indicaram que esses objetos eram significativamente mais usados por judeus religiosos, por famílias com um nível mais elevado de instrução e nos casos em que as crianças eram mais jovens.

Mezuzá Qualquer controvérsia acerca da permissão de se usar amuletos

segundo o Judaísmo depende da definição dada a esses objetos. Por exemplo, um dos mandamentos mais conhecidos da Torá, que é mencionado duas vezes no texto da oração do Shemá Israel, é o de se colocar uma Mezuzá nos umbrais das portas de casa. Por um lado, a colocação da Mezuzá atende a um mandamento da Torá. Mas, por outro, também cumpre o papel de um “amuleto”, já que protege os habitantes desse lar onde é afixada. Desde tempos remotos há registros de pessoas que usavam a Mezuzá como amuleto. De fato, a Mishná menciona que alguns tinham o costume de usar um cajado com uma parte oca onde era afixada uma Mezuzá para sua proteção. Vejamos os poderes protetores da Mezuzá: na parte externa do seu pergaminho, consta um dos Nomes de D’us, Sh-a-dai (‫י‬-‫ד‬-‫)ש‬. Os Cabalistas explicam que além de constituírem um Nome Divino, essas três letras são também o acrônimo de Shomer Delatot Israel – “Guardião 60

Muitos são da opinião que, de fato, há alguma medida de proteção na própria Mezuzá, mesmo que não esteja afixada no umbral da porta. A esse respeito, o Rebe de Lubavitch recomendou que certos indivíduos que tratavam de assuntos relacionados à saúde sempre levassem consigo uma Mezuzá – obviamente além de terem Mezuzot casher afixadas nos portais de sua casa. Os poderes de proteção da Mezuzá servem como paradigma para os amuletos e talismãs casher – ou seja, aqueles que são confeccionados e empregados de acordo com as leis da Torá. Diversas fontes judaicas, inclusive o Talmud, ensinam que, de forma semelhantes às Mezuzot, os Tefilin também são amuletos permitidos, preservando o Povo Judeu da força do mal e de seus inimigos. De forma figurativa, o principal amuleto do Povo de Israel é a própria Torá, já que é o canal que conduz todas as bênçãos, perdões e bondade Divinos até nós, seres humanos. BIBLIOGRAFIA

Amulet, artigo de Ludwig Blau publicado no site https://www.jewishencyclopedia. com/articles Contemplative and Practical Kabbalah, artigo do rabino Moshe Miler pubicado site http://www.chabad.org/kabbalah Kaplan, Aryeh, Meditation and Kabbalah, 1989. Editora Rowman Littlefield


história

YODFAT: ARQUEOLOGIA E HISTÓRIA Por Prof. Reuven Faingold

NO distrito de Misgav, região de Carmiel, estão os vestígios arqueológicos de Yodfat, antiga cidade da Galileia que, no século 1 ec, testemunhou as heroicas e trágicas lutas dos combatentes judeus contra Roma. Observando a fortaleza composta de cavernas, casas, cisternas de água e mikvê, PODE-SE imaginar como viviam os judeus da Terra de Israel NAQUELE período.

A

História da Terra de Israel é repleta de eventos dramáticos. O cerco e queda de Massada, ocorridos entre os anos 73 e 74, dos últimos eventos da Primeira Guerra romano-judaica1 (em hebraico ha-Mered Hagadol) são um dos tantos exemplos e sem dúvida o mais conhecido deles. O que ocorreu em Yodfat, apesar de ter sido o evento determinante na vida de Yossef ben Matitiahu ha-Cohen, conhecido pelo nome de Flávio Josefo, famoso historiador judeu do século 1º, é um fato histórico menos conhecido. Muito do que sabemos hoje sobre o ocorrido durante a Primeira Guerra romanojudaica é fruto dos relatos de cronistas romanos e das obras de Flávio Josefo.

em Yodfat que ele adotou o nome de Flavius Josephus e se tornou um dos mais controversos historiadores da Antiguidade. Ele terminaria seus dias em Roma. Passou os anos escrevendo a história e apologia da Nação Judaica e de si mesmo, suspeito de traição tanto aos olhos de seus correligionários quanto aos olhos dos romanos. Ele é autor de três obras significativas: História dos Hebreus, onde aborda a história dos judeus durante o período helenístico e romano; Antiguidades dos Judeus, que narra a jornada do povo de Israel desde os primórdios até o período helenístico, e A Vida de Yosef, um texto autobiográfico escrito para justificar suas atitudes – consideradas por muitos estudiosos como uma traição a seu povo.

Yossef ben Matitiahu ha-Cohen nasceu em Jerusalém, em 38 ou 39 de nossa Era (EC), em uma renomada família de Cohanim da qual se vangloria em sua autobiografia, que é de onde procedem todas as informações a seu respeito. Sua mãe descende da dinastia hasmoneia. Foi após os dramáticos eventos ocorridos

Flávio Josefo em Yodfat

1

Yodfat ou Jotapate aparece mencionado na Mishná como sendo uma vila fortificada na Terra de Israel, que data da época de Yehoshua. De acordo com o texto, Yodfat foi cercada por um muro antes ainda da conquista de Canaã pelos judeus, após sua saída do Egito. Em 66 EC, irrompeu na Terra de Israel a “Grande Revolta” contra o Império Romano, que dominava o

Também conhecida como a “Grande Revolta”, ocorrida nos anos de 66-73. 61

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história

O cerco de Yodfat

LANÇAS E ESCUDOS ROMANOS. PARQUE NACIONAL DE TEL YODFAT

país. Os judeus haviam conseguido reconquistar temporariamente sua independência e Yossef ben Matitiahu, posteriormente Flávio Josefo, foi designado pelo Sanhedrin2 governador militar da Galileia, para onde é enviado com o intuito de organizar a resistência judaica.

descrição dos acontecimentos. A devastação é total. O povo da Galileia não tinha como enfrentar os romanos em campo aberto e, sitiadas, as cidades foram caindo uma depois da outra. Josefo fracassara na defesa de Tzipori e Séforis e, então, refugia-se com muitos combatentes em Yodfat.

Além de preparar o território e a população para o enfrentamento com as legiões romanas, Yossef ben Matitiahu procurou combater os conflitos internos provocados pelas várias facções judaicas. Os mais extremistas o culpavam de contemporizar e, por sua atitude ambígua, foi acusado por vários grupos de traição à causa judaica. Tamanha a sua necessidade de se justificar a respeito do curto tempo em que governou a Galileia, que irá dedicar a esse período de sua vida grande parte de sua autobiografia.

