Revista Morashá - ed 112

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ANO XXVIII - Setembro 2021 - Nº 112 RIMONIM - ENFEITES DE TORÁ, EM PRATA PARCIALMENTE DOURADA. PIETER VAN HOVEN, AMSTERDÃ, 1705

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Carta ao leitor Rosh Hashaná – o Ano Novo Judaico – comemora o dia em que D’us criou o primeiro ser humano – Adão, de cujo corpo Ele criou Eva. Muitas pessoas acreditam que Rosh Hashaná marque o primeiro dia da Criação do mundo. Essa ideia é errônea. A liturgia de Rosh Hashaná afirma que esta festa marca a criação do universo, pois a existência do mundo só se tornou significativa quando o homem foi criado – e isso ocorreu no sexto dia da Criação. O ser humano é o pináculo da Criação, a ponte entre os Céus e a Terra. Como ensina a Torá, o corpo do homem se origina da terra – o nome Adam (Adão) advém da palavra hebraica Adamá (solo) –, mas nossa alma é uma centelha Divina – eterna e imortal. O homem se encontra no centro da Criação porque compartilha com seu Criador algo que nenhuma outra criatura possui – nem mesmo os anjos. Este algo é o livre arbítrio. Essa é a explicação da frase em Gênesis,“D’us criou o homem à Sua imagem”. Apenas ao ser humano – uma mescla do físico e do espiritual – foi dado o poder da escolha de como viver. A combinação de intelecto superior, poderes sofisticados de comunicação e livre arbítrio conferem ao ser humano um poder extraordinário. Mas, ter grande poder implica em grande responsabilidade. E, a cada ano, em Rosh Hashaná, todos somos convocados pela Corte Celestial para prestar contas de como utilizamos o grande poder que D’us nos concedeu. Uma das metáforas que nossos Sábios empregam para descrever o julgamento celestial que ocorre em Rosh Hashaná é a de uma balança: as boas ações de uma pessoa são pesadas de um lado, as más ações do outro, e o veredicto dependerá de qual lado for o mais pesado. Não se trata, portanto, apenas da

quantidade de atos – bons ou ruins –, mas do “peso” de cada um deles. Maimônides nos ensina que uma única boa ação de uma única pessoa pode inclinar a balança do Julgamento Divino e trazer salvação para toda a humanidade. Portanto, nunca devemos subestimar o poder de uma boa ação feita de coração. Ao contrário do que a maioria das pessoas pensam, o destino do mundo não se encontra nas mãos daqueles que movem montanhas ou lideram revoluções, e sim, nos preciosos e muitas vezes anônimos atos de bondade realizados por seres humanos em seu dia a dia. Imaginemos que o mundo seja uma taça de vinho; cada vez que um ser humano pratica uma boa ação, uma nova gota de vinho cai nesse copo. A salvação virá ao mundo no dia em que essa taça transbordar, de tão cheia. Quem despejará a gota final que fará o vinho do copo transbordar? Poderá ser qualquer pessoa, em qualquer lugar, a qualquer hora. E, portanto, como ensinava o Lubavitcher Rebe: sempre que um ser humano não se sentir motivado a realizar uma boa ação, ele deve se lembrar de que esta pode ser a gota final que fará transbordar o vinho do cálice, trazendo, assim, a salvação para o mundo inteiro. E Rosh Hashaná nos lembra que o poder de mudar o mundo se encontra nas mãos de cada um de nós. Que sejamos inscritos no Livro da Vida e das Boas Ações!

Shaná Tová Umetucá!


ÍNDICE

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52

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03 carta ao leitor

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06 NOSSAS GRANDES FESTAS

HISTÓRIA Os imbatíveis comandos judeus POR ZEVI GHIVELDER

do Judaísmo

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Rosh Hashaná e a essência

10 Algumas leis relacionadas a Yom Kipur 12 A Neilá e o poema litúrgico

destaque Itzhak Herzog, novo Presidente de Israel POR jaime spitzcovsky

El Norá Alilá

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20 O Significado de Simchat Torá

de sucesso

israel

Saúde em Israel, exemplo de gestão

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comunidades A Diáspora babilônica na História Judaica

arqueologia Descoberta arqueológica remete ao Tanach

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nossos sábios Rabino Hirsch, o pai do Judaísmo ortodoxo moderno

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por iossef katri

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Antissemitismo StandWithUs: Duas décadas em prol de Israel por andré Lajst

shoá O terrível pogrom de Iasi de junho de 1941

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livro Dicionário dos refugiados do Nazifascismo no Brasil setembro 2021


nossas grandes festas

Rosh Hashaná e a Essência do Judaísmo Muitas pessoas perguntam qual é a essência do Judaísmo. A resposta é que o fundamento do Judaísmo – e, de fato, de qualquer religião – é o princípio de que a existência tem um propósito e o homem E A MULHER tÊm um objetivo na vida. Os seres humanos e o mundo em que habitamos têm significado porque foram criados COM UM propósito MAIOR POR UM SER SUPERIOR a quem chamamos de D’us.

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fazer, ao empregar nosso livre arbítrio, é decidir se exerceremos o papel de protagonistas ou de antagonistas: se seremos uma força do bem ou do mal no mundo. No entanto, a escolha por desempenhar um papel irrelevante, não é uma opção. A humildade, seja genuína ou falsa, não pode ser uma desculpa para o ser humano fugir da missão que D’us lhe incumbiu.

osh Hashaná marca a data em que D’us criou o primeiro ser humano. O Ano Novo Judaico é, portanto, o aniversário da humanidade. A razão pela qual Rosh Hashaná comemora a criação do homem, e não a do mundo, é porque o homem é o centro do universo. Conta-se a história de um herege que desafiou certo pensador com o argumento: “Astronomicamente falando, o que é o homem? Uma partícula infinitesimal no vasto cosmos!” Ao que o pensador respondeu: “Astronomicamente falando, o homem é o astrônomo!”

Está escrito no Pirkei Avot – um livro sagrado de sabedoria e ética judaica: “(Rabi Tarfon) costumava dizer: ‘Não cabe a você completar o trabalho, mas você não é livre para desistir dele’ ” (Avot 2:16). Em outras palavras, é o Mashiach quem vai consertar o mundo – trazê-lo a um estado de perfeição – mas cabe a cada um de nós fazer a sua parte para tornar o mundo melhor.

Todo ser humano tem uma missão a cumprir na vida. Nossas almas não vieram de tão longe a este mundo por razões fúteis. E, assim, nenhum de nós pode escapar de sua missão e responsabilidade pessoal. A Torá ensina que D’us criou apenas um homem para nos ensinar que todo ser humano é um mundo em si. O Talmud afirma que quem salva uma vida, salva o mundo inteiro. Todo ser humano é um microcosmo de todo o universo. Há quase oito bilhões de pessoas habitando este planeta, mas como D’us é Infinito, Ele tem uma quantidade infinita de pontos centrais. Todo ser humano está, portanto, no centro da Criação. Ninguém neste mundo desempenha um papel secundário. A escolha que todos nós podemos

O Judaísmo ensina que a solução para consertar o mundo é viver adequadamente como indivíduo, porque cada um de nós é muito mais poderoso e influente do que imagina. Os seres humanos não enxergam suas fraquezas, mas também raramente conseguem identificar seus pontos fortes. A maioria de nós usa muito pouco do nosso cérebro, não faz o uso máximo de nossos talentos e habilidades e desperdiça muitas horas do dia – todos os dias. Se vivêssemos uma vida mais significativa e focada 6


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adão e eva expulsos do paraíso. óleo sobre tela. marc chagall

e fizéssemos melhor uso do nosso tempo, seríamos capazes de realizar muito mais. E se melhorarmos a nós mesmos, ajudaremos a melhorar o mundo. Pois quando um indivíduo melhora – quando ele vive uma vida proativa e positiva –, ele beneficia não apenas a si mesmo, mas também a sua família e a sua comunidade e, consequentemente, o mundo. Mas para viver adequadamente como indivíduo, o homem precisa viver uma vida imbuída de significado e propósito. Um ensinamento fundamental do Judaísmo é que viver uma vida verdadeiramente significativa quer dizer almejar o ápice do bem e do positivo e não medir esforços para alcançá-los. Se toda pessoa almejasse nada menos do que isso, ela transformaria completamente sua vida, e o bem que alcançaria se manifestaria no mundo.

E o resultado disso é que o mundo não teria todos os problemas terríveis que tem – ou, pelo menos, teria muito menos problemas.

COROA DA TORÁ, BERLIM 1779. JOACHIM HÜBNER, C. 1705-1780

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O Judaísmo ensina que a resposta aos problemas da humanidade é a integridade do indivíduo. Se os indivíduos vivessem com integridade, a sociedade humana seria muito mais justa, pacífica e próspera. As nações que se baseiam nesse princípio – de que cada ser humano é um mundo em si – são saudáveis e​​ bemsucedidas, ao passo que aquelas que menosprezam o valor do indivíduo e valorizam apenas a coletividade, estão condenadas à estagnação e ao colapso. O conceito de responsabilidade individual é um dos principais temas de Rosh Hashaná. Uma das ideias centrais da liturgia do Ano Novo Judaico é o conceito de que, nesse dia, “toda a humanidade passa diante de Ti como membros do rebanho. Assim como o pastor apascenta seu rebanho, fazendo passar ovelhas sob seu cajado, Tu farás passar, contarás, setembro 2021


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calcularás e considerarás a alma de todos os seres vivos”. Essa metáfora - de ovelhas passando individualmente sob o cajado do pastor – transmite a ideia de que, em Rosh Hashaná, D’us examina a vida de cada pessoa individualmente. O Julgamento Celestial que ocorre no Ano Novo Judaico não é coletivo, mas individual. Isso significa que todo ser humano deve assumir a responsabilidade por sua vida. Ele não pode camuflar-se de D’us, tentando esconder-se atrás de sua comunidade ou do mundo em geral. É impossível se esconder de D’us. Pois existe “um Olho que vê, um Ouvido que ouve, e todos os seus atos são registrados em um Livro” (Avot 2:1), e, em Rosh Hashaná, esse Livro é aberto e a Corte Celestial analisa absolutamente tudo o que nele foi registrado, ou seja, todos os atos de todos os seres humanos. As pessoas costumam perguntar: por que Rosh Hashaná – o Dia do Julgamento – precede Yom Kipur – o Dia da Expiação? Não seria preferível que o homem

PORTAS DO hECHAL, A ARCA SAGRADA, NA SCUOLA GRANDE TEDESCA, A SINAGOGA DE VENEZA

fosse perdoado por seus pecados e só então fosse julgado? Uma das respostas a essa pergunta é que seria insensato e improdutivo lidar com problemas específicos antes de abordar os assuntos maiores. Antes de se arrepender por erros e transgressões específicas – que é o que se faz em Yom Kipur – o homem deve repensar sua vida. E mesmo que avalie que tudo esteja indo bem, não seria possível viver uma vida incomparavelmente mais positiva?

Com efeito, como seria nossa vida se abandonássemos os maus hábitos, as decisões imprudentes e precipitadas e os sentimentos negativos – medo, inveja, ressentimento e raiva -, os vícios e hábitos autodestrutivos, a perda de tempo, a preguiça e procrastinação: tudo o que nos desvia do caminho do bem, da nobreza, da produtividade e da felicidade? O que aconteceria se o caminho escolhido por cada ser humano fosse o da sabedoria, da produtividade, da verdade e honestidade, da bondade, generosidade e nobreza, e ele estivesse disposto a fazer todos os sacrifícios necessários para trilhálo? Evidentemente isso requer muita força interior, empenho e coragem. Pois não é fácil assumir total responsabilidade pela própria vida. Mas a decisão consciente de andar na luz todos os dias de nossa vida nos transformaria em seres humanos extraordinários. E se o mundo tivesse mais seres humanos extraordinários, ele se encontraria em um estado muito melhor do que se encontra hoje. Quer percebamos ou não, cada um de nós é muito mais influente do que imagina. Estima-se que, ao longo da vida, toda pessoa entrará em contato e influenciará, em maior ou menor grau, cerca de 1 mil pessoas; e essas pessoas influenciarão outras 1 mil. E, portanto, cada um de nós pode afetar, ao longo de nossa vida, um milhão ou mais de pessoas. Portanto, devemos estar sempre atentos ao que dizemos e como agimos, pois nossas palavras e atos podem influenciar um enorme número de pessoas – muito além do que podemos imaginar. Há um famoso ensinamento no Pirkei Avot que afirma que o homem não deve fazer distinções

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entre os mandamentos de D’us, pois está além do nosso alcance determinar quais deles são mais ou menos importantes (Avot 2:1). O corolário desse ensinamento é que nunca devemos dar pouca importância a qualquer um de nossos atos, pois não conseguimos prever como qualquer um deles afetará o mundo. Um simples ato de bondade pode ter um efeito multiplicador tremendo e beneficiar inúmeras pessoas; por outro lado, uma ação negativa que pode nos parecer sem importância pode ser como uma pequena chama que se torna um grande incêndio e queima uma floresta inteira. A Torá, portanto, nos adverte para estarmos extremamente atentos a cada palavra que sai de nossa boca e a cada ação que realizamos. O ensinamento central do Judaísmo é, portanto, o princípio de que tudo o que fazemos na vida é altamente significativo. A Torá constitui a antítese do niilismo – a crença de que todos os valores não têm base e que a vida não tem sentido. O Judaísmo ensina que mesmo o ato mais mundano realizado em um dia qualquer é profundamente significativo e pode ter efeitos de longo alcance que estão muito além da nossa imaginação. Portanto, no Judaísmo, não existe o conceito de mais ou menos importante. Tudo é importante e tudo é significativo: uma oração, uma bênção, uma moeda dada para Tsedacá, uma única Mitzvá, uma aula de Torá, um sorriso, uma boa palavra. Por outro lado, como nos conta o Talmud, a humilhação pública de um homem foi o que levou à destruição de Jerusalém, à queda do Templo Sagrado e ao exílio de nosso povo, que resultou em tanto sofrimento para inúmeros judeus, ao longo das gerações.

O SHOFAR, MARC CHAGALL

Os dois dias de Rosh Hashaná são os mais auspiciosos do ano para se fazer uma autoanálise honesta. São dias para se tomar boas resoluções – não juramentos, que a Torá nos desaconselha a fazer -, mas decisões positivas sobre o futuro. Em Rosh Hashaná, D’us nos conclama a refletir sobre nossa missão no mundo e quão bem a estamos cumprindo.

MANTO DA TORÁ, SÉC. 17, COMUNIDADE JUDAICA DE ROMa

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Rosh Hashaná é uma oportunidade para se conceber grandes sonhos e visões – compartilhá-los com D’us – e comprometer-nos a realizá-los. O Todo Poderoso estará mais inclinado a nos conceder mais um ano de vida e de bênçãos se compartilharmos com Ele uma visão gloriosa para o nosso futuro. Rosh Hashaná, e não Yom Kipur, marca o início dos Dez Dias de Teshuvá porque o retorno ao caminho correto exige que vejamos nosso mundo e nossa vida como um todo, antes de lidar com problemas específicos. É inútil remover obstáculos de um caminho que nem se deveria estar trilhando. Antes de mais nada, precisamos verificar se estamos no caminho certo. Os dois dias de Rosh Hashaná constituem a oportunidade mais auspiciosa do ano para se começar uma vida nova. O Ano Novo Judaico dá a todo ser humano a oportunidade de virar uma nova página em sua vida e direcioná-la para poder alcançar o maior bem possível de ser alcançado pelo homem. Visto que cada ser humano é um mundo em si, ao retificar sua vida, ele assim retifica o mundo todo. setembro 2021


NOSSAS GRANDES FESTAS

Algumas leis relacionadas a Yom Kipur este ano, Yom Kipur se inicia na quarta-feira, 15 de setembro, e termina na noite de quinta-feira, 16 de setembro.

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ostuma-se fazer a cerimônia das caparot na manhã do dia 9 de Tishrei - este ano de 2021, no dia 15 de setembro. É possível cumprir esse costume com dinheiro, doando-o para tzedacá, ou por meio do abate de um galo, para um homem, e de uma galinha, para uma mulher, por um shochet qualificado. É proibido jejuar no dia que precede Yom Kipur. Na véspera de Yom Kipur é uma mitzvá fazer uma refeição adicional. A refeição que antecede o jejum deve ter pão e ser concluída 20 minutos antes do pôr do sol. Bebidas alcoólicas são proibidas. As mulheres devem acender as velas antes de ir à sinagoga, dizendo a bênção das velas de Yom Kipur. Se a mulher quiser locomover-se de automóvel ou usar o elevador antes do início de Yom Kipur, deverá, antes de acender as velas, fazer uma ressalva dizendo que não está recebendo Yom Kipur com o ato de acendimento das velas. É, porém, necessário antecipar o recebimento de Yom Kipur para antes do pôr do sol.

em seus corações, permaneça sempre o amor a D’us. Recomenda-se ir à sinagoga antes do pôr do sol, para poder participar do Kol Nidrei, a “anulação dos votos”.

É costume os pais abençoarem os filhos, pedindo que estes sejam selados no Livro da Vida e que, 10


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Seguem-se os horários do início e término do jejum de Yom Kipur, em algumas cidades brasileiras. Nas demais, sugerimos que sejam consultadas as sinagogas locais:

interior de uma sinagoga durante serviço religioso. séc. 18, óleo sobre tela

Restrições durante Yom Kipur

Recife: Início às 16:56h n Término às 17:47h Salvador: Início às 17:10h n Término às 18:01h Manaus: Início às 17:38h n Término às 18:28h Belém: Início às 17:52h n Término às 18:42h Rio de Janeiro: Início às 17:23h n Término às 18:17h São Paulo: Início às 17:41h n Término às 18:34h Belo Horizonte: Início às 17:30h n Término às 18:23h Brasília: Início às 17:47h n Término às 18:39h Curitiba: Início às 17:51h n Término às 18:45h Porto Alegre: Início às 17:58h n Término às 18:54h

Yom Kipur é o Shabat dos Shabatot e, portanto, todo trabalho deve cessar e todas as leis do Shabat devem ser respeitadas. Além de observar essas leis, em Yom Kipur outras cinco restrições são acrescidas: 1. não comer e não beber; 2. não se lavar; 3. não utilizar óleos, cremes, perfumes, etc; 4. não usar calçados de couro; 5. não ter relações conjugais. O jejum diz respeito tanto aos homens quanto às mulheres, mesmo grávidas ou amamentando. Só em caso de doença ou onde haja algum perigo à vida, o jejum pode ser suspenso (consulte seu rabino). As crianças de 9 a 10 anos podem jejuar algumas horas, e, a partir dos 11 anos, conforme avaliação dos pais, podem jejuar o dia todo. Mas o jejum torna-se obrigatório aos 12 anos, para meninas, e aos 13, para meninos. O uso de sapato, sandálias ou tênis de couro é proibido tanto para homens como para mulheres. As crianças também devem ser orientadas neste sentido. Ao término de Yom Kipur, a Havdalá deve ser feita, mas sem a bênção dos aromas (bessamim). 11

SETEMBRO 2021


nossas grandes festas

A Neilá e o poema litúrgico El Norá Alilá A Neilá é a quinta e última oração de Yom Kipur. É proferida já ao final do dia, após a oração de Minchá, ao entardecer e antes do pôr do sol. Por caracterizar o final do Yom Kipur, é imbuída de grande solenidade. Na maior parte das sinagogas, a Neilá é a oração à qual acorre o maior número de pessoas, no ano todo.

a

dessa oração, a Arca Sagrada – o Hechal, como o chamam os sefaradim, ou Aron haKodesh, para os ashquenazim – permanece aberta. Todas as pessoas fisicamente capazes ficam de pé durante quase toda a Neilá – o que, durante um jejum de mais de 24 horas, é bastante difícil, mas que contribui para o sentido de urgência e transformação espiritual que caracteriza essa última oração de Yom Kipur.

palavra Neilá significa “fechamento” e é a forma abreviada para Neilat Shearim, “o fechamento dos portões”. O Talmud de Jerusalém registra uma diferença de opinião quanto a seu significado: Rabi Yochanan afirma que se refere ao fechamento dos portões do Templo Sagrado, ocorrido ao fim do dia, ao passo que outro Sábio do Talmud, Rav (também conhecido como Abba Aricha), afirma que se refere ao fechamento dos Portões Celestiais. Obviamente, ambas as afirmações estão corretas. O fechamento dos portões do Templo Sagrado era uma representação física do fechamento dos portões espirituais dos Céus, ao final do Yom Kipur. Outra explicação para o nome Neilá ser atribuído à última oração de Yom Kipur é o fato de, nesse momento, D’us e o Povo Judeu, metaforicamente falando, estarem trancados em um mesmo local, juntos, e sua união atinge seu ponto mais elevado justamente naquele momento em que os Portões Celestiais estão se fechando e o dia mais sagrado do ano está chegando a seu final.

Uma das razões para a Neilá ser tão venerada, atraindo tanta gente, até mesmo aqueles que raramente vão à sinagoga ao longo do ano, é o fato de ser uma oração singular, que constitui uma das razões para o Yom Kipur ser o dia mais sagrado do ano judaico. E um dos aspectos singulares desse dia é ser o único, no ano, em que há cinco orações – a Neilá é a quinta delas. Nos seis dias laicos da semana judaica – que se inicia com o término do Shabat e se encerra com o início do Shabat seguinte – oramos três vezes ao dia: Arvit (a reza da noite), Shacharit (a reza da manhã) e Minchá (a reza do entardecer). No Shabat, em Rosh Chodesh (o início de cada novo mês judaico) e nas Festas – Rosh Hashaná, Sucot, Shemini Atseret/Simchat Torá, Pessach e Shavuot – rezamos quatro vezes ao dia, pois, além dessas três orações, há uma quarta, a oração de Mussaf (que literalmente significa “adicional”). E somente em Yom Kipur rezamos cinco vezes ao dia: Arvit,

Portanto, em Yom Kipur, o momento da Neilá é a oportunidade final para que a pessoa se arrependa de seus erros e transgressões e inicie um capítulo mais positivo e sagrado de sua vida. Considerando a singularidade 12


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CERIMÔNIA DE ERGUIMENTO DA TORÁ, BERNARD PICART, AMSTERDÃ, 1723-1738

Shacharit, Mussaf, Minchá e Neilá. Qual seria a razão para orarmos três vezes num dia de semana normal, quatro vezes em dias especiais como o Shabat, Rosh Chodesh e em nossas Festas, e cinco vezes em Yom Kipur? Segundo a Cabalá, o número de vezes que rezamos, diariamente, corresponde aos níveis da alma que o ser humano pode alcançar, nesse dia. As obras cabalistas nos ensinam que a alma do ser humano é composta por cinco níveis espirituais: Nefesh, Ruach, Neshamá, Chayá e Yechidá. Em um dia de semana comum, a grande maioria das pessoas pode acessar os primeiros três níveis de sua alma, daí serem três as orações diárias. Em dias especiais, como o Shabat, Rosh Chodesh ou as Festas, é possível acessar o quarto nível – Chayá – razão pela qual oramos quatro vezes ao dia nessas ocasiões. Mas, apenas em Yom Kipur, e

Yachid, que significa “unidade singular”. Esse quinto nível da alma é o ponto de conexão mais profundo entre o homem e D’us.

Hechal (OU ARON HAKODESH) - ARCA SAGRADA, ONDE FICAM OS ROLOS DA TORÁ. VIENA, C. 1707

particularmente durante a oração de Neilá – a quinta do dia – qualquer pessoa pode atingir o quinto nível de sua alma, o mais alto de todos – Yechidá. Esse nome deriva da palavra 13

Podemos, portanto, entender a razão para tantos judeus se sentirem inclinados – ainda que, em alguns casos, sem mesmo saber por que – a estar na sinagoga durante a oração de Neilá. Mesmo que não o percebam, esse é o momento em que se manifesta o nível mais elevado de sua alma. O momento da Neilá é único para um despertar religioso e, de fato, tem inspirado muitos judeus a transformar sua vida e voltar à prática do Judaísmo.

El Norá Alilá Este poema litúrgico, piyut em hebraico, inicia o serviço da Neilá nas sinagogas sefarditas, cantado em uníssono e com grande emoção. setembro 2021


nossas grandes festas

Este piyut tão bonito e inspirador também foi adotado por algumas comunidades ashquenazitas que, a exemplo das grandes sinagogas do rito sefaradi, cantam-no com grande emoção. El Norá Alilá é uma súplica pelo perdão Divino no momento da última oração do dia mais sagrado do ano. O piyut foi composto por Rabi Moshé ben Jacob ibn Ezra (Abu Harun Musa bin Ya’acub ibn Ezra), conhecido como Ha-Salá (o autor de preces de penitência). Nascido em Granada, Espanha, em 1055, é considerado um de seus maiores poetas, além de ter sido muito influente no ambiente literário árabe. Várias de suas 220 composições fazem parte do livro de orações para Rosh Hashaná e Yom Kipur. O Rabi Moshé ben Jacob ibn Ezra era parente do Rabi Abraham ibn Ezra – um dos mais famosos comentaristas da Torá e filósofos judeus, na Idade Média.

Um breve comentário sobre o poema El Norá Alilá El Norá Alilá (D’us de ações sublimes), El Norá Alilá (D’us de ações sublimes) Encontra perdão para nós, nesta hora da Neilá.

GRACIOSA ARCA SAGRADA COM UM SEFER TORÁ COM SEUS ADORNOS. COLEÇÃO DA FAMÍLIA ALFRED MOLDOVAN

Para muitos judeus sefarditas, a recitação do El Norá Alilá é o ponto alto e o momento mais emotivo de Yom Kipur. Segue-se uma tradução e um breve comentário sobre esse comovente piyut, que toca nossa alma:

D’us tem vários Nomes. Cada um de Seus Nomes expressa a maneira pela qual Ele age com os seres humanos. Por exemplo, o inefável Tetragrama do Nome Divino é associado a Seu Atributo de Misericórdia (Tiferet), ao passo que o Nome Elo-him indica Seu Atributo de Justiça (Guevurá). O Nome El, Nome Divino mencionado repetidamente neste poema litúrgico, é associado ao Atributo Divino de Bondade (Chessed).

El Norá Alilá Lembra-Te da retidão de seus Patriarcas e renova seus dias Como no passado, como nos primórdios, nesta hora da Neilá.

