Morashá - Ed 114

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ANO XXIX - Abril 2022 - Nº 114 KEARÁ PARA PESSACH, COM DIVISÕES ESPECIAIS PARA AS MATZOT E OS ELEMENTOS DO SEDER. POLÔNIA, INÍCIO SÉC. 20.

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Carta ao leitor Liberdade é o tema principal de Pessach, data que celebra o Êxodo do Egito. A história dessa festa, narrada na Hagadá, inspirou inúmeras pessoas ao longo das gerações a lutar pela liberdade e dignidade humanas. Durante o Seder celebramos milhares de anos de sobrevivência judaica, ainda que “em cada geração eles se levantam e tentam nos destruir”, como nos lembra, ano após ano, a Hagadá. Ao longo dos milênios – inclusive em nossa geração – o antissemitismo tem-se manifestado de diversas formas. Nós, judeus, lutamos contra o ódio ao nosso povo desde a época em que fomos escravizados no Egito. Mas é importante enfatizar que não cabe apenas a nós lutar contra esse fenômeno. Como escreveu o Rabino Lorde Jonathan Sacks, ZT’L: “A vítima não pode curar o crime. O odiado não pode curar o ódio”. No século 19, muitos judeus acreditavam que, por serem objeto de antissemitismo, cabia-lhes também ser a cura e que eles próprios poderiam erradicá-lo. “Eles nos odeiam porque somos diferentes, então deixemos de ser diferentes; eles cessarão de nos odiar”. Acreditavam que, abandonando sua identidade e religiosidade, seriam aceitos, acabando com o antissemitismo. Vã ilusão. Quando e onde nosso povo ocultou ou até abandonou sua identidade e prática da religião, além de não ser aceito por membros de outras religiões, foi criticado e condenado por trair nossa fé. Além de não reduzir o antissemitismo, isso resultou em sua exacerbação. O antissemitismo é tão antigo quanto a própria nação judaica. Ao longo dos milênios, esse fenômeno aparentemente inexorável foi mais prevalente em alguns locais do que em outros e se manifestou com mais ou menos intensidade – até atingir seu ápice com o Holocausto, quando a Alemanha nazista e seus colaboradores, buscando extirpar o Povo Judeu da face da Terra, exterminaram mais de 6 milhões de nossos irmãos. Ao final da 2ª Guerra Mundial, quando os horrores do Holocausto foram revelados à humanidade, esperava-se que o antissemitismo não fosse mais tolerado, deixando de existir. Esperava-se que a humanidade tivesse aprendido com o Holocausto e, assim, nunca mais florescessem o antissemitismo e nem outras formas de preconceito e racismo. Mas, infelizmente, o antissemitismo nunca desapareceu – apenas se ocultou temporariamente ou se

metamorfoseou. Hoje, o que vemos em muitos países é que os antissemitas sequer tentam esconder seu ódio pelo Povo Judeu, manifestando-o de maneira aberta, vigorosa e cruel. Mas o que é o antissemitismo? Antissemitismo significa negar aos judeus o direito de existir coletivamente como tal. É semelhante a um vírus com capacidade de mutação e adaptação. E, de fato, ao longo dos séculos, passou por diversas mutações. Na Idade Média, éramos perseguidos por nossa religião. Já nos séculos 19 e 20, éramos vistos como uma raça distinta. E nos perseguiam. Hoje, somos atacados principalmente devido à existência do Estado de Israel, país que garante a segurança do Povo Judeu: é o lar onde todos seremos sempre bem-vindos e para onde podemos recorrer, especialmente se não pudermos mais viver como judeus em nossos países de origem. Negar o direito de existência ao Estado de Israel significa negar aos judeus o direito à liberdade, autodefesa e autodeterminação. Na verdade, o antissemitismo não é apenas um problema para o Povo Judeu, mas para toda a humanidade, porque a liberdade religiosa é um dos alicerces das sociedades livres e democráticas. Portanto, o recrudescimento do antissemitismo constitui um sinal de alerta para a humanidade, sinalizando uma ameaça à vida, liberdade e dignidade humanas. Os maiores vilões de todos os tempos foram notórios antissemitas. A princípio, perseguiram os judeus, voltando-se, depois, contra o restante da humanidade. O antissemitismo é um fenômeno extremamente perigoso e nocivo que atinge a todos, e é por isso que, juntos, devemos combatê-lo. Nesses momentos em que assistimos estarrecidos uma guerra que pode assumir proporções assustadoras, precisamos lembrar que para sobreviver como povo devemos manter nossa identidade e, como bem o disse Martin Luther King Jr., nenhum homem é realmente livre até que todos sejamos livres.


ÍNDICE

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03

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carta ao leitor

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NOSSAS FESTAS Leis e significado do Chamêts

antissemitismo Bambi, uma história sobre o antissemitismo

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O casamento entre o Céu e a Terra 12

destaque A história dos laços de Israel com Ucrânia e Rússia POR jaime spitzcovsky

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por rabino Gabriel Aboutboul

HISTÓRIA O enigma Ethel POR ZEVI GHIVELDER

comunidades

Judeus de Kiev: do séc. 8 à Revolução Russa de 1917 4


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12

58 49

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brasil A presença nazista na Amazônia por Ilko Minev

shoá A lei, a ciência e a medicina nazista por Silvia R. N. Lerner

75

52

cartas

israel Em Israel, inclusão passa da teoria à prática

58

comunidades Judeus de Kiev nos séculos 20 e 21 5

ABRIL 2022


NOSSAS FESTAS

Leis e Significado do Chamêts Durante a festa de Pessach é estritamente proibido consumir, utilizar ou mesmo ter em casa chamêts. No entanto, há muitas pessoas que desconhecem o que seja o chamêts, pensando ser apenas pão ou um agente fermentador.

A

definição correta de chamêts é a seguinte: qualquer produto alimentar feito a partir destas espécies de grãos: trigo, cevada, centeio, aveia e espelta (ou trigovermelho), que tenha entrado em contato com água e que tenha fermentado. Na prática, é considerado chamêts praticamente tudo o que é feito com qualquer desses grãos – à exceção da matsá casher para Pessach. Incluem-se nessa regra farinha (mesmo antes de ter sido misturada com água)1, bolos, biscoitos, massas, pães, cerveja, uísque e vários outros alimentos e bebidas feitos a partir de grãos fermentados.

A proibição de consumo de chamêts em Pessach é especialmente severa, sendo uma violação dessa ordem considerada uma transgressão tão séria quanto comer em Yom Kipur. Sob certos aspectos, é até mais séria do que comer comida não-casher ou misturar carne com leite durante o restante do ano. Por exemplo, de modo geral, se uma pequena quantidade de alimento proibido for misturada, acidentalmente, com mais de 60 vezes o seu volume de alimento casher, o componente não-casher é anulado, tornando, assim, permitido ingerir-se todo o alimento. Por outro lado, se houver uma quantidade qualquer de produto não chamêts misturada no alimento de Pessach – por menor que seja essa quantidade – todo o alimento se torna proibido para essa festividade.

De acordo com uma opinião que consta no Talmud, determinados outros grãos, como o arroz e o milheto (painço), também podem tornar-se chamêts, mas a Halachá, a Lei Judaica, não segue essa opinião.

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Importante, também mencionar que durante Pessach é proibido não apenas consumir chamêts, mas até beneficiar-se do mesmo de alguma maneira. Exemplificando: não se pode alimentar um animal de estimação com algo chamêts, nem vender chamêts, nem sequer usá-lo como combustível para o fogo que traga benefícios à pessoa. Assim sendo, aqueles que possuem animais ou bichinhos de estimação devem alimentá-los

Tecnicamente, a farinha em si não precisaria ser considerada chamêts. No entanto, a prática comum dita que, antes mesmo de se iniciar o processo de sua trituração, os grãos de trigo são borrifados com água e descansam até que a umidade seja absorvida. Assim sendo, é costume considerar-se a farinha como sendo chamêts. 6


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NOITE DE SEDER. "UMA JORNADA PELO MUNDO JUDAICO"

com alimentos permitidos em Pessach que, obviamente, não contenham chamêts. Outra exigência é que nenhum judeu esteja de posse de espécies ou produtos chamêts durante a festividade. Em virtude desse rigor, deve-se ter enorme cautela assegurando-se de que não se está violando tal proibição. Mesmo os rabinos que, em geral, são mais lenientes em seus pareceres, são muitos severos nas questões que envolvem o chamêts durante a festa de Pessach.

Ainda que seja digno de louvor aquele que é rigoroso no cumprimento das leis do chamêts, é importante não esquecer que poeira não constitui chamêts. A obrigação

A cozinha deve ser cuidadosamente limpa para garantir que não tenha restado vestígio de alimentos proibidos para a festa. Além disso – e extremamente importante de ser enfatizado – se a pessoa usar suas panelas e utensílios de cozinha de uso diário, não exclusivos da festa, todos eles devem ser “casherizados” para Pessach.

Livrando-se do Chamêts Um dia ou mais antes do início de Pessach, limpamos nossa casa, escritório e qualquer outro lugar que nos pertença de modo a nos livrarmos do chamêts.

de nos livrarmos de tudo o que não é permitido não inclui algo que não seja comestível ou pequenas migalhas que sujam o chão ou mancham os tecidos. O propósito principal de limpeza e busca pelo chamêts é assegurar que, inadvertidamente, ninguém coma ou tire proveito desses alimentos durante a festa de Pessach.

Venda do Chamêts Cena RETRATANDO A BUSCA POR CHAMÊTS, "BEDIKAT CHAMETZ". ISRAEL MUSEUM

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Seria adequado terminar de comer ou se livrar do que se tem de chamêts em abril 2022


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casa antes do início da festividade, mas isso pode ser difícil, na prática, ou, até mesmo, impossível financeiramente. Isto se aplica especialmente a lojas, fábricas e depósitos com grandes estoques de artigos chamêts ou indivíduos que tenham produtos dispendiosos proibidos durante a festa de Pessach, como bebidas ou outros. Por isso, a Lei Judaica autoriza a “venda”

desses produtos, mediante a qual todo esse chamêts pode ser vendido a um não-judeu pelo período dos oito dias de duração da festividade, sendo automaticamente “recomprados” ao seu término. Como são tão rígidas as leis referentes a se ter em sua posse, comer e se beneficiar do chamêts com algum propósito, todos os

HAGADÁ DE PESSACH DE VIENA, 1930. ARQUIVOS IRAQUIANOS NO ARQUIVO NACIONAL

judeus – e até mesmo aqueles que tenham limpado sua casa muito bem, removendo todo o chamêts em seu poder – devem vender o seu chamêts. Isso porque sempre pode haver a possibilidade de que haja alimento não permitido em sua posse sem que a pessoa o saiba.