Vespasiano estava ansioso para destruir a cidade, de posse da informação de que muitos dos rebeldes da Galileia haviam fugido para lá, fortificando-a. A conquista, naquele verão, visava enfraquecer os rebeldes e assim desestimular toda a revolta. Mas, em Yodfat os romanos se deparam com forte resistência judaica.

Ao eclodir a revolta na Terra de Israel, o Imperador Nero designa Tito Flávio Vespasiano, renomado comandante militar, para reprimi-la. Vespasiano ataca a Galileia à frente de um exército de mais de 60 mil homens. Em sua obra A Guerra Judaica, Josefo faz uma detalhada 2

Corte Suprema da Antiga Israel. Deixou de existir há quase dois milênios.

Flavius ​​JOSEPHUS ou YosSef ben Matitiahu, 37-100 EC

62

Liderados por Yossef ben Matitiahu os judeus resistem durante 47 dias de cerco. Inicialmente, os rebeldes judeus realizam ataques fora das muralhas para repelir os romanos. Estes, então, decidem construir uma rampa em frente à muralha de Yodfat. Quando sua construção atingiu uma altura considerável, Yossef ben Matitiahu iniciou uma operação para aumentar a muralha, fortalecendo-a. Isso encorajou os judeus a retomarem a luta. Vespasiano, então, adotou uma nova estratégia: parou os combates, mas manteve o cerco. O objetivo era estrangular a cidade até que seus habitantes morressem de fome e sede ou se rendessem. Os judeus sitiados tinham armazenado comida suficiente, mas sofriam com a falta de água. Era verão e dentro da cidade não havia nenhuma fonte. Yossef ben Matitiahu já controlava a moderação na distribuição de água desde o início do cerco, mas a redução na quantidade distribuída representou um duro golpe no ânimo dos judeus. Era isso o que os romanos queriam. É então que Yossef ben Matitiahu começa uma guerra psicológica, ordenando a seus homens que mergulhassem suas roupas na água e as pendurassem no parapeito da muralha, para que os romanos vissem a água escorrer ao longo dela e abandonassem suas esperanças de conquistar a cidade. Vespasiano, no entanto, não estava disposto a desistir e voltou a atacar. Depois que os romanos descobriram que os judeus estavam enviando mensagens e recebendo alimentos através de uma fenda de muito difícil acesso, eles a fecharam hermeticamente. Com isso,


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PARQUE NACIONAL DE TEL YODFAT, ISRAEL

Yossef ben Matitiahu percebeu que a cidade não aguentaria por muito tempo mais. Ele planejava deixar Yodfat para recrutar mais combatentes nos vilarejos da Galileia e assim desviar os romanos para uma nova batalha, mas os habitantes da cidade o dissuadiram e ele decidiu lá permanecer. Desesperado, pôs-se em marcha com seus guerreiros, invadiu o acampamento romano e atacou os construtores da rampa. Mas, quando a rampa já estava bem próxima da muralha, os romanos levaram até lá um aríete de ferro, que, com seus repetidos golpes num mesmo ponto, ficou a ponto de derrubar o muro. Yossef ben Matitiahu então ordenou que enchessem sacos com palha e os prendessem no local onde o aríete atingia, a fim de reduzir a força do golpe. Essa ação inibiu os romanos, mas eles recorreram a uma nova estratégia: amarraram foices nas pontas de lanças

compridas e cortaram as cordas que prendiam os sacos. Como último recurso, Yossef ben Matitiahu apelou para o uso do fogo. Seus combatentes irromperam e queimaram as máquinas de guerra romanas. Os romanos, no entanto, voltaram a usar o aríete de ferro contra o muro de Yodfat até fazê-lo desmoronar – o que ocorreu durante a madrugada. Enquanto Vespasiano se preparava para invadir a cidade, em 20 de Sivan, Yossef ben Matitiahu confiou aos guerreiros mais fortes as fendas da parede, enquanto enviou os mais velhos e já exaustos para proteger o restante da fortaleza. À frente de cada grupo encarregado das fendas, ele colocou seis pessoas que estavam na liderança, sendo ele, um deles. 63

A seguir ordenou que tampassem os ouvidos para não se assustarem com o som das legiões; que ficassem ajoelhados e cobertos por seus escudos para se protegerem contra as flechas, e que recuassem um pouco até que os disparos cessassem. Era o momento ideal para se prepararem para atingir os romanos que tentassem invadir a fortaleza pelas escadas e pontes. Já em suas palavras preparatórias antes do ataque às forças de Vespasiano, Yossef ben Matitiahu sabia que não tinha chance alguma de manter o cerco, mas, mesmo assim, tentou inspirar e motivar suas forças com as seguintes palavras: “Neste dia, cada um de vocês não lutará apenas para salvar sua cidade, mas para nos vingarmos, todos, de sua destruição. Que cada um coloque diante junho 2022


história

de si a imagem dos idosos e das crianças que são massacrados pelo inimigo, e os rostos das mulheres que estão prestes a serem mortas, e desta forma demonstre toda a sua ira contra os males que hão de vir, e a derrame sobre a cabeça dos que praticam o mal” (História dos Hebreus, Livro III, cap. 14). A visão do exército cercando a cidade aterrorizou as mulheres e crianças. Temendo que a gritaria e o choro atingissem o coração dos guerreiros, Matitiahu ordenou que as mulheres fossem trancadas em suas casas e silenciadas. Quando o ataque romano começou, os judeus seguiram as instruções recebidas, mas depois de um tempo não conseguiram mais resistir. A essa altura, os soldados romanos se amontoavam, em bloco, protegidos por seus escudos. Logo Matitiahu ordenou derramar óleo fervente sobre eles, o que os fez espalharemse pela muralha; e assim eles foram derrubados das pontes. No 47º dia do cerco, os romanos conseguem erguer uma rampa acima da muralha da cidade. Na vigília da última noite do cerco, os soldados romanos escalaram o muro, massacraram os guardas judeus e invadiram a cidade. Capturaram e mataram aqueles que se escondiam em grutas e cavernas. Vespasiano ordenou que a cidade de Yodfat fosse destruída e todas as suas fortificações queimadas. Após 47 dias, a cidade caiu e o historiador judeu descreve a morte de 40 mil judeus e a escravidão de 1.200 mulheres e crianças. Yodfat caiu no dia 1º de Tamuz (20 de julho do ano de 67), para nunca mais ser reerguida.

FLAVIUS JOSEPHUS É LEVADO perante TITO DURANTE O CERCO A JERUSALÉM, 70 EC. MANUSCRITO ENCONTRADO NA BIBLIOTECA DE CHANTILLY

romanos. Vespasiano, a seguir, enviou dois tribunos militares à caverna para persuadir Yossef ben Matitiahu a se render. Nada conseguiram. Envia, então, um terceiro tribuno de nome Nicanor, que era um bom amigo de Yossef ben Matitiahu.