D’us de ações sublimes, D’us de ações sublimes, Encontra perdão para nós, nesta hora da Neilá. O povo, a quem julgam pequeno, em número, clama a Ti Temeroso e trêmulo (literalmente, desgostoso e nauseado), nesta hora da Neilá.

Proclama um ano de favor e restaura os remanescentes de Teu rebanho Em Oholivá ( Jerusalém) e Oholá (Samaria), nesta hora da Neilá.

Este povo derrama sua alma perante Ti; apaga seus pecados e suas negações (falsidades) E encontra perdão para si, nesta hora da Neilá.

Possam os filhos e seus pais ser merecedores de muitos anos (de vida) Com alegria e regozijo, nesta hora da Neilá.

Seja-lhes um refúgio, e os salva da desgraça E os sela para a glória e o júbilo, nesta hora da Neilá.

Possam, em breve, Michael, anjo de Israel, Eliyahu (o Profeta) e Gabriel (o anjo) anunciar a Redenção, nesta hora da Neilá.

Sê gracioso e misericordioso com eles, e faz cair a justiça sobre todos aqueles que os oprimem e contra eles lutam, nesta hora da Neilá.

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Encontra-se a referência ao Todo Poderoso como D’us de atos sublimes, que despertam reverência, no Salmo 66: “Vinde perceber os feitos do Eterno, que por sua grandeza despertam reverência (Norá Alilá) nos homens” (Salmos, 66:5).

ele (Yaacov) desceu ao Egito e lá peregrinou com pouca gente, pequenos em número ...”. (Deuteronômio 26:5).

Rashi, comentarista clássico da Torá, explica a maneira pela qual D’us desperta reverência com Seus atos: a Onisciência Divina aterroriza os homens. Como cada um dos atos humanos Lhe é conhecido, os homens tremem, temerosos de que Ele os repreenda. O Radak (Rabi David Kim’hi) comenta acerca desse versículo: D’us é sublime em Seus atos no sentido em que Ele pode agir a seu bel-prazer com a humanidade, pois Suas ações não têm restrições externas, ou seja, Ele é o Ser Supremo. Assim sendo, todos os homens O reverenciam. El Norá Alilá se inicia reconhecendo a Onisciência e Onipotência Divinas. Em Yom Kipur, especificamente durante a Neilá, quando, metaforicamente falando, estamos trancados com D’us, não nos podemos iludir de que Ele não esteja ciente de tudo o que pensamos, dizemos e fazemos. Como diz o Livro de Jeremias: “Poderia um homem se ocultar em lugares tão secretos que Eu não o pudesse ver? – diz o Eterno. Acaso não preencho totalmente os céus e a terra?” ( Jeremias 23:24). Não é possível esconder-se de D’us ou a Ele ocultar algo. Ao reconhecer que o Todo Poderoso está ciente de cada detalhe de nossa vida e pode agir como quiser, estamos admitindo

que somos completamente dependentes d’Ele e Lhe pedimos perdão e Sua misericórdia. Esta estrofe – assim como as demais neste piyut – conclui com as palavras Bisha’at haNeilá – que significa, literalmente, “na hora do fechamento”. Como vimos acima, isso se refere ao iminente fechamento dos Portões Celestiais, emulando o fechamento dos portões do Templo Sagrado de Jerusalém, como descreve o livro de Ezequiel: “…, mas o portão não será fechado até o entardecer” (Ezequiel 46:2). O povo, a quem julgam pequeno, em número, clama a Ti: Temeroso e trêmulo (literalmente, desgostoso e nauseado), nesta hora da Neilá. As palavras “pequeno, em número” são retiradas de um versículo na Torá que narra a gênese do Povo Judeu: “e 15

Já transcorreram mais de 3.500 anos desde que nosso patriarca Yaacov e seus filhos desceram ao Egito, lá dando origem ao Povo de Israel; e, ainda assim, seguimos sendo um povo “pequeno em número”. Muitos se surpreendem ao saber que somos menos de 15 milhões de judeus, no mundo, em meio a mais de 2,3 bilhões de cristãos, quase 2 bilhões de muçulmanos, mais de um bilhão de hindus e mais de meio bilhão de budistas. Nós, judeus, constituímos apenas 0,2% da Humanidade. No entanto, influenciamos diretamente mais de metade da Humanidade, pois o Cristianismo se originou do Judaísmo, que também influenciou fortemente o Islamismo. A contribuição do Povo Judeu aos campos seculares do conhecimento também é extremamente desproporcional à sua população. Cerca de 20% dos ganhadores do Prêmio Nobel foram judeus e, apenas na área da Fisiologia/Medicina, esse número é ainda mais impressionante – praticamente 40%. Nenhum outro povo na História foi tão admirado e tão perseguido como nós, o Povo Judeu. O mundo sempre foi obcecado conosco, quer positiva quer negativamente. Mas, apesar de nossas conquistas, sempre fomos e continuaremos a ser um povo pequeno. E, através da História, até hoje, não são poucos os homens e os países que nos querem aniquilar. Assim sendo, erguemos nossos olhos aos Céus, pois reconhecemos que nossa sobrevivência como judeus, quer como indivíduos quer como setembro 2021


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povo, depende exclusivamente do Todo Poderoso – Aquele que nos manteve com vida até hoje, Ele que é a Fonte de nossa segurança e de nossas realizações e êxitos. Uma das razões para o Povo Judeu ter realizado tanto, ao longo da História, é o fato de nunca se ter permitido ser complacente, acomodado. Em Yom Kipur, até mesmo na Neilá, expressamos nosso pesar – e até mesmo desgosto – por nossos pecados e transgressões, pois somente admitindo, honestamente, nossos erros e nos arrependendo deles é que poderemos expiá-los e obter o perdão Divino. Aquele que não se arrepende, sinceramente, pelo que fez de errado, e não sente profunda constrição por suas transgressões, está representando uma farsa do processo de obtenção do perdão Divino. Contudo, é importante notar que mesmo ao expressarmos arrependimento por nossos pecados, a liturgia de Yom Kipur é repleta de júbilo e cantamos El Norá Alilá com grande fervor e emoção. O Rabi Levi-Yitzhak de Berditchev, grande

Este povo derrama sua alma perante Ti; apaga seus pecados e suas negações (falsidades) E encontra perdão para si, nesta hora da Neilá.

Hechal, OU ARON HAKODESH, ARCA SAGRADA, COM UM ROLO DA TORÁ COM ORNAMENTOS. PAÍSES BAIXOS, 1800

Mestre chassídico conhecido por ser um incansável defensor do Povo Judeu, disse, certa vez, a D’us em um Yom Kipur: “Façamos uma troca justa – nós Te daremos nossos pecados em troca de Teu perdão. Pois não fora por nossos pecados, o que Tu farias com Teu perdão?”.

YOM KIPUR NA SINAGOGA. 1931, ANTONIETTA RAPHÄEL MAFAI, COLEÇÃO PARTICULAR, ROMA

A oração de Neilá marca a conclusão dos Dez Dias de Teshuvá, iniciados em Rosh Hashaná. Nesse momento em que os Portões Celestiais estão prestes a se fechar, é quando devemos derramar nossa alma perante D’us – a Ele clamando desde o mais íntimo de nosso coração –, pois a prece que provém do coração é aquela que é ouvida nos Céus, como nos ensinam nossos Sábios. Se clamamos a D’us com fervor, se abrimos nosso coração e nossa alma, podemos rogar que Ele ignore nossas transgressões, apagando-as mesmo, como se nunca tivessem ocorrido. Em hebraico há várias palavras para expressar o pecado. Pisham, por exemplo (“seus pecados”), usada nesta estrofe, refere-se ao pior tipo de transgressão: aquela que é cometida propositalmente como ato de revolta contra D’us. E até mesmo tais pecados podem ser perdoados – D’us pode eliminá-los como se jamais tivessem ocorrido. Mas para tanto é necessário que a pessoa verdadeiramente se arrependa de os ter cometido. Seja-lhes um refúgio, e os salva da desgraça E os sela para a glória e o júbilo, nesta hora da Neilá. Um tema recorrente, repetido ao longo do Tanach (a Torá, o Livro dos Profetas e os Escritos Sagrados), particularmente no Livro dos Salmos, é que somente

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D’us pode nos proteger e abrigar contra todos os males que há no mundo. Como nos mostrou a História recente, mesmo os arranha-céus podem ser derrubados por gente má e mesmo altos edifícios em um país tão avançado como os Estados Unidos podem desabar. Quer realizemos, quer não, todos nós, em todos os momentos de nossa vida, dependemos totalmente de D’us. Como nos ensina o Talmud, não temos ciência da miríade de milagres que D’us realiza em nosso favor, diariamente, para nos manter a salvo do perigo. Durante a Neilá, quando a Corte Celestial está a ponto de decretar o destino de cada ser humano no ano que se inicia, pedimos a D’us que nos proteja e nos guarde de todo tipo de mal e sofrimento. Pedimos-Lhe que nos confirme para um ano de glória, de grande sucesso em nossas iniciativas – e um ano de júbilo. Sê gracioso e misericordioso com eles, e faz cair a justiça sobre todos aqueles que os oprimem e contra eles lutam, nesta hora da Neilá. Em nossas preces diárias, e especialmente em Yom Kipur, referimo-nos a D’us como Rachum ve’Chanun – Misericordioso e Gracioso. Ser gracioso significa ser bom e generoso, além das expectativas. Misericordioso é aquele que se recusa a punir mesmo ao que o merece. O Rei Salomão, o mais sábio dos homens, escreveu em seu Livro

D’us concede misericórdia aos oprimidos. E, de fato, a História nos tem demonstrado que os maiores inimigos do Povo Judeu também foram os maiores vilões da Humanidade. Como repetimos ano após ano na Hagadá de Pessach: “Em toda geração eles se levantam para nos exterminar, e o Santo, Bendito é Ele, nos salva de suas mãos”. Rezamos, portanto, rogando a D’us por nossa salvação daqueles que nos desejam o mal. Como escreveu o Rei Salomão em seus Provérbios (11:10): ... “E canções são entoadas quando perecem os malvados”. dos Provérbios (Mishlei) que o mal sucede à iniquidade: punição e sofrimento são consequência natural do pecado. Em um mundo de simples causa e efeito, os homens teriam que pagar por cada uma de suas transgressões. Mas como D’us é Gracioso e Misericordioso, Ele é facilmente aplacado face às transgressões cometidas contra Ele. Contudo, é importante esclarecer que a Misericórdia Divina não se estende àqueles que cometem maldade contra outros seres humanos. Yom Kipur apenas expia os pecados cometidos contra D’us, não contra outros seres humanos. A Misericórdia Divina também é expressa por D’us na forma de proteção a nós contra todos os que nos oprimem e se levantam contra nós. Ao extirpar o mal, 17

Lembra-Te da retidão de seus Patriarcas e renova seus dias Como no passado, como nos primórdios, nesta hora da Neilá. Em todas as nossas preces invocamos o mérito de nossos antepassados, especialmente dos três Patriarcas – Avraham, Yitzhak e Yaacov. Mesmo o maior profeta de todos os tempos, Moshé Rabenu, invocou os méritos dos três Patriarcas em momentos críticos, quando rogou a D’us em favor do Povo de Israel. A expressão “renova seus dias” é retirada do Livro de Eichá (Lamentações 5:21), em que o profeta Jeremias roga a D’us para que restaure nosso povo e a Pátria dos Judeus a seus dias de glória. O versículo “Restaura nossos dias como já foram outrora” constitui setembro 2021


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também uma expressão de esperança pela renovação do relacionamento entre D’us e os Filhos de Israel e sua restauração a seu estado no início da história de nosso povo. Um desejo semelhante aparece no Livro de Malachi: “Então as oferendas de Judá e de Jerusalém serão prazerosamente aceitas pelo Eterno, como nos dias antigos e nos anos passados” (Malachi 3:4). Proclama um ano de favor e restaura os remanescentes de Teu rebanho Em Oholivá ( Jerusalém) e Oholá (Samaria), nesta hora da Neilá. A Neilá é o ponto culminante do Yom Kipur. A Arca Sagrada permanece aberta, na sinagoga, como um símbolo dos Portões Celestiais abertos às nossas preces. É o momento de se pedir que D’us proclame – e decrete – um ano de graça para nós, para nossa família e comunidade, para o Povo de Israel e para toda a Humanidade.

O KOTEL, EM JERUSALÉM.

Como a Neilá é o momento mais auspicioso do ano – quando D’us está mais acessível a todos nós – esse é o momento de pedir a Ele coisas extraordinárias. Portanto, com o olhar no futuro, pedimos a D’us não apenas por nossa própria salvação, mas pela redenção de nosso Povo.

na Torá e se tornou muito famosa graças ao Salmo 23, que declara que o Todo Poderoso é nosso Pastor. Nesta estrofe, rogamos a D’us pela restauração do restante de Seu rebanho – nós todos, judeus, que aqui estamos, apesar de um exílio muito longo e das constantes perseguições.

A metáfora que diz que o Povo Judeu é o rebanho de D’us aparece

Os nomes Oholivá e Oholá se referem, respectivamente, a Jerusalém e

ORAÇÃO SILENCIOSA NA SINAGOGA DE AMSTERDÃ, “A AMIDÁ” (LA GMAUIDA), 1897. JACQUES-EMILE-EDOUARD BRANDON (FRANCÊS, 1831-1897)

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Samaria (Ezequiel 23:4). Após o falecimento do Rei Salomão, seu reino foi dividido em dois: o Reino de Judá, com Jerusalém como sua capital, e o Reino de Israel, que tinha sua capital na Samaria. O nome Oholá pode ser uma referência à cidade de Samaria, ao Reino de Israel e às 10 Tribos perdidas, ao passo que Oholivá pode ser usado para descrever Jerusalém, o Reino de Judá e o Templo Sagrado de Jerusalém. Ao mencionar esses dois nomes, pedimos a D’us pela restauração dos descendentes de todas as 12 Tribos de Israel em sua terra, a Terra de Israel. Possam os filhos e seus pais ser merecedores de muitos anos (de vida) Com alegria e regozijo, nesta hora da Neilá. Tizku LeShanim Rabot, que significa “Que vocês sejam merecedores de muitos anos (de vida)” é um cumprimento que os judeus sefaraditas costumam estender uns aos outros em Rosh Hashaná e Yom Kipur. Pedimos que D’us nos abençoe, a todos nós, filhos e pais, com uma vida longa: que Ele nos inscreva e sele no Livro da Vida. Mas apenas uma vida longa não representa uma bênção se esses anos forem cobertos de sofrimento. Por isso pedimos a D’us por muitos anos de vida repletos de júbilo e felicidades. Possam, em breve, Michael, anjo de Israel, Eliyahu (o Profeta) e Gabriel (o anjo) anunciar a Redenção, nesta hora da Neilá. Este belo piyut conclui com uma prece pela Redenção Messiânica. Caberá a Eliyahu HaNavi, o Profeta Elias, ser aquele que anunciará a vinda do Mashiach e conclamar a

O Hechal OU ARON HAKODESH (ARCA SAGRADA) em uma SINAGOGA de Nova York

todos os povos que a paz finalmente chegou ao mundo. O último profeta do Tanach, Malachi, assim proclama em nome de D’us: “Eis que vos mandarei o profeta Eliyahu, antes que venha o grande e sublime dia do Eterno” (Malachi 3:23). A estrofe final do piyut menciona os anjos Michael e Gabriel, ambos protetores do Povo Judeu. Michael é o anjo da misericórdia. Gabriel é o anjo da força, que luta a favor do Povo Judeu e é enviado por D’us para executar a justiça contra os malfeitores. No entanto, é importante ressaltar que, apesar de o poema mencionar esses anjos, não nos dirigimos a eles, muito menos os invocamos. Pois, como ensina o Talmud de Jerusalém, é absolutamente proibido – e considerado um ato de idolatria – orar para qualquer um dos anjos. 19

Oramos a D’us – e somente a D’us. Não há intermediários entre os judeus e o Todo Poderoso. E quando chegar a Era Messiânica, todos os seres humanos entenderão que devem orar apenas a D’us e diretamente a Ele. Como dizemos ao concluir nossas preces, durante o Aleinu Leshabeach: (Na Era Messiânica) “toda a humanidade invocará o Teu Nome.... E perante a Ti, Eterno nosso D’us, eles se curvarão e se prostrarão, e honrarão a glória do Teu Nome Sagrado”.

BIBLIOGRAFIA

Steinsaltz, Rabbi Adin Even-Israel, The Steinsaltz Nevi’im, Koren Publishers, Jerusalém

Steinsaltz, Rabbi Adin Even-Israel, The Steinsaltz Ketuvim, Koren Publishers, Jerusalém setembro 2021


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O Significado de Simchat Torá A festa de Sucot, que se inicia cinco dias após Yom Kipur e que tem duração de uma semana, é imediatamente seguida por outra festa religiosa: Shemini Atseret. As palavras Shemini Atseret significam, literalmente, “o oitavo (dia) de retenção”. Os Mestres Chassídicos explicam que o principal objetivo dessa festa é “reter” as revelações e os poderes espirituais que recebemos durante as festas do mês de Tishrei – Rosh Hashaná, Yom Kipur e Sucot – para que possamos utilizá-los ao longo do ano.

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ora da Terra de Israel, Shemini Atseret é uma festa celebrada durante dois dias - 22 e 23 do mês hebraico de Tishrei1. O segundo dia de Shemini Atseret é conhecido como Simchat Torá – (a festa da) Alegria da Torá. Em Simchat Torá, concluímos e recomeçamos o ciclo anual de leitura da Torá.

da Bimá. Algumas comunidades até dançam com os rolos da Torá nas ruas. Em algumas sinagogas, é costume que, nessa festa, todos os homens presentes recebam uma Aliá – isto é, sejam chamados à Torá. Nesse dia, é comum a sinagoga se encher de jovens e crianças, todos desejosos de celebrar e dançar com a Torá.

Trata-se de uma festa muito alegre – uma das datas mais felizes do calendário judaico – na qual cantamos e dançamos com os Sifrei Torá – os rolos da Torá. Os Mestres Chassídicos ensinam que, em Simchat Torá, “alegramo-nos com a Torá e a Torá se alegra conosco; a Torá quer dançar, e, portanto, tornamo-nos os pés dançantes da Torá’’. Retiramos todos os rolos da Torá da Arca Sagrada e dançamos com eles ao redor da Bimá – a plataforma elevada da sinagoga onde é lida a Torá. As danças com os Sifrei Torá ao redor da Bimá são chamadas de Hakafot, que significa “andar em círculos”. Em Simchat Torá, é costume fazer sete Hakafot ao redor

Simchat Torá é uma festa judaica singular. Não é mencionada na Torá nem no Talmud. Não é uma festa rabínica, como Purim e Chanucá, não foi instituída por autoridades religiosas e nem sequer comemora qualquer libertação ou vitória histórica do Povo Judeu. Qual é, então, a origem de Simchat Torá?

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O Rabino Lord Jonathan Sacks, ZT’’L, escreveu que Simchat Torá nasceu na Babilônia, provavelmente no final do período dos Amoraim – os rabinos do Talmud, no quinto ou sexto século da Era Comum. O costume babilônico – que se tornou universal – era dividir a Torá em 54 porções semanais para serem lidas no decorrer de um ano. (Na Terra de Israel, a leitura de toda a Torá era concluída a cada três anos e meio). Na Babilônia, no segundo dia de Shemini Atseret lia-se a última porção da Torá.

Na Terra de Israel, Shemini Atseret é celebrada durante um dia apenas. A festa de Simchat Torá é aglutinada à Shemini Atseret e ambas são celebradas no mesmo dia: 22 de Tishrei.

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FESTA DO JÚBILO DA TORÁ NA SINAGOGA DE LEGHOM, ITÁLIA, 1850. SOLOMON ALEXANDER HART, R.A. (INGLATERRA, 1806-1881). ÓLEO SOBRE TELA

Há um costume judaico muito antigo de se fazer uma celebração para comemorar um siyum (o término) de um tratado talmúdico ou de uma ordem da Mishná. Esse costume evoluiu e a tradição de celebrar um siyum passou a incluir o término da leitura dos Cinco Livros da Torá. Considerava-se uma grande honra ser chamado à Torá para a leitura da sua última porção. A celebração do término da leitura da Torá, que ocorria no segundo dia de Shemini Atseret, ficou conhecida como Simchat Torá.

Torá nunca sequer estudaram uma palavra da Torá. Esse fenômeno evidencia o fato de que a Torá está tão gravada na alma dos judeus que, mesmo aquele que nunca a estudou, pode se alegrar muito com esse livro que D’us escreveu e deu a nosso povo. Como ensina o Zohar, a obra fundamental da Cabalá, existe um SINAGOGA DO JUBILEU. PRAGA, REPÚBLICA CHECA

Simchat Torá tornou-se uma das festas mais populares do ano judaico. Muitos judeus que vivem na Diáspora não vão à sinagoga no primeiro dia de Shemini Atseret, mas o fazem no segundo dia, em Simchat Torá. Além disso, é curioso o fato de que muitas das pessoas que dançam com grande entusiasmo em Simchat 21

vínculo triangular metafísico que une D’us, Sua Torá e o Povo Judeu. Com efeito, todos nós, judeus, que somos a encarnação de nosso Patriarca Jacob, estamos intrinsecamente conectados à Torá e a seu Autor, o Todo Poderoso. Como está escrito: “Moshé nos deu a Torá, a herança (morashá) da congregação de Jacob” (Deuteronômio 33:4). Não há santidade maior no mundo do que a relação entre o Todo Poderoso e o Povo Judeu, e a Torá é o fio de prata, a fonte da vida, que liga todo judeu a seu Criador. Visto que a Torá é a herança espiritual de todo judeu, sem exceção, somos todos convocados para celebrar no dia em que terminamos sua sagrada leitura. Em Simchat Torá, celebramos o fato de que a Torá é uma herança que pertence igualmente a todos os Filhos de Israel. setembro 2021


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sido expulsos. Os judeus estavam espalhados por todo o mundo e, portanto, não viviam no mesmo território. Eles não faziam parte de uma única ordem econômica ou política. Eles não compartilhavam a mesma cultura nem falavam a mesma língua. No entanto, era inegável que os judeus ainda estavam vinculados por um destino e responsabilidade coletivos. Portanto, Rabi Saadia Gaon concluiu: Nosso povo é uma nação apenas em virtude da Torá. De fato, ao longo dos quase dois mil anos de exílio, mais do que o Povo Judeu preservou a Torá, a Torá preservou o Povo Judeu. Como o Talmud afirma sobre a Arca Sagrada que continha as Tábuas: “Ela carregava aqueles que a carregavam” (Talmud Bavli, Sotá 35a).

A alegria de Simchat Torá Em nossas orações, referimo-nos à festa de Sucot, que precede Shemini Atseret / Simchat Torá, como Zman Simchatenu – a “época da nossa alegria”. Antes da destruição do Templo Sagrado de Jerusalém e a expulsão dos judeus da Terra de Israel, a natureza da alegria intrínseca à Sucot era evidenciada pelos dois mandamentos básicos dessa festa: habitar na Sucá e tomar2 nas mãos as Quatro Espécies (Lulav, Etrog, Hadass e Aravá). A Sucá lembrava aos judeus o quão abençoados eles eram pelo fato de viverem na Terra de Israel, pois um dos propósitos do mandamento de habitar na Sucá é lembrar como nossos ancestrais – a geração que Moshé Rabenu conduziu para fora do Egito – tiveram que viver por 40 anos no deserto – em cabanas, sem um lar ou país permanente. O outro mandamento da festa de Sucot – tomar nas mãos as Quatro Espécies – é uma demonstração da fecundidade da Terra de Israel, graças às bênçãos Divinas de chuva e prosperidade. A alegria da festa de Sucot era, portanto, a alegria de viver na Terra Prometida, sob a sombra do Todo Poderoso. Simchat Torá, por outro lado, surgiu em uma época em que os Filhos de Israel viviam exilados na Babilônia. E quando Simchat Torá se espalhou por todo o mundo judaico, os judeus haviam perdido praticamente tudo: sua Terra, a segurança de ter seu próprio país, sua liberdade e independência e o Templo Sagrado de Jerusalém – 2

O mandamento das Quatro Espécies é cumprido ao tomá-las nas mãos. Contudo, costumamos cumprir esse mandamento ao apontá-las e gentilmente sacudi-las em direção a cada uma das quatro direções, para cima e para baixo.