"BUSCA DO CHAMÊTS", BERNARD PICART, HOLANDA, 1725

A venda de chamêts a um não-judeu não é uma venda simbólica, mas uma transação vinculante – e deve ser conduzida por um rabino. E para realizar a venda, é preciso assinar um documento fornecido pelos rabinos para esse fim. Tal documento dá o poder ao 8

rabino de vender a um não-judeu qualquer chamêts que possa ser encontrado no endereço especificado no mesmo. Para aqueles que desconheçam onde fazer a venda, em pessoa, o site da Revista Morashá disponibiliza essa intermediação online. O chamêts vendido e os utensílios que não forem “casherizados” para Pessach devem ser deixados em um lugar separado para tal fim, como um closet ou armário. Esse local de armazenamento deve ser claramente marcado para que ninguém, por distração ou pela força do hábito, utilize ou retire algo que esteja lá. Em virtude do rigor na proibição de ter chamêts durante os oito dias de Pessach, nossos Sábios instituíram uma penalidade post facto para quem possuir ou adquirir qualquer produto chamêts durante a festividade – a isto se chama chamêts she’avar alav haPesach – expressão essa que dá nome à proibição. Não se deve consumir nem auferir benefício do chamêts que pertencia a um judeu durante Pessach. Essa é uma das razões pelas quais é tão importante vender os seus produtos proibidos nessa festividade antes de seu início. Se porventura alguém não o fizer e descobrir, durante Pessach, que estava de posse de chamêts, ele terá que ser destruído. Não poderá ser consumido, vendido nem que seja a um não judeu, nem tampouco beneficiar alguém de qualquer maneira que seja.

Eliminação do Chamêts Na véspera do dia 14 de Nissan – a noite anterior ao Seder – procuramos em nossas casas qualquer vestígio de chamêts que possa ter-nos escapado


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durante os processos de limpeza explicados acima. Costuma-se colocar 10 pedacinhos de pão bem embrulhados em lugares diferentes da casa. A seguir, faz-se uma busca por esses embrulhinhos usando uma vela, uma pena, uma colher de pau e uma sacola de papel onde se colocará o chamêts encontrado, bem como os 10 embrulhinhos de pão. Não deve haver interrupção entre a recitação dessa bênção e o início da busca. E durante essa busca, só se deve discutir assuntos relativos à procura pelo chamêts que tenha ficado na casa. Esse processo é tão importante que, para garantir que o realizemos da maneira e na hora certa, é proibido comer e até mesmo estudar a Torá, à noite, até que a busca do chamêts seja concluída.

Anulação do Chamêts Ao terminar essa busca, recitamos uma “declaração de anulação” mediante a qual renunciamos à posse de qualquer produto chamêts que, porventura e sem que o saibamos, esteja ainda em nossa posse. Essa declaração deve ser feita em um idioma que a pessoa entenda perfeitamente o que diz.

A declaração de anulação que é pronunciada após a queima inclui todo o chamêts que possa ainda estar em nosso poder, sem que o saibamos. Serve, portanto, como uma “medida” de segurança final.

O que são Kitnyot?

Após queimar o chamêts, recitamos novamente a declaração de sua anulação. Contudo, é importante observar que essa declaração de anulação tem palavras ligeiramente diferentes do que as que recitamos na noite anterior. A razão para a diferença no texto é que a declaração recitada na noite anterior inclui apenas o chamêts que não foi encontrado na busca. Mas não incluiu o chamêts que foi colocado de lado para ser ingerido pela manhã.

Devido à gravidade da proibição do chamêts, os rabinos ashquenazitas medievais também proibiram o consumo de qualquer dos tipos de kitnyot – traduzidos como leguminosas – durante Pessach pelo fato de que poderiam ser confundidos com os grãos proibidos, e que definitivamente constituem chamêts. É importante enfatizar que as leis das kitnyot só se aplicam às comunidades ashquenazitas – não às sefarditas. Dessas leguminosas fazem parte – entre outras – o arroz, milho, soja, vagens, ervilhas, lentilhas, mostarda, gergelim e sementes de papoula. O veto às kitnyot foi

Ao anular esse chamêts que ainda possa estar em nossa propriedade, nós o consideramos nada mais que pó – que não pertence a ninguém. Dessa forma, está cumprida a mitzvá de remover todo o chamêts de nossa posse.

Queima do Chamêts No dia 14 de Nissan, antes das 10:30 hs, queimamos qualquer chamêts que ainda tenhamos e no qual incluemse os 10 pedacinhos de pão da busca realizada na noite anterior. 9

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NOSSAS FESTAS

acatado como vinculante pelos judeus de origem ashquenazi.

fermentar. Esse alimento, produzido em condições muito específicas e exigentes, é chamado de matsá. Constitui a única forma de “pão” que podemos comer durante a semana de Pessach. A matsá geralmente é feita de farinha de trigo, mas também pode ser produzida a partir dos outros quatro tipos de grãos.

Há uma nítida diferença entre as leis do chamêts e das kitnyot. Em primeiro lugar, as leis do chamêts provêm da Torá, enquanto o decreto das kitnyot foi de origem rabínica – e somente aplicável aos judeus asquenazitas. Além disso, as consequências espirituais para quem consciente e propositalmente consome chamêts em Pessach são o karet – corte espiritual, no sentido de exclusão. Mas isso não procede nem se aplica aos judeus ashquenazim que consomem alguma das espécies de kitnyot durante Pessach. Outro ponto é que diferente do chamêts, não há obrigação de destruir ou vender os tipos de kitnyot que se tenha em casa antes de Pessach, podendo-se usá-las para outros propósitos, como a alimentação de animais de estimação.

Consumindo Matsá em Pessach Durante os oito dias de Pessach, não se pode comer chamêts. A única maneira de comer qualquer produto feito das cinco espécies de grãos - trigo, cevada, aveia, espelta e centeio - é quando todo o processo de cozimento é realizado de tal maneira que a massa é impedida de crescer e

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Durante as duas noites do Seder (uma noite apenas, em Eretz Israel) há uma obrigação da Torá de comer matsá. Ao contrário da crença popular, não há obrigação de comê-la no restante de Pessach, mesmo que seja meritório fazê-lo. É importante notar, no entanto, que no Shabat, quando há uma obrigação de comer pão, como a matsá é


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o único tipo de pão que podemos consumir em Pessach, devemos comê-la durante as refeições desse dia. Ao comprar matsá para Pessach, deve-se tomar cuidado para que não contenha ingredientes adicionais além de farinha e água. Matzot com sabor, como as com cobertura de chocolate, podem ser consumidas durante a semana da festividade, desde que sejam casher para Pessach, mas não podem ser usadas ​​para cumprir a obrigação de comer matsá durante o Seder. Deve-se notar que a matsá que se come em Pessach deve ter um certificado de cashrut para essa festa, especialmente tendo em vista o fato de que existem empresas que produzem matzot para consumo durante todo o ano, que, obviamente, não são adequadas para Pessach. Muitas pessoas comem apenas matsá shmurá em Pessach especialmente durante o Seder. A matsá shmurá é um tipo especial de matsá, assada com farinha de grãos que foram observados desde o momento de sua colheita para garantir que não tenham entrado em contato com água. De acordo com o misticismo judaico, é importante consumir matsá shmurá durante Pessach. A matsá é o símbolo de Pessach. De fato, um dos nomes utilizados pela Torá para denominar Pessach é “a Festa das Matzot”, Chag haMatzot. Para fazer com que a experiência de comer matsá na noite do Seder seja singular, devemos abster-nos de comer matsá por um período antes da chegada da festa. De acordo com todas as opiniões rabínicas, deve-se, no mínimo, abster-se de comer matsá no dia anterior a Pessach.

JUDEUS CELEBRAM PESSACH. LUBOK, GRAVURA POPULAR RUSSA, SÉC.19

Simbolismo do Chamêts Chamêts e matsá contêm os mesmos ingredientes: farinha e água. São, de fato, quase a mesma substância. E ainda assim, durante a festa de Pessach, ordenaram-nos comer matsá durante o Seder – sim, é um mandamento da Torá –, ao passo que estamos rigorosamente proibidos de consumir, possuir ou tirar benefício da menor quantidade de chamêts que seja. A única diferença importante entre matsá e chamêts – uma é uma grande mitzvá, ao passo que a outra, uma séria transgressão – é que o chamêts, por natureza própria, tende a crescer, enquanto a matsá permanece baixa, achatada, humilde. Chamêts representa o inchaço do ego, que, segundo nossos Sábios, é a raiz de praticamente todo o mal. Um ego inflado geralmente se transforma em um comportamento egoísta, até mesmo cruel. É o inchaço do ego o que escraviza a alma, impedindo seu crescimento e desenvolvimento. Como chamêts representa o ego – o self inflado – uma vez ao ano, durante a festa de Pessach, celebramos nossa libertação 11

da escravidão e nosso nascimento como nação, temos o especial cuidado de erradicar qualquer chamêts que possa estar em nossa propriedade. Enquanto chamêts simboliza o ego, matsá, achatada, simples, representa humildade, autoanulação e desprendimento – pré-requisitos necessários para o crescimento espiritual e o desenvolvimento moral. O comer matsá em Pessach, particularmente durante o Seder, ajuda-nos a nos conectarmos com D’us sem que nosso ego interfira. Esta é a razão pela qual o comer matsá em Pessach é tão fundamental para nossa fé. A matsá é a marca par excellence da festa de Pessach, o momento em que celebramos nossa libertação da escravidão. Contrastando com o chamêts, a matsá nos ensina que somente quando colocamos nosso ego de lado – quando paramos de pensar apenas em nós mesmos e começamos a pensar no outro – somente então podemos alcançar a verdadeira emancipação, liberdade e crescimento em todas as áreas de nossa vida. abril 2022


nossas festas

O casamento entre o Céu e a Terra Por Rabino Gabriel Aboutboul

A festa de Shavuot comemora o momento da entrega da Torá e o casamento entre o Céu e a Terra. Até a Revelação Divina no Monte Sinai, D’us era inatingível. A entrega da Torá marca o momento em que D’us se revela a todo o povo judeu, sendo esse o momento em que fomos capazes de conhecê-Lo. Com a entrega da Torá, nossa missão deixa de ser atingir o Céu, mas sim trazer o Céu para a Terra.

n

a linguagem do Midrash: D’us desejou ter uma moradia neste mundo inferior. E cabe a nós transformar este nosso mundo em uma morada para Ele, pois, afinal, o objetivo maior é transformar a Terra em um paraíso.

Em Shavuot, comemoramos o recebimento pelo Povo Judeu de um código de leis morais e espirituais ditadas por D’us.

O encontro do Céu e a Terra D’us, em sua eterna bondade, revelou no Monte Sinai como nos conectarmos a Ele. Isso é feito através das mitzvot (plural, em hebraico, de mitzvá). As mitzvot promulgadas pelo Eterno fundamentam a responsabilidade do ser humano perante outros seres humanos e Seu Criador. São leis espirituais que, uma vez trazidas à Terra, assumiram forma física e cotidiana.

Até a entrega da Torá existia um decreto Divino que separava de forma irreconciliável o mundo material do mundo espiritual. O ser humano buscava D’us por vários caminhos. Alguns acreditavam que o caminho para se chegar mais perto do Altíssimo era viver de uma forma espiritual, desconectando-se das coisas materiais e levando uma vida de abstinência. Porém, por mais elevada que a pessoa fosse, havia um abismo entre D’us Infinito e o ser humano finito – e esse abismo não podia ser cruzado pelo ser humano. D’us o cruzou com a Revelação Divina no Monte Sinai.

O Eterno nos deu dois tipos de mitzvot: as positivas e as negativas. As mitzvot positivas são as que ditam o que devemos fazer: faça caridade, respeite pai e mãe, cumpra o Shabat etc. As mitzvot negativas ditam o que não devemos fazer: não mate, não roube, não cometa idolatria, não coma em Yom Kipur. Ao todo são 613 mitzvot: 248 positivas e 365 negativas.

E assim está expresso nas palavras que definem a Revelação de D’us no Monte Sinai: “E D’us desceu ao Monte Sinai”. E quando isso ocorreu, o “Céu beijou a Terra” e o decreto que separava o mundo espiritual do material foi eliminado. Pela primeira e única vez na História, D’us Se revelou publicamente – a todo o Povo Judeu.