A queda de Yodfat Com a queda da cidade, Yossef ben Matitiahu desceu até uma “cova funda ligada a uma caverna espaçosa”, escondida dos olhos de quem estava na superfície, e lá reuniu 40 combatentes da cidade, que se esconderam em um local com comida suficiente para vários dias. Durante o dia, ele permanecia na caverna, mas à noite saía à procura de uma saída para todos. Mas, vendo que os romanos haviam colocado guardas em todos os lugares, foi forçado a voltar para o interior da caverna. No terceiro dia, ainda em seu esconderijo, uma mulher judia foi capturada e revelou o lugar do esconderijo aos

O líder dos judeus ouviu o chamado de Nicanor tendo por pano de fundo as vozes raivosas dos soldados romanos que incendiavam a caverna, e decidiu se render. Em resposta, vários combatentes judeus que lá estavam o cercaram, esbofetearam-no por querer livrar sua pele. Ameaçam matá-lo se ele decidisse se entregar. Argumentavam que ele deveria morrer pela espada e não se render, e lhe deram um ultimato: morrer com honra ou morrer em mãos de seus irmãos, judeus. Yossef ben Matitiahu tentou persuadir seus combatentes e lhes pediu que não se matassem, mas todos ficaram muito irados com ele e o amaldiçoaram por sua covardia. Cercaram-no com espadas desembainhadas, e o ameaçaram. É quando um deles se

ARÍETE ROMANO DO SÉC. 1 EC, ÉPOCA DO CERCO ROMANO A YODFAT. PARQUE NACIONAL DE YODFAT

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aproxima com uma sugestão: se decidissem cometer suicídio, eles deveriam sortear a ordem de suas mortes (um método mais tarde conhecido como o “sistema de Josefo”). Morreriam um a um, pelas mãos de seu companheiro. Desta forma, ninguém teria que se suicidar nem se arrepender após a morte de seu amigo. Os 40 líderes concordaram com a oferta e o ato de suicídio foi realizado. Josefo ficou por último, com mais um combatente. Ele não queria morrer “nem contaminar sua mão com sangue de um companheiro”, então convenceu esse outro a não se suicidar. E ambos se renderam diante dos romanos para salvar suas vidas. Yossef ben Matitiahu foi conduzido por Nicanor até Vespasiano através da multidão romana, que foi obrigada a ver o comandante judeu de perto. Vespasiano ainda ordenou que uma forte guarda o acompanhasse para ser enviado à presença de Nero. Ao ouvir isso, Yossef ben Matitiahu pediu que fizessem saber a Vespasiano que ele tinha um segredo para lhe contar, em particular. Na presença do comandante e futuro imperador romano e de dois amigos do comandante, ele declarou publicamente que havia recebido uma Revelação Divina. Pronunciou uma profecia perante Vespasiano, profecia que é citada pelos historiadores Suetônio (69141) e Dion Cássio (circa 155-235), dizendo:“Um dos cativos dos nobres, de nome Josefo, enquanto aprisionado em correntes, afirmou com confiança e firmeza de espírito que logo Vespasiano desataria suas algemas, mas que nessa época ele já seria o imperador” (História dos Hebreus, Livro III, cap. 27). A história de Yossef ben Matitiahu, que, após se render aos romanos

fortificações, cisternas e extensas evidências das batalhas que ocorreram em Yodfat, incluindo uma vala comum contendo restos humanos. A última temporada terminou em novembro de 2020. De acordo com Aviam, os residentes derramaram óleo fervente sobre os soldados romanos enquanto eles escalavam o muro da cidade em escadas, como vimos acima.

PARQUE NACIONAL DE TEL YODFAT, ISRAEL

e ser libertado por Vespasiano, assumiu o nome de Flavius Josephus, revela-nos os dramas, a violência e o ódio que havia entre os judeus e os romanos no século 1º de nossa Era. Ao se entregar, ele traiu seu povo, tornando-se principal testemunha da grandiosidade, coragem e determinação de um povo que buscava a sua liberdade a todo custo e, por causa disso, pagou o alto preço de uma diáspora de dois mil anos.

A MODERNA YODFAT A antiga Yodfat ou Jotapate foi identificada pela primeira vez em 1847, por Ernst G. Schultz (1811–1851). Egiptólogo e cônsul da Prússia em Jerusalém, ele usou as descrições geográficas e topográficas fornecidas pelo próprio Flávio Josefo. Seis temporadas de escavação foram realizadas em Yodfat entre 1992 e 2000, sob a direção do arqueólogo Mordechai Aviam, sob a égide da conceituada Autoridade de Antiguidades de Israel e da Universidade de Rochester. Estas escavações revelaram restos de 65

A moderna Yodfat foi fundada em 1960 por alunos graduados da Escola Reali, de Haifa. Hoje é uma comunidade agrícola judaica localizada a 1 km a noroeste das antigas ruínas. No início, a aldeia não passava de um mirante do KKL (Keren Kayemet LeIsrael), ou Fundo Nacional Judaico – JNF, e seus habitantes eram, em sua maioria, funcionários do órgão. Mais tarde, a aldeia se tornou uma sociedade agrícola, com a maioria de seus moradores trabalhando suas próprias terras. Na década de 1990, o vilarejo se transformou em um centro comunitário, oferecendo uma variedade de profissões a seus residentes. Atualmente conta com cerca de 400 famílias. Bibliografia

Aviam, Mordechai (1999), Yodfat – Desenterrando um Segundo Templo e uma Grande Revolta da cidade judaica da Galileia. Kadmoniut. Sociedade de Exploração de Israel. Hadas-Lebel, Mireille, Flávio Josefo: o Judeu de Roma. Imago Editora, Rio de Janeiro 1991. Flavio Josefo, História dos Hebreus, tradução de Vicente Pedroso, 5ª edição. Rio de Janeiro, 1999. Bibliografia na íntegra disponível no site www.morasha.com.br Prof. Reuven Faingold é historiador e educador; PHD em História e História Judaica pela Universidade Hebraica de Jerusalém. é responsável pelos projetos educacionais do “Memorial da Imigração Judaica e do Holocausto” de São Paulo.

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PERSONALIDADE

Shlomo Hillel, o espião que libertou os judeus do Iraque Shlomo Hillel foi um agente do Mossad, o serviço secreto israelense. Nascido em Bagdá, trabalhou como espião no final DA DÉCADA DE 1940 e no início dos anos 1950. EXECUTOU INÚMERAS OPERAÇÕES SECRETAS E, SOB VÁRIOS DISFARCES E SE VALENDO DE SUBORNOS, VISTOS FALSOS E UMA HÁBIL REDE DE CONTRABANDISTAS, CONSEGUIU RESGATAR OS JUDEUS DO IRAQUE. Ao todo, foi responsável pela Aliá de mais de 120 mil judeus iraquianos, salvando uma antiga comunidade dos horrores que se seguiram.