SEGURANDO O MANTO DA TORÁ. GRAVURA DO SÉC. 17, PARIS. MUSEU NACIONAL DA IDADE MÉDIA.

basicamente tudo o que havia sido sua fonte de alegria. Uma única frase em um dos piyutim (poemas litúrgicos) da Neilá, no final de Yom Kipur, resume a situação deles: Ein Shiur Rak HaTorah Hazot, que basicamente significa, “Nada resta, senão esta Torá”. Tudo o que havia restado era a Torá. Como poderia o Povo Judeu encontrar alegria tendo perdido tudo, exceto a Torá? Rabi Saadia Gaon, que viveu no século 10, fez uma pergunta simples, mas fundamental, e com profundas consequências: após a expulsão da Terra de Israel, qual a causa de o Povo Judeu ainda constituir uma nação? Na Diáspora, os judeus não tinham mais nenhuma das précondições normais de uma nação. Já não viviam em sua pátria, dela tendo 22

A Torá é o legado do nosso passado e a promessa do nosso futuro. É, como dizemos em nossas orações diárias, “nossa vida e a extensão de nossos dias”. É nosso contrato com D’us – o registro da aliança eterna que nos une. Na Babilônia e em todo o restante da Diáspora, os judeus haviam perdido tudo, mas eles ainda tinham a Palavra de D’us e era o suficiente. Bastava para mantê-los conectados com D’us e uns com os outros, não importa o quão espalhados estivessem pelo mundo. Por milhares de anos, em Simchat Torá, sem serem comandados por nenhum versículo da Torá ou qualquer decreto rabínico, os judeus no mundo todo cantavam e dançavam com a Torá. Eles estavam determinados a não esquecer que, enquanto tivessem a Palavra de D’us, eles poderiam celebrar a vida e o fato de serem judeus. Seria difícil encontrar um paralelo, em toda a história da humanidade, de um povo capaz de celebrar com tanta alegria, mesmo durante as épocas em que foram submetidos


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a sofrimentos indescritíveis. Elie Wiesel, sobrevivente e escriba do Holocausto, vencedor do Prêmio Nobel da Paz, escreveu: “O Gaon de Vilna disse que Ve-Samachta BeChaguecha (‘Você deve se alegrar em sua festa’; Deuteronômio 16:14) é o mandamento mais difícil de se cumprir. Eu nunca consegui entender essa observação intrigante. Foi apenas durante a guerra que eu a entendi. Aqueles judeus que, no curso de sua jornada para o fim da esperança, ainda conseguiram dançar em Simchat Torá; aqueles judeus que estudaram o Talmud de cor enquanto carregavam pedras nas costas; aqueles judeus que continuaram sussurrando as Zemirot shel Shabat (Canções de Shabat) durante a execução de trabalhos forçados... Ve-Samachta BeChaguecha era um mandamento impossível de cumprir – mas eles o cumpriram”. De fato, como escreveu o Rabino Lord Jonathan Sacks, ZT”L: “Um povo que pode andar pelo vale das sombras da morte e ainda se alegrar é um povo que não pode ser derrotado por nenhuma força ou medo”. Maimônides (o Rambam), um dos maiores filósofos e legisladores judeus de todos os tempos, escreveu que sentir alegria ao cumprir uma mitzvá – um mandamento Divino – é tocar as alturas espirituais... e que não há grandeza ou honra maior do que comemorar diante de D’us (Leis do Shofar 8:15). Isso é o que ocorre quando cada judeu, independentemente de seu grau de conhecimento, dança com a Torá em Simchat Torá: ele toca as alturas espirituais; ele atinge a maior das grandezas, que é celebrar perante D’us. Simchat Torá nasceu quando os judeus haviam perdido tudo, exceto a Torá e a capacidade de se alegrar

com ela. No século 20, Simchat Torá passou a simbolizar a afirmação pública da identidade judaica. Os judeus da União Soviética, em particular, celebravam a festa em massa nas ruas de Moscou. Em 14 de outubro de 1973, mais de 100 mil judeus participaram de um comício pós-Simchat Torá na cidade de Nova York em prol dos refuseniks e dos judeus soviéticos. Como escreveu o Rabino Sacks ZT”L: “O Alcorão chama os judeus de ‘o Povo do Livro’, mas isso é um eufemismo. Somos um povo apenas por causa do Livro. A Torá é nossa constituição como nação sagrada sob a soberania de D’us.

Há milhares de anos, nos melhores e nos piores momentos da nossa história, na Terra de Israel ou na Diáspora, em Jerusalém ou em Auschwitz, nós, judeus, celebramos Simchat Torá perante D’us, o Autor da Torá, com alegria ilimitada. Nechemiah (Neemias) estava certo quando disse ao povo que chorava ao ouvir a Torá, percebendo o quanto se haviam distanciado dela: “Não vos aflijais, pois a alegria do Eterno é a vossa força” (Nechemiah 8:10). Um povo cuja alegria não pode ser destruída é indestrutível. Um povo cujo destino está vinculado a um Livro eterno, escrito por um Ser Eterno, é um povo eterno.

CELEBRAÇÃO DE SIMCHAT TORÁ. ÓLEO DE ALEX LEVIN

É a carta de amor de D’us aos Filhos de Israel. Nós a estudamos incessantemente. Nós a lemos na sinagoga todas as semanas, completando-a ao longo de um ano. Durante os longos séculos de exílio, foi a memória de nossos ancestrais do passado e a esperança para o futuro. Em certo sentido, toda a história do Judaísmo é a história de um caso de amor entre um povo e um livro”. 23

BIBLIOGRAFIA

Sacks, Rabbi Jonathan, Ceremony and Celebration, https://rabbisacks.org/ wpcontent/ uploads/2020/10/CCSacks, Rabbi Jonathan, The children of Israel dance for their portable homeland, https://rabbisacks.org/the-childrenofisrael-dance-for-their-portablehomeland Shemini Atzeret/Simchat Torah Study, https://www.chabad.org/library/article_ cdo/aid/4330/jewish/Study.htm Steinsaltz, Rabbi Adin Even-Israel, A Dear Son to Me, Maggid Books setembro 2021


HISTÓRIA

OS IMBATÍVEIS COMANDOS JUDEUS Por ZEVI GHIVELDER

DURANTE 75 ANOS O MUSEU DE GUERRA IMPERIAL INGLÊS CONSERVOU DOCUMENTOS QUE, AGORA REVELADOS, ACRESCENTAM UM PEQUENO E EMOCIONANTE CAPÍTULO À HISTÓRIA DA 2ª GUERRA MUNDIAL: A EXISTÊNCIA DE UMA TROPA DE COMANDOS DO EXÉRCITO BRITÂNICO FORMADA SOMENTE POR COMBATENTES JUDEUS.

E

m 1940, a Inglaterra atravessava os dias mais incertos e terríveis de sua existência. Como única opção para escapar de um flagelo, o exército de Sua Majestade havia se limitado a uma só alternativa: a retirada em massa de Dunkirk, na Bélgica, onde não poderia resistir a um devastador ataque inimigo. Ao mesmo tempo, Londres e outras cidades começavam a ser bombardeadas, noites e dias sem tréguas, somando crescente número de vítimas, a par de imensos danos materiais. As baterias antiaéreas eram precárias para conter as sucessivas ondas de bombardeiros da Luftwaffe, a aviação nazista.

A cada aparição pública fazia um “V” da vitória com dois dedos da mão direita. Percorrendo os escombros de Londres, ficava cada vez mais convencido de que era urgente materializar efetivas formas de retaliação. Levou, então, ao gabinete um ousado plano para a formação de uma unidade de elite que viria a se concretizar como a Tropa Britânica de Comandos. Seus componentes começaram a ser recrutados em diferentes corporações do Exército e da Marinha para os quais era levada somente uma informação a título de advertência: os selecionados serão designados para missões de “natureza arriscada”.

O primeiro-ministro Winston Churchill estava consciente de que levaria considerável tempo até que a Infantaria e a Artilharia britânicas, bem como a Força Naval, pudessem se reorganizar. Somente a RAF (Royal Air Force) tinha condições de efetuar contra-ataques, embora enfrentasse carência de pilotos bem treinados para seus aparelhos de caça tipo Spitfire, cuja fabricação, naquela quadra dos acontecimentos, era insuficiente. Mesmo assim, os ingleses viam na RAF a única esperança de sua salvação.

Em fevereiro de 1941 os comandos realizaram a chamada Operação Colossus. Depois de intenso treinamento na ilha de Malta, 35 homens saltaram de paraquedas ao norte de Nápoles com a incumbência de dinamitar uma ferrovia e um aqueduto que serviam ao abastecimento para as tropas alemãs sediadas na Itália. A operação foi bem-sucedida no tocante às explosões, mas fracassou quanto à retirada, porque os alemães interceptaram o submarino que resgataria os comandos. Estes tiveram que se dispersar pela Itália e muitos foram feitos prisioneiros de guerra.

Em tal cenário de infortúnios, a maior preocupação de Churchill era manter a autoestima da população. 24


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TROPA X DURANTE TREINAMENTO EM ABERDOVEY, GALES. 1943

Mas, no ano seguinte, a Operação Charlot foi bem-sucedida do começo ao fim. Os comandos destruíram as instalações do estaleiro de St. Nazaire, na costa da Normandia, que era essencial para os serviços de reparos e manutenção da Marinha nazista. Foi uma demolição tão completa que St. Nazaire permaneceu inoperante até o fim da guerra. Os comandos britânicos cumpriram dezenas de missões e, a partir de 1942, ganharam maior intensidade com a participação conjunta ou isolada de militares americanos. Em julho daquele mesmo ano, o Alto Comando Aliado decidiu compor uma unidade identificada como Brigada de Serviços Especiais constituída por centenas de jovens oriundos da Áustria, Alemanha e do Leste Europeu que haviam se refugiado na Inglaterra. Foram todos

levados para a Escócia e submetidos a um intenso treinamento durante seis semanas, que incluiu atividades físicas e ensinamentos estratégicos com ênfase na leitura de mapas. Dentre esses voluntários oficialmente carimbados como

MUSEU DE GUERRA IMPERIAL INGLÊS, em londres

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“inimigos estrangeiros” havia mais de uma centena de judeus. Depois de filtrados, 87 homens foram reunidos numa só tropa que recebeu o nome de Tropa X. Todos os rapazes adotaram nomes ingleses e suas verdadeiras identidades foram ocultadas e guardadas em segredo no serviço de espionagem britânico MI5. Era importante essa providência porque se, por acaso, alguns daqueles jovens viessem a ser capturados e identificados como judeus, seriam executados e não tratados como prisioneiros de guerra. Os comandos judeus entraram efetivamente em combate na Operação Infatuate, cujo objetivo era a captura da ilha holandesa de Walcheren, onde os alemães haviam instalado grande número de baterias de artilharia para impedir o acesso ao importante porto de Antuérpia, na Bélgica. A operação teve êxito SETEMBRO 2021


HISTÓRIA

significativo, culminando com a rendição de quatro mil militares alemães. Coube aos combatentes da Tropa X efetuar o interrogatório dos oficiais nazistas. O coordenador dos inquiridores foi um judeu austríaco chamado Hans Hajos, ou Ian Harris, conforme o novo nome que havia recebido. Nascido em Viena, Harris tinha deixado a Áustria em 1938, com 18 anos de idade, quando esta foi anexada à Alemanha, e rumou para a Inglaterra. Foi alistado no exército britânico onde se encontravam os milhares de combatentes resgatados em Dunkirk. Anos depois, esteve presente na invasão da Normandia e, promovido a cabo, foi um dos primeiros militares que atravessaram o rio Reno na arrancada em direção a Berlim. Perdeu uma vista em outro combate e, depois da guerra, se filiou como intérprete à Comissão Aliada de Controle na Alemanha Ocupada. Em agosto de 1942, a tropa judaica participou da ousada Operação Jubilee, que tinha como foco destruir a linha de artilharia alemã localizada na cidade de Dieppe, na costa da Normandia. Cumprida a etapa de destruição no litoral, os comandos ocuparam o prédio da Prefeitura da cidade, onde renderam os militares inimigos e recolheram documentos e mapas. Os ingleses e canadenses empenhados na operação, incluindo os judeus, entraram em contato, previamente acertado, com a resistência francesa, para a qual levaram vultosa quantia em espécie, necessária para futuras intervenções. Os comandos acolheram resistentes franceses que foram embarcados para a Inglaterra, onde se juntaram à ala militar França Livre comandada pelo general De Gaulle. Um dos mais destacados membros da corporação França Livre foi o

comandos judeus, com os quais manteve estreita colaboração, embora não tivesse participado diretamente de suas missões. Em 1943, liderou um destacamento de comandos franceses. Estes realizaram uma série de incursões no norte da França preparatórias para a futura invasão da Europa.

Winston Churchill. O célebre “V” da vitória

judeu Philippe Kieffer, no setor naval. Filho de pai alsaciano e mãe inglesa, Kieffer nasceu no Haiti, onde seu pai trabalhava. Adulto, formou-se pela Universidade de Chicago e chegou a diretor de um banco em Nova York. Em 1939, quando a guerra eclodiu, alistou-se na Marinha francesa, já com 40 anos de idade. Incorporado aos comandos britânicos desde o primeiro dia de sua formação, assessorou o Gabinete de Guerra no recrutamento dos

A Tropa X estava subordinada ao Comando 10 do Exército britânico, hoje apontado pelos historiadores como um dos mais eficientes contingentes dos aliados durante a 2ª Guerra Mundial. Além de seus peritos em explosivos, o destacamento abrigava um serviço de Inteligência, no qual os componentes da Tropa X desempenharam um papel fundamental por seu domínio do idioma alemão. Alguns desses judeus foram designados para servir em Betchley Park, uma localidade secreta no sudoeste da Inglaterra, destinada à decodificação de mensagens alemãs. Foi ali que os ingleses conseguiram decifrar os códigos do Enigma, o sistema de comunicação nazista tanto naval como terrestre. Hoje, visto em perspectiva, é consenso que a quebra

SOLDADOS ALEMÃES CAPTURADOS NA ILHA HOLANDESA DE WALCHEREN, ONDE OCORREU A PRIMEIRA MISSÃO IMPORTANTE DA TROPA X. EM DESTAQUE, À DIREITA, IAN HARRIS

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1. manfred gans 2. Peter masters 3. Colin Anson

dos sigilos do Enigma mudou o curso do conflito em favor dos Aliados. Os comandos da Tropa X não atuavam sempre como um bloco compacto. Eram subdivididos e agregados a outras unidades de comandos nas quais cumpriam tarefas de Contrainteligência, que geravam importantes informações extraídas ao longo dos interrogatórios de prisioneiros. No fim de 1944, depois da invasão da Normandia e do consequente avanço pela Europa, incluindo territórios alemães, a Tropa X tornou-se mais proeminente e imprescindível: conferia as patentes e identidades de eventuais prisioneiros. Eram tarefas sensíveis porque muitos oficiais nazistas procuravam se livrar de suas fardas próprias

aos altos escalões para parecerem simples soldados rasos. Os judeus traduziam os documentos apreendidos, além de atuar atrás das linhas inimigas. Alguns jovens da Tropa X vestiram uniformes

alemães e, infiltrados no inimigo, registravam movimentações dos tanques e blindados inimigos. As informações coletadas se revelaram cruciais para orientar os avanços dos exércitos Aliados.

O GEN. SIR JOHN DILL, CHEFE DO ESTADO MAIOR IMPERIAL (CIGS), INSPECIONA A TROPA DE PARAQUEDISTAS. A RAF ESTAVA PRESTES A RETALIAR OS BOMBARDEIOS ALEMÃES, DEZ. 1940

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SETEMBRO 2021


história

A mais consistente pesquisa sobre a trajetória da Tropa X foi feita pela historiadora americana Leah Garrett e resultou no livro, há pouco lançado, X Troop:The Secret Jews Commandos of World War II (Tropa X: a História dos Comandos Judeus Secretos na 2ª Guerra Mundial, em tradução livre). Antes dela, porém, o historiador inglês Steven Kern apresentou uma tese de doutorado na Universidade de Nottingham, sob o título “Refugiados Judeus da Alemanha e da Áustria no Exército Britânico 1939-1945”.

Apesar de terem sido rotulados como “inimigos aliados”, os refugiados judeus alemães e austríacos se sentiram motivados a se integrar ao Exército britânico, com o intuito de retaliar as perseguições impostas a eles próprios e a suas famílias a partir da escalada do Nazismo em 1933, além do fato de a maioria dos recrutados ter sofrido o trauma da separação de seus pais, em sucessivos comboios do Kindertransport (transporte de crianças). Essa circunstância foi acrescida pelas dificuldades de convivência que muitos deles

TROPAS CICLISTAS, INVASÃO DO DIA D

O autor escreve que a participação desses refugiados corresponde a um capítulo quase invisível da 2ª Guerra Mundial, o que configura, no seu entender, uma injustiça, tendo em vista os excelentes serviços que os refugiados prestaram, sobretudo na qualidade de inquisidores durante e depois do conflito. O autor da tese acentua que as ações desses refugiados devem ser inscritas ao lado de outros significativos movimentos de resistência judaica em face da opressão nazista.

foram obrigados a enfrentar junto às famílias inglesas pelas quais foram acolhidos. Entretanto, segundo o autor da tese, do total de 6 mil refugiados recrutados para os pelotões militares britânicos, os judeus eram minoria. A maioria era constituída por alemães e austríacos não-judeus, italianos, checoslovacos, russos e, em maior quantidade, poloneses, estes exímios em operações de sabotagens. Foi no reduzido número de judeus que acabaram sendo extraídos os 28

rapazes destinados à formação de uma única elite de comandos, cujos componentes mantinham religião e tradições comuns, a Tropa X. Leah Garrett, acima mencionada autora do recente livro sobre os comandos, é professora e diretora do Centro de Estudos Judaicos do Hunter College, da Universidade de Nova York. Seu trabalho consumiu três anos de pesquisas e só ganhou robustez quando obteve permissão para consultar os arquivos militares secretos do Reino Unido. Antes, Garrett já tinha feito pesquisas em diferentes instituições detentoras de arquivos relativos à 2ª Guerra e associações de veteranos. Ao mesmo tempo, localizou descendentes dos comandos da Tropa X que lhe foram receptivos e a abasteceram com cartas, diários e fotografias de seus pais. Ela soube que dois dos 87 comandos ainda estavam vivos e deles colheu valiosos depoimentos. Garrett pesquisou também os arquivos existentes em Kew, na Inglaterra, nos quais encontrou descrições mais pormenorizadas sobre as atividades dos comandos. Indagada, numa entrevista, como definiria os perfis dos componentes da Tropa X, respondeu: “Imbatíveis”. E prosseguiu: “Eu me dediquei ao livro enquanto lecionava em Hunter, uma faculdade com tradição em temas históricos. Naturalmente meus alunos não eram todos judeus e pude observar como ficavam fascinados quando fazia alguma menção à existência da Tropa X. Apurei que, mesmo depois do fim da guerra, muitos de seus membros preferiram manter em segredo seus sobrenomes verdadeiros e seu engajamento no Exército britânico porque ainda tinham parentes vivos na Alemanha e temiam que estes viessem a ter algum tipo de problema com o rancor de outros alemães”.


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Em outra entrevista, concedida ao Museu Nacional da Segunda Guerra, sede em Nova Orleans, uma de suas importantes fontes de pesquisa, a autora revelou que como depois do conflito a maior parte dos integrantes da Tropa X tinha conservado os sobrenomes recebidos ao serem recrutados em Londres, estes acabaram permanecendo com seus filhos e netos e daí a dificuldade enfrentada para encontrá-los. O livro de Leah Garrett aborda em capítulos distintos os passos percorridos por alguns dos membros da Tropa X. Ela diz que os escolheu tendo em vista as disparidades de suas origens, formações e identidades judaicas. Um dos casos mais interessantes é o de Colin Anson, nascido em Frankfurt, cujo verdadeiro nome era Claus Ascher, filho de pai judeu e mãe não-judia, tendo sido educado sem a menor ideia de sua ancestralidade. O pai só lhe expôs essa condição quando ele era adolescente. Em 1937, seu pai, Curt, foi preso por ter participado de uma manifestação contra o Nazismo e enviado para o campo de concentração de Dachau. Duas semanas depois, um soldado da Gestapo chegou à casa da família e informou que Curt havia morrido por causa de um “problema circulatório”. No ano seguinte, quando foi desencadeada a Noite dos Cristais, a mãe de Anson decidiu tirar o filho da Alemanha porque conforme as leis raciais nazistas ele era considerado integralmente judeu. O jovem foi embarcado num Kindertransport e desembarcou em Londres em fevereiro de 1939. Quatro anos mais tarde, já engajado na Tropa X, servindo na Real Marinha Britânica, foi ferido a bordo do navio de comandos Queen Emma. Recuperado, integrou as forças que invadiram

a Sicília e participou da libertação da Iugoslávia e da Albânia. Foi promovido a sargento e retornou à Itália, onde encerrou sua carreira militar. Fredie Gray, na origem Manfred Gans, nasceu em 1922 na cidade de Borken, no noroeste da Alemanha. Tinha 16 anos quando, graças a outro Kindertransport, foi mandado por seus pais, judeus observantes, para a Inglaterra. Foi ativo em sucessivas missões da Tropa X e se destacou nos serviços de interrogatórios por sua extrema

talvez seus pais tivessem sido levados. Este campo, instalado pelos alemães em novembro de 1941, servia como uma escala anterior à deportação para os campos de extermínios. Porém, cumpria outra finalidade: era o “gueto modelo de Hitler”, ou seja, uma farsa destinada a desacreditar as informações que chegavam ao Ocidente sobre as atrocidades cometidas contra os judeus pela Alemanha nazista. No verão de 1942, essa farsa se consumou a propósito de uma visita de inspeção

Manfred Gans (primeiro à esquerda) COM COMPANHEIROS

habilidade neste particular. Quando a guerra terminou, Gans se fixou num objetivo de forma obsessiva: reencontrar os pais. Ainda vestindo uniforme, conseguiu que um alto oficial da força de ocupação lhe confiasse um jipe. Dirigiu durante dois dias e duas noites, atravessando a Alemanha e a Holanda, até atingir a Checoslováquia, onde se localizava o campo de concentração de Theresinstadt e para onde, conforme uma imprecisa informação que lhe havia chegado, 29

Quando foi lançado o filme “Bastardos Inglórios”, de Quentin Tarantino, a filha de Masters declarou: “Aqueles comandos que aparecem no filme fizeram tudo que meu pai fez”.

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HISTÓRIA

FAMÍLIA GANS EM ISRAEL, APÓS A GUERRA. DE PÉ, ATRÁS, MANFRED ESTÁ À DIREITA

que a Cruz Vermelha Internacional fez a Theresienstadt. A propaganda alemã produziu um filme no qual os judeus apareceram sendo servidos num belo restaurante, assistindo a peças de teatro e concertos musicais além de receber cuidados médicos. Tudo foi montado com esmero cenográfico e contou com a participação dos judeus confinados que foram obrigados a participar daquelas encenações. Dos 140 mil prisioneiros que por ali passaram 90 mil foram encaminhados para outros campos, 40 mil morreram ali mesmo e 10 mil sobreviveram. Manfred Gans encontrou o pai e a mãe vivos no já desativado campo de concentração que ainda abrigava sobreviventes. Anos mais tarde, disse numa entrevista: “Meu pai tinha definhado de tal maneira que se eu cruzasse com ele na rua, não o reconheceria”. A casa da família na Alemanha havia sido destruída e ele simplesmente não tinha para onde levar os pais. Como membro das forças aliadas, teve inusitado acesso à Princesa Juliana, da Holanda, que regressara a Amsterdã depois do exílio no Canadá. A princesa resgatou os Gans e os encaminhou para

Eindhoven, de onde emigraram para a Palestina sob Mandato britânico, ao encontro de um filho mais velho que lá vivia desde antes da guerra. Manfred voltou para a Inglaterra, mas declinou de participar das equipes de interrogatórios e deu baixa do Exército. Preferiu estudar Engenharia Química, graduandose na Universidade de Manchester. Emigrou para os Estados Unidos onde alcançou prestígio profissional com seu sobrenome verdadeiro. Morreu em Nova Jersey, aos 88 anos de idade. Peter Masters, nascido em 1922, em Viena, com o nome de Peter

Arany, permaneceu fiel a seu passado de comando do Exército britânico. Emigrou para os Estados Unidos depois da guerra e foi incansável ao percorrer o país durante anos fazendo palestras sobre suas atividades secretas como militar. Inclusive voltou a Viena, onde falou aos alunos da escola primária em que havia estudado. Em 1997, lançou um livro de memórias intitulado Striking Back: a Jewish Commando’s War Against the Nazis (Atacando de Volta: a Guerra de um Comando Judeu Contra os Nazistas, em tradução livre). Em 1938, após a anexação da Áustria, Peter viu-se obrigado a brigar nas ruas contra os jovens nazistas que o assediavam e nada pôde fazer quando foi confiscada a chapelaria pertencente à sua mãe, viúva, e uma tia. Decidiu que era hora de partir. Deixou tudo para trás, cruzou a França e chegou à Inglaterra. Para se sustentar, foi trabalhar como lavrador fora de Londres e só sossegou quando conseguiu que o resto da família viesse ao seu encontro. Em 1939, assim como aconteceu com outros refugiados alemães e austríacos, foi preso e levado para um campo de internamento. (A mesma sorte coube aos japoneses nos Estados Unidos, depois de Pearl Harbor). Àquela altura chegou ao conhecimento de Peter que o Departamento da Guerra buscava voluntários para desempenhar funções de “natureza arriscada”. Apresentou-se e foi chamado para uma entrevista. Quando lhe perguntaram a razão pela qual pretendia lutar, respondeu: “Porque esta guerra começou contra mim”. Aceito, passou a ter outra identidade. Chamava-se Peter Masters, sua certidão de nascimento tinha registro de Londres e ele era membro da Igreja Anglicana. Alistouse no pelotão de comandos Queen’s

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Own Royal West Kent Regiment. Depois foi transferido para a Tropa X e entrou em combate no Dia-D, quando saiu de um veículo anfíbio e pisou na areia de numa praia da Normandia, sob intenso fogo alemão. Masters integrava o grupo de combatentes ciclistas que os ingleses haviam criado na 1ª Guerra Mundial e estava de novo em atividade. Embora desse a impressão de ser uma forma rudimentar de movimentação, na verdade o núcleo ciclista era importante para a transmissão de ordens e mensagens se os sistemas de comunicação por rádio estivessem por algum motivo indisponíveis. Kim Masters, jornalista americana, filha de Peter, escreveu que um comando amigo de seu pai, chamado Fredie Gray, na verdade Manfred Gans, tinha sido ferido e lhe pediu: “Se eu morrer prometa que vai procurar meus pais. Parece que eles foram levados para a Checoslováquia, onde há um campo de concentração chamado Theresinstadt”. Quando foi lançado o filme “Bastardos Inglórios”, de Quentin Tarantino, a filha de Masters declarou: “Aqueles comandos que aparecem no filme fizeram tudo que meu pai fez”. Depois da guerra, Peter Masters se matriculou na Faculdade de Artes e Design, em Londres. Seu talento lhe valeu uma bolsa de estudos para a Universidade de Yale, nos Estados Unidos. Radicou-se em Washington e passou a trabalhar na concepção e execução de cenários para a televisão até tornar-se presidente do Clube Nacional das Artes, na capital americana. Quando seu livro de memórias foi lançado, disse numa entrevista: “Nós, combatentes judeus, sempre nos lembramos de que cumprimos a sagrada missão de eliminar um

Era uma missão que só poderia ser desenvolvida por um ou mais voluntários que se dispusessem a agir na França ocupada pelos alemães.

MEMORIAL EM ABERDOVEY CELEBRA A TROPA X. NO ENTANTO, O MONUMENTO NÃO MENCIONA QUE SEUS INTEGRANTES ERAM JUDEUS

sistema monstruoso que queria nos destruir e destruir nossa civilização”. Masters morreu aos 83 anos, em março de 2005, vítima de um infarto enquanto se divertia numa partida de tênis. Em 1944, os aliados elaboraram um plano de contraespionagem que consistia em fazer com que os alemães acreditassem que a invasão na França se daria em Calais, distante das praias da Normandia, local do verdadeiro ataque.