A divisão das mitzvot entre positivas (faça) e negativas (não faça) nos ensina que, ao mesmo tempo em que precisamos nos preocupar em fazer o positivo, precisamos 12


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“O Exôdo”, Marc Chagall. 1966

também nos proteger do negativo. No mundo em que vivemos, as forças negativas são maiores do que as positivas, e é por isso que existem mais mitzvot negativas do que positivas. A palavra mitzvá é usualmente traduzida como mandamento, porém, em hebraico, ela advém da palavra tsavta que significa conexão ou ligação. O poder da mitzvá é justamente o de conectar o ser humano, limitado, com o Infinito; de conectar o mundo material ao espiritual, dotando o ser humano da capacidade de elevar os elementos materiais desse mundo permeandoos de espiritualidade. Quando transgredimos alguma dessas mitzvot nosso ato causa uma desconexão de D’us. Através das mitzvot, D’us nos mostra como podemos nos conectar a Ele e como

A ação é o principal No Judaísmo, ao contrário de outras crenças, a ênfase está em nossas ações e não em nossas intenções ou pensamentos. Na linguagem dos nossos Sábios: ma’assê hu’aicar. A ação é o principal. O que isso significa? Significa que ter uma boa intenção ou meditar sobre o bem de nada adianta se não praticarmos, de fato, o bem. O mundo em que vivemos é chamado de mundo da ação, onde o que tem maior valor são os nossos atos, as nossas atitudes, o nosso comportamento e a maneira pela qual vivemos. COROA DA TORÁ, GALÍCIA

podemos perder essa conexão. De acordo com a Cabalá, nossas ações neste mundo causam transformações nas esferas mais elevadas. 13

Havia um chassid muito caridoso, seguidor do Rebe Shneur Zalman, o primeiro Rebe de Lubavitch. Ele cumpria com muito zelo a mitzvá de receber hóspedes em sua casa, em especial pessoas com menos recursos materiais. Certa vez, angustiado, abril 2022


nossas festas

conseguimos verdadeiramente “entender” depois de tê-las vivido. Por isso, o Judaísmo é, acima de tudo, experienciar e vivenciar nossas tradições.

ele abordou o Rebe. E o questionou se ele estaria agindo com todo o seu coração. O Rebe sorriu e lhe respondeu: “Seus hóspedes estão satisfeitos? Mesmo se você não agiu com a melhor de suas intenções, o objetivo foi alcançado. Essas pessoas estão sendo alimentadas e recebem a ajuda que, de fato, precisam para poderem crescer material e espiritualmente”. Podemos questionar nossas intenções, porém elas não devem nos impedir de fazer o bem. É comum ouvir que o importante é ser um bom judeu no coração. O que está dentro de nós é de grande valor, mas palavras, sentimentos e filosofias não bastam. Somente ações podem transformar o mundo em que vivemos. Realmente, uma ação completa é a que vem acompanhada de sentimento e conscientização. É quando nosso coração e mente andam juntos. De acordo com a Cabalá, nossa intenção é comparada a asas e elevam nossas ações a esferas mais elevadas.

Faremos e Ouviremos O povo de Israel, reunido aos pés do Monte Sinai, prometeu seguir os mandamentos da Lei Divina e afirmou, em uníssono: “Naassê Venishmá” (Êxodo 24:7): “Faremos e ouviremos”.

A Torá e os anjos O Talmud diz que quando Moshe subiu ao Céu para receber a Torá de D’us, ele discutiu com os anjos. Os anjos disseram que a Torá lhes pertencia e reclamaram, pois como um ser humano, com todas as suas imperfeições, poderia tomar posse da maior riqueza Divina? “Segurando a Torá”, Shavuot, 1880, Moritz Daniel Oppenheim, Alemanha

temos a experiência e depois buscamos entender o que fizemos, o entendimento é mais profundo. Por exemplo, é difícil “compreender”, em toda a acepção do termo, sem ter passado pela emoção de ouvir a reza da Neilá, quando se aproxima o término do Yom Kipur, ou ver um filho fazer Bar-mitzvá. Não conseguimos colocar em palavras a conexão que sentimos ao colocar Tefilin ou ao acender as velas de Shabat. Certas experiências, só

Ao que Moshe lhes respondeu: “Anjos têm má ou boa inclinação? Trabalham e precisam descansar no Shabat? Foram escravos no Egito? Têm pai e mãe para respeitar?” E assim por diante. Moshe ganhou a discussão e trouxe a Torá para a Terra. O chassidismo nos mostra o lado místico dessa conversa entre Moshe e os anjos. Os anjos reivindicavam a Torá para os Céus e Moshe mostrou que a Torá só tem valor na Terra. A Torá foi entregue a este nosso mundo, a seres humanos, com todos seus desafios, suas falhas e suas dificuldades.

“EM UMA SINAGOGA CHASSÍDICA”, yosef schneider (1848-1893). 2a. METADE DO SÉC. 19

Dissemos ao Todo Poderoso: faremos e depois buscaremos entender o que ouvimos, o que nos foi ordenado. Isso ressalta a importância de buscar entender o Judaísmo, estudar seus preceitos e não os seguir somente como um ato de fé. Uma das explicações para esse versículo é que muitas vezes o entendimento só vem depois de realizarmos uma ação. Quando fazemos algo, quando 14


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Em uma entrevista particular com o Rebe de Lubavitch, uma pessoa perguntou: “Por que D’us precisa dos seres humanos? Os anjos cumprem a sua missão de uma maneira tão perfeita. E os seres humanos, desde que estão aqui neste mundo, só causam problemas”. A que o Rebe respondeu: “Existem paisagens muito bonitas no mundo e pessoas que fotografam e pintam essas paisagens. O que tem mais valor, uma foto ou uma pintura?” “A pintura”, respondeu a pessoa e o Rebe voltou a fazer uma pergunta: “E o que é mais perfeito, a foto ou a pintura?” O Rebe então explicou que mesmo que a foto seja mais perfeita, replicando de maneira precisa a paisagem, ela é, em grande parte, fruto de uma máquina. A pintura, por sua vez, envolve todo o esforço e dedicação de um artista. O artista coloca sua alma e seu coração naquilo que está retratando. Por isso, a pintura tem maior valor. Da mesma forma, os anjos são mais perfeitos. Mas o ser humano, com todas as suas imperfeições, se esforça e trabalha para se transformar e transformar este nosso mundo. D’us ama nossas imperfeições e conhece nossos dilemas e desafios. E tudo o que alcançamos tem grande valor para Ele.

Os três pilares do mundo Existem três pilares sobre os quais o mundo se sustenta: 1. O estudo da Torá. 2. Avodá – as rezas1. 3. Os atos de bondade. Esses três pilares fazem um paralelo com os três tipos de relacionamentos 1

A Tefilá, palavra hebraica que é comumente traduzida como “oração”, corresponde à Avodá, o serviço Divino.

humanos: entre o homem e D’us, entre o homem e ele próprio e entre o homem e os outros seres humanos.

O Estudo da Torá

outro aquilo que íamos fazer de qualquer maneira é como enganar e roubar. Chama-se gonev dat habriyot, roubar a consciência daquela pessoa. Sem as diretrizes da Torá, poderíamos considerar isso uma gentileza, um agrado ao amigo.

A Torá foi dada para o nosso bem: proíbe tudo o que faz mal à nossa alma e pede que pratiquemos atos que fortaleçam nossa essência e nossa ligação com D’us. Ao estudarmos a Torá, vemos o mundo pela verdade Divina.

Por milênios os judeus foram chamados de preguiçosos por descansar no Shabat. Como poderiam descansar durante 1/7 de sua existência? Hoje em dia, o mundo reconhece a importância de um dia de descanso.

Vejamos exemplos desses três pilares.

Rolos da Torá

A verdade Divina e a percepção humana muitas vezes diferem. Por exemplo: existe uma lei no Shulchan Aruch, nosso código de leis, que para muitos pode soar estranha. Ilustramos essa lei através da seguinte situação. Uma pessoa está em casa, decide abrir um vinho Casher antigo e inesperadamente um amigo aparece para visitá-lo. O impulso é dizer ao amigo, “Como você veio me visitar, vou abrir esse vinho em honra de sua visita”. Isto é proibido. De acordo com a Torá, fingir que se está fazendo pelo 15

O correto e o não correto nem sempre seguem a lógica humana ou o tempo que que vivemos. Com o recebimento da Torá, foi-nos dado o privilégio de ver o mundo e a nós mesmos de uma forma Divina. O estudo da Torá alimenta nossa mente e nossa alma e o conhecimento adquirido modifica nossa percepção. Quando um programa de computador processa sempre os mesmos dados, ele nos fornece sempre o mesmo resultado. Nossa mente funciona da mesma abril 2022


nossas festas

forma. Quando recebemos sempre as mesmas informações, nossa percepção do mundo permanece inalterada. Quando adquirimos conhecimento Divino, crescemos e mudamos nossa forma de ver o mundo.

Modê Ani Um dos três pilares do mundo é a reza. Ao acordarmos pela manhã, nosso primeiro ato é recitar: Modê ani lefanêcha, Mêlech chai vecayam, shehechezarta bi nishmati bechemlá rabá emunatêcha. Sou grato a ti, Rei vivo e eterno, por teres restaurado minha alma dentro de mim com misericórdia. Tua lealdade é grande. Começamos o dia agradecendo a D’us por ter devolvido a alma ao nosso corpo. Como está escrito no Zohar, obra fundamental da Cabalá, durante o sono a alma se separa do nosso corpo, “recarrega” suas energias nos Céus e retorna ao acordarmos.

Mas o que é essa prática tão sagrada de recitar o Modê ani? Mal abrimos os olhos, já agradecemos a D’us. Com o Modê ani aprendemos a praticar a gratidão, um sentimento importantíssimo em todos os âmbitos de nossa vida. Em hebraico, idioma sagrado, Modê significa agradecer, mas também significa reconhecer. Uma pessoa agradecida é alguém que reconhece o que os outros fazem por ela. Todos os nossos relacionamentos – casamentos, relacionamento entre pais e filhos, entre amigos etc. – melhorariam significativamente se começássemos nosso dia agradecendo e reconhecendo o que os outros fazem por nós. É interessante também notar que a frase faria mais sentido se ela fosse escrita de maneira diferente Ani modê - eu agradeço, mas ela é escrita da forma Modê ani – agradeço, eu. Perguntam os nossos

“ENTUSIÁSTICA REVERÊNCIA À TORÁ”. DESENHO EM GIZ DE COR. ANÔNIMO, alemanha

Sábios, por que as palavras se encontram nessa ordem? A razão é para que não comecemos o dia com a palavra “eu” e sim com o ato de agradecer. “Eu” é a palavra que mais falamos durante o dia. Quando o “eu” vem antes, podemos nos tornar pessoas egoístas, só pensando em nós mesmos. O agradecer é o principal, sendo assim é importante que venha antes do “eu”. A cada novo dia que nos é concedido, acordamos com a consciência de que existe motivo para continuarmos neste mundo, ou seja, ainda temos uma missão a cumprir. Se recebemos mais um dia não foi por acaso. A Cabalá nos explica que cada um de nós é insubstituível, cada um de nós tem sua missão específica e essa missão não pode ser cumprida por outra pessoa. Não vivemos e não permanecemos neste mundo à toa. Cabe a cada um de nós fazer a sua parte para transformar este mundo num lugar melhor, mais justo, honesto, mais Divino e espiritual. Cabe-nos, portanto, ajudar a transformar este mundo numa moradia própria para D’us, o Todo Poderoso.