E

ntre 1946-1951, Shlomo Hillel trabalhou como agente do Mossad ajudando judeus a emigrar ilegalmente e, posteriormente, de forma legal, do Iraque para Israel. Em 1951, quando já se tornara uma figura conhecida e seria imprudente continuar no serviço secreto, entrou para a vida pública. Passou quatro décadas servindo a seu país na política e na diplomacia. Viveu uma vida de serviços a Israel e ao Povo Judeu e era o orgulho da comunidade judaica iraquiana. Shlomo Hillel foi o grande responsável por encerrar a diáspora que se iniciara na Babilônia e levar seu povo de volta à sua pátria ancestral.

foram revogados. Eles viviam aterrorizados. Centenas foram presos, muitos foram torturados – às vezes até a morte – e condenados. Uma simples correspondência recebida da então Palestina sob Mandato Britânico era motivo de prisão. Em 1932, havia 135 mil judeus no Iraque. Após 1952 a comunidade diminuiu para apenas seis mil pessoas.

Vida de Shlomo Hillel Nascido em 9 de abril de 1923, em Bagdá, ele era o caçula dos 11 filhos de Aharon e Hanini Hillel – sete homens e quatro mulheres. Seu pai administrava um negócio de importação e exportação, principalmente de chá e roupas. Na época em que Shlomo nasceu, seus irmãos já haviam começado a viajar para o exterior – Índia, Inglaterra, Japão – ajudando nos negócios do pai, que permanecia baseado em Bagdá.

Pano de Fundo Após a independência do Estado de Israel, em 1948, e sua subsequente vitória, em 1949, sobre os exércitos árabes entre os quais o iraquiano, o antissemitismo e a violência contra os judeus explodiram no país. Em 1947, o governo do Iraque tornou ilegal a emigração de seus cidadãos judeus para Israel e, após a independência do Estado Judeu, declarou oficialmente que a opção sionista constituía uma ofensa capital. Após serem impostas aos judeus do Iraque severas medidas, seus passaportes

A maré começa a virar em 1932, com a independência do Iraque, e a vida muda drasticamente para os judeus do país. Essa situação fez com que o irmão de Shlomo, Eliyahu, fosse o primeiro de sua família a fazer aliá. 66


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SHLOMO HILLEL, AOS 95 ANOS. NAS FOTOS, SUA FALECIDA ESPOSA, TEMIMA ROSNER

Em 1933, soldados iraquianos massacraram cerca de 500 cristãos assírios perto da cidade de Mossul. Da janela de sua casa, Shlomo e seu pai viram os iraquianos marcharem triunfalmente por Bagdá. “Se isso é o que fazem aos cristãos, o que farão conosco?” – essa frase do pai não lhe saiu mais da cabeça. Em 1934, Shlomo Hillel fez aliá para Israel. Morou temporariamente com seus irmãos, até a chegada dos pais, em 1935. Suas irmãs casadas vieram mais tarde, com seus familiares. Shlomo cursou Ciências Políticas, Economia e Administração Pública na Universidade Hebraica de Jerusalém, antes de se tornar cofundador do Kibutz Maagan Michael, no norte de Israel. Em 1952, casou-se com Temima Rosner, refugiada judia de Viena.

ao seu kibutz, mas logo entrou para o Mossad. Seu maior desejo era envolver-se no trabalho da imigração de judeus a Israel. Dentro do Mossad, ele era conhecido como Shammai, em uma alusão aos nomes de Hillel e Shammai, dois dos maiores Sábios em toda a história judaica. As Escolas que fundaram – Beit Hillel e Beit Shammai – dedicaram-se a debater e elucidar as Leis da Torá. SHLOMO HIlLEL É O MAIS JOVEM DA FOTO. SUA MÃE E SEUS IRMÃOS, EM BAGDÁ, 1920

O casal teve um filho, Ari, e uma filha, Hagar.

no Mossad Shlomo juntou-se à Haganá e começou a trabalhar em uma fábrica subterrânea de munições associada 67

Em 1946, com a iminência da proclamação de um Estado Judeu, Shlomo Hillel, com 23 anos e seu passaporte iraquiano no bolso, embarcou em sua primeira missão no Iraque. Ele se locomovia pelo país usando vários pseudônimos e identidades. Disfarçado de árabe, foi enviado a Bagdá para preparar as bases para a emigração dos judeus iraquianos para Israel – ensinandoJUNHO 2022


PERSONALIDADE

lugar de onde decolar, próximo de Bagdá. O nome do piloto era Leo Wessenberg. O copiloto se fazia conhecer apenas pelo nome de Mike. Assim, o plano arquitetado por Hillel ficou conhecido como “Operação Michaelberg”.

lhes o hebraico moderno – o que já era ilegal no país – e organizando o movimento sionista clandestino, cujos membros seriam cruciais nas futuras operações de resgate. Durante sua primeira estada em Bagdá a serviço do Mossad, Hillel tentou diversos planos para levar judeus para a Palestina sob Mandato Britânico. Pequenos grupos foram contrabandeados por caminhoneiros pelo deserto. Testaram-se diversas rotas e planos, muitos dos quais fracassaram antes mesmo de começar. Sua operação de contrabando de alguns judeus a cada vez foi desafiadora, ineficiente e até mesmo trágica. Muitos judeus iraquianos tentaram a sorte por conta própria, usando contatos, passaportes comprados e dinheiro para conseguir chegar à Terra Prometida. Alguns chegaram mesmo a fazer a viagem a pé. Sua primeira estada no Iraque durou um ano. Voltou frustrado a Israel, mas logo se sentiu inquieto. Ele via navios cheios de judeus chegando da Europa – um deles transportava sua futura esposa, Temima – e almejava que os judeus iraquianos tivessem a mesma oportunidade. Hillel era uma voz constante dentro do Mossad, demandando maiores esforços e recursos para ajudar os judeus na terra onde nascera, o Iraque.