O plano foi supervisionado por Lord Mountbatten, um dos principais comandantes das forças aliadas e que tinha especial apreço pela Tropa X. Um dos escolhidos para a missão foi Stephen Rigby, nome de guerra de Stefan Rosenberg, judeu nascido em Frankfurt. Stefan saltou de paraquedas atrás das linhas inimigas e, depois de uma série de peripécias, sempre posando como alemão adepto de Hitler, teve a incrível habilidade de convencer os oficiais nazistas de que espiões infiltrados em altos escalões na Inglaterra haviam apurado o local exato da futura invasão: Calais. Rigby conseguiu voltar para a Inglaterra e alardeou de forma mirabolante que, num encontro pessoal, tinha convencido o próprio general Rommel sobre a falsa informação. Como diz o provérbio italiano, sua história pode não ser verdadeira, mas é bem inventada. Zevi Ghivelder é escritor e jornalista.

Museu Nacional da Segunda Guerra, em Nova Orleans

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DESTAQUE

ITZHAK Herzog, novo presidente DE ISRAEL POR JAIME SPITZCOVSKY

O décimo-primeiro presidente da história de Israel, ITZHAK Herzog, iniciou seu mandato em julho com claras intenções: contribuir para amenizar a polarização política dos últimos anos, estimular diálogos entre setores da sociedade israelense e fortalecer pontes com as comunidades da diáspora.

E

para enfrentar essa tarefa, Herzog apresenta um dos mais impressionantes e volumosos currículos de vida pública no país e carrega ainda a tradição de uma família profundamente envolvida na história do Estado Judeu. O novo morador do Beit Hanassi, residência presidencial em Jerusalém, é filho de Chaim Herzog, sexto presidente de Israel, no cargo entre 1983 e 1993. Também é sobrinho de um dos pais da diplomacia israelense, Abba Eban, chanceler (1966-1974), representante junto à ONU (1949-1959) e embaixador em Washington (1950-1959). O avô do presidente, Yitzhak Halevi Herzog, foi rabinochefe ashquenazi em Israel de 1936, ainda nos tempos do Mandato Britânico, até 1959. O líder religioso nasceu em 1888 na cidade polonesa de Lomza, e, aos 10 anos de idade, desembarcou com os pais no Reino Unido. Foi rabinochefe na Irlanda entre 1922 e 1936, depois de liderar a comunidade de Belfast. Além da preparação rabínica, estudou na Sorbonne e na Universidade de Londres. O neto do rabino carregou herança familiar na posse como presidente de Israel. Trouxe uma Torá que 32

pertenceu à sua avó, Sarah, desde os tempos em que moraram em Glasgow, na Escócia, e que esteve também na cerimônia para oficializar seu pai, Chaim, no cargo de chefe de Estado. Essa Torá também acompanhou o rabino Yitzhak Halevi Herzog em viagens pela Europa após o Holocausto, destinadas a localizar crianças judias em orfanatos e trazê-las de volta ao convívio da comunidade. Na cerimônia de posse em Jerusalém, Itzhak Herzog fez um discurso condensando objetivos de seu mandato de sete anos. Destacou, sobre as divisões na sociedade israelense, a importância de “baixar o tom, reduzir as chamas e acalmar”. “Determinarei como objetivo, todas as manhãs, ser presidente para todos”, sustentou. “Em tempos normais, essa tarefa soaria quase ingênua. Infelizmente, no entanto, estes não são tempos normais”. O novo presidente assinalou: “Estes são dias em que a qualidade de estadista foi varrida pela polarização; dias nos quais o etos unificador, os valores que compartilhamos estão mais frágeis do que nunca”. O tom da busca por conciliação ecoava esforços de seu antecessor, Reuven Rivlin, também empenhado em enfrentar as consequências da crise política responsável


REVISTA MORASHÁ i 112

por levar o país a quatro eleições em cerca de dois anos, um recorde nos 73 anos desde a independência. Como em Israel vigora o parlamentarismo, o chefe do poder executivo, responsável por governar, é o primeiro-ministro, geralmente o líder da bancada majoritária no Knesset (Parlamento). O presidente corresponde ao chefe de Estado e tem funções, em sua maioria, cerimoniais, embora guarde poderes como o de conceder indultos e coordenar o processo de formação de um novo governo, após a realização de uma eleição. Vários presidentes de Israel ultrapassaram as fronteiras do cerimonialismo e buscaram exercer um papel de “pai da nação”, defendendo valores como democracia e harmonia social, invariavelmente assumindo uma

posição suprapartidária e deixando de lado o passado de envolvimento político. Reuven Rivlin, por exemplo, foi deputado, ministro e carregava longa militância no Likud, enquanto Herzog chegou a liderar o Partido Trabalhista, em uma trajetória com passagens por diversos setores das estruturas de poder em Israel.

ITZHAK HERZOG E REUVEN RIVLIN

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O discurso suprapartidário de Herzog levou-o a bater o recorde de votos na eleição para presidente, ocorrida no Knesset. Ele amealhou o apoio de 87 dos 120 deputados, o que demonstra apoio de partidos à direita e à esquerda. Sua adversária, a ativista social Miriam Peretz, obteve 26 votos. Na véspera da posse, Herzog foi ao Muro das Lamentações, rezou e deixou um bilhete no qual mencionou seu comprometimento com “a união do nosso povo e o verdadeiro amor por Israel”. E, quando da cerimônia para iniciar o mandato, marcada também por toques de shofar, ele disse estar “embarcando numa jornada entre as linhas das divisões e rupturas da sociedade israelense” e que “buscaria ser um unificador entre as diferenças, uma ponte entre as lágrimas”. setembro 2021


DESTAQUE

de Inteligência e, nessa atividade, conheceu a hoje advogada, Michal Afek, com quem se casou e teve três filhos.

ITZHAK HERZOG É EMPOSSADO PRESIDENTE DE ISRAEL NO KNESSET. JERUSALÉM, 7 DE JULHO DE 2021

Itzhak Herzog acumula rara experiência e conhecimento sobre a sociedade e as estruturas de poder de Israel, obtidas a partir de seu convívio familiar e de sua carreira política. Nasceu a 22 de setembro de 1960, em Tel Aviv, filho do irlandês e também general Chaim e de Aura, originária de Ismaília, cidade no Egito, onde vivia sua família ashquenazi. Enquanto Chaim ocupava a função de representante de Israel junto à ONU, de 1975 a 1978, Itzhak

estudou na escola nova-iorquina judaica Ramaz, e, no ensino superior, passou pela Universidade Cornell, para graduar-se em direito na Universidade de Tel Aviv. Trabalhou alguns anos no escritório de advocacia Herzog, Fox e Neeman, fundado por seu pai. A formação intelectual foi marcada por um importante intervalo: o serviço militar. O major Itzhak Herzog trabalhou na unidade 8200, uma das mais prestigiosas na área

ATRÁS, DA ESQUERDA PARA A DIREITA, RONIT HERZOG, MICHAEL HERZOG, SUZY EBAN, ABBA EBAN E Itzhak HERZOG. SENTADOS, AURA E CHAIM HERZOG

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O atual presidente começou, nas estruturas governamentais, como assessor do então primeiro-ministro Ehud Barak, em 1999. A partir de então, tornou-se uma das figuras mais presentes do universo político, liderando seu partido, o Trabalhista, ou ocupando cargos de deputado ou de ministro em várias pastas, como Bem-estar e Serviços Sociais, Turismo, Habitação e Construção. Liderou também o Ministério para Diáspora, Sociedade e Luta contra o Antissemitismo. Em 2018, elegeu-se presidente da Agência Judaica, responsável por programas de imigração a Israel, de fortalecimento de laços com a diáspora e combate ao antissemitismo, além de responder por diversas iniciativas de apoio a setores vulneráveis da sociedade israelense. Conhecido pelo apelido de “Bougie”, o novo presidente de Israel, dono de uma fala mansa e de inconfundível elegância, mergulha no papel de chefe de Estado e, nos primeiros dias de sua administração, já mostrou uma agenda intensa e diversificada. Recebeu líderes comunitários israelenses, conheceu programas sociais em Tel Aviv, visitou uma sinagoga em Ashkelon, participou da inauguração da Embaixada dos Emirados Árabes Unidos em Israel, conversou por telefone com o rei Abdullah, da Jordânia. Começava assim mais uma era Herzog na história do Estado Judeu. Jaime Spitzcovsky COLUNISTA DA “FOLHA DE S.PAULO”, FOI CORRESPONDENTE DO JORNAL EM MOSCOU E EM PEQUIM.


israel

Saúde em Israel, exemplo de gestão de sucesso A campanha de vacinação contra a Covid-19 em Israel, iniciada ainda em dezembro de 2020, colocou o país nas manchetes da imprensa mundial. Em todas as reportagens, um ponto em comum: a eficiência do Sistema Nacional de Saúde Israelense. garantido pela lei local, APOIA-SE NAS quatro seguradoras nacionais de saúde – as Kupot Cholim – e EM dezenas de hospitais que atendem 100% da população.

c

omeçando bem antes de sua independência, em 1948, e ao longo das décadas seguintes, Israel construiu um robusto sistema público de saúde, de alto padrão. De acordo com o índice Bloomberg de 2020, o país está entre os 10 países mais saudáveis do mundo, com um dos mais eficientes sistemas de saúde.

A Lei Nacional do Seguro de Saúde, instituída em 1995, determina que todo residente de Israel é obrigado a ter um plano básico de saúde podendo escolher entre quatro seguradoras privadas, sem fins lucrativos, as Kupot Cholim (singular, Kupat Cholim). Foi essa lei que garantiu cobertura universal, durante a pandemia, a cidadãos e residentes permanentes no país.

Como todo sistema de saúde, enfrenta constantes desafios, como, por exemplo, a necessidade de mais leitos hospitalares em virtude de sua crescente população. Os hospitais ficavam cheios mesmo antes da pandemia. Porém, todos os residentes permanentes, independendo de sua condição financeira, vivem dignamente, sabendo que, se necessário, terão acesso a um atendimento médico/hospitalar de alta qualidade.

O investimento do governo na área é significativo e os seguros são altamente subsidiados. O sistema de seguro obrigatório é financiado por meio de um imposto de renda nacional, um imposto específico para a saúde, contribuições das pessoas seguradas, além de outros repasses governamentais. O orçamento estatal israelense também designa uma verba anual para pesquisas médicas/científicas, visando o constante avanço na medicina. Os quatro setores centrais do sistema de saúde são os Ministérios da Saúde e da Fazenda, as quatro seguradoras (Clalit, Maccabi, Meuhedet e Leumit) e o Instituto Nacional de Seguridade (Bituach Leumi), coordenador do sistema e responsável pelo recolhimento

O êxito no atendimento à Saúde advém do modelo adotado pelo governo de Israel. O Sistema Nacional de Saúde israelense é fruto de uma parceria entre o governo e a iniciativa privada. 35

setembro 2021


israel

Hospital Hadassah ein Kerem, nas montanhas de Jerusalém, vista aérea

das contribuições, de acordo com a Lei Nacional do Seguro Saúde. As contribuições são transferidas para os quatro convênios, as Kupot Cholim. Em Israel, atualmente, além do seguro público de saúde, há também seguros privados. Além de fornecerem o seguro saúde, as Kupot Cholim desempenham um papel direto na prestação de serviços médicos, empregando médicos e administrando clínicas. Durante a pandemia, foram responsáveis por coordenar a campanha de vacinação contra a Covid 19. As seguradoras são altamente regulamentadas pelo governo. Segundo a legislação, não se pode negar a ninguém um seguro saúde devido à idade avançada ou doenças pré-existentes e todo cidadão tem direito de trocar de convênio até duas vezes no ano.

exigido por lei, mas a disponibilidade de serviços pode diferir de localidade a localidade. Estas cestas básicas incluem consulta a profissionais de várias especialidades, serviços de diagnóstico e de laboratório, internação, pré-natal e parto, e descontos em medicamentos prescritos, além de cirurgias diversas.

Campanha de Vacinação contra a Covid-19

O plano básico, obrigatório a todo residente, inclui uma cesta de serviços, tratamentos e medicamentos, anualmente definida pelo Ministério da Saúde. Todas as seguradoras fornecem uma cesta básica idêntica de serviços, conforme 36

A cesta básica inclui uma ampla gama de serviços, tratamentos inovadores e tecnologias de alta qualidade, como, por exemplo, transplantes de órgãos e tratamentos e medicamentos de fertilidade. Anualmente há uma discussão sobre o que incluir nessa cesta. A cada ano, são incluídos novos tratamentos empregando novas tecnologia de ponta. Em 2016, por exemplo, foram adicionados medicamentos recém-lançados contra o câncer, aparelhos auditivos para adultos,


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alimentação especial para pacientes com Esclerose Lateral Amiotrófica e medicamentos para déficit de atenção em crianças. Segundo a política do Bituach Leumi, a agência de previdência social de Israel, o direito à previdência e ao seguro saúde é determinado pela residência, não pela cidadania. A definição de residência se baseia no fato do indivíduo ter ou não a vida centralizada em Israel.

acesso imediato ao plano de seguro desejado, ao chegar ao país. No caso dos olim, ainda dentro do período de um ano, quando começam a trabalhar eles passam a fazer contribuições mensais para o seguro, de 3,1 a 5% do salário, assim como os demais residentes de Israel. O imposto sobre saúde é cobrado como um percentual do salário/renda e não como um

As empresas são obrigadas por lei a deduzir do salário de seus funcionários as contribuições para o seguro, enquanto os autônomos devem efetuar o pagamento por conta própria. Os aposentados têm as contribuições deduzidas de suas pensões, assim como os beneficiários do seguro-desemprego. As pessoas que não trabalham, mas possuem renda, pagam um imposto

Entre os critérios para determinar residência estão: o local de residência permanente (ou seja, morar em Israel por mais de 183 dias por ano), onde reside sua família, onde seus filhos estão sendo educados e qual seu principal local de trabalho ou estudo. Ainda segundo a política do órgão, se o indivíduo mora em Israel com visto de estudante, sem ter oficialmente feito Aliá (processo de imigração ao país), ainda assim pode ser considerado residente e elegível ao pagamento das contribuições mensais, com acesso aos serviços. Os olim chadashim, ou novos imigrantes, têm direito a até um ano de seguro saúde gratuito para o nível básico de cobertura, se não estiverem trabalhando. No passado, pelo fato de muitas pessoas terem passado por um “suposto processo de Aliá” com o intuito de se tratar em Israel e depois retornar aos seus países de origem, alguns procedimentos e tratamentos mais custosos deixaram de ser cobertos durante o primeiro ano. O seguro saúde pode ser feito no dia da chegada a Israel, ainda no Aeroporto Internacional BenGurion, ou nas semanas seguintes. As autoridades sugerem que os olim se informem sobre os planos antes de imigrar, podendo assim ter

Telemedicina em Israel

valor fixo. Dessa forma, a renda é distribuída entre os grupos que estão melhor economicamente de modo a beneficiar os mais vulneráveis. Todos os cidadãos, independentemente do status de emprego ou idade (para maiores de 18 anos), devem fazer suas contribuições. São isentos de contribuição: pessoas com menos de 18 anos (mesmo que trabalhem), mulheres casadas que não trabalham e não recebem pensão e os que servem ativamente no exército. 37

específico para a saúde. Quem não pode pagar deve fazer uma petição ao Bituach Leumi e, comprovada a necessidade, passa a ter direito a auxílio financeiro. Para serviços não incluídos na cesta básica as seguradoras de saúde oferecem seguro complementar (Bituach Mashlim). Grande parte da população opta por essa possibilidade, como uma camada extra de “proteção” além do seguro saúde obrigatório. Essa cobertura mais ampla inclui planos odontológicos, oftalmológicos, setembro 2021


israel

PIONEIROS NO VALE DO HULA. CHAMADO NO PASSADO DE LAGO HULA, ANTES DE SER DRENADO ERA UM TERRENO FÉRTIL PARA OS MOSQUITOS TRANSMISSORES DA MALÁRIA

check-ups periódicos, transplantes e cirurgias no exterior segundo determinação médica, e medicamentos complementares que não fazem parte da lista do governo, entre outros. O pacote pode incluir também consultas com homeopatas e quiropratas. Os transplantes em Israel fazem parte da cesta governamental de serviços, mas o tempo de espera pode ser longo e muitos optam pelos planos complementares que oferecem esta possibilidade. Alguns transplantes no exterior também estão cobertos pela cesta básica quando o procedimento não pode ser obtido em Israel.

israelenses; o Macabi, de 1941, 25%; Meuchedet, de 1974, 14%; e Leumi, de 1933, 9%. A obrigatoriedade de adesão permitiu a criação de um cadastro nacional de cidadãos. Foi justamente esse cadastro o que facilitou, durante a pandemia da Covid 19, a comunicação com a população e a divulgação das datas e locais de vacinação, obedecendo ao cronograma definido pelo Ministério da Saúde. Fator fundamental, também, em outras tantas situações emergenciais que o país enfrenta.

Saúde como prioridade A história do sistema de saúde de Israel caminha paralelamente à história da criação do Estado. Os avanços da medicina e da saúde em Israel foram cruciais para erradicar doenças, aumentar a expectativa de vida da população e para a construção de um estado moderno e inclusivo. Israel é um país conhecido por seus avanços na ciência e medicina. A preocupação com a saúde antecede a criação do Estado de Israel e está presente na vida das

HOSPITAL SHAARE TZEDEK, AINDA EM CONSTRUÇÃO. C. 1901

Para melhor entender, uma família de quatro pessoas, dependendo do pacote contratado, paga por esses serviços complementares em média 400 shekels por mês (considerando o câmbio shekel/ dólar, equivaleria a cerca de US$ 120, ou aproximadamente US$ 1.440 ao ano). O convênio mais antigo do país é o Clalit, criado em 1913, que atende, atualmente, 52% dos 38


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comunidades locais desde o início do século 20, quando a região ainda fazia parte do Império Otomano. O primeiro hospital judaico, Shaare Zedek, foi inaugurado em 1902 na Cidade Velha de Jerusalém. Em 1911 foi criado o Fundo de Saúde dos Trabalhadores da Judeia, que viria a se tornar, em 1913, o Clalit, a primeira Kupat Cholim do país. Durante a 1ª Guerra Mundial, os hospitais judaicos ao redor de Jerusalém e Yaffo foram fechados pelas autoridades otomanas, os equipamentos médicos confiscados e a maioria dos profissionais recrutados. Os judeus americanos se mobilizaram para reconstruir o sistema médico da comunidade judaica na então Palestina Otomana. Em 1912, é criada nos Estados Unidos, pela Organização de Mulheres Sionistas da América, a Hadassah. Em 1913, a organização se estabelece na então Palestina Otomana. A Hadassah começa a arrecadar e reconstruir o sistema de saúde da região. A organização foi pioneira do modelo de medicina desenvolvido mais tarde em Israel, estabelecendo padrões elevados de atendimento e prática médica no sistema de saúde do país. Em 1918, em um terreno doado pela família Rothschild na Rua dos Profetas, em Jerusalém, é instalado o primeiro hospital da organização Hadassah. Sob o selo Hadassah University Medical Center, criou e desenvolveu uma série de serviços, inaugurando o primeiro hospital moderno, a primeira escola de medicina e enfermagem e, o mais importante, um ambiente favorável para o

surgimento e aprimoramento da pesquisa médica no país. Com esse apoio e doações internacionais, os hospitais judaicos foram reabertos, construindo-se um novo em Yaffo. Em 1919 foi a vez de Safed e Tiberíades e, em 1922, Haifa. Posteriormente, a Unidade Médica foi transformada na Federação Médica Hadassah, que passou a supervisionar o sistema de saúde do Yishuv, nome dado à população judaica que lá vivia.

Em 1920, após o final da 1ª Guerra Mundial, com a derrota e a Partilha do Império Otomano, os britânicos assumem o controle civil da Palestina. Em 1922, com mandato da Liga das Nações, inicia-se formalmente o Mandato Britânico na Palestina. A assistência médica à comunidade judaica local continuou negligenciada pelo poder mandatário. De modo geral, os judeus locais não estavam na lista de prioridades das autoridades britânicas e poucos investimentos

A COMISSÃO ANTI-MALÁRIA DA LIGA DAS NAÇÕES REALIZA INSPEÇÃO NOS PÂNTANOS DE KABARA, 1925

Luta contra a malária À época, eram precárias a qualidade de vida e saúde na Palestina. A malária matava milhares de pessoas ao ano e 20% da população era acometida pela doença, o que fez com que regiões inteiras fossem abandonadas. Alguns, no movimento sionista, acreditavam que a doença acabaria com a comunidade judaica na então Palestina Otomana. 39

foram feitos para atendê-los, enquanto sua população aumentava muito durante as primeiras décadas do século 20. Mas a Hadassah já havia iniciado suas atividades na Terra de Israel. Por outro lado, a questão sanitária passou a melhorar na região. A malária preocupava os britânicos. Em 1918, mais de 28 mil casos da doença foram relatados entre soldados britânicos na Força Expedicionária da Palestina Otomana. setembro 2021


israel Foto: Biblioteca Wellcome, Londrês

Foram criadas campanhas de vacinação contra a varíola e outras voltadas à erradicação da malária. Piscinas e cisternas eram sistematicamente pulverizadas com repelentes contra mosquitos. Em 1920, um microbiologista inovador, Dr. Israel Kligler, enviado e financiado por Louis Brandeis (o primeiro judeu a ter assento na Suprema Corte norteamericana), foi à Palestina para começar a campanha de erradicação da doença. Esse estudioso foi a primeira pessoa a elaborar um plano sistemático para erradicar a malária na região. Foram realizados vários estudos comparando o mapa de 1920 dos locais onde grassava a malária com o mapa da Partilha de 1947. Esses mapas demostram o poder que a doença teve em moldar o futuro Estado. As terras onde reinava a malária, como vales, pântanos e planícies costeiras, eram consideradas inutilizáveis. Essas foram as terras vendidas aos judeus e nas quais foram construídos seus assentamentos, mas esses idealistas não mediram esforços para drenar os pântanos e tratar as águas paradas. Infelizmente, milhares adoeceram no processo.

O DR. KLIGLER (SEGUNDO, DA DIREITA PARA A ESQUERDA) COORDENOU O CONTROLE DA MALÁRIA DANDO CURSOS NA UNIVERDADE HEBRAICA DURANTE A 2ª GUERRA MUNDIAL

fundamental para a erradicação da doença. Desde 1960, Israel é considerado um país livre de malária.

Expansão da Saúde e Criação do Estado

DR. ZALMAN GREENBERG, À ESQ., E DR. ANTON ALEXANDER COM A PUBLICAÇÃO DO DEPTO. DE SAÚDE - UMA ANÁLISE DO CONTROLE DA MALÁRIA NA PALESTINA (1918-1941)

Os hospitais Hadassah triplicaram seu número de leitos, foram construídos novos hospitais e criados fundos para seguros de saúde. Além da Hadassah, a Federação dos Trabalhadores de Israel (Histadrut) passou a ser responsável pelos serviços de saúde. Em 1946, a instituição já administrava dois

Portanto, a malária influenciou os contornos do assentamento judaico na Palestina, que mais tarde se tornaram as linhas divisórias para a Partilha. Até 1927, o combate à malária foi coordenado pela Hadassah. Em 1929, a Comissão Sionista e as autoridades britânicas uniram-se na implantação de um laboratório para pesquisa de malária em Rosh Pina, coordenado pelo epidemiologista Gideon Mer. Este instituto foi

FACULDADE DE ENFERMAGEM DO HADASSAH, JERUSALÉM, 1948-1949

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hospitais e centenas de clínicas e centros de saúde. Simultaneamente foram estabelecidos fundos privados para a área de saúde. Com o fim do Mandato Britânico e a independência do Estado de Israel, em 1948, o recém-formado governo assumiu a responsabilidade pelo setor sanitário através do Ministério da Saúde. Foram abertos escritórios regionais e serviços epidemiológicos, além da construção de hospitais e clínicas ao longo do território. No final de 1948, apenas 53% da população possuía seguros médicos, dos quais 80% eram atendidos pelo Clalit. Nas décadas seguintes, graças a novos investimentos, uma grande parte dos israelenses já possuíam convênios. Em 1973, entra em vigor uma nova legislação, determinando a contribuição patronal no seguro saúde dos funcionários. Ainda que o seguro de saúde não fosse obrigatório em Israel até o ano de 1995, 96% da população estava coberta por algum tipo de seguro quando da publicação da Lei Nacional de Seguro Social. O alto nível de adesão aos segurossaúde foi resultante de dois fatores: a anuidade era cobrada de acordo com a renda da pessoa ou da família e a disponibilidade dos serviços se baseava na necessidade – e não na capacidade de pagamento.

MATERNIDADE DO CENTRO MÉDICO SHAARE TZEDEK. EM 2019 22 mil BEBÊS NASCERAM NESTA ALA.

execução e financiamento público dos serviços médicos no país, garantindo uma cobertura básica para todos os cidadãos. Tal recomendação foi apoiada pelo então Ministro da Saúde Haim Ramon e aprovada pelo Parlamento (Knesset) em 1994. A nova legislação entrou em vigor no ano seguinte. Israel tem um dos sistemas de saúde tecnologicamente mais avançados e de melhor qualidade do mundo. Novas descobertas, novos estudos e pesquisas são anunciados continuamente. Seus hospitais possuem equipamentos sofisticados de última geração e seus profissionais são muito bem treinados.

A certificação de sete hospitais do país pela Joint Comission (organização internacional de certificação de serviços médicos) comprova esta realidade. Fazem parte da lista o Soroka Medical Center, em Beersheva; HaEmek Medical Center, em Afula; Meir Hospital, em Kfar Saba; Rabin Medical Center, em Petah Tikva; Kaplan Medical Center, em Rehovot; Carmel Medical Center, em Haifa; e Assuta Medical Center, em Tel Aviv. Nos anos 2019 e 2020, a revista Newsweek incluiu o Sheba Medical Center, em Tel Hashomer, em sua lista dos 10 melhores hospitais do mundo. Este hospital, atualmente, é o maior de Israel.