Atos de Bondade O terceiro pilar que sustenta o mundo são os atos de bondade, guemilut chassadim. O mandamento de guemilut chassadim inclui qualquer ato de bondade que é feito a outrem. Inclui emprestar dinheiro ou objetos, ser hospitaleiro, alegrar noivas e noivos, visitar os doentes, enterrar os mortos, consolar os enlutados e promover a paz entre as pessoas. O Midrash revela que a prática de atos de bondade é a pedra fundamental, o pilar sobre o qual se ergue todo o universo. 16


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Um de nossos grandes Sábios, Rav Israel Salanter, dizia: Não existe ato mais espiritual do que uma pessoa de carne e osso dar um pedaço de pão a outra pessoa de carne e osso. Muitos acreditam que um ato espiritual significa um ato desconectado do material, distante do mundo em que vivemos, um ato que esteja ligado a anjos e almas. Na verdade, são os atos físicos e materiais os que são os mais espirituais e que fazem a verdadeira diferença neste mundo. Quando falamos de atos de bondade, falamos também em tzedacá, o mandamento de ajudar os carentes, muito erroneamente traduzido como caridade. Tzedacá é justiça social, a própria etimologia da palavra em hebraico significa justiça; e não há nada mais justo do que alguém contribuir para o bemestar de outros. Parte do mandamento de tzedacá é dar o dízimo, dar uma percentagem de seu dinheiro. O dízimo tem um poder muito grande que advém da quantidade de energia e vida que colocamos na luta por nosso sustento. Muitas pessoas “dão o sangue” para conseguir dinheiro e sustento, frequentemente colocando o dinheiro acima da própria saúde. É interessante que o Talmud use uma expressão similar para dinheiro e para a sangue. Damim, dinheiro, vem da palavra dam, sangue (sangue no plural, damim). É interessante que a mitzvá de tzedacá esteja ligada a uma porcentagem e não a um valor fixo. Ao dar uma porcentagem que está diretamente ligada ao todo, estamos elevando o todo. Quando uma pessoa faz tzedacá, dando uma porcentagem daquele dinheiro para uma instituição ou para alguém

MINIATURA DE ROLO DA TORÁ. ITÁLIA, SÉC. 18, PROVAVELMENTE

necessitado, ela está elevando toda a energia que foi colocada naquele trabalho, tornando-o sagrado. A lição de dar tzedacá é que não viemos para esse mundo só para receber, viemos para dar de nós mesmos. Viemos para fazer uma diferença na vida das pessoas, para doar de nosso tempo, nossa energia e uma porcentagem dos frutos do nosso trabalho. Israel é banhado pelo Mar Morto e o Mar da Galileia. O Mar da Galileia é o maior lago de água doce do país. Vemos peixes, pássaros e crianças brincando n’água. É um lugar cheio de vida. Em contrapartida, no Mar Morto não há plantas nem peixes. Sua alta salinidade não permite a existência de vida. Curiosamente, ambos são alimentados pelo mesmo rio, o Rio Jordão. Só que no Mar da Galileia a água continuamente entra e sai, existe um constante dar e receber de água, enquanto no Mar Morto, toda água que entra é engolida. Só tem entrada e não saída, por isso é um lago morto. Da mesma forma há dois tipos de pessoas na vida. Aquelas que dão e que recebem, essas são pessoas cheias 17

de vida. São pessoas que entendem que não vieram a este mundo só para receber, mas também para fazer sua contribuição, para deixar sua marca e fazer uma diferença na vida das outras pessoas. E há pessoas que só sabem receber, que têm dificuldade de abrir a mão para a próximo e não ajudam ninguém. Pessoas que infelizmente optam por engolir tudo o que recebem. Sobre elas está escrito: os perversos na vida são chamados de mortos. A sua fonte da vida perdeu o seu significado e sua razão de ser. A lição clara para nós é que não viemos ao mundo para receber. Como apreendemos, ma’assê hu’aicar, a ação é o principal. D’us deu a cada um de nós a capacidade, a força e o poder de transformar o mundo para o bem. Em vez de nos afastarmos do mundo, devemos preenchêlo com boas ações, seguindo as diretrizes que nos foram dadas no Monte Sinai, e unir o Céu à Terra, transformando o mundo em um verdadeiro Jardim de D’us.

Rabino Gabriel Aboutboul é rabino da Sinagoga de Ipanema no Rio de Janeiro e palestrante.

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HISTÓRIA

O ENIGMA ETHEL POR ZEVI GHIVELDER

EM JUNHO DE 1953, O CASAL DE JUDEUS JULIUS E ETHEL ROSENBERG FOI ELETROCUTADO NUMA PRISÃO EM NOVA YORK, CONDENADO POR ESPIONAGEM EM FAVOR DA UNIÃO SOVIÉTICA. ESSA TRÁGICA EXECUÇÃO ATÉ HOJE ESTIMULA CONTROVÉRSIAS. MUITOS AFIRMAM QUE O CASAL FOI VÍTIMA DA PARANOIA ANTICOMUNISTA ENTÃO EXISTENTE NA AMÉRICA. OUTROS PERCEBEM DIGITAIS ANTISSEMITAS NA ACUSAÇÃO E INSISTEM NA INOCÊNCIA DE ETHEL, MÃE DE DOIS FILHOS PEQUENOS QUANDO FOI MORTA.

E

thel Rosenberg, Greenglass de solteira, neta de imigrantes, nasceu em Nova York no dia 25 de setembro de 1915. Teve a infância marcada por extremas dificuldades. Seu pai mantinha uma pequena oficina de consertos elétricos no Lower East Side, bairro com predominância judaica em Nova York. Ethel, os pais e o irmão David, sete anos mais novo, moravam num minúsculo apartamento situado em cima da oficina, que sufocava no verão e gelava no inverno. Depois de terminar o ginásio, Ethel pretendia continuar a estudar, mas para isso só havia recursos para o irmão e ela teve que começar a trabalhar para ajudar no sustento da casa.

Essa iniciação política, que parecia circunstancial, acabou tendo forte impacto em sua vida. Era natural que Ethel se envolvesse até a radicalização nas atividades partidárias em função da crescente ascendência da esquerda nos Estados Unidos. De 1920 a 1950, o partido comunista americano era uma força dinâmica na vida política do país, contando com uma expressiva quantidade de judeus, sobretudo mulheres, filhas e netas de imigrantes fluentes no idioma iídiche e promotoras de intensas atividades culturais. O partido cresceu de cerca de 10 mil afiliados, em 1930, para 40 mil no final da década, dos quais pouco menos da metade era constituída por judeus. No entanto, estes começaram a abandonar o partido após o pacto celebrado por Hitler e Stalin, em 1939, e essa deserção foi devastadora nos anos seguintes ao fim da 2ª Guerra Mundial, quando o susto da Guerra Fria acentuou o patriotismo americano, que também se estendeu às comunidades judaicas de costa a costa do país.

Primeiro, obteve um emprego como balconista. Depois, como recepcionista em uma empresa de navegação. Só lhe restava um lazer: tinha bela voz e participava de um prestigiado conjunto amador de canto coral. Sua primeira incursão na política se deu aos 20 anos de idade por ocasião de uma greve comandada por seu sindicato que abrigava numerosos membros do partido comunista americano, ao qual Ethel aderiu com entusiasmo, apoiada pelos pais, mesmo porque ela e o irmão já haviam sido doutrinados por eles, marxistas convictos.

Ethel conheceu Julius Rosenberg numa festa de ano novo em 1936, promovida por uma organização afiliada ao partido comunista na qual se apresentava o coral em que cantava. Julius nasceu em Nova York 18


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MICHAEL E ROBERT MEEROPOL DIANTE DA CASA BRANCA, EM 12/01/2016. NA FOTO EM SUAS MÃOS, OS DOIS, MENINOS AINDA, NUM RALLY EM WASHINGTON DC, EM FAVOR DE SEUS PAIS

no dia 12 de maio de 1918 (três anos mais moço do que Ethel) numa família de classe média baixa. Estudou engenharia no City College e ali se alinhou à Jovem Liga do partido comunista. Casou-se com Ethel em 1939 e durante a guerra serviu no setor de comunicações do exército. Sua fidelidade à ideologia comunista, bem como a de Ethel, permaneceu inabalável mesmo depois do pacto nazista-soviético. A escritora e jornalista britânica Anne Sebba, no livro que lançou em 2021, Ethel, an American Tragedy (Ethel, uma Tragédia Americana), desenvolve exaustivamente a tese da inocência de Ethel e insiste que os Rosenberg jamais se filiaram formalmente ao partido. Na verdade, durante o julgamento em que Julius e Ethel foram acusados de espionagem, crime agravado pelo repasse de segredos atômicos, o FBI só

Segundo relato fornecido anos mais tarde por um graduado ex-agente secreto soviético, Julius foi recrutado em maio de 1942 e forneceu a Moscou enorme quantidade de documentos confidenciais da empresa Emerson Electric, para a qual trabalhava, sobre a fabricação de fusíveis. Engajou outras pessoas na espionagem, entre as quais William Perl, que ocupava importante posição na aeronáutica militar americana, da qual subtraiu e copiou desenhos de um novo tipo de avião de caça, tudo entregue aos agentes soviéticos que atuavam nos Estados Unidos sob cobertura diplomática.

ethel na juventude

apresentou a ficha de inscrição de Julius, inexistindo igual documento com o nome de Ethel. 19

Julius prosseguia em suas atividades de espionagem, a rigor de pouca relevância, quando soube que David, irmão de Ethel, havia obtido em 1944 uma colocação como mecânico em Los Alamos, no Novo México, onde o governo americano desenvolvia o ultrassecreto Projeto abril 2022


HISTÓRIA

Manhattan, destinado à fabricação da primeira bomba atômica. Ciente da estratégica posição do cunhado, Julius logo o recrutou para sua rede de espionagem. Para Julius era um salto significativo, como se estivesse passando de espião voluntário amador para a condição de agente profissional. Conforme foi posteriormente apurado, apesar de as atividades em Los Alamos serem sigilosas, os protocolos de segurança eram pouco observados. Desenhos e documentos eram largados sobre mesas e pranchetas e não recolhidos ao fim do expediente. David não teve dificuldade para logo fotografar desenhos de equipamentos, plantas de instalações e mais 12 páginas de sensíveis documentos entregues a Julius como sua primeira missão, que continuou ao longo de seis anos sem maiores problemas. Em setembro de 1945, depois da explosão da bomba atômica em Hiroshima, David e sua mulher, Ruth, visitaram Julius e Ethel em seu apartamento em Nova York. David havia trazido um bloco de anotações com novas informações que tinham sido datilografadas por Ruth, embora David viesse a negar a participação da mulher naquela tarefa. A autora Anne Sebba destaca a ausência da participação de Ethel neste episódio de espionagem, que foi explorado com retórico fervor pela promotoria durante o julgamento do casal. Em janeiro de 1950, o decifrador de códigos conhecido como Venona, operado pelo serviço secreto americano, havia detectado a existência de um espião da União Soviética dentre os cientistas contratados para trabalhar no Projeto Manhattan. Seu nome era