Shlomo então voou para o Iraque disfarçado de tripulante, com os dois pilotos americanos e seu passaporte iraquiano. Não tinham nenhum plano em mente – apenas a importante missão de contrabandear 50 judeus para fora do país. SHLOMO HIlLEL COM SUA ESPOSA E FILHOS

dispostos a pagar muito dinheiro para contrabandear judeus para a Palestina”. Os pilotos, que não eram judeus e estavam em busca de aventura e dinheiro, concordaram em fazê-lo. Em agosto de 1947, o Mossad abordou Shlomo Hillel com o plano de regatar judeus iraquianos por transporte aéreo, e o apresentou aos dois pilotos americanos que já estavam instalados num quarto de hotel, com o mapa do Oriente Médio estendido no chão. Estudavam um

A operação enfrentava desafios de ambos os lados: eles precisavam contrabandear judeus para fora do Iraque – judeus que, por decreto governamental, tinham tido seus passaportes revogados. Tinham, também, que passar pelos britânicos, que barravam a entrada de judeus na Palestina sob Mandato Britânico. Inicialmente, pensaram em decolar cladestinamente de Bacuba, em um campo de aterrissagem abandonado, a uns 40 km de Bagdá. Mas por se tratar de uma cidade pequena, a aterrisagem de um avião causaria muita sensação. Isso os fez desistir da ideia.

Operação Michaelberg Após a 2a Guerra Mundial, alguns pilotos viram uma oportunidade de ganhar dinheiro no cenário do pós-guerra, contrabandeando ouro, cargas e pessoas. O Mossad fez contato com dois pilotos americanos que serviram na guerra e possuíam um avião de carga C-46. Alguém nos Estados Unidos lhes dissera: “Há alguns malucos que estão

OPERAÇÃO MICHAELBERG, PRIMEIRO AVIÃO trazendo IMIGRANTES VINDOS DO IRAQUE

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Partindo da premissa de que uma operação realizada bem debaixo do nariz do inimigo muitas vezes constitui um risco menor do que qualquer outra que procure desviar sua atenção, Shlomo Hillel decide que a decolagem com os judeus contrabandeados seria mesmo do aeroporto de Bagdá. Ao pousar nessa cidade, ele percebeu que, no processo de decolagem, os guardas iraquianos verificavam o avião e, após a inspeção, os aviões taxiavam até o final da pista, onde esperavam cinco minutos antes de decolar para aquecer seus motores. O final da pista ficava a cerca de 1 ½ km de distância do prédio do aeroporto. Havia uma cerca em volta da pista, mas não havia prédios, nem polícia, nem ninguém por perto. Se os judeus se escondessem na beira da pista, poderiam usar aquela breve janela de oportunidade para subir a bordo, em meio ao barulho ensurdecedor dos motores e às fortíssimas luzes da frente do avião, e as autoridades iraquianas nunca descobririam o que se passara. Para isso, a operação precisava ser planejada e sincronizada com perfeição. Hillel e os líderes do movimento sionista estudaram o aeroporto e planejaram como proceder. Os judeus não poderiam levar malas ou pacotes – precisavam estar com as mãos livres para subir no avião com rapidez. Podiam vestir quantas roupas quisessem, uma em cima da outra, mas seria somente isso. O Mossad havia combinado que os pilotos seriam pagos na chegada à Palestina sob Mandato Britânico. Mas, em Bagdá, um deles repentinamente mudou de ideia e exigiu o dinheiro antes de

pousaram cedo e sem surpresas na Palestina sob Mandato Britânico. Ao pousarem em uma pista improvisada, um agente do Mossad entregou aos pilotos um saco com o equivalente a cinco mil libras em moedas de ouro e Hillel recuperou seu cheque falso.

Shlomo Hillel, Bagdá, 1947

partirem. Naquela manhã, Shlomo Hillel havia mexido nos pertences dos pilotos e viu que o piloto tinha uma conta no Chemical Bank de Nova York. Mentindo, disse que tinha uma conta no mesmo banco e fingiu procurar, em vão, seus cheques. Usando um cheque de Wessenberg, colocou um número de conta falsa e preencheu o cheque, resolvendo assim o impasse. O plano correu perfeitamente. Eles decolaram as 3:30h da manhã e

Abade Glasberg. Lyon, França, 1940

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Shlomo Hillel, cuja experiência em aviação se resumia a ter sido passageiro em dois voos comerciais, acabara de comandar a primeira operação de resgate por via aérea realizada pelo Mossad. A Operação Michaelberg ocorreu mais uma vez, sem a presença do Hillel, e outros 50 judeus iraquianos foram levados a Israel antes da eclosão da Guerra da Independência.

Shlomo Hillel e o Abade Glasberg Após o início dessa guerra, piora a situação dos judeus no Iraque. Em meio à guerra, em junho de 1948, Hillel partiu novamente com destino ao Iraque, fazendo escala em Paris. Permaneceu dois meses em Paris, frequentando o escritório do Mossad e tentando elaborar um novo plano para retirar mais judeus do Iraque. Esse país é rodeado de países muçulmanos: Síria, Jordânia, Arábia Saudita, Kuwait, Turquia e Irã. Os dois últimos são países mulçumanos, mas não estados árabes. A geografia da fronteira com a Turquia não é favorável, já a fronteira com o Irã é mais convidativa e havia passagens conhecidas por contrabandistas. Além do mais, no Irã não se perseguia judeus. Na época, eles viviam bem, podiam falar hebraico abertamente na rua e ser sionista não era uma atividade ilegal. JUNHO 2022


PERSONALIDADE

amigos da Resistência passaram a ocupar importantes cargos públicos. O abade Glasberg garantiria pessoalmente às autoridades francesas que nenhum dos refugiados ficaria na França.

AVIÃO REPLETO DE JUDEUS IRAQUIANOS AO CHEGAR AO ENTÃO AEROPORTO DE LOD, TEL AVIV, 1951

Em Paris, Shlomo Hillel se encontrou no escritório do Mossad com um abade chamado Alexander Glasberg. Abade Glasberg nasceu em 1902, em uma família judia, na Ucrânia, e frequentou escola judaica. Em certo momento de sua vida, converteu-se ao Catolicismo e, em 1932, emigrou para a França. Durante a 2ª Guerra Mundial, o abade salvou cerca de dois mil judeus, em sua maioria crianças, escondendo-os em mosteiros ou em casa de famílias cristãs até poder transportá-las a algum lugar seguro. Chegou a salvar 108 crianças judias em Venissieux, que estavam prestes a serem deportadas com os pais para um campo de extermínio. O abade foi condenado à morte in absentia, passou para a clandestinidade e continuou a trabalhar para a Resistência Francesa até o término da guerra. O sacerdote, cuja língua nativa era o iídiche, havia sido condecorado pelo governo francês e era ardente apoiador da causa sionista e frequentador assíduo do escritório do Mossad. Já estava envolvido em levar judeus europeus para Israel e concordou em ajudar Shlomo Hillel a tirá-los do Iraque.