CENTRO MÉDICO RABIN, Petach Tikva

Em 1988, o governo formou uma Comissão Nacional de Inquérito para avaliar a efetividade e eficiência do Sistema Nacional de Saúde. O trabalho e as conclusões da comissão foram apresentados em um relatório no final de 1990. Sua principal recomendação foi a implantação de uma Lei Nacional de Seguridade para definir o gerenciamento, 41

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A Diáspora Babilônica na História Judaica É milenar a saga do Povo Judeu na “Terra entre os Rios”, como era chamada a antiga Mesopotâmia, região também conhecida como Babilônia – hoje, Iraque. LÁ nasceu nosso primeiro Patriarca – Avraham Avinu – e sua esposa, Sarah. E FOI para onde, um milênio mais tarde – após a destruição de Jerusalém e do Primeiro Templo – os judeus foram levados cativos. FOI TAMBÉM ÀS margens dos rios da Babilônia que o Judaísmo se fortaleceu e onde foi moldado o espírito que sustentaria o Povo Judeu na Diáspora.

s

Doze Tribos de Israel. Após a morte do Rei Salomão (935 ou 928 antes da Era Comum, a.E.C), seu filho Rechavam assume o trono. Dez tribos se recusam a aceitá-lo como rei e os Filhos de Israel, os Bnei Israel, dividem-se em dois reinos. O Reino de Israel, ao norte, passou a abrigar dez tribos e sua capital era Samaria, ao passo que o de Judá, ao sul, abrigava as duas tribos restantes – Yehudá e Binyamin -, e sua capital continuava sendo Jerusalém.

obre a importância da Diáspora babilônica, o Galut Bavel, como é conhecido em nossa história, o rabino Ezekiel Isidore Epstein1 escreveu: “Judá2 teve a mesma sorte que as Dez Tribos – o cativeiro. Mas enquanto as Dez Tribos desaparecem na poeira da História, fundindo-se com seus conquistadores, Judá sobrevive. E isso não foi tudo. Emergindo da provação severa do exílio e da aflição, Judá emergiria em um novo povo, …, os judeus, …, moldados e alimentados por uma fé que se manteve insensível às circunstâncias e ao ambiente que a cercava”.

No decorrer do século seguinte, os dois reinos enfrentaram dificuldades, conflitos entre si e guerras com outras nações. A paz e prosperidade retornaram na primeira metade do século 8 a.E.C, mas a bonança foi de curta duração, pois ambos os reinos caem em mãos inimigas e os Bnei Israel são exilados da Terra que o Eterno lhes prometera.

Pano de fundo É conturbada a história da Mesopotâmia, localizada no Crescente Fértil, entre os rios Tigre e Eufrates, pois sua localização estratégica atiçava a cobiça das grandes potências da época – Assíria, Babilônia, Macedônia, Roma e Pérsia – que a dominaram.

1

A história do Povo Judeu passa a estar interligada à “Terra entre os Rios” por volta do século 8 a.E.C., em grande parte em decorrência da divisão das

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Rabi Ezekiel Isidore Epstein (1894–1962), grande erudito e rabino ortodoxo inglês, foi Diretor de Ensino e, posteriormente, Diretor-geral do Jews’ College, em Londres. Ele é mais conhecido por ter sido o editor da primeira tradução completa ao inglês do Talmud Babilônico.

Refere-se aos habitantes do Reino de Judá.


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PORTÃO DE ISHTAR, O OITAVO PORTÃO ATÉ O CENTRO DA CIDADE DA BABILÔNIA, NO IRAQUE. FOI CONSTRUÍDO C. 575 A.E.C. POR ORDEM DO REI NABUCODONOSOR II

A queda do Reino de Israel No ano 745 a.E.C, Tiglate-Pileser III se torna rei da Assíria, levando, com suas campanhas militares, o Império Neoassírio à sua maior expansão. O rei assírio derrota o Reino de Israel em 733 a.E.C, obrigando-o a pagar pesados tributos e a lhe entregar parte de seu território. Os Filhos de Israel que viviam nessa parte do Reino, agora em mãos assírias, são deportados e outros povos são assentados em seu lugar. Os assírios adotavam essa estratégia político-militar para romper o elo entre os vencidos e sua terra.

Os exércitos assírios atacam Israel, o rei é aprisionado e, após um cerco de três anos, Samaria cai em mãos inimigas. O que restava do Reino de Israel se torna uma província assíria e sua população é deportada. De acordo com arquivos assírios, essa segunda deportação ocorreu no ano 721 a.E.C e incluiu 27.290 judeus. Uma parte foi levada para a “Terra entre os Rios”, então parte

do Império Assírio. O restante foi espalhado por outros cantos do Império. O destino das Dez Tribos foi pesaroso – a maioria se assimilou. As Dez Tribos desapareceram da História e se tornaram lenda. Hoje são inúmeros os grupos que acreditam descender das Dez Tribos perdidas de Israel. O Reino de Judá sobreviveria por mais 133 anos, mas assim como o Reino de Israel, acaba sendo derrotado e a maior parte do povo, levada para o cativeiro.

A queda do Reino de Judá No século 7 a.E.C., o Império Neoassírio está em declínio. Em 620 a.E.C., Nabopolassar assume o controle do território babilônico, torna-se rei e funda o Império Neobabilônico.

Cerca de dez anos mais tarde, o Rei Hosea recusa-se a pagar tributos à Assíria. A represália não tarda. 43

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babilônico. Mas, Jehoiakim3, rei de Judá, rebela-se contra a Babilônia. Os babilônios empreendem uma campanha militar punitiva para esmagar a rebelião de Judá. Jerusalém é sitiada. Em março de 597 a.E.C.4 os babilônios entram na cidade. Para impedir a destruição de Jerusalém, o rei Jehoiakim, no trono há apenas 100 dias, rende-se e é levado cativo. Acompanham-no ao cativeiro 10 mil dos mais notáveis cidadãos de Judá – entre os quais membros da família real, nobreza e exército, muitos Sábios e o profeta Ezequiel. Nabucodonosor coloca Zedequias no trono em Jerusalém. Mas apesar das admoestações do profeta Jeremias, encorajado por falsos profetas e pelo Egito, o rei Zedequias também se rebela contra a Babilônia.

Os problemas de Judá têm início 15 anos mais tarde quando Nabucodonosor II, então rei da Babilônia, derrota o Egito. Naquele tempo, por ser um estado tributário do Egito, Judá passa, consequentemente, para o domínio

Retornando, os exércitos babilônicos sitiam novamente Jerusalém. Depois de um cerco desesperado que dura dois anos, em agosto de 586 a.E.C.5 Nabucodonosor entra em Jerusalém e arrasa a cidade e o Templo Sagrado. Milhares de judeus são massacrados e cerca de 40 mil são levados cativos para a Babilônia.

Era o início da Primeira Diáspora – a “Diáspora babilônica “, o Galut Bavel. Como veremos a seguir, esse primeiro exílio foi de crucial importância para toda a história de nosso povo. Na Babilônia, os judeus não são escravizados – tampouco maltratados – e lhes é concedida autonomia comunitária e liberdade religiosa. Eles são assentados ao redor de Nippur, uma das maiores cidades do Império. Acreditam os historiadores que o motivo para isso fosse o fato de que lá já viviam outros grupos de judeus exilados. Um desses grupos era formado pelos cativos de Judá levados para a Babilônia 11 anos antes. Outro grupo era composto por descendentes das Dez Tribos que haviam sido deportados pelos assírios nas primeiras décadas do século 8 a.E.C.. A maioria se assimilara, mas os que haviam mantido sua identidade judaica se juntaram aos exilados de Judá. O Império Neobabilônico vivia naquele então um extraordinário progresso econômico. Historiadores acreditam que, por terem sido assentados em uma região de grande

RELEVO ASSÍRIO EM MURO, COM DETALHE DE UMA CAÇADA REAL DE LEÕES

Seu nome original era Elyakim, mas foi mudado para Jehoiakim pelo Faraó Neco, que o consagrou rei.

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Variam as datas, números de deportações e de deportados que aparecem nos relatos bíblicos.

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Há discrepâncias entre a datação rabínica e a acadêmica. Nesta matéria vamos adotar a datação acadêmica. Essa discrepância, chamada de “the missing years”, os “anos que faltam”, refere-se à diferença entre a datação rabínica da destruição do Primeiro Templo, em 423 a.E.C (3338) e a datação dos acadêmicos, 586 a.E.C. A subsequente datação manteria essa diferença.

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vitalidade, os cativos de Judá puderam rapidamente integrarse à vida econômica do império. Contudo, apesar dessa integração e da adoção do aramaico como idioma de seu dia a dia, os judeus não se mesclaram com as populações pagãs. Viviam e se casavam entre si e se apegaram com vigor à sua fé e à lembrança da Terra que lhes prometera o Eterno.

As palavras dos profetas Jeremias e Ezequiel As palavras de dois de nossos maiores profetas, Jeremias e Ezequiel, exerceram uma influência decisiva durante esse dramático período de nossa História. O profeta Jeremias viveu no Reino de Judá durante o período mais crucial de nossa História. D’us o havia incumbido de levar Sua Palavra ao Rei e ao Povo, alertando-os do perigo mortal que pairava sobre eles. O profeta os adverte de que se não se voltassem a D’us, os babilônios invadiriam Judá, Jerusalém cairia diante de Nabucodonosor e o cativeiro babilônico seria inevitável. Mas ninguém deu ouvidos ao profeta Jeremias – nem o Rei, nem o Povo, optando por ouvir os falsos profetas.

Ilustração reproduzindo o Primeiro Templo Sagrado de Jerusalém, ERGUIDO PELO REI SALOMÃO

Construam casas e habitem nelas; plantem jardins e comam seus frutos. Tomem esposas e tenham filhos e filhas ... e se multipliquem ...”. As profecias de Jeremias se provaram verdadeiras e, quando os judeus veem sua Terra arrasada pelos inimigos e Jerusalém e o Templo reduzidos a cinzas, caem no desespero. O profeta Jeremias é quem mais sofre com o terrível destino de seu povo, e ele registra seu amargo lamento no Livro de Eichá (Lamentações) – um dos livros do Tanach – que é lido em Tishá b’Av.

Contudo, nessa hora tão dramática, o profeta não abandona seu povo; Jeremias lhes dá esperanças. Revela que nem tudo estava perdido e que haveria um futuro esperançoso para os Filhos de Israel. O profeta iria ser a força espiritual que ajudaria seu povo a suportar, com bravura, a grande perda, e que apontaria o caminho que o levaria a uma futura redenção. Como vimos acima, o segundo profeta, Ezequiel, havia sido levado à Babilônia quando o Templo foi

GRAVURA ANTIGA QUE RETRATA OS ISRAELITAS A CAMINHO DO CATIVEIRO APÓS A QUEDA DE JERUSALÉM E DESTRUIÇÃO DO TEMPLO DE SALOMÃO

O profeta sabia que a sobrevivência do Povo Judeu dependia da perseverança dos exilados na preservação de sua fé e sua identidade judaica, apesar de estarem vivendo como uma pequena minoria entre outras nações, em uma terra que não lhes pertencia. Antes da catástrofe se abater sobre Judá, o profeta envia uma mensagem aos exilados na Babilônia: “Assim disse o Senhor das Legiões, D’us de Israel, a todos os exilados que exilei de Jerusalém para a Babilônia: 45

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COMUNIDADES

1.

2.

3.

1. Ilustração de O profeta Ezequiel, 1886 2. Ilustração de O profeta JeremiaS, 1886 3. ILUSTRAÇÃO “PELAS ÁGUAS DA BABILÔNIA”, PHILIP HERMOGENES CALDERON. TRATA-SE DE UMA REFERÊNCIA AO SALMO 137, NO QUAL O POVO JUDEU EXILADO EXPRESSA SUA SAUDADE DE JERUSALÉM APÓS SUA CONQUISTA PELOS BABILÔNIOS

destruído. Ele deixa de ser um profeta severo a partir do momento em que Judá cai e tudo parece perdido. Quando um desespero profundo toma conta dos judeus, Ezequiel se torna um profeta consolador, que inspira coragem e esperança no coração de seu abatido povo. Ele lhes assegura que D’us não os havia abandonado e, muito menos, Se esquecido deles. E profetiza sobre a futura redenção do Povo Judeu – sua volta à Terra de Israel e a reunião dos exilados vindos das terras de sua dispersão. Na Babilônia, Ezequiel pregava incessantemente o quão importante cada um deles era para D’us, preconizando que o renascimento de toda a Nação só poderia vir por meio de uma reconciliação de cada um dos judeus individualmente com D’us. Ele ensinava que todo judeu era responsável por sua vida e conduta e, ao mesmo tempo, tinha responsabilidade por sua comunidade e por toda a Nação Judaica. O profeta também repetia, incansavelmente, que a futura Redenção de Israel dependia da lealdade absoluta do Povo Judeu a D’us e à Sua Torá.

Mantendo vivo o espírito do Judaísmo

eles, sempre, independentemente de onde estivessem.

Essa nova percepção da realidade de um relacionamento pessoal com D’us, ensinada pelo profeta Ezequiel, foi de fundamental importância para o Povo Judeu. Significava que mesmo tendo sido exilados da Terra Prometida e de Jerusalém, e tendo o Templo sido destruído, os judeus ainda poderiam, individual e coletivamente, conectar-se com D’us e O servir, e o Eterno estaria com

Assim, o Beit Midrash – a Casa de Estudos de Torá – tomou o lugar do Templo Sagrado e as observâncias religiosas – especialmente a oração e o jejum – substituíram os ritos de sacrifício realizados pelo Cohen Gadol (o Sumo-Sacerdote) e os Cohanim no Templo Sagrado de Jerusalém. A sinagoga passou a desempenhar uma função essencial na vida do Povo Judeu, tornando-se o símbolo da democracia espiritual e religiosa. Ademais, diferentemente do Templo, que só podia estar localizado em Jerusalém, a sinagoga não se limitava a nenhuma localidade. Sob a influência do profeta Ezequiel, os judeus ergueram casas de orações e de estudo da Torá na Babilônia, e assim mantiveram vivo o espírito do Judaísmo.

JUDÁ, ETERNIZADO NOS VITRAIS DE CHAGALL.

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Por meio das Casas de Estudo e das sinagogas, o estudo da Torá se tornou mais acessível ao povo. Foi estabelecido que, em todo Shabat e em toda festa religiosa, seria lida e elucidada uma passagem da Torá, para que todas as pessoas, nas sinagogas, tivessem acesso à Palavra de D’us. Os Profetas e Sábios estavam cientes de


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que havia judeus que viviam longe de locais onde havia sinagogas; e, como a Lei não permitia o deslocamento deles no Shabat, os Sábios instituíram a leitura de um trecho da Torá nos dias de feiras – segundas e quintas-feiras – quando os judeus vinham para as aldeias. Essa deliberação persiste até nossos dias. Na Babilônia, muitos judeus se tornaram extremamente ricos e poderosos, mas outros tantos viviam na miséria. Os Sábios instituíram tradições cujo intuito era evitar que os mais pobres se sentissem humilhados. Muitas de nossas tradições, inclusive as relacionadas ao enterro, foram criadas com esse intuito.

condizente. Consequentemente, tornaram-se financistas e banqueiros. Houve judeus que ingressaram no serviço público e alguns ocuparam lugares de destaque na corte babilônica, entre eles, Daniel, Chananya, Mishael e Azarya, descendentes da família real do Reino de Judá, assim como Nehemias.

A Babilônia e a Terra de Israel O século 6 a.E.C. é palco de drásticas mudanças na geopolítica da

Em 539 a.E.C., o rei persa Ciro II, o Grande, entra vitorioso na Babilônia. Menos de um ano mais tarde, ele emite um decreto permitindo aos judeus retornar a Jerusalém e reconstruir o Templo. O rei os autorizou ainda a levar os objetos sagrados do Templo que os babilônios haviam capturado. Foi um momento de júbilo para os judeus, que haviam sonhado com a volta à Terra de Israel e a reconstrução do Templo. Mas quantos deles iriam voltar? Na Babilônia, viviam confortavelmente.

A vida na Babilônia Na “Terra dos dois Rios” os judeus seguiam a palavra de D’us transmitida pelos profetas. Os judeus se reergueram, trabalharam com empenho, prosperaram e se multiplicaram. Naquela época, a Babilônia era um centro vital de comércio e finanças. Na Terra de Israel, a maioria dos judeus haviam sido camponeses e criadores de gado. Na Babilônia, sua ocupação mais comum continuou sendo a agricultura, mas eles também passaram a atuar nas mais diversas atividades. Tornaram-se padeiros e cervejeiros; tecelões, tintureiros e alfaiates; construtores navais, marinheiros e pescadores, entre outras ocupações. Muitos se tornaram comerciantes e alguns trabalhavam com importação e exportação. As rotas de comércio da Babilônia os levavam a todos os cantos até então conhecidos no mundo. Uma atividade comercial em tal escala exigia um sistema bancário

RIO EUFRATES

região que inclui a Babilônia, e estas irão repercutir na história do Povo Judeu. A história do envolvimento de gerações de uma família judia no setor bancário internacional é documentada. A firma ‘Murashu and Sons’ – Banco Internacional – Seguros, Transmissão, Empréstimos – Bens Pessoais e Imobiliários, deixou para a posteridade seus documentos comerciais quase intactos. 47

Além disso, sabiam que o retorno à Terra significaria enfrentar inúmeras dificuldades. Os judeus que ainda viviam na Terra de Israel – os que não haviam sido levado cativos – eram pobres e, portanto, seria necessário levar grandes somas para a reconstrução de Jerusalém e do Templo. Em 538 a.E.C., aproximadamente 42 mil judeus deixaram a Babilônia setembro 2021


comunidades

rumo a Jerusalém, liderados por Zerubabel. Levavam consigo seus bens e as doações de ouro e prata feitas pela comunidade judaica e pelo rei. Ao chegar na Terra de Israel, porém, a alegria de ter retornado à sua Terra se dissipou diante da dura realidade vigente. Os anos que se seguiram foram marcados por conflitos, desentendimentos e agressões dos habitantes não judeus, que não viam com bons olhos a volta dos judeus à Eretz Israel. Finalmente, no ano 516 a.E.C, praticamente 21 anos após o retorno, a construção do Segundo Templo foi concluída. A inauguração ocorreu, conforme as profecias, 70 anos depois que o Primeiro Templo fora arrasado.

Ezra e Nehemias A Era do Segundo Templo se iniciou empobrecida, física e espiritualmente. O Templo era uma construção modesta e seria reformado por completo quatro vezes. Apenas durante a época de Herodes voltaria a ser uma das maravilhas do mundo. No Segundo Templo, não havia a Arca Sagrada – que continha as Tábuas dos Dez Mandamentos -, tampouco a Menorá de ouro, que havia sido feita por Moshé. Ademais, a comunidade judaica estava sob constante estado de sítio, ameaçada pelos vizinhos não-judeus, e se estava desintegrando espiritualmente. Será somente após a chegada de Ezra, o Escriba (Ezra HaSofer) e de Nehemias, vindos da Babilônia, que seriam criadas as sólidas fundações que permitiram o crescimento e o florescimento da vida em Eretz Israel. Quando Ezra chegou à Terra de Israel, em 458 a.E.C., acompanhado por uma segunda leva de judeus babilônios, ele se deparou com

PERSÉPOLIS, CENTRO DO GRANDE IMPÉRIO PERSA. A CONSTRUÇÃO DESTE IMPRESSIONANTE PALÁCIO FOI INICIADA POR DARIO I, C. 518 A.E.C.

uma comunidade judaica que se afundara espiritualmente. Muitos judeus estavam se assimilando – não eram poucos os casados com mulheres não judias. O Shabat, um dos mandamentos fundamentais do Judaísmo, era profanado.

Graças à sua grande força espiritual e poder de liderança, Ezra conseguiu, em relativamente pouco tempo, reverter essa situação. Convenceu os judeus a fortalecer sua conexão com D’us e a deixar as esposas não-judias. Ele instituiu que a Torá fosse lida publicamente, como na Babilônia, no Shabat e nas segundas e quintasfeiras. Contudo, os judeus ainda estavam enfraquecidos e sujeitos às ameaças das nações vizinhas. Nehemias nasceu na Babilônia e ocupava um importante cargo na corte de Dario, imperador persa. Quando toma conhecimento de que os samaritanos, enfurecidos com a inauguração do Templo, haviam invadido Jerusalém, destruído suas muralhas e saqueado a cidade, ele pede a Dario permissão para ir a Judá, prometendo que retornaria à Babilônia. O imperador concordou, dando-lhe um contingente militar e amplos poderes.

COLOCAÇÃO DA PEDRA FUNDAMENTAL DO SEGUNDO TEMPLO DE JERUSALÉM APÓS O CATIVEIRO NA BABILÔNIA. GRAVURA EM MADEIRA, JULIUS SCHNORR VON CAROLSFELD, 1960

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Nehemias governou Judá entre os anos 445-433 a.E.C. Durante esse período, liderou a reconstrução das muralhas de Jerusalém e incentivou os judeus a se defenderem


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militarmente de seus inimigos. Compeliu-os a cumprir o juramento que haviam feito a Ezra de se divorciar de suas esposas não-judias e tomou providências para garantir a observância do Shabat. Suas contribuições foram cruciais para o desenvolvimento da Nação Judaica na Terra de Israel. Nos séculos seguintes, Judá volta a ser o centro da vida judaica.

Domínio grego e persa A era aquemênida, que se iniciara quando os exércitos de Ciro entraram na Babilônia, encerrou-se dois séculos depois, em 331 a.E.C., quando Alexandre, o Grande, o macedônio, conquista a região.

político-culturais iranianas da Pérsia Antiga, conquista a Babilônia, a comunidade judaica babilônica passa a ser a única grande comunidade judaica que não se encontrava sob domínio romano.

A Babilônia ressurge como centro Intelectual judaico Roma conquistou a Terra de Israel no ano 63 a.E.C.. A primeira revolta contra Roma eclode um século

foram mortos, outros tantos levados como escravos. Roma impôs aos judeus que viviam na Terra de Israel várias sanções, uma delas especialmente grave: o decreto do imperador Adriano que colocaria o Judaísmo na ilegalidade. Nesse mesmo ano de 135 nasceu, na Terra de Israel, o Rabi Yehudá HaNassi, o Sábio cujos conhecimentos sobre a Torá lhe valeram, no Talmud, o título de Rabi (nosso Mestre). Rabi Yehudá

Nem a cultura babilônica nem a persa tinham por objetivo assimilar totalmente os judeus. Contudo, Alexandre era um oponente mais persistente e sutil, e visava a promover a helenização6 de todos os povos que conquistava. Por volta do ano de 312 a.E.C., a Babilônia ficou sob o domínio de Seleucus, um dos generais de Alexandre. Aos poucos ele iria dominar todas as terras que Alexandre havia conquistado na Ásia, incluindo a Terra de Israel. O grande debate a respeito da helenização, que muito influenciou os judeus da Terra de Israel, porém, pouco afetou a comunidade judaica da Babilônia. Quando em 126 a.E.C., o Império Parta, uma das principais potências

Helenização é um termo usado para descrever a difusão da cultura da Grécia Antiga É usado principalmente para descrever a difusão da civilização helenística durante o período que se seguiu às campanhas de Alexandre, o Grande, rei da Macedônia

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ANTIGO MOSAICO ROMANO RETRATA ALEXANDRE, O GRANDE, NA BATALHA CONTRA DARIO, IMPERADOR PERSA

mais tarde, em 66 E.C.. Quando Vespasiano, o general romano encarregado de debelar a revolta judaica, é empossado imperador, ele delega essa tarefa a seu filho, Tito. Em Tisha B’Av do ano 70, Tito conquista Jerusalém, fazendo tombar o Templo Sagrado. Era o início da Segunda Diáspora. A segunda revolta judaica na Terra de Israel, liderada por Bar Kochba em 135, teve consequências ainda mais graves. Quase 600 mil judeus 49

HaNassi foi o principal responsável pela compilação da Mishná, o resumo transcrito da Torá Oral, que D’us transmitiu a Moshé no Monte Sinai. Rabi Yehudá HaNassi temia que um tão vasto repositório de Leis – ou, ao menos, parte dele – pudesse ser esquecido pelas gerações seguintes, já que os judeus viviam sob ocupação de governantes estrangeiros ou no exílio. Essa preocupação o levou a fazer algo inédito: transcrever o núcleo da Torá Oral, para que ela nunca setembro 2021


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fosse esquecida. Para se entender a magnitude da contribuição e influência de Rabi Yehudá HaNassi, faz-se necessário lembrar que a Mishná constitui a pedra fundamental do estudo das leis da Torá. A Guemará, frequentemente chamada de “Talmud”, comenta e elucida os ensinamentos da Mishná. Juntas, as duas obras formam a base da Lei Judaica e de suas práticas. Sem o Talmud, a Torá Escrita não pode ser entendida em seu real significado, não podendo, tampouco, ser cumprida a maior parte de suas Leis. Ao compilar a Mishná, Rabi Yehudá HaNassi estava assegurando a sobrevivência do Judaísmo.

indicam que por volta do ano 70, havia cerca de um milhão de judeus na Babilônia. As comunidades mais importantes eram as de Nehardea, na junção do Eufrates com o Canal Real; Nisibis e Mahoze, no mesmo canal; e Sura, ao sul de Mahasiah. Em meados do 2º século, os judeus da Babilônia constituíam a mais sólida e próspera de todas as comunidades judaicas.

Comunidade judaica na Babilônia A opressão romana na Terra de Israel foi o grande propulsor para o crescimento da comunidade judaica na Babilônia, que, por quase dois séculos, havia aparentado estar dormente. Algumas passagens do Talmud Bavli, o Talmud Babilônico,

ESCRITURA DE ALUGUEL. DOCUMENTO DOS ARQUIVOS MURASHU DA FAMÍLIA DE COMERCIANTES E BANQUEIROS DA CIDADE DE NIPPUR. PLACA EM ARGILA COM INSCRIÇÕES CUNEIFORMES E EM ARAMAICO BABILÔNICO. SÉCULO 5 A.E.C.

BABILÔNIA ANTIGA, Iraque

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Os judeus do mundo sempre haviam dependido da liderança judaica na Terra de Israel para orientá-los quanto à prática das leis e tradições judaicas. Após a queda de Jerusalém e a destruição do Templo, muitos acreditavam que não haveria onde buscar orientação. No entanto, nesse momento crítico da história judaica, havia Sábios que não acreditavam que a derrota judaica fosse necessariamente fatal para a vida de seu povo. O estudo e a observância religiosa, afirmavam eles, garantiriam a permanência do Povo Judeu.