Ethel e o irmão David em foto tirada em meados dos anos 1940

Klaus Fuchs, alemão de origem com nacionalidade britânica, especialista em enriquecimento de urânio, então engajado no projeto da bomba de hidrogênio. Fuchs confessou a traição e apontou seu operador, um americano chamado Harry Gold. Preso, este delatou David Greenglass que, por sua vez, delatou Julius e Ethel Rosenberg. Foi desde logo uma delação convincente e impactante, porque David era irmão de Ethel. Isto correspondeu a uma tragédia

Klaus Fuchs

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familiar tão imensa que parece extraída da dramaturgia clássica na dimensão de Shakespeare. A família Greenglass se concentrou em culpar Julius e se desintegrou de tal maneira que a mãe de Ethel, Tessie, acabou se voltando contra a filha. Quando visitou Ethel no corredor da morte na prisão de Sing Sing, lhe disse: “Você não estaria aqui se tivesse contestado o depoimento de David, se tivesse dito que o testemunho dele no julgamento era tudo mentira”. A disfunção de Tessie chegou ao ponto de cinco dias depois da execução de Ethel ela ter declarado ao FBI: “Minha filha era um soldado de Stalin”. Na tragédia dos Rosenberg, o personagem mais indecifrável é David Greenglass, que, ao ser preso, não hesitou em confessar todas as ações criminosas que havia cometido em Los Alamos. A princípio, a porção da delação que envolvia a irmã nem chegara a ser muito contundente. Todo o foco recaía sobre Julius, deixando Ethel numa posição secundária no tocante à espionagem. No entanto, quando o FBI encontrou no apartamento do casal uma folha de papel contendo informações ali mesmo datilografadas, tudo mudou. David acertou uma delação premiada com o FBI na qual reiterou sua confissão inicial enriquecida por melhores e maiores detalhes. Porém, ficou acordado na delação premiada que Ruth, sua mulher, jamais seria indiciada. Nesse contexto, ele afirmou que Ethel tinha sido a datilógrafa de suas anotações. Esta foi a acusação que mais pesou sobre ela durante o julgamento. Em dado momento, o promotor-chefe, Irving H. Saypol, assim se dirigiu aos jurados: “Em muitas ocasiões a senhora Rosenberg usou aquela máquina de escrever, usou tecla por


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tecla contra os interesses de seu país para atender aos interesses soviéticos”. A par da sentença de morte lavrada para o casal, David foi condenado a 14 anos. Cumpriu pouco menos de dois terços da pena, obteve liberdade condicional em 1960, trocou o sobrenome e sumiu. Seu paradeiro, entretanto, foi descoberto anos depois pelo repórter Sam Roberts, do The New York Times, que insistiu durante 14 anos para que David lhe desse uma entrevista, até ser bem-sucedido. Mais de 50 horas de gravação resultaram no livro de 560 páginas, publicado em 2014, The Brother: The Untold Story of the Rosenberg Case (O Irmão: A História Desconhecida do Caso Rosenberg). No livro, David diz que desde a adolescência, quando vivia no Lower East Side de Nova York, estava convencido de que o marxismo salvaria o mundo. Revelou sem reservas e de forma minuciosa suas atividades de espionagem, ao longo de seis anos, no Projeto Manhattan, dizendo que tinha atendido à convocação de Julius porque nutria grande admiração pelo cunhado. O relato de David oferece em sua extensão uma instigante visão sobre os efeitos da Guerra Fria na mentalidade dos americanos que, até o fim da 2ª Guerra Mundial, viam a União Soviética como uma potência aliada e depois passaram a vê-la como um inimigo ameaçador. Justifica a delação sobre a irmã como a única maneira de ter poupado sua mulher que, àquela altura, era mãe de dois filhos pequenos. No decorrer das longas entrevistas não deixou transparecer nenhum traço de remorso e o autor, Sam Roberts, reproduz na primeira

DAVID GREENGLASS, ALGEMADO, SENDO LEVADO AO TRIBUNAL DE NOVA YORK PELO DELEGADO EUGENE FITZGERALD, À ESQ., PARA SER SENTENCIADO COMO ESPIÃO ATÔMICO

linha de seu livro a seguinte frase que ouviu de David: “Eu não chorei, eu não os matei”. David Greenglass morreu no dia 1 de julho de 2014, aos 92 anos de idade, no bairro de Queens, em Nova York.

Ruth greenglass, 1951

O julgamento de Julius e Ethel Rosenberg esteve sempre sob duas sombras: um sólido sentimento anticomunista, unânime em todo o país, e a possível ocorrência de antissemitismo por parte das autoridades.

JULIUS E ETHEL ROSENBERG DURANTE SEU JULGAMENTO POR ESPIONAGEM, 1951

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HISTÓRIA

O anticomunismo deixou de ser apenas um sentimento e se tornou um irrefreável movimento agressivo desencadeado pelo senador Joseph McCarthy (1908-1957), do estado de Wisconsin. Político medíocre, McCarthy fizera do anticomunismo o foco central de sua atuação, que influenciou milhões de americanos e o elevou a uma espetacular condição de celebridade com repercussão internacional. O macartismo, neologismo calcado em seu nome, destruiu milhares de reputações, dilacerou famílias e levou pessoas ao suicídio. A fama de McCarthy atingiu alturas inimagináveis quando ele investiu sobre as artes performáticas americanas, arruinando carreiras teatrais e criando listas que obrigaram os estúdios de Hollywood a demitir e por anos negar trabalho a atores, diretores e roteiristas. Seu poder de disseminar pavor no contexto da Guerra Fria era tão envolvente que incontáveis famílias construíram abrigos antinucleares nos terrenos de suas casas. A caça às bruxas comandada por McCarthy teve como principal aliado, propagador e impulsionador J. Edgar Hoover (1985-1972). Temido diretor por décadas do FBI, Hoover corroborava as denúncias de McCarthy, na maioria das vezes infundadas, coagindo pessoas e forjando provas para sustentar as acusações. Hoover foi uma figura lendária na vida pública americana. Serviu a oito presidentes durante 38 anos, sem correr o risco de ser demitido porque corria a suspeição de que conservava um arquivo pessoal contendo informações capazes de servir para chantagear políticos dos dois partidos e grandes empresários. Glorificado por conservadores, Hoover é até hoje desprezado por liberais.

senador Joseph McCarthy

O nome de Joseph McCarthy não foi pronunciado durante o julgamento do casal, mas sua sombra pairou o tempo todo sobre o tribunal, principalmente porque dois anos antes, em agosto de 1949, a União Soviética havia detonado sua primeira bomba atômica. A certa altura, o promotor exclamou: “Foi por ter a bomba atômica que a Rússia apoiou a Coreia do Norte na guerra contra o Sul, uma guerra que está vitimando milhares de nossos combatentes. Esta bomba só existe por causa da espionagem praticada pelo homem e pela mulher no banco dos réus”.

J. Edgar Hoover

Senador Joseph McCarthy e seu advogado Roy Cohn

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A defesa dos Rosenberg coube ao jovem advogado judeu Emmanuel “Manny” Bloch (1901-1953), cujas argumentações já estavam descartadas antes mesmo de serem desdobradas. Mesmo assim, Bloch teve bons momentos de oratória: “Vocês querem condenar estes réus porque julgam que eles são comunistas e por princípio não gostam do comunismo. Então, senhoras e senhores do júri, eu posso voltar a me sentar porque o que estou aqui falando não faz a menor diferença. Depois de três semanas, este julgamento não passa de uma patuscada”.

juiz irving kaufmann

repassar para os russos segredos de Los Alamos, porque, conforme sustenta, ele estava fazendo ilegalmente o que o cientista Robert Openheimer, diretor do projeto Manhattan, defendia de forma legal: o compartilhamento com a União Soviética da fabricação da bomba atômica. Contudo, faltou à autora do livro esclarecer se essa posição do célebre cientista atômico foi anterior ou posterior à instituição da Guerra Fria. O professor universitário americano Harvey Klehr, autor

O assistente do promotor era o também jovem judeu Roy Cohn (1927-1986), amigo e ex-colaborador de McCarthy. Trata-se, até hoje, de uma personalidade controvertida e polemizada pelas inúmeras ações ilícitas que cometeu como lobista e advogado, sempre acobertado por autoridades influentes. Para dissipar insinuações sobre antissemitismo, o governo indicou o juiz Irving Kaufman (19101972), judeu, para presidir o julgamento. Roy Cohn escreveu em suas memórias que coube a ele a indicação de Kaufman, bem como a recomendação para que os Rosenberg fossem condenados à morte. Nada disso, porém, pode ser confirmado. Também sem confirmação, consta que o Departamento de Justiça e o FBI, apesar da posição pessoal de Hoover, eram contrários à pena de morte. Ao longo de décadas, juristas têm argumentado que a sentença fatal foi subjetiva ao não separar a ideologia dos réus do crime que lhes foi imputado, além de o arrazoado ter sido possivelmente influenciado por sucessivas referências à guerra da Coreia levantadas pela promotoria. O juiz Kaufman revelou depois do julgamento que, na véspera de

Julius e Ethel Rosenberg

emitir sua sentença, foi rezar numa sinagoga. Sobre esta revelação escreveu o juiz Felix Frankfurter, também judeu, da Suprema Corte dos EUA: “Desprezo um juiz capaz de imaginar que D’us lhe diria para impor uma pena de morte”. O caso Rosenberg voltou a ser debatido em 2021, por ocasião da publicação do livro de Anne Sebba, no qual ela admite a culpa de Julius, mas tenta provar que Ethel jamais foi conivente em qualquer ação de espionagem. A autora atenua a espionagem de Julius, ao 23

de importantes trabalhos sobre a ascensão e queda do comunismo nos EUA, escreve que o livro de Sebba não traz fatos novos e se baseia em fontes secundárias. Na crítica, o professor diz que há omissão ao fato de os agentes da KGB em Nova York terem sugerido a David Greenglass que se matriculasse na Universidade de Chicago, onde já estavam antigos companheiros de Los Alamos, cabendo-lhe a missão de recrutá-los. Suas atividades deveriam constar de relatórios que seriam entregues a Ethel Rosenberg. A iniciativa não prosperou, mas ficou claro que ela abril 2022


HISTÓRIA

o cumprimento da pena naquele dia porque não suportava mais a torrencial pressão que sofria, tanto doméstica quanto internacional, para dar aos réus o perdão previsto em lei.