Os dois decidiram que se os judeus conseguissem atravessar a fronteira porosa com o Irã – e se Hillel pudesse subornar a polícia iraniana para “olhar para o outro lado” – então o abade Glasberg, que era amigo íntimo do Ministro do Interior francês, poderia providenciar vistos para que eles pudessem emigrar para Israel via França. As autoridades iranianas não permitiriam que os judeus voassem direto a Israel, já que o Irã ainda não havia reconhecido o Estado de Israel. Com o término da 2a Guerra Mundial, vários de seus

JUDEUS IRAQUIANOS REFUGIADOS, 1951

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Em 31 de agosto de 1948, Hillel foi para o Irã. Dessa vez, ele se passou por um cidadão francês – Maurice Perez, representante da Gasoline e da Sitex, duas empresas francesas – portando um passaporte franco-marroquino. O abade Glasberg embarcou para o Irã logo em seguida. Zion Ezri, judeu iraniano sionista, entrou em contato com a polícia em Teerã e obteve seu comprometimento de que, se os judeus entrassem no Irã pela fronteira com o Iraque, eles não seriam mandados de volta e teriam permissão para deixar o país – desde que possuíssem um visto. Passariam pelo Irã somente em trânsito. Os refugiados se declarariam fugitivos da perseguição no Iraque e pagariam uma multa às autoridades iranianas. Ao exibirem vistos de entrada para outro país, as autoridades lhes forneceriam um laissez-passer para poderem sair do Irã. Como prometido, o abade Glasberg obteve os vistos. No início, os refugiados foram mantidos em hotéis. Mas logo seu número aumentou e tiveram de acampar em um antigo cemitério judaico que foi equipado com calefação, fogões para cozinhar, local onde dormir e banheiros. Era necessário alimentos, roupas, lençóis, cobertores e assistência médica. Também era preciso ocupar as pessoas, então foram organizados grupos de estudos, atividades desportivas, entre


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outras. As condições eram ruins, o inverno era brutal – podendo chegar a -20 oC – e a burocracia iraniana demorava a emitir os documentos necessários. Enquanto isso, diversas rotas eram usadas para cruzar clandestinamente a fronteira entre o Iraque e o Irã e muitos judeus foram presos, torturados ou “desapareceram” no trajeto. Era fundamental ter dinheiro para o alojamento das pessoas até chegarem a Teerã, pagar a viagem e pagar subornos em diversas paradas nessa jornada. A princípio, depois de obter os documentos, os refugiados voavam para a Europa, de onde seguiam para Israel. Quando os grupos começaram a chegar às dezenas e, depois, centenas de pessoas, o ideal era que os refugiados nem tocassem em solo francês, indo diretamente para Israel. Os primeiros voos foram feitos pela Iranian Airways. Seus aviões frequentemente apresentavam problemas técnicos e costumavam chegar ao destino com somente um motor funcionando, mas era a opção disponível. Tinham também que dissimular o destino, dizer que o avião estava vazio e se dirigia a Beirute ou Cairo, enquanto seguia a rota para Israel. O piloto e sua tripulação, pessoas admiráveis e corajosas, assumiram grandes riscos. Grupos posteriores voaram de Teerã diretamente para Israel e de forma mais segura, graças a uma companhia aérea norte-americana, a Trans-Ocean, encarregada pelo Mossad de trazer pessoas de Bombaim, hoje Mumbai, na Índia. 1

O Irã reconheceria o Estado de Israel de facto, mas não oficialmente, em 6 de março de 1950. Relações diplomáticas foram rompidas em fevereiro de 1979, após a Revolução Islâmica do Irã.

Foi feito um acordo com a Iranian Airways para atuar como agentes da Trans-Ocean e cuidar dos serviços em terra. A Iranian Airways receberia uma taxa adicional de 25 dólares por pessoa para cobrir as despesas de documentação. Em pouco mais de um ano, cerca de 12 mil judeus iraquianos fizeram essa viagem. Outros tantos também aproveitaram a oportunidade para partir para Israel. Gholam Ibtihaj, gerente da

Sob forte pressão do Iraque, a política iraniana a respeito dos refugiados iraquianos judeus sofreu uma série de reviravoltas. Em um dos relatórios de Hillel, por volta de julho de 1949, ele define o momento como “um fenômeno muito alarmante, ou seja, que nossos amigos iranianos começam a se cansar de nos ajudar”. Foi necessário usar a mídia internacional, a pressão dos Estados Unidos e a pressão interna no Irã para reverter várias decisões que deportariam os refugiados para

JÁ EM LOD, IMIGRANTES DO IRAQUE SOBEM AOS CAMINHÕES QUE OS LEVARIAM AOS ACAMPAMENTOS DE REFUGIADOS, 1951

Iranian Airways, telefonou para o primeiro-ministro iraniano e para o chefe de polícia, que era seu cunhado, e propôs que permitissem que os judeus iranianos também pudessem partir para Israel. A condição era que viajassem com a empresa iraniana ou por meio de um acordo com a mesma. O governo deu o sinal verde – podiam sair na condição que renunciassem à cidadania iraniana. Assinaram um acordo formal e surpreendente, já que o Irã era um país mulçumano que ainda não havia reconhecido o Estado de Israel1. De 1949 a 1951, emigraram para Israel 24.805 judeus iranianos. 71

o Iraque e, certamente, para seu trágico fim. Contudo, estava claro que o crescente fluxo de refugiados já desagradava o governo iraniano. Exausto, no dia 30 de setembro de 1949, Shlomo Hillel, ainda conhecido como Maurice Perez, retornou a Israel determinado em se aposentar do Mossad e deixar outro agente em seu lugar.

Operação Ezra e Nehemias A perseguição contra os judeus no Iraque se intensificou em 1949, quando o primeiro-ministro Nuri as-Sa’id, assumiu o poder. JUNHO 2022


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A polícia começou a prender mais pessoas aleatoriamente. A polícia secreta usava de toda a barbárie – prendiam os judeus com correntes e os chicoteavam, mergulhavam suas mãos e pés em água fervente, queimavam seu corpo com ferro em brasa, entre outros métodos de tortura. Alguns dos que sobreviveram nunca mais foram os mesmos e muitos morreram em meio às torturas. As prisões de Bagdá estavam lotadas de judeus, chegando ao ponto de terem que transferir os presos para campos de concentração. A polícia chegou até a cercar uma sinagoga e prender pessoas em pleno Yom Kipur. A situação era desesperadora. Em 1949, os delegados de Israel nas Nações Unidas começaram a expor a perseguição aos judeus no Iraque. O mundo estava começando a perceber o êxodo dos judeus do Iraque: em fevereiro de 1950, o jornal The New York Times enviou um repórter à fronteira Irã-Iraque para cobrir a situação. Com a memória do Holocausto ainda fresca, levantou-se um pequeno clamor internacional. A situação começou a melhorar com Tawfiq Suweidi. Suweidi foi primeiro-ministro do Iraque em três momentos diferentes da história do país – inclusive entre 5 de fevereiro de 1950 e 15 de setembro de 1950. Poucos sabiam, mas Suweidi havia estudado na escola judaica da Alliance Israélite Universelle, em Bagdá. À época, muitos mulçumanos ricos mandavam seus filhos a essa escola, considerada a melhor do Iraque.