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Na Babilônia, a tolerância dos partas permitia aos judeus autonomia comunitária e liberdade religiosa. Isso levou milhares de judeus da Terra de Israel, entre eles muitos Sábios, a buscar refúgio permanente na Babilônia. Assim, a comunidade judaica da Babilônia ressurge como o grande centro intelectual, assumindo um papel ainda maior na vida judaica do que em qualquer época no passado e se firmando como o mais importante centro isolado de ensino judaico do mundo. Assim permaneceu até o início do século 11.

O Império Persa volta a dominar a Babilônia Após terem vencido os partas em 226, os persas voltam a assumir o governo da Babilônia. No século 3, os judeus gozam de autonomia religiosa, sob a liderança do Exilarca, o Resh Galuta – o “Príncipe do Cativeiro”. Líder oficial da comunidade judaica desde seus primórdios e descendente da Casa de David, é o Exilarca quem estimula o estabelecimento de academias rabínicas na Babilônia Central. Nessa época são fundadas as academias de Sura, ao sul do que é hoje Bagdá, e de Pumbedita. Em seu auge, essas ieshivot centralizavam toda a vida judaica. Os nomes de Sura e Pumbedita foram imortalizados pelo Talmud Bavli e seus eruditos são reverenciados até os dias de hoje. Um novo tipo de teocracia se fortalecia na Babilônia, constituído por rabinos que pertenciam a todas as classes sociais e cuja liderança era baseada exclusivamente no estudo e no grau de observância às leis do Judaísmo. No século 4, continuam a florescer os estudos rabínicos. Entre os

Babilônia, Iraque

maiores Sábios estão Abaye e Rava. É no final desse século que se inicia, na academia de Sura, a compilação do material para o Talmud Babilônico – o Talmud Bavli. Essa enciclopédia sagrada é selada por volta do ano de 530, passando a constituir a base do Judaísmo. Com seus ensinamentos, irradiaria conhecimentos e influenciaria todas as futuras gerações judaicas. O Talmud Bavli é a fonte primária de Teologia e Lei Judaica (Halachá). Tem dois componentes: a Mishná (c. 200) – um compêndio escrito da Torá Oral, e a Guemará (c. 500). A Guemará representa o ápice de mais de 300 anos de análise nas Academias Talmúdicas da Babilônia. A base desse processo foi lançada por Abba Arika (175247), comumente conhecido como Rav, que foi aluno de Rabi Yehudá HaNassi, redator-chefe e editor da Mishná. O Talmud Babilônico foi compilado por dois Sábios da Babilônia, Rav Ashi e Ravina II. Rav Ashi, um dos maiores líderes e Sábios judeus de todos os tempos, foi o presidente da Academia de Sura de 375 a 427. O trabalho iniciado por ele foi concluído por Ravina II. 51

O falecimento de Ravina II (filho de Rav Huna e sobrinho de Ravina I) no dia 13 de Kislev no ano 4236 (475 E.C.) é considerado o fim da era talmúdica. O Talmud Babilônico é constituído por 2.711 páginas. Foi escrito em hebraico mishnaico (da Era da Mishná) e aramaico babilônico e contém ensinamentos sobre uma variedade de assuntos, incluindo Lei Judaica (Halachá), ética, filosofia, história, sabedoria, costumes e tradições judaicos. Embora seja uma obra que concerne às leis da Torá, o Talmud também aborda alguns assuntos místicos e sobrenaturais. Após o falecimento de Ravina II, nenhuma adição foi feita ao Talmud. Na época em que o Talmud Bavli foi concluído, praticamente todo o Povo Judeu o aceitou como fonte suprema de Lei do Judaísmo. E foi o Talmud o que manteve forte e intacta a identidade do Povo Judeu ao longo de um exílio que duraria dois mil anos. Bibliografia

Rejwan, Nissim, The Jews of Iraq: 3000 Years of History and Culture, 1ª edição, 30 junho de 2020. eBook Kindle Iraq, Encyclopaedia Judaica, 2ª edição, Volume 10 setembro 2021


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Rabino Hirsch, o pai dO judaísmo ortodoxo moderno Por Iossef Katri

Era o ano de 1808 na cidade de Hamburgo, Alemanha, quando nascEU o futuro rabino Shimshon Refael Hirsch, filho do casal Refael e Guila Hirsch, dois jovens que formavam uma família rica e respeitada em sua comunidade. Em sua primeira infância, a educação religiosa do jovem Shimshon se deu no ambiente familiar. As aulas eram dadas por seu pai, homem religioso que atuava no comércio, e por seu avô, pai de seu pai, Menachem Mendel Frankfurter, rabino e comerciante.

P

juiz no tribunal rabínico de seu mestre, Frankfurter foi buscar seu sustento no comércio. Em uma estada em Berlim, conheceu Moses Mendelssohn (1729-1786) com quem manteria uma forte ligação.

aralelamente à educação que recebia em casa, Shimshon foi inscrito em um ginásio cristão onde aprendeu latim e outras matérias laicas. Depois do Bar Mitzvá, iniciou os estudos regulares de Talmud.

O contato de Frankfurter com Mendelssohn, considerado o pai da Haskalá, acabou influenciando a educação dada a seus filhos e netos. Um dos filhos de Frankfurter, por exemplo, chegou a mudar seu sobrenome para Mendelssohn-Frankfurter em homenagem ao escritor amplamente reconhecido por ter sido o primeiro judeu a ser admitido pela sociedade alemã com respeito e admiração.

De acordo com a definição do próprio Rabino Hirsch, sua família era “esclarecida e religiosa”. Ainda que esta não fosse uma combinação comum naquele tempo, o Rabino Hirsch, seguindo os passos de seu pai e de seu avô, foi a terceira geração de sua família a aliar estudos laicos a religiosos, sendo influenciado tanto pelo pensamento iluminista quanto pelo Judaísmo.

Além disso, seguindo as diretrizes do pensador e poeta Naftali Wessely, outro expoente da Haskalá, Frankfurter fundou, em 1805, uma instituição de ensino voltada a crianças judias órfãs e carentes na cidade de Hamburgo. A missão de sua escola era oferecer educação judaica religiosa ao lado de uma formação secular, a fim de proporcionar àquelas crianças a habilitação necessária para alcançar seu sustento com dignidade e respeito. Por seu ineditismo, a escola fundada por Frankfurter serviria de principal inspiração para o Rabino Hirsch quando da fundação de sua própria escola, quatro décadas

Para melhor ilustrar a relação da família Hirsch com a Haskalá, vertente judaica do Iluminismo, convém nos atermos um pouco mais sobre a trajetória de Mendel Frankfurter (1742-1823), avô e professor do Rabino Hirsch, que abriu o caminho que seria seguido por seus descendentes. Em sua juventude, Mendel Frankfurter estudou na ieshivá de Altona, um bairro na cidade de Hamburgo, sob a direção do renomado Rabino Yonathan Eibschuetz, onde prosperou em seus estudos. Apesar de atuar como 52


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Séc. 19. Fotografia da cidade de Frankfurt am Main. Orla marítima com os edifícios que foram destruídos na 2a Guerra Mundial

depois. Contudo, a despeito de seus laços com a Haskalá, a família Frankfurter-Hirsch se manteve dentro da Ortodoxia, havendo registros da veemente oposição de Mendel Frankfurter à inauguração de um templo reformista em Hamburgo, no ano de 1828. A saga da família FrankfurterHirsch pode ser entendida como um exemplo do caminho percorrido por parte do judaísmo europeu, em diferentes graus, a partir do advento do Iluminismo, entre os séculos 17 e 18, até o Holocausto. O Iluminismo foi um movimento que enfatizava a razão e os direitos naturais do homem e reivindicava a extensão da liberdade humana. E, assim que surgiu, tinha a religião entre seus principais alvos ao promover a aplicação do raciocínio lógico e da metodologia científica

das Luzes”, na maioria dos países europeus os judeus ainda estavam sujeitos a restrições e discriminações medievais. Os caminhos da emancipação judaica e da Haskalá, o Iluminismo judaico, iriam se cruzar.

rabino SHIMSHON REFAEL HIRSCH. Oldenburg (ENTRE 1830 E 1841)

a todas as áreas do conhecimento humano. O ser humano e a Ciência tomavam o lugar central que, até então, era ocupado por D’us e pela religião. Contudo, apesar da influência do Iluminismo, durante todo o “Século 53

Além das questões teóricas e filosóficas, as transformações políticas e tecnológicas do século 18 também tiveram um papel fundamental no estabelecimento da Haskalá em meio a uma nova condição judaica no Velho Continente. Em 1789 a Europa era sacudida pela Revolução Francesa. Dez anos mais tarde, os exércitos napoleônicos conquistam grande parte do continente, levando consigo os ideais revolucionários de liberdade e igualdade. Derrubam-se os guetos e os judeus são emancipados. Embora a Emancipação não tenha acontecido de modo linear, com muitas idas e setembro 2021


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Moisés Mendelssohn faziam-no a despeito e por causa de sua origem, como se fosse impossível que um judeu se destacasse intelectualmente, em uma celebração de seu próprio preconceito e antissemitismo. Mais adiante, na primeira metade do século 19, quando toda a Alemanha se rendeu à poesia de Heinrich Heine, nada foi suficiente para impedir que o poeta se visse forçado a se converter proforma ao Cristianismo, de modo a seguir adiante em sua carreira que já vinha enfrentando uma série de percalços em razão de sua origem.

LAVATER E LESSING EM VISITA A MOSES MENDELSSOHN (sentado, à esquerda). ÓLEO. MORITZ DANIEL OPPENHEIM, 1856

vindas e particularidades locais, sua efetivação foi de suma importância para os judeus da época. Começaram a ser admitidos na sociedade maior judeus e outras minorias que, até então, tinham tido seus direitos e deveres negados, fazendo com que capitalistas e intelectuais judeus se aproximassem, cada vez mais, dos não judeus e, pouco a pouco, assimilassem seu estilo de vida aos da burguesia local. Não surpreende o fato de que a parcela da coletividade judaica que melhor se integrava à sociedade maior tivesse a intenção de apagar os traços de um passado que a havia segregado. Emancipados, muitos judeus quiseram sair do gueto – literal e figurativamente – e não pouparam nenhum esforço para tanto. Esta tendência que se fez sentir em todo o judaísmo europeu foi ainda mais intensa nas comunidades alemãs, de

onde partiram as reações mais significativas. As respostas da comunidade a esses processos não obedeceram a nenhum padrão. Houve de tudo, desde conversões voluntárias ao Cristianismo, como meio de assimilação, até a mais completa rejeição às mudanças, posição vocalizada sobretudo pelo Rabino Moshé Schreiber, conhecido como Chatam Sofer (1762-1839). Mas, ao contrário do que aconteceu na Europa Oriental, o Chatam Sofer foi pouco ouvido na Alemanha, e a maior parte da comunidade germânica continuou a aderir à sociedade alemã sempre que novos espaços eram abertos aos judeus. Nunca é demais lembrar que este encadeamento histórico jamais se deu com harmonia e facilidade. No começo desse processo, ao final do século 18, os alemães que aplaudiam 54

Não obstante tudo isso, os anos se passaram e o encontro dos judeus alemães com a cultura local foi-se tornando tão profícuo que gerou alguns dos nomes que ficariam marcados para sempre como os maiores esteios da sociedade ocidental, até os dias de hoje, como Albert Einstein, Sigmund Freud, Franz Kafka, Walter Benjamin e tantos outros. Foi em meio a essa ebulição ideológica e intelectual do final do século 18 e início do século 19 que Mendel Frankfurter forjou sua atuação comunitária e a educação de sua família, exposta à riqueza religiosa e aos avanços da Ciência e da Modernidade. Desta forma, entre os anos 1826 e 1827, o futuro Rabino Hirsch completou seus estudos ginasiais e recebeu aulas particulares do Rabino Isaac Bernays (17921849), cuja esposa viria a ser avó de Sigmund Freud, e então seguiu à casa de estudos do Rabino Jacob Ettlinger (1798-1871), em Mannheim, onde iria receber sua ordenação rabínica, no ano de 1828. No ano seguinte, o Rabino ingressou na Universidade


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de Bonn para se graduar cientificamente, tal qual seus mestres religiosos, e estudar línguas clássicas, História e Filosofia. Em Bonn, iniciou uma relação de amizade e estudos com o Doutor Abraham Geiger, futuro líder do Movimento Reformista, com quem viria a antagonizar por décadas a fio em razão de divergências religiosas que se acentuariam cada vez mais.

uma religiosidade reprimida e uma idealização de um passado remoto, glorioso, que deveria ser resgatado.

1830-1841 (Oldenburg) No ano de 1830, aos 22 anos de idade, o Rabino Hirsch decidiu abandonar sua graduação em Bonn para aceitar o cargo de Rabino-chefe do condado de Oldenburg, que abrangia sete comunidades e contava com cerca de mil membros. Em 1831, casou-se com Hana ( Johanna) Ydel, filha de um banqueiro judeu, três anos mais velha que ele. Nos 11 anos em que permaneceu em Oldenburg, o Rabino Hirsch produziu algumas de suas obras mais importantes e que o inseririam em um amplo e efervescente debate sobre o futuro do judaísmo alemão. Como a comunidade judaica germânica assistia à consolidação do Movimento Reformista, tornavase imperativa uma resposta bem articulada por parte da Ortodoxia. Dada sua disposição em debater com representantes do Movimento Reformista e participar de discussões inter-religiosas com detratores do Tanach, o Rabino Hirsch se tornou o porta-voz mais eloquente da Ortodoxia e um ardoroso defensor de sua capacidade de conviver harmoniosamente com a Modernidade.

As Dezenove cartas de Ben Uziel, do Rabino Samson r. Hirsch

certa retração enfrentada pelo racionalismo Iluminista, na época. O culto exacerbado da Razão, praticado pelo Iluminismo, levou ao surgimento do Romantismo Alemão cujo objetivo era resistir às ideias iluministas combatendo o excesso de racionalismo e materialismo. A seu modo, o Romantismo Alemão expressava o retorno a

Com efeito, vários traços do Romantismo podem ser notados nas obras do Rabino Hirsch, que embora desgostasse da literatura tempestuosa de Goethe, tinha especial apreço pela poesia de Friedrich Schiller (17591805) e a forma como retratava os ideais de nobreza, justiça e moral, além de prezar por uma liberdade que não ultrapassasse os limites da lei. Tal apreço foi registrado em um tributo que o Rabino Hirsch proferiu a Schiller em uma noite de celebração organizada por sua escola, em Frankfurt, para homenagear o 100º aniversário do grande poeta. Seria plausível supor que a profunda relação mantida com o Romantismo e sua contestação à Modernidade tenham sido fundamentais para que o Rabino Hirsch tivesse a força e a audácia de fazer frente a todos os ataques dirigidos à religião pelo Iluminismo.

UMA RUA NA CIDADE DE OLDENBURG, ALEMANHA

A assertividade adotada pelo Rabino Hirsch em relação à Modernidade coincidiu com 55

setembro 2021


NOSSOS SÁBIOS

Assim, foi no ano de 1836 que o Rabino Hirsch se apresentou ao grande público como franco defensor da Ortodoxia judaica ao publicar o livro “Dezenove Cartas Sobre o Judaísmo”, ocasionando o rompimento de suas relações com Abraham Geiger e demais membros do Movimento Reformista. No ano seguinte, publicou o livro “Chorev: Ensaios Sobre os Deveres dos Judeus na Diáspora”, em que aprofundou as ideias levantadas em seu primeiro livro. O objetivo de ambas as obras era promover as tradições judaicas, ao explicá-las de forma racional e compreensível a um público laico que desconhecia o Judaísmo, além de buscar conter a evasão da Ortodoxia ao narrar as angústias que acometiam muitos dos que haviam deixado a Ortodoxia e aderido ao Reformismo. Tendo sido o primeiro pensador ortodoxo a responder a uma realidade em que metade ou mais de seu público-alvo era secular, seria possível dizer que os dois primeiros livros do Rabino Hirsch inauguraram, muito antes de seu tempo, toda a obra que visava a transmitir valores religiosos a leitores não observantes. No contexto desta atuação, o Rabino Hirsch adotou a expressão Torá im Derech Eretz (Torá com civilidade) como lema de sua ideologia. Ou seja, ao invés de afastar o Judaísmo da realidade de seu público, o Rabino Hirsch buscava a viabilização, em termos práticos e filosóficos, de um caminho que permitisse que todos os judeus mantivessem sua fé sem precisar alienar-se da sociedade ocidental em que estavam inseridos. O caminho da prática de Torá im Derech Eretz sofreu grande resistência tanto de pensadores

FAMÍLIA ROTHSCHILD EM ORAÇÃO. ÓLEO DE MORITZ DANIEL OPPENHEIMER

iluministas avessos à religião quanto de boa parte da Ortodoxia, que fazia questão de se manter apartada do que se passava a seu redor, o que não diminuiu a disposição do Rabino Hirsch em defender seu legado em diversas frentes e circunstâncias, adaptando e refinando o ideal que se tornou o fio condutor de toda a sua obra intelectual e comunitária. O ciclo do Rabino Hirsch em Oldenburg foi encerrado em 1841, quando aceitou um rabinato maior e mais desafiador. O seu posto rabínico foi ocupado por Bernard Weksler, um Rabino reformista radical que apoiava as posições controversas de Shmuel Holdheim em favor da flexibilização da proibição do casamento interreligioso e da realização do Shabat no domingo.

1841-1851 (Emden e Morávia) O Rabino Hirsch aceitou a tarefa de liderar uma comunidade um pouco maior no reinado de Hanôver e passou a morar na cidade de 56

Emden. Em 1843, dois anos após desembarcar em Emden o nome do Rabino Hirsch foi cogitado para um dos cargos mais cobiçados do Judaísmo europeu, o posto de Rabino-chefe da Morávia, região que hoje constitui a parte oriental da República Checa. Tendo que supervisionar a vida religiosa de 52 comunidades e uma população de 40 mil judeus, o rabinato da Morávia tinha a jurisdição mais extensa da Europa. Além da importância do cargo, o principal desafio do futuro Rabino da comunidade da Morávia seria lidar com a divisão interna que a assolava. De fato, os dias do Rabino Hirsch na Morávia foram muito turbulentos. Enquanto alguns setores ortodoxos não viam com bons olhos a forma ocidentalizada com a qual o Rabino Hirsch se apresentava, discordando de sua insistência em se comunicar apenas em alemão, os setores mais liberais da comunidade o pressionavam para que alterasse os textos das orações, no que também não foram atendidos.


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Naquele ano de 1847 o Rabino Hirsch ingressou na política e foi eleito representante pela cidade de Nikolsburg no Parlamento daquela província. Segundo relatos, o Rabino não atrelou sua atuação política à causa judaica, entendendo que as questões judaicas eram parte de uma luta mais ampla em favor de uma Constituição Liberal que viesse a beneficiar vários outros segmentos da sociedade. No ano seguinte, ocorreram as Revoluções de 1848, um conjunto de rebeliões e agitações que causaram grande abalo às estruturas sociopolíticas da Europa. Em consequência das jornadas da chamada Primavera dos Povos, foram derrubadas algumas monarquias, ao passo que eram conquistadas uma série de direitos para minorias e classes menos favorecidas. No bojo desses protestos, que contaram com a liderança de judeus, destacaram-se Karl Marx, à esquerda, e Ludwig Bamberger, à direita republicana, enquanto o Rabino Hirsch se engajava ativamente no movimento que lutava pela implantação da Emancipação Judaica, que, por sua vez, garantiria plenos direitos aos judeus residentes na Alemanha. Concedida em 1848, a Emancipação Judaica foi praticamente toda revogada com o revés da Primavera dos Povos, em 1849, conseguindo vigorar em poucas localidades até ser retomada nacionalmente em 1867.

que haviam vencido as eleições gerais comunitárias do ano de 1839. Contudo, como os ortodoxos haviam obtido um terço dos votos nessas eleições, graças ao apoio da prestigiosa família Rothschild, a comunidade da cidade não aceitou o resultado do pleito. Com as Revoluções de 1848, ambos os lados se sentiram encorajados a tomar medidas mais drásticas a fim de fortalecer suas posições. A maioria liberal decidiu elaborar uma nova constituição comunitária, a seu favor, ao passo que a minoria ortodoxa começou a se movimentar para pleitear a permissão governamental de se tornar independente da comunidade judaica oficial. Veio o ano de 1850 e os ortodoxos foram atendidos parcialmente e, apesar de terem que permanecer associados à comunidade judaica oficial, estavam liberados para fundar sua

comunidade. Esta foi chamada de Kahal Adat Yeshurun, ou Sociedade Israelita Religiosa (IRG), em sua nomenclatura alemã. O Rabino Hirsch andava cada vez mais desgostoso com as dificuldades que enfrentava para implementar seus projetos na Morávia. Assim, embora estivesse empregado em uma comunidade muito maior, o Rabino decide aceitar o convite da seção ortodoxa da comunidade de Frankfurt para lá iniciar um novo período em sua carreira. Não foram poucos os que estranharam sua decisão de abdicar de um rabinato tão importante em favor de uma comunidade pequena, com cerca de 100 famílias, recémfundada. No entanto, sua decisão de se mudar para Frankfurt foi muito acertada. Afinal, tratavase de uma cidade pujante e um dos maiores centros de abertura e liberalismo na Alemanha, sendo

SINAGOGA NA RUA DOS JUDEUS, FRANKFURT, 1860

Frankfurt (1851-1888) Os direitos conquistados durante a Primavera dos Povos afetaram a comunidade judaica na cidade de Frankfurt. A comunidade oficial era controlada pelos liberais desde março 2021


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um terreno fértil onde o Rabino Hirsch pudesse colocar seus ideais à prova nos diferentes aspectos da vida comunitária. A sinagoga Adat Yeshurun foi concebida e arquitetada de acordo com os padrões modernos; a escola comunitária oferecia educação laica e religiosa e a shechitá (abate ritual) de animais passou a obedecer a todas as regras sanitárias. Ao lado de outras iniciativas, um periódico

ortodoxos apenas discursavam no Shabat anterior a Pessach, e, em alguns casos, também no Shabat anterior ao Yom Kipur. Igualmente, sua sinagoga contava com um coral masculino que acompanhava as orações, sempre oficiadas por chazanim (cantores litúrgicos) profissionais que apenas podiam ser corrigidos pelo Rabino ou por quem fosse indicado previamente para essa função. A participação de crianças pequenas era vedada uma

VISTA NOTURNA DE ROMER, DISTRITO HISTÓRICO EM FRANKFURT, ALEMANHA, 2020

de nome Yeshurun foi fundado em 1852 com o intuito de difundir e aprofundar os ideais propostos pelo Rabino Hirsch. Aproveitando-se da liberdade que obteve em Frankfurt, o Rabino Hirsch desafiou algumas convenções vigentes e promoveu mudanças significativas em sua comunidade. Entre outras, a instituição da realização de prédicas semanais – até então, os rabinos

vez que se buscava um ambiente de silêncio e serenidade. Nem todos os ortodoxos de Frankfurt aderiram à Adat Yeshurun. Alguns criticavam certas deliberações do Rabino Hirsch, negando-se a aceitar a instituição do costume das Hakafot em Simchat Torá (quando os congregantes circundam o palanque central da sinagoga, a Bimá, com os rolos da Torá) e o ofício da reza em prol da realeza, que jamais fora 58

recitada pelos judeus de Frankfurt em razão de suas preferências políticas republicanas e liberais. De toda forma, esses foram casos menores e pontuais que não refletiam o consenso estabelecido entre a Ortodoxia. O Rabino Hirsch foi muito feliz ao adotar medidas que sintetizavam os valores do Iluminismo e da tradição judaica, vindo a ser uma figura decisiva para a Ortodoxia judaica em toda a Alemanha. No decorrer dos anos, o Rabino Hirsch teve a oportunidade de cooperar com o Judaísmo ortodoxo de outros países ao atender o chamado do Rabino Itzchak Elchanan Spektor. Além disso, suas obras sobre a Torá foram recomendadas calorosamente por líderes incontestes da Ortodoxia, como o Rabino Chaim Ozer Grudinski e Iaacov Israel Kanievski, o Steipler, de abençoadas memórias. O sucesso obtido pelo Rabino Hirsch em Frankfurt ainda influenciaria outras comunidades na Alemanha que aderiram à NeoOrtodoxia, como a comunidade de Berlim, liderada pelo Rabino Doutor Azriel Hildesheimer (1820-1899), que se somou ao Rabino Hirsch como um dos principais líderes do movimento do Torá im Derech Eretz. A produção intelectual do Rabino Hirsch não cessou em Frankfurt. A publicação de sua tradução da Torá ao alemão com seus comentários, as intepretações do Sidur e dos Salmos, entre outros artigos e missivas, ocorreram durante a longa estada do Rabino Hirsch naquela cidade.

Escola Real de Frankfurt Uma das ações mais importantes do Rabino Hirsch em Frankfurt, e


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que certamente contribuiu para o sucesso de toda a sua empreitada, foi a fundação da Escola Real da União Judaica Religiosa, no ano de 1853. Conta-se que assim que chegou a Frankfurt, os diretores externaram seu interesse em construir uma sinagoga grande e bonita, ao que o Rabino Hirsch lhes respondeu: “Primeiro vamos fundar uma escola onde educaremos nossos jovens em Torá e nos mandamentos, e apenas então teremos a necessidade de contar com uma sinagoga a ser frequentada por eles”. O Rabino Hirsch atuou pessoalmente na direção da escola, vindo a colher os frutos de seus esforços ao ver o crescimento de sua comunidade e de sua escola a cada ano que se passava. Toda uma geração foi educada pela Escola Real de Frankfurt segundo os moldes de Torá im Derech Eretz em que os estudos laicos e religiosos mantinham um intercâmbio enriquecedor, lado a lado. A escola era voltada a crianças de seis a 15 anos, tinha classes separadas para meninos e meninas, uma ampla grade de matérias ensinada em hebraico e alemão e uma carga horária que, nas classes mais velhas, chegava a 10 horas por dia, cinco vezes por semana.

a despeito de toda a sua importância, enxergava a si mesmo como um educador. Suas obras estão repletas de ensinamentos e orientações a pais e professores sobre a melhor forma de educar filhos e alunos. Para citar um dos exemplos do Chumash Bereshit, o Rabino Hirsch lê a passagem que relata as diferenças entre Jacob e Esaú como uma advertência aos pais que não dão a devida atenção às particularidades de cada um de seus filhos, deixando de educá-los de acordo com suas características pessoais. Toda a história de Esaú, diz o Rabino Hirsch, poderia ter sido diferente caso seus pais tivessem atentado ao fato de que suas necessidades eram muito distintas daquelas de Jacob, seu irmão gêmeo. Ao final do ano letivo, a Escola Real de Frankfurt promovia uma aula pública em que pais e professores estimulavam os alunos a demonstrar seus conhecimentos sobre as matérias estudadas. A aula-prova era seguida de uma refeição festiva para todos os envolvidos, e o convite ao

evento era acompanhado de um artigo da lavra do Rabino Hirsch sobre algum aspecto da educação, notadamente sobre as funções a serem exercidas pelos pais. Vários desses artigos foram traduzidos do alemão ao hebraico e reunidos no segundo volume da coletânea Yessodot Hachinuch (Fundamentos da Educação), publicada em 1968.