AGENTES DO FBI CONDUZEM JULIUS ROSENBERG APÓS SUA PRISÃO

tinha conhecimento da existência de uma ação de espionagem em curso e que mantinha contato com agentes da KGB. A execução de Julius e Ethel foi marcada para sexta-feira, 19 de junho de 1953, às 17 horas. O casal estava quase junto, desde a manhã, separado por uma tela metálica transparente. O rabino-capelão de Sing Sing, Irving Kapelow, telefonou para o juiz Kaufman e pediu que a execução fosse adiada para o dia

seguinte, quando terminasse o Shabat. Kaufman respondeu que as execuções normalmente ocorriam às 8 da noite e ele havia antecipado para as 5 da tarde, justamente antes que o dia sagrado do Judaísmo começasse. O rabino argumentou que uma antecipação da morte afrontava as leis talmúdicas e, portanto, insistiu no adiamento para o anoitecer do dia seguinte. Kaufman respondeu que o presidente Eisenhower queria

O juiz acrescentou com insensível ironia: “Cumprindo o horário marcado, o senhor poderá chegar em casa a tempo de celebrar o Shabat”. E interrompeu o telefonema com uma abominável grosseria: “Rabino, faça o seu trabalho que eu faço o meu”. As cadeiras elétricas foram acionadas às 5 da tarde. Era o dia do 14º aniversário de casamento de Julius e Ethel Rosenberg. Seus filhos Michael, 10 anos, e Robert, 6 anos, foram adotados pelo casal Abel e Anne Meeropol, tendo as crianças adotado seus sobrenomes. Abel era compositor, conhecido pelo pseudônimo Lewis Allen. Desde a adolescência os irmãos se empenharam no sentido de resgatar a memória dos pais para que estes não carregassem a permanente pecha de terem sido vilões traidores

1. ETHEL e JULIUS ROSENBERG 2. diante da Corte Federal de Nova York, 1951 3. Michael, à direita, e seu irmão, Robert, filhos do casal Rosenberg

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do povo americano. A história dos dois foi ficcionada num livro baseado em fatos reais, O Livro de Daniel, do autor de best-sellers E.L. Doctorow. Em 1965, os irmãos Meeropol ganharam um processo contra o FBI, que foi obrigado a abrir todos os seus arquivos sobre o caso Rosenberg. Os milhares de documentos foram analisados pelo historiador Ronald Radosh que neles disse ter encontrado fatos surpreendentes. Sua conclusão só foi publicada dez anos depois num artigo para o jornal New Republic, cujo título era a síntese de tudo que havia apurado: “O oculto caso Rosenberg. Como o FBI incriminou Ethel para quebrar Julius”. A par de severas críticas dirigidas às condutas da promotoria e do juiz, o historiador afirmou que, na melhor das hipóteses, Ethel era uma figura secundária, cujo indiciamento e prisão tiveram a finalidade de pressionar o marido para que este delatasse todos os componentes de sua rede de espionagem. As toneladas de escritos – livros, reportagens, artigos, estudos – sobre o caso Rosenberg por mais de 40 anos desabaram em 1995, como se tivessem sido atingidos por um terremoto. Foi quando o governo americano liberou, devidamente decifradas, as criptografias do Venona, um equipamento que, durante décadas, havia interceptado as mensagens que a central da KGB, em Moscou, mandava para seus agentes baseados em todas partes do mundo e, mais particularmente, nos Estados Unidos. As transcrições do Venona demonstraram de forma inequívoca que Julius havia de fato montado uma rede de espionagem em cujas ações a porção referente à bomba atômica não chegava a ser expressiva. Por isso, as manifestações

efetiva na espionagem, embora soubesse da atividade do marido.

Manchete do Los Angeles Times, 20/06/1953

em favor dos Rosenberg, enfatizando a inocência de Ethel, voltaram a se avolumar, com destaque para o livro de Walter e Miriam Schneir, Final Verdict: What Really Happened in the Rosenberg Case (Veredito Final: o que de fato aconteceu no caso Rosenberg). No entanto, a defesa do casal voltou a ser abalada em 2001, quando o ex-agente da KGB, Alexander Feliskov, operador de Julius, revelou ter mantido contato com ele cerca de 50 vezes, elogiando seu fervor ideológico a serviço da União Soviética. Ressalvou que Ethel não tinha consumado uma participação

Por causa da repercussão do livro de Anne Sebba, o editor do site judaico Mosaic, Jonahtan Silver, convidou o professor Harvey Klehr e o pesquisador Jonathan Brent para um debate sobre o caso Rosenberg. Klehr fez uma exposição sobre a fragilidade de segurança existente em Los Alamos, onde os russos conseguiram infiltrar quatro espiões, sendo Klaus Fuchs o mais proeminente. Mas nem assim foi possível aplacar a incontrolável paranoia de Stalin face aos Estados Unidos estarem próximos de obter um artefato nuclear. Acentuou que quando a União Soviética explodiu sua bomba atômica, em 1949, ficou claro que se tratava de uma cópia da bomba americana, fator que teve considerável peso no julgamento de Julius e Ethel. Klehr aludiu à flagrante mentira de David ao acusar Ethel no tocante à questão de quem havia sido responsável pela datilografia de anotações de espionagem,

OS FILHOS MICHAEL, 10 ANOS, À ESQ., E ROBERT, 6 ANOS, À DIR., COM A AVÓ, SOPHIE ROSENBERG, NUMA PASSEATA PEDINDO A LIBERTAÇÃO DE SEUS PAIS, DIAS ANTES DE SUA EXECUÇÃO. junho 1953

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HISTÓRIA

tendo agido daquela maneira com a finalidade de salvar sua mulher, Ruth. No seu entender, o que houve de excêntrico foi a imensa proporção que esse episódio assumiu no tribunal, a ponto de se tornar uma das mais importantes peças da acusação contra Julius e Ethel. No decorrer do debate, Klehr aduziu ao fato de que, na época do julgamento dos Rosenberg, havia macartismo e antissemitismo nos Estados Unidos, antissemitismo na União Soviética e na Europa Oriental, ressaltando o expurgo ocorrido no partido comunista da Checoslováquia, no qual de 14 exlíderes, 11 tinham sido condenados à morte, seis deles judeus. Jonathan Brent acrescentou ser compreensível que jovens judeus como Ethel e Julius, afastados da religião, porém criados no envolvente ambiente judaico do Lower East Side, se entusiasmassem com a União Soviética onde, desde a década de 1930, havia uma política cultural voltada para os judeus, favorecendo a publicação de periódicos no idioma iídiche em quantidade superior a de qualquer outra parte do mundo. A admiração de judeus americanos não significou que tivessem aderido ao comunismo e foi diminuindo à medida em que Stalin prendia e assassinava médicos judeus acusados de querer envenená-lo, assim como prendeu e assassinou poetas e escritores judeus acusados de algo vago e subjetivo como “comportamento cosmopolita”. Incluindo o livro de Anne Sebba,

MILHARES DE MANIFESTANTES DEFENDEM O PERDÃO AO CASAL ROSENBERG. PARIS, 18/6/1953

o mediador do debate, Jonathan Silver, se referiu à grande quantidade de outros trabalhos publicados nos últimos anos, nos quais avulta a tese segundo a qual Ethel Rosenberg não tinha sido uma espiã. Klehr respondeu que, tecnicamente, Ethel não podia ser considerada uma espiã, mesmo porque não tivera acesso a documentos secretos. Entretanto, esclareceu que, a rigor, Ethel e Julius não haviam sido acusados de espionagem, mas de conspiração para praticar espionagem, um delito passível de punição. Foi isso, na sua avaliação, que tornou Ethel tão vulnerável. Klehr argumentou ter havido um agravante com relação a Ethel: a existência de uma mensagem enviada por Julius a Moscou, na qual diz ter sido Ethel quem tinha convencido Ruth Greenglass, sua cunhada, para que ela insistisse junto a David para agir como espião em Los Alamos. Anne Sebba diz em seu livro que Ethel deve ser admirada, porque na 26

terrível tragédia que se abateu sobre sua família, jamais traiu alguém. Klehr julga que ela traiu, sim, traiu os filhos levados à orfandade, e pontuou: “Uma semana antes da execução, o governo prometeu a Ethel que a sentença seria anulada se ela contasse toda a verdade sobre o marido e seu entorno. Ela recusou”. A par da necessidade de reflexão sobre a validade da pena de morte, Ethel e Julius Rosenberg permanecem na história dos Estados Unidos como os únicos civis executados em tempo de paz. Ethel é a única americana executada por um crime que não tenha sido homicídio.

BIBLIOGRAFIA

Klehr, Harvey. The Eternal Return of Ethel Rosenberg, site Mosaic, 2021 EUA. Roberts, Sam. The Brother: The Untold Story of the Rosenberg Case, Simon&Shuster. 2014, EUA.

Meeropol, Michael e Robert. We Are Your Sons: The Legacy of Ethel and Julius Rosenberg, Houghton Mifflin, 1975, EUA. Zevi Ghivelder é escritor e jornalista.


Antissemitismo

Bambi, uma história sobre o antissemitismo Nova tradução do livro que deu origem ao filme “Bambi”, da Walt Disney, traz à tona aspectos que revelam a percepção do seu autor em relação ao aumento do antissemitismo na Áustria e na Alemanha, antes da 2ª Guerra Mundial, que culminaria na Shoá.

E

m 8 de agosto de 1942, Walt Disney lançou nos cinemas dos Estados Unidos um filme que encantou o mundo, conquistando o público infantil e adulto. Bambi conta a vida de um cervo desde o seu nascimento até crescer e continua com sua luta pela sobrevivência após a morte de sua mãe, vítima de caçadores. Era a quinta animação do estúdio; recebeu três indicação ao Oscar e é considerado, até hoje, um dos filmes de animação que mais comoveu o público, fazendo chorar crianças e adultos.

amizade personalidades como Sigmund Freud, o músico Richard Strauss e o pai do Sionismo moderno, Theodor Herzl, tendo inclusive contribuído com artigos no jornal por ele publicado, Die Welt, desde sua primeira edição, em 1897. Uma nova visão sobre Bambi, a Life in the Woods deve chegar ao público em breve em uma tradução de Jack Zipes, professor emérito de alemão e literatura comparada na Universidade de Minnesota, com ilustrações de Alenka Sotler, com o selo da Princeton Press University.

Esse clássico da Disney foi baseado na obra Bambi, a Life in the Woods, do judeu austríaco Felix Salten, escrita em 1922 e publicada em Viena no ano seguinte. Em meados da década de 1930, o autor vendeu os direitos do filme por US$ 1 mil a um produtor da MGM, Sidney Franklin, que, posteriormente, os revenderia ao estúdio americano. O filme já faturou centenas de milhões de dólares, porém como Salten havia vendido os direitos, ele e sua família nunca se beneficiaram do enorme sucesso de Bambi.

Segundo Zipes, Salten não escreveu uma história para crianças, mas uma obra adulta com o objetivo de alertar o mundo sobre o que aconteceria com os judeus em um mundo cada vez mais fascista. Ele corretamente previu que os judeus seriam perseguidos, desumanizados e assassinados. Bambi, a Life in the Woods é uma parábola sobre o tratamento dado aos judeus e a outras minorias. A obra foi banida pelos nazistas por a terem considerado uma alegoria sobre o tratamento dado aos judeus na Europa e foi queimada sob a acusação de “propaganda contra o nazismo”. Segundo o Prof. Zipes, Salten previu o Holocausto.

Se o mundo inteiro o conhece, o mesmo não se pode dizer de seu autor. Importante escritor da chamada “época de ouro” em Viena, tinha em seu círculo de 27

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Antissemitismo

Sensível aos acontecimentos ao seu redor e tendo sido vítima de antissemitismo na adolescência, Salten, através de Bambi, revela sua percepção sobre o aumento do preconceito em relação aos judeus na Áustria, a perseguição que acabou levando ao Holocausto e o sentimento de solidão que o invade. O pequeno cervo é ameaçado pelos caçadores desde o momento em que nasce. Ele acaba sozinho, aterrorizado e antecipando um destino sombrio. Bambi seria, na compreensão de Zipes, o próprio judeu. Na adaptação da Disney, em vez de ser uma história sobre perseguição, Bambi se tornou o defensor da conservação ambiental. “A obra da Disney, que tanto sucesso fez, está muito distante da mensagem que Salten queria dar ao mundo. De certa forma, mascarou o seu verdadeiro significado”, diz o Prof. Zipes. Para o estudioso da Universidade de Minnesota trata-se de um livro sobre a luta pela sobrevivência em seu próprio lar, pois, desde que nasceu, Bambi é perseguido pelos caçadores que invadem a floresta matando os animais a seu bel-prazer. Em seu próprio habitat, os animais passam a viver constantemente amedrontados pela presença dos caçadores.