constrangimento para o governo iraquiano; as autoridades iraquianas não mais desejavam monitorar as atividades sionistas e a fuga pelas fronteiras iraquianas – que lhes custava muito dinheiro; o desejo do governo iraquiano de se apropriar de propriedades judaicas; e a necessidade que o Iraque tinha de melhorar sua imagem e reputação internacional.

shlomo hillel, 1970

definitivamente e de forma legal desde que renunciassem à sua cidadania. Dois dias depois, a lei foi promulgada. O governo iraquiano chegara à conclusão de que era melhor permitir que os judeus deixassem o país legalmente. As razões por trás dessa permissão não são claras, mas há aparentemente uma combinação de motivos: a situação dos judeus no Iraque se tornara motivo de IMIGRaNTES DO IRAQUE CHEGAM A ISRAEL

Shlomo Hillel viajou para Bagdá mais uma vez, em 27 de abril de 1950, desta vez como um cidadão britânico de nome Richard Armstrong Jr., representante de uma empresa americana de fretamento chamada Near East Air Transport. Acompanhava-o Ronnie Barnett, uma das figuras mais importantes da empresa. De propriedade de um americano pró-Israel, essa empresa era real e tinha fortes laços com o Mossad. Hillel, ou Armstrong, viajou a Bagdá para fazer os preparativos para a operação e negociar os termos e a logística com membros do governo iraquiano. Hillel e Barnett fizeram um acordo com Abdul Rahman Raouf, diretor da agência de viagens Iraq Tours, para que a Near East Air Transport se encarregasse do transporte dos judeus iraquianos. Barnett havia conhecido Raouf quando administrava um voo de peregrinos a Meca. O primeiro-ministro Suweidi fazia parte da direção da Iraq Tours e era amigo pessoal de Raouf. Cinco dias após pousarem em Bagdá, Raouf levou Hillel e Barnett para um jantar na casa do primeiro-ministro Suweidi para fecharem o negócio. A Near East Air Transport propunha cobrar $48 dólares por passageiro adulto.

Em Purim, no dia 2 de março de 1950, quando os judeus já tinham perdido a esperança e a situação era insustentável, foi apresentado o projeto de lei permitindo que os judeus deixassem o Iraque

O primeiro-ministro convidou o líder da comunidade judaica, 72


REVISTA MORASHÁ i 115

Ezekiel Shemtob, para participar da reunião. Por coincidência, ele era primo da mãe de Hillel. Muito rico e educado, ele tinha relações com vários membros importantes do governo iraquiano – inclusive com Tawfiq Suweidi. Hillel temeu ser reconhecido pelo primo a quem não via desde criança. Foi uma das inúmeras vezes em que sua identidade quase foi descoberta... Shemtob concordou com que a comunidade judaica recolhesse o dinheiro para cada passageiro e cobrisse os custos de quem não tivesse condições de pagar, transferindo o dinheiro para a Iraq Tours. A primeira viagem ocorreu no dia 19 de maio de 1950. Junto com o primeiro grupo de refugiados estava Shlomo Hillel. A polícia secreta havia recebido uma denúncia de que o sr. Armstrong (disfarce de Shlomo Hillel) era judeu. Para não se arriscar a ser preso, ele partiu para nunca mais pisar no Iraque. Tendo terminado sua missão nesse país, Shlomo retornou a seu kibutz, em Israel, casou-se com Temima

SHLOMO HILLEL INSPECIONA AS TROPAS NA QUALIDADE DE MINISTRO DA POLÍCIA DE ISRAEL, 1970

e iniciou uma carreira política e diplomática. Os judeus foram levados em cerca de 950 voos com destino a Israel no que ficou conhecido como a Operação Ezra e Nehemias – em homenagem aos dois líderes e profetas que conduziram os judeus do exílio da Babilônia de volta para Jerusalém, por volta de 348 AEC. No início, os aviões voavam para Chipre, pousavam por curto período de tempo e depois decolavam para Israel. Em 1951, era enorme o número de judeus ansiosos por partir, e as autoridades iraquianas permitiam voos direto a Lod, Israel.

O governo de Tawfiq Suweidi caiu em setembro de 1950 e Nuri as-Sa’id, voltou a ser primeiro-ministro. Isso trouxe grandes preocupações. Em 23 de novembro de 1950, 80 mil judeus aguardavam o transporte que os levaria do Iraque. Todos os que esperavam para fazer aliá já haviam renunciado à sua cidadania. A lei de imigração iria expirar em 9 de março de 1951, mas, em lugar de bloquear a saída dos judeus, Nuri aprovou uma lei em 10 de março congelando os bens de todos aqueles que haviam renunciado à sua cidadania – um total de 103.866 pessoas, até então.

1. HILLEL, PRESIDENTE DA KNESSET, NA ABERTURA DE SUA PRIMEIRA SESSÃO NO POSTO, EM 13/09/1984 2. COM ITZHAK RABIN, EM 1989 3. COMO MINISTRO DA POLÍCIA, HILLEL CONFIRMA SHAUL ROSOLIO EM SUA NOVA PATENTE

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O congelamento incluía bens de todo tipo, inclusive estoques comerciais e contas bancárias. Portanto, quem não havia vendido seus bens e mandado o dinheiro para fora do país viu-se, instantaneamente, sem dinheiro algum. Ao mesmo tempo, as prisões e torturas continuavam. A polícia secreta do Iraque finalmente desmantelou o movimento sionista clandestino que tivera um papel fundamental em toda a operação. Os líderes que conseguiram escapar à prisão saíram do Iraque o mais rápido possível. Os outros sofreram brutais consequências. Os últimos judeus que optaram por sair chegaram em Israel em fevereiro de 1952. A partir de então, o governo iraquiano fechou suas fronteiras. Até o êxodo dos judeus soviéticos, na década de 1970, esse foi maior contingente aéreo de imigrantes na história de Israel.

Shlomo Hillel, AOS 95 ANOS, EM SUA CASA em Ra’anana, Israel, 14/06/2018

Vindo de uma comunidade rica e próspera, a maioria dos judeus iraquianos chegou a Israel praticamente sem um centavo e foram alojados em Ma’abarot – acampamentos de transição para imigrantes e refugiados – aglomerados em cabanas ou barracas. Os judeus iraquianos ficaram muito frustrados. A maioria estava desempregada e achava que Israel não fazia o suficiente para ajudálos. Shlomo Hillel, já então um parlamentar, membro do Knesset, tornou-se a voz dos imigrantes iraquianos. E os defendeu com empenho, conseguindo melhores condições e oportunidades de emprego para eles.