Aprovação da Lei da Secessão Desde a sua fundação, a Adat Yeshurun mantinha uma relação conflituosa com a comunidade oficial de Frankfurt, que era gerida por dirigentes de orientação reformista. Com os desentendimentos cada vez mais acentuados, a filiação compulsória dos ortodoxos à comunidade oficial se tornou uma questão que precisava ser resolvida com alguma urgência. Assim, ao lado de um parlamentar judeu de nome Isaac Lasker, o Rabino Hirsch encabeçou uma campanha pela aprovação da Lei

MUSEU JUDAICO DE FRANKFURT. NO PASSADO, ESTE EDIFÍCIO HISTÓRICO PERTENCIA AO BARÃO MAYER CARL VON ROTHSCHILD

Ainda que pudesse ter-se inspirado no modelo pensado por seu avô ao fundar sua escola em Frankfurt, o Rabino Hirsch havia desenvolvido um projeto educacional próprio, cujos fundamentos teóricos foram expostos no livro “Chorev”, de 1837, e em diversos artigos no periódico Yeshurun. Poucos rabinos e pensadores em toda a história de nosso povo entenderam a educação em sua complexidade como o Rabino Hirsch, que, 59

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NOSSOS SÁBIOS

da Secessão que permitiria a cada judeu se desligar unilateralmente dos quadros da comunidade oficial. Com a aprovação da lei, em 1876, o Rabino Hirsch exigiu que os membros de sua comunidade se desfiliassem formalmente, por entender que a permanência na comunidade representava uma legitimação moral e ideológica que não poderia ser concedida. No entanto, houve uma divisão entre as lideranças ortodoxas sobre a vantagem e a obrigação de abrir tal dissidência, e apenas um quarto da comunidade seguiu a orientação do Rabino Hirsch a esse respeito. Aquele que foi o início de um dos embates mais longos e menos exitosos da carreira do Rabino Hirsch acabou tornandose um marco temporal que dividiu em duas fases os 37 anos de seu rabinato em Frankfurt: os 25 anos de uma liderança consensual, entre 1851 e 1876, e os 12 anos em que a comunidade se cindiu, de 1876 a 1888. Além dos contornos belicosos que envolveram essa disputa, sua história nos expõe um traço importante da ideologia do Torá im Derech Eretz. Mais que uma mera síntese entre os valores religiosos e modernos, a Neo-Ortodoxia do Rabino Hirsch via a Modernidade como um meio de ampliar e aprofundar o Judaísmo, e não como uma necessidade de

BIBLIOGRAFIA

Del, Giglio, Prof. Dr. Auro, Rabino Hirsch e seu Tempo, em “Dezenove Cartas sobre Judaísmo”, Editora Sêfer, São Paulo, 2002 Paves, Rabino Saul, O Rabino Hirsch e o Desafio da Modernidade, Editora Sêfer, São Paulo, 2019

Elon, Amos, The Pity of It All: A Portrait of Jews in Germany, 1743-1933, Metropolitan Books, Nova York, 2002.

em que viveu. Pode-se dizer com alguma tranquilidade que, apesar de todos os embates em que esteve envolvido, o Rabino Hirsch foi o representante mais radical que a Modernidade jamais teve dentro do Judaísmo ortodoxo. Vivendo em um período histórico em que todos falavam a linguagem das ideologias que abarcavam a tudo e a todos, o Rabino Hirsch formulou uma ideologia judaica que foi aplicada, direta ou indiretamente, em maior ou menor grau, pela maior parte do Judaísmo ortodoxo, desde então até os nossos dias. RABINO SHIMSHON REFAEL HIRSCH

fazer alguma concessão acerca do que fosse essencial à vida religiosa. No ensaio “O que é contemporâneo” de 2009, o filósofo italiano Giorgio Agamben observa que o verdadeiro filho de seu tempo não é aquele que adere à sua época sem nenhum atrito, sentindo-se em harmonia total com seus elementos. Antes, o contemporâneo é aquele que consegue estabelecer uma relação ambígua de proximidade e distância em relação a seu tempo. Tal qual o nostálgico, que está alheio a seu tempo e não consegue vê-lo, quem coincide muito plenamente com os valores em voga não enxerga seu tempo por fora e nem é capaz de manter sobre ele um olhar fixo e atento. Ser contemporâneo, diz o filósofo, é ser capaz de captar a escuridão do presente, evitando ser ofuscado por suas luzes, para assim conseguir retornar ao passado, questionando-o quanto às suas consequências e vicissitudes no presente. Esta descrição retrata bem a relação do Rabino Hirsch com o zeitgeist (espírito do tempo) 60

Chegando ao final de sua trajetória, notamos que a história de vida do Rabino Hirsch se somou ao legado espiritual de suas obras como um exemplo de inspiração especialmente caro a quem coabita múltiplos mundos e se apropria de diferentes saberes para estar à altura e fazer jus ao desafio colocado a cada um de nós: ser humano e ser judeu, na acepção mais plena de ambos os termos.

O texto acima é uma adaptação da seção ‘A vida e a Obra’ da Introdução do Chumash Torá Interpretada de autoria do Rabino Hirsch, a ser lançado brevemente pela Editora Sêfer.

Iossef Katri, diplomado Rabino, é escritor e tradutor


ANTISsEMITISMO

StandWithUs: Duas décadas em PROL de Israel Por André Lajst

Em 21 de maio de 2001, em Los Angeles, o casal Roz e Jerry Rothstein reuniu-se com Esther Renzer e um pequeno grupo de lideranças judaicas locais para discutir formas de combater o antissemitismo enfrentado por jovens judeus universitários.

E

ou opiniões. Certas vezes, eram necessárias ações pontuais para defender o país e seus habitantes de atos violentos cometidos por grupos extremistas. Chegou-se à conclusão de que era necessário contratar experts para debater tais questões, apresentando os fatos históricos e sociológicos da região. Assim nascia a StandWithUs, com o intuito de ser uma voz ativa contra o antissemitismo e o antissionismo, em todas as suas formas, em todo o mundo.

ra durante a Segunda Intifada e multiplicavam-se ações anti-Israel e antissemitas nos campi universitários norte-americanos. Em certas instituições, professores e palestrantes acadêmicos tendenciosos atacavam Israel e chegavam a defender ações violentas de grupos muçulmanos extremistas dentro e fora do Estado Judeu. Fora da sala de aula, os estudantes judeus também eram hostilizados.

A StandWithUs baseia-se na certeza de que o conhecimento dos fatos corrigirá os preconceitos comuns sobre o conflito árabe-israelense. Inicialmente, o trabalho foi direcionado a universitários, sendo logo depois expandido ao Ensino Médio. Hoje, a organização é voltada também à sociedade maior e mídias tradicionais e sociais.

O antissemitismo e sua atual faceta, o antissionismo, era visível e cada vez mais ousado, fortalecido pelas notícias do conflito árabe-israelense, muitas vezes repassadas fora de contexto e de forma errônea pela mídia. Sem conhecimento histórico dos fatos, os universitários judeus, ou não, que quisessem debater as acusações falsas e o ódio, muitas vezes não tinham os argumentos para fazê-lo.

A organização dedica-se a ensinar a história, geopolítica e cultura de Israel, além de narrar com isenção os fatos relacionados ao conflito árabe-israelense. Visa, através da educação, combater o extremismo e o antissemitismo. A disseminação de informação é feita por meio de panfletos, palestras, vídeos, conferências, missões a Israel, livros e milhares de páginas de conteúdo digital. Esse vasto material apresenta, de forma clara e pontual,

Para contrapor o ódio gerado pelas calúnias e as desinformações sobre Israel, o melhor caminho seria reunir especialistas que explicassem o histórico da região, o contexto do conflito e o porquê das ações tomadas por Israel, com base em fatos verídicos e não suposições 61

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ANTISsEMITISMO

Abertura do Programa Emerson Fellowship 2020, no Ministério das Relações Exteriores de Israel, em Jerusalém

muitas das questões levantadas pelos opositores de Israel e as responde, de forma assertiva e precisa, procurando dissipar o ódio. Diante da necessidade de combater o persistente e cada vez mais sofisticado movimento global contra Israel - o qual é indissociável do antissemitismo -, a StandWithUs passou a contratar profissionais logo no primeiro ano de suas atividades. A organização cresceu bastante e se expandiu pelos cinco continentes e, hoje, conta com mais de 150 profissionais, além de milhares de voluntários. A instituição tornou-se altamente respeitada no meio judaico e não judaico, fato que ajudou a alavancar campanhas importantes. Em 2019, por exemplo, a StandWithUs, junto com outras entidades, lançou uma campanha pelos direitos da

enxadrista Liel Levitan. À época, a Federação Mundial de Xadrez (FIDE) havia concedido a realização dos jogos do campeonato de 2019 à Tunísia, país que não mantém relações diplomáticas com Israel. Devido à pressão internacional, o país aceitou conceder visto a Liel Levitan, enxadrista israelense de

André Lajst com oficial do Exército de Israel, em Brumadinho, MG, 2019

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sete anos, assegurando sua participação na disputa. Um exemplo recente foi a ativa participação da organização em informar e mobilizar as pessoas contra as medidas tomadas pela marca de sorvetes Ben & Jerry’s, do conglomerado Unilever. A empresa decidiu proibir a venda de seus produtos em qualquer território de Israel localizado fora das fronteiras do Estado em 1967, antes da Guerra dos Seis Dias. Esse posicionamento por parte da Ben & Jerry’s significa a proibição da venda de seus produtos inclusive em Jerusalém. Em 2018, com a organização já em atividade em diversos países, como Canadá, Inglaterra, África do Sul, Austrália e Israel, decidi trazer a StandWithUs ao Brasil. Começamos pequenos, com apenas quatro funcionários. Hoje contamos com


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Em 2021, enfrentamos nosso maior desafio desde a fundação da organização no Brasil – quando algumas reportagens tendenciosas foram veiculadas durante o último conflito na Faixa de Gaza, entre os dias 10 e 20 de maio. Fomos uma presença forte e constante nas mídias tradicionais e sociais. Rapidamente traduzimos e lançamos conteúdo explicativo e vídeos a respeito do conflito. Demos entrevistas nos maiores canais de notícias, publicamos artigos e fizemos lives com formadores de opinião, atingindo milhões de pessoas.

16 profissionais e dezenas de voluntários. O trabalho da StandWithUS Brasil alcança milhões de pessoas, por meio das redes sociais, de veículos da grande imprensa e de programações em algumas das principais universidades brasileiras. Desde 2018, já foram realizados eventos em mais de 35 universidades públicas e privadas, como a Universidade de Brasília (UnB), Universidade de São Paulo (USP), Universidade Federal do ABC (UFABC), Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Universidade Federal Fluminense de Volta Redonda (UFF), Fundação Getúlio Vargas (FGV-SP) e Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM/SP). Também foi criado o Laboratório de Estudos do Oriente Médio (LEOM), atualmente com sete unidades, em universidades do Rio Grande do Norte a Santa Catarina. Realizamos também atividades em escolas de Ensino Fundamental e Médio, cursos para jornalistas e outras atividades em 16 estados nas cinco regiões brasileiras e no Distrito Federal. Fechamos parcerias com o Museu da Imagem e do Som (MIS), em São Paulo, a Secretaria Municipal de Saúde de Vitória (ES) e as escolas públicas de Cuiabá (MT).

Evento para 80 alunos da Escola Estadual Jornalista Ruy Mesquita, na Unibes Cultural

No mundo todo, educação e comunicação são os pilares da instituição. A StandWithUs foi mencionada em mais de 25 mil artigos da imprensa e colaborou com 750 diferentes organizações pró-Israel. O Brasil segue o modelo da matriz. Organizamos nossos especialistas para darem entrevistas, palestras e publicarem artigos em veículos da grande imprensa, como CNN, GloboNews, Folha de S. Paulo, O Globo, CBN, entre outros. Com a pandemia da Covid-19, o isolamento social e o cancelamento das atividades presenciais, novamente em consonância com a StandWithUs internacional, a StandWithUS Brasil se reinventou. Foram realizadas dezenas de lives e webinars com ilustres convidados em nossas plataformas digitais.

LOS ANGELES, CALIFórnia, EUA. JAN. 2020 FOTO: Jc Olivera

Podemos afirmar que a StandWithUs Brasil se transformou em uma das maiores referências sobre Israel no Brasil. Levamos conhecimento aos nossos seguidores, ouvintes e alunos sobre a criação de Israel, as guerras na região e os atuais conflitos. Levamos a todos brasileiros, judeus e não judeus, conteúdo que contextualiza a realidade em Israel, sem deturpar os fatos e sem qualquer tipo de viés político ou ideológico. Estamos sempre prontos para explicar os pormenores da história de Israel, sem perder o compromisso com a integridade intelectual. Somos uma fonte segura e verídica de informação e reforçamos todos os dias nosso compromisso em proteger a imagem de Israel quando, pública e indevidamente, a mesma é atacada e desproporcionalmente colocada em evidência, muitas vezes com notícias deturpadas. Temos orgulho de fazer parte da história de uma instituição educacional que, há duas décadas, atua em prol de Israel. E continuamos com a firme crença de que a educação é o caminho para a paz. André Lajst é diretor executivo da StandWithUs Brasil

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ARQUEOLOGIA

Descoberta arqueológica REMETE AO TANACH Pela primeira vez na história, arqueólogos encontraram uma inscrição que data do período dos Juízes da época bíblica. Em escavações realizadas no sopé das montanhas da Judeia, no sul de Israel, foram encontrados fragmentos de um recipiente com tampa que data de cerca de 1.100 A.E.C., ou seja, há cerca de 3.100 anos. Acredita-se que contenha inscrições com o nome “Jerubaal”, usado para se referir a um de nossos juízes, Gideon ben Yoash. TRATA-SE DA primeira vez em que um nome citado no livro dos Juízes – um dos livros dos Profetas – é encontrado em um artefato arqueológico.

O

s pesquisadores disseram que a descoberta oferece importantes insights sobre a conexão existente entre o texto bíblico e a memória histórica. Os coautores do estudo, Yosef Garfinkel e Sa’ar Ganor, fizeram a seguinte declaração para a revista científica Smithsonian: “O nome Jerubaal somente aparece no Tanach1 no período dos Juízes, no entanto, foi agora descoberto em um contexto arqueológico, em um estrato que remonta a esse período”. Há um grande significado histórico no fato de um nome idêntico ao Tanach é o acrônimo de Torá (o Pentateuco), Nevi’im (os Livros dos Profetas) e Ketuvim (os Escritos Sagrados).

1

mencionado no Tanach ter sido encontrado em uma inscrição resgatada em escavações arqueológicas que remontam a esse mesmo período. Achados arqueológicos como este corroboram a crença de que as tradições bíblicas, além de refletir a realidade, comprovam que as memórias históricas são fiéis ao período ao qual se referem. E demonstram que a História é preservada e transmitida através das gerações.

Livro dos Juízes O Livro dos Juízes, um dos livros dos Profetas (Nevi’im), narra os eventos ocorridos nos anos que se seguiram à morte de Yehoshua bin Nun, sucessor de Moshé, e vai até o advento da monarquia. Este livro 64

narra a época anterior à dos Reis Saul, David e Salomão. Após a morte de Yehoshua bin Nun, o Povo Judeu foi liderado por uma série de Juízes (1228-931 a.E.C.). Estes não faziam parte de nenhum governo formal. Tratou-se de um período único na História Judaica, no qual, exceto por um breve período de três anos, os judeus viveram sem um governo central. Carismáticos e destemidos, muitos juízes alcançaram proeminência como líderes locais, organizando e defendendo as Tribos de Israel.


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Não foram poucos os Juízes que fizeram nome, na época, entre os quais Ehud, Deborah, Yael, Samson, Gideon e Eli.

O Juiz Gideon A primeira menção a Gideon no Livro dos Juízes se deve ao fato de ter combatido a idolatria ao quebrar o altar de Baal e os postes-ídolos dedicados a Asherá, a divindade feminina. Baal era um ídolo adorado em inúmeras comunidades antigas do Oriente Médio, especialmente entre os canaanitas, que habitavam a Terra de Israel antes de ser conquistada pelos Filhos de Israel. Quando Gideon quebra o altar de Baal, ele recebe o nome de Jerubaal. “[Gideon], a partir daquele dia foi chamado de Yrb‘l” ( Juízes 6:31–32). Ao que tudo indica, com o passar do tempo, o nome Yerubaal (em hebraico) se tornou o principal nome de Gideon. Provavelmente ele mesmo o adotou devido a seu significado: Aquele que lutou com Baal e destruiu seu altar. Em várias passagens, Gideon é descrito como aquele que triunfou contra os midianitas. Estes eram uma tribo que vivia à leste do Rio Jordão. Durante sete anos eles atacaram, sistematicamente, os assentamentos judaicos, queimando suas plantações e suas casas e matando seu povo. Entre as inúmeras vítimas, estavam os irmãos de Gideon. Devido a essas incursões, os Filhos de Israel, além de empobrecidos, viviam aterrorizados. Segundo o Tanach, Gideon organizou um pequeno exército de 300 homens e com eles atacava os midianitas, à noite, conseguindo derrotá-los. Após a vitória, os judeus ofereceram uma coroa a Gideon, declarando que seus filhos teriam o direito de sucessão. Ele declinou, afirmando: “D’us há de governá-los”!

Descoberta Arqueológica O objeto foi recuperado em uma das escavações em Khirbat er-Ra’i, a aproximadamente 70 km a sudoeste de Jerusalém. Este sítio arqueológico localiza-se na floresta de Shahariya e, desde 2015, vem sendo escavado. As escavações estão sendo conduzidas pelo Prof. Yossef Garfinkel, da Universidade Hebraica de Jerusalém, Sa’ar Ganor, do Departamento de Antiguidades de Israel, e pelos Dr. Kyle Keimer e Dr. Gil Davies da Universidade Macquarie, em Sidney, Austrália. Os achados foram publicados no segundo número do Jerusalem Journal of Archaeology ( JJAR), novo periódico online. As escavações revelaram três fragmentos de um recipiente pequeno, com tampa, talvez um jarro, com cinco letras escritas a tinta. Para datar o artefato como sendo de aproximadamente 1.100 a.E.C., utilizou-se datação com Carbono 14 e tipologia de cerâmica. A inscrição, com as letras hebraicas mais consistentes com o Yud (que devido à quebra do artefato, não aparece integralmente), Resh, Bet, Ayin, Lamed, acrescida de vestígios de outras letras, indica que, em seu original, devia ser mais longa. Essa inscrição parece representar o nome Jerubaal, ou Yeruba’al. Como dissemos acima, este era o pseudônimo usado para se referir ao juiz Gideon no Livro dos Juízes. 65

O recipiente escavado deveria conter algum líquido precioso, como o azeite, um perfume ou medicamento. Ao que tudo indica, seu dono gravou nele o seu nome para confirmar sua propriedade. Considerando-se a cronologia da peça, é totalmente plausível que tenha pertencido ao Juiz Gideon. No entanto, surge uma dúvida devido à distância geográfica entre o local onde foi encontrada a inscrição e o local onde Gideon atuava – o Vale de Jezreel, localizado ao norte da Terra de Israel. “Esta inscrição pode referirse a outro Jerubaal – e não ao Juiz Gideon da tradição bíblica, apesar de não se poder descartar a possibilidade de que o recipiente realmente lhe pertencesse. De qualquer modo, o nome Jerubaal era evidentemente de uso comum à época dos Juízes”, afirmaram os arqueólogos. São extremamente raras, na arqueologia de Israel, inscrições do período dos Juízes. Somente foram encontradas uma meia dúzia de inscrições da época – e todas elas levam várias letras não relacionadas entre si. BIBLIOGRAFIA

Five-letter inscription inked 3,100 years ago may be name of biblical judge, artigo de Amanda Borschel-Dan publicado no jornal The Times of Israel em 12 de julho de 2021, http://www.timesofisrael.com SETEMBRO 2021


SHOÁ

O terrível pogrom de Iasi de junho de 1941 a Romênia, que sempre negou sua participação no Holocausto, prestou em junho de 2021 um tributo sem precedentes aos judeus assassinados no Pogrom de Iasi, em 1941. Tendo sido o mais documentado assassinato em massa na história do Holocausto romeno, este pogrom não foi um evento isolado ou fortuito, mas fez parte de uma longa série de massacres e violências cometidas contra os judeus na Romênia.

D

Romênia durante o Holocausto. Vale lembrar que o país foi um aliado da Alemanha nazista durante a ditadura do marechal Ion Antonescu, de 1940 até 1944. Nesse período, de acordo com dados do Yad Vashem, entre 380 mil a 400 mil judeus foram assassinados em áreas controladas pela Romênia. Em 1944, com a deposição de Antonescu, a Romênia mudaria de lado.

ocumentos e testemunhas revelam que o pogrom, que ocorreu nos dias 29 e 30 de junho, foi planejado pelo Serviço de Inteligência romeno (SSI), em coordenação com o Estado Maior do Exército romeno e o serviço de inteligência militar alemão, a Abwehr. Unidos por seu profundo ódio aos judeus, incumbiramse da “execução” os soldados romenos e alemães que estavam na cidade a caminho da frente russa, bem como os gendarmes1, policiais e os habitantes da cidade. Os poucos que tentaram ajudar os judeus também foram mortos. Até hoje é impossível determinar o número de judeus assassinados durante o pogrom, que varia de 6 mil a 15 mil de um total de cerca de 50 mil judeus que viviam na cidade, antes da 2ª Guerra Mundial. Nas semanas e meses seguintes houve a deportação e o extermínio sistemáticos dos judeus de Bessarábia, Bucóvina e Transnístria.

Com grande surpresa vimos, agora, transcorridos 80 anos dos trágicos eventos, o governo romeno prestar tributo aos judeus assassinados em Iasi. Durante uma sessão parlamentar extraordinária, que contou com a presença dos últimos sobreviventes do massacre, o primeiroministro romeno, Florin Citu, admitiu em seu discurso a participação do governo romeno, afirmando que “Um sofrimento inimaginável, crueldade e selvageria... foram infligidos aos judeus sob as ordens do marechal defensor do Nazismo (Ion Antonescu). Nós, como nação, devemos abertamente admitir que nosso passado nem sempre foi glorioso”.

Desde o final da 2ª Guerra Mundial, os governos e a maioria dos historiadores romenos uniram-se em uma conspiração tácita cujo intuito era refutar o papel da 1

Diferentemente de outros eventos referentes ao Holocausto, sobre os quais não foram encontradas ordens escritas ou precisas, ou cujos documentos foram queimados ao final da guerra, o pogrom de Iasi

Militares responsáveis pela ordem pública e a segurança de uma região. 66


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VISTA AÉREA DA CIDADE DE IASI, a segunda maior cidade da Romênia, COM O PALÁCIO DA CULTURA EM DESTAQUE

é altamente documentado. São inúmeros os documentos, ordens e comunicados oficiais, depoimentos de testemunhas oculares, fotos e filmes que revelam os eventos, dia por dia, hora por hora. A seguir, um breve resumo dos acontecimentos.

Pano de fundo

fronteiras da Europa. Iasi passa a fazer parte da Romênia, país cuja constituição, de 1923, estendera, muito a contragosto, a cidadania a praticamente todas as minorias étnicas que viviam no país, inclusive aos judeus. Inconformadas, a Liga da Defesa Nacional Cristã (mais tarde, Partido Nacional Cristão) e

Desde o final do século 15 sempre houve judeus que viviam em Iasi, uma cidade da Moldávia. Nos séculos seguintes, a comunidade se tornou um importante centro da vida religiosa e cultural judaica onde o Chassidismo e o Sionismo viviam lado a lado, e o teatro iídiche florescia – sempre convivendo, no entanto, com um antissemitismo virulento e enraizado, que, em várias ocasiões, explodia em violência. Ao término da 1ª Guerra Mundial mudanças geopolíticas alteraram as

a Guarda de Ferro iniciaram uma violenta campanha antissemita, que, em Iasi, culminou, ainda em 1923, num pogrom. Os Guardas de Ferro, também conhecidos como “Movimento dos Legionários” eram um movimento fascista paramilitar, e professavam uma “ideologia” ultranacionalista, anticomunista, anticapitalista e, acima de tudo, violentamente antissemita. Na década de 1930, a comunidade judaica romena era uma das maiores da Europa, somando por volta de 760 mil membros, dos quais cerca de 38 mil viviam em Iasi.

ESTAÇÃO DE TRENS, IASI

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A ideologia antissemita nazista encontrara um solo fértil na Romênia. Nas décadas de 1930 e 1940 eram incessantes as acusações da extrema direita e dos jornais romenos contra os judeus. Eram retratados como degenerados, setembro 2021


SHOÁ

em violentos combates de rua. A polícia consegue aprisionar centenas de “legionários”, inclusive alguns de seus líderes, mas, ainda assim, sua corporação, a Guarda de Ferro, continua a ter grande força política e o apoio das massas.