Sua vida

WALT DISNEY COM UM ESBOÇO DO BAMBI

caçados e morrerão em mãos de seus algozes. O uso de animais como personagens é um recurso comum no universo literário, pois permite aos autores reproduzir com mais liberdade a visão de seus leitores sobre determinados temas. No caso de Bambi, Salten quer mostrar os preconceitos da sociedade que o cerca em relação aos judeus e a perseguição da qual eram vítimas e, quem sabe, despertar sua solidariedade em relação à população judaica. Através da figura de Bambi, os leitores são encorajados a sentir empatia pelos oprimidos e perseguidos e a questionar a crueldade dos opressores.

O sentimento de Bambi quando morrem sua mãe e seu primo e, depois, quando morre o Grande Príncipe da Floresta que o havia acolhido, é de profunda solidão, a mesma solidão que vivenciaram os judeus e as outras minorias na Europa nas décadas de 1930 e 1940, ressalta Zipes. Para ele, nas entrelinhas da obra está presente a sensação de que Bambi e os outros animais sabem que apenas nasceram para ser mortos, sabem que serão

Felix Salten nasceu em 6 de setembro de 1869 em Budapeste, quando a região ainda fazia parte do Império Austro-húngaro. Quando adolescente mudou seu nome para Siegmund Salzmann, para não ser imediatamente identificado como judeu pela sociedade austríaca. Neto de um rabino, poucos meses após seu nascimento a família se mudou para Viena, que era o berço de uma grande e florescente comunidade judaica, em fins do século 19. O fluxo de judeus para essa cidade cresceu com a garantia da cidadania concedida em 1867. Ainda adolescente, em função das dificuldades econômicas da família, trocou a escola por um emprego em uma companhia de seguros. Já nessa época demonstrava seu talento para a escrita com pequenos textos e poemas. Aos 18 anos começou a trabalhar em jornais. Casou-se em 1902 com a atriz Ottilie Metze (com a qual teve dois filhos – Paul e Anna Katharina), um ano após a publicação de seu primeiro livro, uma coletânea de histórias, sob o pseudônimo Felix Salten. Bambi, a Life in the Woods não fez muito sucesso na época de seu lançamento, mas a mudança de editora tempos depois acabou consagrando a obra. Salten fez parte do movimento Jung Wien – “Jovem Viena”, que se reunia por horas no Café Croensteidl debatendo ideias com intelectuais como Hugo von Hoffmannsthal e Arthur Schnitzler. Ao longo dos anos colaborou com jornais na Alemanha e na Áustria, tornandose um conhecido crítico de teatro, além de autor de livros, peças de teatro, roteiros e outros estilos literários. Respeitado pela opinião pública e por seus pares, Salten

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Cena do filme “Bambi” da Disney

assumiu o cargo de diretor da seção austríaca do Pen Club Internacional, associação mundial de escritores, substituindo Arthur Schnitzler. A vida judaica na Áustria iria mudar com a ascensão de Adolf Hitler, na Alemanha. O antissemitismo se fazia sentir desde o início da década. Já em 1936 seus livros foram proibidos e sua contribuição literária apagada gradativamente da vida cultural. Com a anexação da Áustria pelos alemães, em 1938, tornou-se evidente para o escritor que precisava partir, pois o futuro seria sombrio para quem continuasse no país. Escolheu como destino a Suíça, levando consigo centenas de livros e continuou a escrever em seu novo lar. Em 1939 lançou Bambi’s Children, The Story of a Forest Family. Dois anos depois da partida, Hitler

o destituiu da cidadania austríaca. Salten morreu em 6 de outubro de 1945, em Zurique, passando seus últimos anos “sozinho”, assim como o “seu” Bambi, sem nenhum lugar para chamar de lar.

Em junho de 2021, Salten foi tema de uma exposição no Museu de Viena cujo objetivo, segundo Ursula Storch, curadora da mostra, foi resgatar a memória e o legado do autor, que não se resumem à conhecida história do cervo. Sobre a exposição disse a neta de Salten, Lea Wyler, que não teve oportunidade de conhecer o avô: “É lamentável que um homem tão dotado, tão cheio de humor e de sagacidade, quando é lembrado, seja apenas pelo Bambi”.

Bibliografia

FELIX SALTEN. c. 1911

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Bambi: cute, lovable, vulnerable...ou a dark parable of antisemitic terror, artigo publicado em 25 de dezembro no jornal The Guardian. New translation of Bambi showcases tale as allegory on early Austrian Antisemitism, artigo publicado em 26 de dezembro de 2021 pelo jornal Times of Israel. abril 2022


DESTAQUE

A história dos laços de Israel com Ucrânia e Rússia POR JAIME SPITZCOVSKY

Ao longo dos seus 73 anos de independência, Israel testemunhou diferentes momentos em suas relações com Moscou e com Kiev, da cooperação a enfrentamentos, dos boicotes a diálogos. E, em meio à tragédia da guerra entre Rússia e Ucrânia, o primeiro-ministro Naftali Bennett protagonizou um momento de ação diplomática no começo de março, buscando mediar uma solução negociada para o trágico conflito, com a invasão de território ucraniano por tropas russas.

B

ennett, a 5 de março, esteve no Kremlin, depois falou ao telefone com o líder ucraniano, Volodymir Zelensky, e, em seguida, voou a Berlim, para reunião com o premiê alemão, Olaf Scholz. Dialogou também, à distância, com o francês Emmanuel Macron e, segundo vários relatos na mídia israelense, tinha coordenado a iniciativa diplomática com Washington. Enquanto o ministro das Relações Exteriores, Yair Lapid, e o presidente de Israel, Chaim Herzog, condenavam com veemência a invasão da Ucrânia, Bennett buscava, ao mesmo tempo em que criticou o Kremlin, preservar algum canal de diálogo com o governo russo.

iniciativas, em 1947, para votação da Resolução 181, arquitetada para criar um Estado judeu e outro árabe, com o fim do mandato britânico na região. O voto soviético e de seus aliados foi favorável à criação de Israel. O cenário global testemunhava os primórdios da Guerra Fria, modelada pela bipolaridade da disputa entre EUA e URSS. O Kremlin estimulava o processo de descolonização, de olho em ampliar zonas de influência antes dominadas por potências coloniais, como Reino Unido e França. Com essa visão, Stalin deixou de lado as críticas bolcheviques ao Sionismo, descrito como “movimento nacionalista burguês”. O pragmatismo do Kremlin na política internacional contrastava com crescente antissemitismo implementado pela ditadura stalinista dentro das fronteiras soviéticas.

Bennett se movimentou diplomaticamente em um tabuleiro geopolítico, o da Europa Oriental, bastante conhecido dos israelenses pelos vínculos históricos, políticos, econômicos e culturais com a região. E, ao voltar aos anos de 1947 e 1948, verifica-se que a União Soviética do ditador Josef Stalin também desempenhou papel importante na criação do Estado de Israel.

A 14 de maio de 1948, Israel declarou sua independência, em seguida reconhecida pelas superpotências EUA e URSS. Países árabes, refratários à partilha da Palestina, invadiram o Estado judeu, numa guerra que se estendeu até 1949, com a vitória israelense.

“O Povo Judeu tem uma conexão com a Palestina por um longo período histórico”, discursou na ONU o embaixador soviético Andrei Gromyko quando das 30


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Kremlin, Moscou. Sede da presidência russa

Um fator a contribuir para o triunfo de Israel foi a chegada de armas oriundas da então Tchecoslováquia, numa ação com o beneplácito do Kremlin. Rifles, morteiros e até aviões capturados pelos soviéticos na 2a Guerra Mundial passaram a fortalecer o arsenal israelense.

aliança com o novo regime egípcio, no epicentro geográfico e político do mundo árabe. E a opção implicou se afastar de Israel.

No entanto, a aproximação entre Moscou e Jerusalém durou pouco. A primeira embaixadora de Israel na URSS, Golda Meir, desembarcou lá em 1948, e, em suas conversas com seus anfitriões, levantou o tema de imigração de judeus para Israel. Recebeu dos comunistas um sonoro “não” como resposta. Em 1952, um golpe militar derrubou o rei egípcio Farouk, do Egito, aliado a países ocidentais, e abriu caminho para a chegada ao poder de Gamal Abdel Nasser. O Kremlin percebeu a possibilidade de construir uma

GOLDA MEIR, PRIMEIRA EMBAIXADORA DE ISRAEL NA ENTÃO UNIÃO SOVIÉTICA

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Também no começo dos anos 1950, os estertores do regime stalinista corresponderam a um aumento do antissemitismo na União Soviética. Líderes do Comitê Judaico Antifascista foram presos e mortos. No chamado “Complô dos Médicos”, montou-se uma farsa para prender profissionais, em sua maioria judeus, acusados de envenenar líderes soviéticos, a mando de serviços secretos dos EUA e do Reino Unido. Em 1956, três anos após a morte de Stalin, o líder soviético Nikita Khruschev denunciou os crimes de seu antecessor no 20º Congresso do Partido Comunista. Buscou flexibilizar a ditadura soviética, porém manteve, na política externa para o Oriente Médio, o alinhamento prioritário com países árabes. abril 2022


DESTAQUE

diminuiu o apoio a Gamal Abdel Nasser que, pouco tempo depois, optou por encerrar a “guerra de desgaste”.

O presidente ucraniano Zelensky (à esq.) e o presidente israelense Isaac Herzog durante uma cerimônia em Kiev, Ucrânia, 5/10/2021

A Guerra dos Seis Dias, em 1967, correspondeu a um divisor de águas nas relações entre Jerusalém e Moscou, pois elas atingiram seu patamar mais crítico. O Kremlin, principal fornecedor de armas ao Cairo e a Damasco, rompeu relações diplomáticas com Israel após as derrotas de Egito e Síria. E intensificou apoio a inimigos do Estado judeu, incluindo organizações terroristas. No final da década de 1960, após a derrota na Guerra dos Seis Dias, Gamal Abdel Nasser deslanchou a chamada “guerra de desgaste” contra Israel, composta por ataques de artilharia, aviação e incursões terrestres, mas sem desaguar num conflito de larga escala. E os soviéticos apoiavam o regime nasserista, com envio de assessores militares e fornecimento de armas. O crescente envolvimento dos militares do Kremlin preocupava o governo israelense, que resolveu, por meio de uma batalha aérea, enviar um duro recado a Moscou: não aceitaria o avanço da presença de pilotos soviéticos. A 30 de julho de 1970, após sinal verde da primeira-ministra Golda Meir, aviões israelenses entraram em espaço aéreo egípcio, e foram em

seguida interceptados por caças da URSS. De um lado, 12 Mirages e 4 Phantoms israelenses. De outro, 24 MiG-21 soviéticos. A ousada operação, denominada Rimon 20, terminou em vitória de Israel, que não perdeu nenhuma aeronave, enquanto foram derrubados cinco caças de Moscou. À época, em plena Guerra Fria, URSS e Israel optaram por não divulgar o episódio, temerosos de uma escalada militar. Moscou, de qualquer forma, acusou o golpe e,

O final da Guerra Fria se acelerou com a chegada ao Kremlin de Mikhail Gorbatchov, em 1985. Ciente da falência do sistema soviético, ele buscou recuperálo com reformas chamadas de Perestroika, na área econômica, e Glasnost, no plano político. Gorbatchov reconhecia a incapacidade de Moscou, falida economicamente, em manter a disputa global com os EUA, em particular na corrida armamentista. O Kremlin precisava concentrar esforços para tentar salvar uma economia em frangalhos. Em 1989, caiu o Muro de Berlim, ícone principal da Guerra Fria e do período histórico marcado essencialmente pela divisão do cenário global nos blocos pró-EUA e pró-URSS. Gorbatchov, um dos principais articuladores desse momento de transformação, recebeu em 1990 o Prêmio Nobel da Paz. Graças à Perestroika, mudaram as relações de Moscou com Jerusalém. A imigração para Israel, fortemente reprimida nos tempos anteriores a Gorbatchov, passou a ser permitida e atingiu seu ápice em 1991, quando centenas de milhares de pessoas desembarcaram em solo israelense, oriundas da União Soviética.