Durante a Operação Ezra e Nehemias, 104 mil judeus foram transportados de avião para Israel, constituindo quase toda a comunidade judaica iraquiana. Esse movimento de emigração em massa chocou o governo iraquiano, que não esperava que o número de emigrantes ultrapassasse alguns milhares. Documentos mostram que Tawfiq Suweidi estimava que sete a dez mil judeus optariam por partir.

O Parlamento Israelense

Mas os números esmagadores também pegaram Israel de surpresa. O país, recém-fundado, sem casas para todos, com acampamentos de refugiados cheios e que vivia com racionamento de alimentos, não estava preparado para absorver tantos imigrantes, de uma só vez.

Em 1959, saiu da política e atuou como embaixador em vários países africanos, ajudando a estabelecer laços entre Israel e a África, e como membro da Delegação Israelense nas Nações Unidas. Ele retornou a Israel em 1967, de volta à política, onde permaneceu até 1992.

Em 1951, Hillel entrou na política e, em 1952, assumiu o seu primeiro mandato no Knesset. Viveu uma vida de serviço público.

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Foi vice-diretor do Ministério das Relações Exteriores, membro e presidente do Knesset, serviu como ministro nos governos de Golda Meir e Yitzhak Rabin e ocupou várias pastas durante sua carreira política. Shlomo Hillel faleceu em 8 de fevereiro de 2021, em sua casa, em Ra’anana, Israel. Ele tinha 97 anos. Sua família não revelou a causa da morte. Além de seu filho, Ari, ele deixa três netas. A comunidade judaica no Iraque existiu por cerca de 2.500 anos. A Babilônia foi o lugar de nascimento de Avraham, o primeiro patriarca do Povo Judeu. Hoje, no ano de 2022, apenas cinco judeus permanecem no Iraque. No entanto, seus descendentes vivem, sãos e salvos, graças à coragem e aos esforços incansáveis ​​de Shlomo Hillel.

BIBLIOGRAFIA

Hillel, Shlomo, Operação Babilônia, Editora Contexto, São Paulo. https://www.jpost.com/israel-news/culture/ shlomo-hillel-who-spearheaded-mass-aliyaof-iraqi-jews-dies-at-97-659728 Iraq’s Last Jews – Iraq’s Last Jews: Stories of Daily Life, Upheaval, and Escape from Modern Babylon (Palgrave Studies in Oral History) – PDF Free Download (epdf.pub)


REVISTA Morashá i 93

Por quase 20 anos a revista Morashá foi minha única ligação com nosso povo, pois morava no interior do RS onde a comunidade judaica era formada por mim e minhas duas meninas. Desde maio estamos em Israel vivendo com nosso povo. Agradeço por todos esses anos de companheirismo, informação, sabedoria e beleza e parabenizo por anos de qualidade e dedicação. A revista Morashá é mais do que uma revista, é parte do tesouro cultural de nosso povo na diáspora. Monika Papescu Israel

Na Edição 114, à página 75, há uma carta de Ann Helen Wainer referente ao artigo “História Secreta do Povo Holandês que Salvou Judeus”. A presente é apenas para dizer que eu também fui salvo graças a essa organização (principalmente da Igreja Calvinista) entre os anos 1941-1945!! Bernard Kats Porto Alegre - RS

A revista Morashá é um manancial que edifica e fortalece o meu conhecimento. Sou solidário e amo o povo de Israel, nação eleita de D´us que tem resistido, há milhares de anos, ao ódio dos antissemitas. José Carlos Moura Marília - SP

Gostaria de parabenizá-los pelas belíssimas ilustrações de suas matérias. Não sei quem é o pesquisador que acha tantas iluminuras apropriadas e objetos preciosos, mas suas reportagens tornam-se, além de interessantes, uma fonte de beleza. Marie Constance Fischbach Por e-mail

Há anos recebo a revista Morashá, que coleciono na minha biblioteca, pois sendo de qualidade espetacular e de conteúdo muito instrutivo é importante para frequentes pesquisas. Leon Benzaquen Rio de Janeiro - RJ

Morashá, sempre ótima fonte de leitura e informação. Rejane Keniger Tetelbom Porto Alegre – RS

Sou descendente de romenos vindos da Bessarábia. Minha mãe contava muitas coisas da região; fiquei impressionada com seu relato, muito bate com o que ela contava. Regina Aparecida Joiozo Sarcinella (Sorochin por mãe) São Paulo - SP

Para dizer o mínimo, dois artigos imperdíveis: sobre o casal Rosenberg e sobre Chagal e Segall. Parabéns aos autores pelo conteúdo profundo. Maggy Morabia São Paulo - SP

Todo ano recebemos a revista Morashá, que apreciamos muito. Ainda não recebemos o número dedicado a Pessach e gostaríamos de continuar recebendo a Morashá, até porque o número atual é bem especial, contêm preciosas informações, artigos e comentários sobre o Pessach... Joyce e Octavio Mindlin São Paulo - SP

Recebi a revista, muito interessante! Parabéns pela iniciativa, fortalecendo ainda mais nossa comunidade. Leandro Romesz São Paulo - SP

A revista Morashá tem sido não somente uma revista, mas um instrumento de pesquisa e estudo para compreendermos sobre a cultura, os costume e fé do povo de Israel João Antonio dos Santos CURITIBA - PR

Sou muito fã da revista Morashá e a recebo há vários anos. A edição está lindíssima e foi muitíssimo útil para o Seder de Pessach. Alexandre Fegyveres São Paulo - SP

Gostaria de agradecer o recebimento da revista Morashá, com o suplemento de Pessach. Parabéns, Kol Hakavod, está excelente, primoroso. Miriam Ades POR E-MAIL

Agradecemos a doação da Morashá nº 114, Março 2022. Tal título enriquece o acervo de nossas Bibliotecas e a pesquisa/consulta de nossos leitores. Centro Cultural São Paulo Supervisão Bibliotecas São Paulo - SP

A revista Morashá é lida pela família toda, há anos! Isaac Adissi RIO DE JANEIRO - RJ

Aprecio muito a revista Morashá. Uso como consulta nas minhas aulas de preparação para Bat/ Bar Mitzvá.

Manifesto elogios à Morashá pela qualidade da revista, importância na transmissão de informações sobre história judaica, ética e prática religiosa e adicionalmente pela beleza na apresentação da revista. Yehuda Waisberg Nova Lima – MG

Marcia Rovinsck FLORIANÓPOLIS - SC

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