A 2ª Guerra Mundial

BANQUETE EM HOMENAGEM A CHAIM WEIZMANN, O SEGUNDO DA DIR. À ESQ., SENTADO. Iasi, 1927

parasitas, estrangeiros racialmente inferiores que exploravam o país bem como a razão para todos os seus problemas econômicos e sociais. Uma declaração de Carol II, rei da Romênia, em janeiro de 1938, é reveladora: “Não se pode negar que haja um forte sentimento antissemita em nosso país. Trata-se de um antigo problema em nossa história”. No mês seguinte, Carol II arquitetou um golpe contra seu próprio reinado. Valendo-se de poderes emergenciais, instituiu uma ditadura nacionalista e antissemita. Promulgou “o Direito do Sangue”2 e determinou a “revisão” da cidadania dos judeus. Ademais, tomou medidas discriminatórias limitando o direito à propriedade e o acesso à educação, entre outras. Antes ainda de que a Romênia caísse presa da órbita da Alemanha Nazista, as autoridades romenas já adotavam uma política de feroz antissemitismo discriminatório e persecutório – particularmente 2

Jus sanguinis é a expressão em latim para “Direito de Sangue”, princípio legal da Lei de Nacionalidade pelo qual a cidadania não é determinada pelo local de nascimento, mas por serem (ou terem sido) um ou ambos os pais cidadãos desse país.

contra os judeus que viviam nas regiões da fronteira oriental, a quem falsamente associavam ao comunismo soviético, bem como aos que viviam na Transilvânia, identificados com o antigo regime da Hungria. Preocupado com o crescente poder da Guarda de Ferro, o Rei tenta limitar o poder dos “legionários” (como eram também chamados os membros da Guarda de Ferro). E, nos meses que antecederam o início da 2ª Guerra, a polícia romena e a Guarda de Ferro se enfrentaram

Em setembro de 1939 a Alemanha ataca a Polônia. Era o início da 2ª Guerra Mundial. Até o primeiro trimestre de 1940, Carol II manteve uma relativa postura de neutralidade, mas o inegável poderio nazista o fez mudar de atitude em relação à Guarda de Ferro, iniciando uma reaproximação e incluindo alguns de seus líderes no governo. À medida que cresciam a popularidade e o poder dos fascistas, crescia também a pressão política para que o país se aliasse à Alemanha. No verão de 1940, uma série de antigas disputas territoriais foram diplomaticamente solucionadas de modo desfavorável à Romênia, resultando na perda de praticamente todo o território conquistado após a 1ª Guerra Mundial. O país é forçado

Parada dos “Legionários”. Demonstração da aliança com a Alemanha nazista. Iasi, 8 NOVEMBRO 1940

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a ceder a Bessarábia e o norte da Bucóvina para a União Soviética3, o norte da Transilvânia para a Hungria, e Caliacra e Durostor para a Bulgária. Durante a retirada das tropas romenas da Bessarábia e Bucóvina, os soldados mataram 186 judeus, atirando muitos outros de trens em movimento. Após as mudanças territoriais ainda vivia no Reino da Romênia uma população judaica de cerca de 600 mil pessoas. A perda de território fez a popularidade de Carol II despencar, reforçando ainda mais as facções fascistas e militares. Em setembro de 1940, o Rei indica o marechal Ion Antonescu como primeiroministro. Aliando-se à Guarda de Ferro, Antonescu arma um golpe, força a abdicação do Rei e assume poderes ditatoriais proclamando-se o Conducător (condutor, em romeno). O novo regime, pró-Nazismo, conhecido como o Estado Nacional Legionário, alia-se oficialmente à Alemanha Nazista em 20 de novembro de 1940, tornando-se um de seus mais próximos aliados. Com o novo regime, a discriminação, violência e pilhagem contra os judeus tornam-se política do Estado. As forças fascistas, insatisfeitas com seu papel dentro do governo, passam a exigir mais poderes, mas Antonescu é inflexível em sua recusa. A resposta da Guarda de Ferro é imediata. Em 21 janeiro de 1941, os legionários se insurgem contra o regime de Antonescu. Bucareste torna-se palco de uma guerra civil, que duraria três dias e que acaba sendo vencida pelo marechal Antonescu, com o

A Alemanha Nazista havia reconhecido o interesse soviético na Bessarábia em um protocolo secreto ao Pacto Molotov-Ribbentrop de 1939.

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JOVENS JUDEUS FORAM USADOS PARA CAVAR AS VALAS COMUNs. A MAIORIA FOI MORTA A TIROS LOGO EM SEGUIDA, 25 JUNHO 1941

apoio do exército alemão. Durante o conflito, os membros da Guarda de Ferro, sem motivo algum além de seu antissemitismo, viram-se contra os judeus da cidade e deslancham um violento pogrom. Durante esse pogrom, nos dias 21, 22 e 23 de janeiro, e que entraria para a História como o Pogrom de Bucareste, indescritíveis atrocidades foram cometidas contra a população judaica da cidade. Particularmente atroz foi o extermínio de dezenas de judeus no matadouro de animais de Bucareste. Mais de uma centena foram assassinados brutalmente, outros milhares foram espancados, feridos, maltratados e centenas de propriedades judaicas foram destruídas. Mas, para os judeus da Romênia, o pior ainda estava por vir. O ataque do Eixo contra a União Soviética iria marcar formalmente o início do extermínio. Nos meses que precederam a invasão, a propaganda antissemita oficial romena intensificara os ataques contra os judeus, acusando-os de serem “parasitas” e “agentes bolcheviques”, já preparando o caminho para o seu extermínio. 69

1.

2. 1. NO PÁTIO DA POLÍCIA OS INSPETORES VERIFICAM DOCUMENTOS DOS Judeus PRESOS. IASI, 29 JUNHO 1941. 2. NA CHEFATURA DE POLÍCIA, OS JUDEUS PRESOS LIMPAM O “SANGUE JUDEU” DO CHÃO. IASI, 30 JUNHO 1941

Os preparativos para o pogrom Dez dias antes do ataque alemão à União Soviética, executado de 22 de junho de 1941, Hitler informou seus setembro 2021


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planos ao marechal Antonescu. Durante a Operação Barbarossa, código para a invasão, tropas romenas se juntaram à Wehrmacht. A contribuição romena foi enorme, com a participação de 1,2 milhão de soldados, número inferior apenas às forças nazistas enviadas para a frente russa. A cidade de Iasi era localizada próxima à fronteira soviética e, dos cerca de 100 mil habitantes, por volta de 50% eram judeus. Oficiais dos exércitos romeno e alemão consideravam a presença de uma população judaica perto da fronteira soviética uma “ameaça militar”, uma “quinta coluna”4 pronta a ajudar ao inimigo, razão pela qual pediram ao governo romeno sua imediata “remoção”. Várias providências foram tomadas nesse sentido. O SSI criara o “First Operative Echelon”, o primeiro escalão de agentes de campo – 160 homens encarregados

Quinta coluna – expressão considerada sinônimo de traição, caracterizada pela reunião de um grupo de pessoas que atuam clandestinamente em um país pronto a entrar em guerra ou já em guerra, visando trair seus companheiros, sua pátria ou sua organização.

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Especificamente no tocante aos judeus de Iasi, o General C. Z. Vasiliu, durante uma reunião da Gendarmaria, ordenara especificamente “a limpeza do terreno”. A ordem implicava medidas repressivas contra os judeus de Iasi por deportação ou liquidação.

NA CHEFATURA DE POLÍCIA. GUARDAS ALEMÃES E ROMENOS ATACAM E ATIRAM, ALEATORIAMENTE, NOS JUDEUS. 29 JUNHO 1941

de esmagar quaisquer ameaças à “segurança interna” – ou seja, judeus e comunistas, que pudessem dificultar a guerra. Em junho os agentes partiram para a Moldávia, tendo entre os objetivos secretos varrer todos os judeus da região, por deportação ou extermínio. O próprio Antonescu ordenara a deportação dos judeus entre 18 e 60 anos, que viviam entre os rios Siret e Prut, para o campo de concentração em Targu Jiu, ao sul da Romênia.

Outro fato revelador das funestas intenções romenas foi a ordem dada no dia 20 de junho pela Inspetoria de Preparação Paramilitar de Iasi a jovens judeus, no sentido de cavarem sepulturas, com 30 metros de comprimento cada, no cemitério judaico. As valas ficaram prontas no dia 26. Quando, em 22 de junho, foi deslanchada a invasão da União Soviética, estavam estacionados em Iasi soldados da 14a Divisão romena, 300 gendarmes, tropas alemãs incluindo as SS e 800 policiais. A Força Aérea Soviética bombardeou a cidade no dia 24. O pânico tomou conta dos habitantes. Os militares e Guardas de Ferro espalharam boatos de que os judeus de lasi estavam a serviço do Exército Vermelho, fornecendo sinais terrestres para os aviões soviéticos. Uma histeria antijudaica se alastrou pela cidade. Os policiais iniciam a

PRISÃO ALEATÓRIA DE JUDEUS NA RUA BRATIANU. IASI, 29 JUNHO 1941

GRUPO DE JUDEUS SENDO ESCOLTADOS PARA A CHEFATURA DE POLÍCIA. IASI, 29 JUNHO 1941

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procura de supostos colaboradores entre os judeus e pedem à população cristã que marquem suas casas com cruzes em local de fácil visibilidade. Após o segundo bombardeio soviético, no dia 26, líderes da comunidade judaica são convocados à Chestura, a sede central da polícia, onde são informados de que todos os judeus da cidade eram considerados culpados de colaborar com “os pilotos soviéticos judeus”. Os primeiros 317 judeus são aprisionados na Chestura. As mentiras engendradas pelas SSI de que os judeus estavam ajudando os soviéticos, aliadas ao enraizado antissemitismo, elevaram o ódio aos judeus a níveis jamais vistos em Iasi. Por toda a cidade cartazes incitavam os habitantes: “Romenos! Cada ‘judeuzinho’ morto é um comunista morto. É chegada a hora da vingança!” Na noite de sábado, 28 de junho, soldados romenos e alemães, membros do SSI, policiais e centenas de moradores começaram a saquear e assassinar judeus. Milhares foram mortos em suas casas e nas ruas. Outros milhares foram presos por patrulhas romenas e alemãs e forçados a marchar até a Chestura. Indiscriminadamente e em fúria ensandecida, os judeus eram caçados como animais. Eram surrados e quando já não conseguiam se erguer e caminhar, eram abatidos a tiros, fazendo das ruas um mar de sangue e corpos amontoados. Como se não bastasse, os transeuntes ainda cuspiam nos judeus e lhes atiravam pedras e cacos de vidro, paus e o que mais lhes viesse às mãos. E quem tentasse ajudar os judeus também era morto. Milhares dos nossos que haviam sido aprisionados para entrar no pátio da Central

de Polícia tiveram que passar por um corredor de oficiais das SS, gendarmes romenos, policiais e civis que, armados com barras de ferro, os açoitavam. Após a guerra, um dos oficiais romenos declarou que apenas naquela noite eram cerca de 3.500 os “suspeitos” judeus amontoados e aprisionados no pátio da Chestura. O massacre continuou durante o dia. Os soldados alemães e romenos e os policiais passaram a atirar diretamente na multidão, sendo ajudados por civis. Quem tentava escapar era morto. Os perpetradores e o populacho retiravam todos os objetos de valor dos corpos. A cena era apocalíptica. Em seguida, os próprios judeus foram forçados a remover as vítimas e atirá-las nas valas que haviam sido cavadas anteriormente no cemitério judeu. Enquanto alguns judeus recebiam ordens de ir jogando as vítimas nessas valas comuns, algumas ainda com vida, outros iam cavando

novas sepulturas coletivas. “Cavamos e cavamos, sem interrupção, durante quatro dias e quatro noites... Meus camaradas e eu atiramos por volta de 6 mil inocentes naquelas valas macabras” ... Ainda que seja quase impossível determinar-se o número exato de vítimas do massacre de Chestura, os historiadores acreditam que no mínimo 6 mil judeus foram exterminados naquele pogrom, sendo mais provável que o número passe de 10 mil. Outros milhares foram presos, amontoados em vagões de transporte de animais e, depois, deportados por trem a Calarasi e Podul Iloaei, cidades localizadas a sudoeste de Iasi, como veremos abaixo.

Os trens da morte No domingo, 29 de junho, os militares e a Polícia decidem evacuar os judeus que ainda estavam detidos na Chestura. Consultado, o Ministério do Interior aprovou

PARA SUA “REMOÇÃO” DE IASI, OS JUDEUS FORAM TRANCADOS EM VAGÕES DE CARGA. 30 JUNHO 1941

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a evacuação. Dois trens da morte partiram de Iasi, lotados de judeus praticamente empilhados, com as frestas dos vagões seladas por tábuas pregadas à última hora, tornando quase impossível a respiração das vítimas a serem transportadas. No primeiro deles, havia 2.530 judeus, entulhados em grupos de 150 em cada compartimento. O destino era a cidade de Calarasi. Esses vagões de carga levavam a sórdida inscrição “Comunistas judeus” ou “Assassinos de soldados alemães e romenos”. Durante a viagem os prisioneiros não podiam abrir as portas dos vagões em busca de ar para respirar e não receberam água nem alimento. O calor era insuportável e a superlotação impedia qualquer movimento. Muitos enlouqueceram antes de morrer. O trem se deteve em várias cidadezinhas, mas a Polícia proibiu, sob pena de morte, que qualquer ajuda fosse prestada ao carregamento humano do trem quando abriam as portas para remover os corpos dos mortos. Segue-se o relato de um sobrevivente: “Abriram-se as portas do vagão e ouvimos vozes distantes que nos ordenavam atirar os corpos dos que não haviam resistido. Quem estava fora, na estação, não se acercava dos vagões devido ao fedor que deles exalava...”. O primeiro trem da morte a deixar Iasi na manhã de 30 de junho, com 2.530 judeus, chegou a Calarasi, seu destino, na tarde de 6 de julho, com apenas 1.011 sobreviventes, alguns dos quais acabaram morrendo nos dias subsequentes. Haviam percorrido aproximadamente 500 quilômetros em seis dias e meio, no auge do verão, praticamente sem água. A selvageria foi tão intensa

Após a permissão para que um representante da comunidade judaica de Bucareste os atendesse, com suborno e corrupção foi possível melhorar as condições de vida dos judeus até eles serem libertados, em 30 de agosto de 1941.

Marechal Ion Antonescu, momentos antes de ser executado pelos romenos, em 1946

que mesmo o nazista Hans Frank, Governador Geral da Polônia, ao ouvir o relato dos acontecimentos, deu mostras de desagrado com a brutalidade adotada no massacre de Iasi. Mais de 1.400 judeus tinham sido mortos no primeiro trem da morte. Os sobreviventes foram internados em Calarasi, no pátio do 23o Regimento da Infantaria. Durante sua detenção, outros 99 prisioneiros morreram.

A história do segundo trem da morte é mais breve, mas igualmente horrenda. Em 30 de junho, 1.902 judeus foram amontoados em um segundo trem, sendo que no último vagão havia 80 corpos que foram recolhidos na estação. Eles haviam sido fuzilados, esfaqueados com baionetas ou esmagados com martelos! O trem levou oito horas para cobrir os 20 quilômetros entre Iasi e Podul Iloaei. Superlotação, desespero, calor e sede causaram muitas mortes. Ao chegar ao destino, alguns vagões continham 100 mortos e apenas três ou quatro sobreviventes. Dos 1.902 judeus que haviam sido amontados nos vagões, morreram 1.194. Os sobreviventes receberam permissão de voltar a Iasi quatro ou cinco semanas depois.

TRIBUNAL DE BUCARESTE. JULGAMENTO DOS ACUSADOS DE PARTICIPAÇÃO NO POGROM DE IASI. O VEREDICTO FOI PROFERIDO EM 26 JUNHO 1948

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O marechal Ion Antonescu, em uma reunião do Conselho de Ministros a 5 de abril de 1941, fez uma declaração sobre a liquidação dos judeus romenos, que descrevia precisamente o que havia ocorrido em Iasi: “Deixei o populacho solto e livre para massacrar os judeus. Retirei-me para o quartel-general e após o massacre, restaurei a ordem”. O pogrom de Iasi representa o início do processo genocida implementado pelas autoridades romenas. A destruição do judaísmo romeno foi sistemática na Bessarábia, Bucóvina do Norte e Transnístria. A Batalha de Stalingrado (agosto de 1942 a fevereiro de 1943) mudaria os rumos da guerra. Acreditando que a derrota do Terceiro Reich fosse apenas uma questão de tempo, Antonescu decidiu melhorar a imagem da Romênia perante os Aliados. Em outubro de 1942, ele interrompe os preparativos para a deportação da população judaica da Romênia a campos de concentração nazistas, revogando um acordo anterior com Hitler e se afastando de sua política inicial contra os judeus. Além disso, a Romênia pressiona o governo alemão para não deportar judeus romenos que ainda estavam em território alemão, chegando mesmo a facilitar a emigração de uns poucos judeus romenos para a então Palestina. A decisão de Antonescu salvou milhares de vidas judias, mas as forças romenas continuaram a brutalmente exterminar centenas de milhares de judeus, principalmente os que residiam na Bessarábia, Bucóvina e Ucrânia Ocidental. Na primavera europeia de 1944, o exército soviético arrasou a maior

parte da Transnístria e conquistou a Bessarábia nas primeiras semanas da ofensiva de verão. Quando as tropas soviéticas se agruparam no Rio Prut, que separa a Moldávia da Bessarábia, um grupo de políticos da oposição derrubou Antonescu, assinando, em 23 de agosto de 1944, um armistício com a União Soviética. A seguir, as tropas romenas lutaram ao lado das tropas soviéticas através da Hungria, chegando à Alemanha. Em 1946, Antonescu foi julgado na Romênia como criminoso de guerra. Condenado, é executado. Outros oficiais do regime romeno pró-Nazismo foram julgados, após a guerra, mas a maioria dos perpetradores romenos responsáveis por exterminar judeus nunca foram levados à justiça. No julgamento dos diretamente implicados no pogrom de Iasi, 46 pessoas foram julgadas culpadas. Destes, 46% eram membros do Exército ou da Polícia romena. Os demais eram civis, alguns deles antigos membros da Guarda de Ferro ou da Empresa Ferroviária governamental.

Dumitru Pop, social-democrata, em seu discurso perante o Parlamento em 29 de junho de 1947, declarou: “Em Iasi, não foram só os judeus os que foram assassinados. A própria moral foi assassinada. O nome de nosso país foi assassinado”. E não apenas o seu país teve seu nome assassinado. Outros países seguem assassinando seus nomes, pois, infelizmente, até hoje, são muitos os que continuam a se levantar gratuitamente contra nós, judeus.

BIBLIOGRAFIA

Ioanid, Radu, The Holocaust in Romania: The Iasi Pogrom of June 1941. Publicado online pela Cambridge University Press, 12 de setembro de 2008, www.cambridge. org Ioanid, Radu (Autor), Wiesel, Elie (Prólogo), Florian Alexandru (Introdução) The Iaşi Pogrom, June-July 1941: A Photo Documentary from the Holocaust in Romania, Indiana University Press “Final Report of the International Commission on the Holocaust in Romania”, Comissão Internacional sobre o Holocausto na Romênia, Bucareste, 11 de novembro de 2004

MONUMENTO ÀS VÍTIMAS DO POGROM DE IASI, ROMÊNIA

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LIVRO

DICIONÁRIO DOS REFUGIADOS DO NAZIFASCISMO NO BRASIL Eram músicos, escritores, pintores, atores, cientistas, matemáticos, arquitetos, médicos, fotógrafos, dançarinos, empresários e até palhaços de circo, policiais e técnicos de futebol. Todos refugiados e refugiadas do nazifascismo, que buscaram salvação a partir de 1933. São relembrados em 300 biografias ilustradas, representando os milhares de fugitivos que fizeram ou refizeram a vida e a carreira em nosso país e tanto contribuíram para a

Berta LORAN - Atriz Varsóvia, Polônia, 23-03-1926 No Brasil, de 1939 a 1946, de 1948 a 1957, e desde 1963 Basza Ajs nasceu em Varsóvia, filha do casal judeu Clara e José Ajs, que teve, além dela, mais seis filhos. O endereço da família, rua Mila, 53, mais tarde estaria situado no coração do Gueto de Varsóvia, em que os judeus foram confinados e depois massacrados. Teve uma infância de privações: ocupava um quarto com 14 pessoas, entre parentes e funcionários do pai. Ao ouvir num programa radiofônico a ameaça de que os nazistas exterminariam os judeus, José Ajs, alfaiate e ator, resolveu emigrar com a família, e o país escolhido foi o Brasil. O único filho que não os acompanhou acabou capturado e morto.

sociedade brasileira. Cada trajetória, uma epopeia, desde o nascimento e a formação no Velho Mundo, os terríveis perigos e sofrimentos enfrentados com a chegada do nazismo, as lutas e peripécias para conseguir escapar, obter vistos e embarcar rumo à liberdade. O Dicionário dos refugiados do nazifascismo no Brasil, coordenado pelo historiador Israel Beloch, relata tudo isso. É mais uma publicação

da Casa Stefan Zweig, sediada em Petrópolis e voltada para a divulgação e o estudo da obra do grande escritor austríaco aqui falecido e do papel dos refugiados que, como ele, escaparam do totalitarismo. Nas próximas edições da Morashá, traremos algumas das biografias contidas no Dicionário dos refugiados do nazifascismo no Brasil, livro que está sendo traduzido ao inglês e publicado com o patrocínio do Banco J. Safra Sarasin. Iniciamos com a biografia da atriz Berta Loran.

Desembarcou no Rio de Janeiro em 1939. O pai, empregado em peças teatrais encenadas em iídiche, estimulou-a seguir a carreira artística. Um ano depois, com 14 anos, ganhou seu primeiro papel no teatro, na peça O espírito. Com a irmã Bela, formou a dupla A Bela e a Berta, que se apresentava à comunidade judaica carioca. Em 1946, o empresário Isaak Liubeltchik contratou-a para atuar na Argentina. Em Buenos Aires atuou em peças teatrais, algumas das quais em iídiche, e casou-se com o também ator Saul Handfuss, cerca de 30 anos mais velho. Admitiria mais tarde que o matrimônio fora a maneira encontrada para sair de casa e garantir autonomia. Com o declínio das produções teatrais portenhas em iídiche, decidiu regressar ao Brasil. 74

De volta ao Rio de Janeiro, o maestro Armando Ângelo lhe ofereceu, em 1951, um papel em O pudim de ouro, peça do teatro de revista, gênero de forte apelo popular. Desde o início da sua trajetória artística, despontou em papéis cômicos. Ainda em 1951, fez sua estreia na televisão, no programa Grande revista, exibido


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pela TV Tupi, e participou da peça Confusão no reboque. No ano seguinte, esteve na montagem teatral Ponto e banca. Em 1955 trocou o nome artístico que usava até então, Berta Ajs, por aquele que a tornaria conhecida, cuja pronúncia considerou mais fácil para os brasileiros. No mesmo ano, estreou no cinema, na chanchada da Atlântida intitulada Sinfonia carioca, dirigida por Watson Macedo. Fez em 1957, no mesmo estúdio, Papai fanfarrão e Garotas e samba, de Carlos Manga. A encenação em Portugal, em 1957, da peça Fogo no pandeiro, de cujo elenco participava, permitiu-lhe residir no país. Inicialmente estava disposta a retornar ao Brasil, mas teve a oportunidade de integrar a peça Está bonita a brincadeira, cuja temporada prolongou-se por seis anos. Também fez cinema em Portugal, atuando, em 1960, em O cantor e a bailarina. Em 1963, voltou ao Brasil e estabeleceu-se em São Paulo. Atendendo a convite da atriz e diretora Bibi Ferreira, foi contratada pela TV Record. Naquele ano, casou-se com o comerciante de ascendência polonesa Júlio Marcos Jacoba, com quem permaneceria até 1988, e compôs o elenco da peça O peru e do musical Como vencer na vida sem fazer força, desta vez ao lado de Moacir Franco e Marília Pêra. Tentou ter filhos com Jacoba, sem jamais conseguir. Em 1964, fez a peça Boeing Boeing e, dois anos depois, A cinderela do petróleo. Tornou a residir no Rio de Janeiro e, em 1966, obteve um papel em Espetáculos Tonelux, veiculado pela TV Tupi. Neste ano, o diretor de programação da TV Globo, José Bonifácio de Oliveira Sobrinho,

Rebeca), Zorra total (2004) e Tá no ar: A TV na TV (2018). Em 1984, surpreendeu o público com a sua atuação na novela Amor com amor se paga, em que fez dobradinha com Ary Fontoura.

conhecido como Boni, levou-a para a emissora, onde estreou no programa Bairro feliz e com a qual manteria um vínculo duradouro. Participou dos programas humorísticos Balança mas não cai (1968), Faça amor, não faça a guerra (1970-1973), Satiricom (1974-1975), Planeta dos homens (1976-1982), Viva o Gordo (19811987), Escolinha do Professor Raimundo (1990, 1994 e 2001, onde brilhou nas personagens Manuela D’Além Mar e depois a judia Sara

O trabalho na televisão não a fez abandonar os palcos, atuando em Alegro desbum (1973), Camas redondas e casais quadrados (1974), Divirta-se com Berta Loran (1980), Tropicanalha (1989), As tias de Mauro Rasi (1996), Ainda estou aqui (2004) e Damas do humor e da canção (2018). No cinema, apareceu em A ilha dos paqueras (1970), Como matar uma sogra (1978), Polaroides urbanas (2006) e Até que a sorte nos separe 2 (2013). Em 1990, já separada de Júlio Marcos Jacoba há dois anos, casouse com Paulo Carvalho. Ficaria junto dele até 2016. Em 2009, após uma ausência de 25 anos das telenovelas, participou de Cama de gato. Em 2016, em comemoração aos seus 90 anos, o jornalista João Luiz Azevedo biografou-a no livro Berta Loran: 90 anos de humor – uma homenagem ao talento de Berta Loran. No ano seguinte, iniciou o quarto matrimônio com o colega de profissão Claudionor Vergueiro. Em 2019, ganhou um papel na novela A dona do pedaço. Estima ter feito mais de dois mil personagens numa carreira de sete décadas. Rogério Alves de Barros / IB

BIBLIOGRAFIA

Azevedo, João Luiz. Berta Loran: 90 Anos de Humor — uma homenagem ao talento de Berta Loran. Rio de Janeiro: Litteris Editora, 2016.

Carlos Alberto e Berta Loran em cena da peça “Orquídeas para Cláudia”, de Henrique Pongetti, cartaz do Teatro Copacabana, no Rio de Janeiro, 1966

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“Berta Loran, a atriz que transformou a tragédia em riso”. Memórias cinematográficas. Disponível em: <https://www.memoriascinematograficas. com.br/2019/03/berta-loran-atriz-quetranformou.html>. Acesso em: 7 fev. 2020. SETEMBRO 2021



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