Gorbatchov no Muro das Lamentações, Jerusalém, 1992

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Em outubro daquele ano, foram restabelecidas as relações diplomáticas, rompidas em 1967, quando da Guerra dos Seis Dias. Gorbatchov nomeou Alexander Bovin, um dos mais famosos jornalistas soviéticos, como primeiro embaixador em Israel, após 24 anos.


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Bovin desembarcou em território israelense em dezembro de 1991 e serviu como embaixador soviético por apenas uma semana. É que a própria União Soviética se desintegrou, e obtiveram independência as 15 unidades que formavam o país criado a partir da revolução bolchevique de 1917. O embaixador Bovin passou então a representar a Rússia, principal sucessora da União Soviética. Começava, em Moscou, a presidência de Boris Yeltsin, que, dois anos depois, recebia a visita do primeiro-ministro de Israel, Yitzhak Rabin. Ao mesmo tempo, a Ucrânia, independente com o colapso soviético, implementava política de intensa aproximação com Israel. Relações diplomáticas foram formalizadas a 26 de dezembro de 1991. Como um dos reflexos dos laços entre Kiev e Jerusalém, em 2011 foi abolida a necessidade de vistos de entrada para viajantes dos dois países. Israel implementava, a partir da década de 1990, uma diplomacia de aproximação intensa com Rússia e com Ucrânia, apoiada em laços históricos, oportunidades comerciais e o fato de os dois países europeus abrigarem importantes comunidades judaicas, enquanto a sociedade israelense passava a ter uma parcela ainda maior de habitantes de origem russa ou ucraniana. Em 1999, Vladimir Putin assumiu o cargo de primeiro-ministro e, com a renúncia de Yeltsin, a 31 de dezembro daquele ano, passou a ocupar a Presidência. Ao longo dos seus mais de vinte anos no comando do maior país do mundo

O PRIMEIRO-MINISTRO NAFTALI BENNETT (CENTRO) COM O PRESIDENTE VLADIMIR PUTIN (D) E O MINISTRO ZE’EV ELKIN NA RESIDÊNCIA DO LÍDER RUSSO EM SOCHI, RÚSSIA, 2021

em território, Putin manteve diálogo com líderes como Ariel Sharon, Ehud Olmert e Binyamin Netanyahu. Foi na era Netanyahu que as conversas se intensificaram, devido à influência russa em uma questão estratégica para Israel: as ambições nucleares e expansionistas do Irã. O Kremlin mantém boas relações com Teerã, mas sinalizou também nos últimos anos o interesse em preservar seus laços com Jerusalém, pelos vínculos culturais, econômicos e por ver no governo israelense uma ponte para o diálogo com os EUA, cada vez mais complicado nos últimos anos. Israel conta com o auxílio de Moscou para frear a influência iraniana na Síria, onde a força aérea russa controla o espaço aéreo desde sua intervenção na guerra do país árabe, em 2015, e também para conter as ambições atômicas do regime dos aiatolás. A Rússia é uma das seis potências globais signatárias do controverso acordo nuclear assinado em 2015, do qual os EUA se retiraram três 33

anos depois, por decisão do então presidente Donald Trump. Na Ucrânia pós-soviética, os laços com Israel se expandiram nos planos político e econômico, com, por exemplo, o país europeu se transformando, ao longo de vários anos, no principal fornecedor de trigo ao mercado israelense. O presidente israelense, Chaim Herzog, visitou Kiev em 2021, para a inauguração de um memorial em homenagem às vítimas de Babi Yar, onde mais de 30 mil judeus foram assassinados, em 1941, pelos nazistas e colaboracionistas ucranianos. Na cerimônia, o presidente Herzog esteve ao lado de seu colega alemão, Frank-Walter Steinmeier e do ucraniano, o judeu Volodymir Zelensky. A cerimônia ocorreu menos de um ano antes da invasão russa à Ucrânia. Em pleno século 21, a Europa volta a testemunhar as tragédias de guerras. Jaime Spitzcovsky COLUNISTA DA FOLHA DE S.PAULO, FOI CORRESPONDENTE DO JORNAL EM MOSCOU E EM PEQUIM.

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COMUNIDADES

JUDEUS DE KIEV: DO SÉC. 8 À REVOLUÇÃO RUSSA DE 1917 esta Não é a primeira vez em que a Ucrânia se vê forçada a enfrentar a Rússia, tendo Kiev como palco de sangrentas lutas. Tampouco é a primeira vez em que os judeus vivem dias de terror, pois lá, desde seu estabelecimento em solo ucraniano, muito sangue judeu já foi derramado.

U

m século antes do estabelecimento da nação ucraniana, no século 9, já havia judeus em Kiev. A história do Judaísmo ucraniano, em geral, e da comunidade de Kiev, em particular, é longa e marcada por muito sofrimento, pois a região sempre foi palco de profundo e endêmico antissemitismo. Os judeus eram alvo de ódio, segregação e discriminação, incessantes pogroms e massacres, mas, apesar de todo o sofrimento, a Ucrânia sempre teve um lugar especial no coração judaico. Foi lá que nasceu o Chassidismo, lá viveram grandes Rebes, lá floresceram a cultura iídiche e o Sionismo.

No século 9, os varegues da Escandinávia – conhecidos como Rus’ – conquistam o território que hoje engloba três nações eslavas modernas: a Ucrânia, a então Bielorrússia (desde 1991, Belarus) e a Rússia Ocidental, lançando as bases para o Rus’ Kievana (Kyivan Rus’), o primeiro estado eslavo oriental. Em 877, os Rus’ conquistam Kyiv (Kiev) e fazem dela a capital de seu estado, Kyivan Rus’. Uma carta encontrada na Guenizá1 do Cairo revela que já no século 10 havia judeus em Kiev, e que eles estavam em contato com outras partes do mundo judaico. Essa carta é o mais antigo documento que faz menção ao nome da cidade.

O Principado de Kiev A história dos judeus de Kiev tem início com a fundação da cidade, no século 8. Sua localização estratégica, na confluência dos rios Dnieper e Pripyat e no cruzamento das principais rotas comerciais Norte-Sul e Leste-Oeste, sempre atraiu comerciante judeus. 1

Kiev era um próspero centro comercial graças à sua localização e os habitantes judeus foram fundamentais para o desenvolvimento comercial da cidade. Temos registros de que mercadores judeus do Ocidente participavam do comércio da cidade, sendo conhecidos em fontes hebraicas como “os frequentadores da Rússia”. Antigas crônicas russas relatam que alguns judeus de Khazaria visitaram Vladimir, príncipe de Kiev, na tentativa de convertê-lo ao Judaísmo (circa 986).

Guenizá - Repositórios temporários que guardam textos, livros e objetos sagrados danificados ou em desuso, em virtude de ser proibido descartar textos ou objetos que contenham o nome de D’us. 42


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KIEV, FINAL DO SÉC. 19

Ainda no século 10 os habitantes de Kyivan Rus’ se convertem ao Cristianismo Ortodoxo. Essa conversão se tornaria crucial para a história judaica, pois essa religião é imbuída de um antijudaísmo profundo e endêmico e seu clero incitava o povo contra os judeus.

dos impostos do principado. Mas, em 1113, logo após sua morte, o populacho atacou os judeus, ferindo e matando-os, além de queimar suas propriedades. Nos relatos do pogrom é mencionado o “Portão Judaico”.

Em Kiev, no século 11, Theodosius, o abade do Mosteiro Pechersk Lavra, pregava “viver em paz com os amigos e inimigos, mas com seus próprios inimigos, não os inimigos de D’us: os judeus e os hereges”. No século 11 e 12 é visível a dicotomia entre os interesses dos governantes e o antijudaísmo do povo. Durante o reinado do príncipe Svyatopolk II, por exemplo, os judeus eram protegidos e usufruíam de total liberdade em termos comerciais. Esse governante chegou a atribuir a alguns deles a cobrança

Esse foi o primeiro dos incontáveis pogroms que se sucederiam em Kiev. Crônicas do século 12 também atestam a presença judaica na cidade. Em seus escritos, vários rabinos alemães do período fazem referência a judeus que viajam com suas mercadorias para a “Rus”. Mencionam a cidade também os relatos de viajantes judeus da época. Ainda no século 12, nas anotações de Benjamin de Tudela feitas em sua viagem da Espanha à Terra Santa (1159 ou 1163 até 1173), ele menciona “Kiov, a cidade grande”. E o rabino alemão Petachiah de Ratisbon, que documentou suas extensas viagens, também esteve em Kiev.

Domínio mongol SHIVITI - GRAVAÇÃO EM PRATA. UCRÂNIA, MEADOS DO SÉC. 19

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No início do século 13, mongóis invadem a região semeando morte abril 2022


COMUNIDADES

Em 1386, Jogaila, grão-duque da Lituânia, desposa Edviges I, rainha da Polônia. Foi uma união de importância político-religiosa, pois, além de ter sido condicionada à conversão de Jogaila e de outros nobres lituanos ao Catolicismo, criou uma união dinástica entre a Polônia e a Lituânia.

A Sinagoga Choral Brodsky em Kiev, Ucrânia

e destruição. Os judeus sofrem amargamente, assim como o restante dos habitantes. Em 1223 houve a primeira tentativa, fracassada, de capturar os territórios de Rus’ Kievana. As forças mongóis voltam em 1237, lideradas por Batu, neto de Genghis Khan. Deslancham uma pesada campanha militar no território ucraniano, ocupando Kiev após três anos de luta. “Domínio tártaro” foi o nome dado aos anos de dominação mongol na região, a dizer, 1240-1320. A devastação causada pela invasão e os altos impostos cobrados deixaram a região arrasada e as cidades em total abandono. A reconstrução de Kiev levaria décadas. O fato de que durante o domínio tártaro os judeus tivessem estado protegidos acirrou ainda mais o ódio da população cristã contra eles.

mãos da Lituânia, até que, em 1362, a cidade é anexada ao Grão-Ducado da Lituânia. Os grão-duques concedem direitos e privilégios aos judeus de seus domínios, garantindo sua vida e suas propriedades. Consequentemente, em Kiev aumenta muito o número de judeus. Muitos prosperam. Havia até alguns que arrendavam a cobrança de impostos, acirrando a “impopularidade” judaica.

Mas, em 1495, muda drasticamente a situação dos que vivem no GrãoDucado da Lituânia. Esses judeus são sumariamente expulsos de Kiev, assim como do restante do GrãoDucado. A comunidade só voltaria a se reestabelecer na cidade quando da revogação do decreto, em 1503.

Grão-Ducado da Lituânia: 1362 – 1503 Enfraquecidos por conflitos internos e pelo domínio tártaro, os principados ucranianos ofereceram pouca resistência à hegemonia lituana. Progressivamente, a maioria das terras de Rus’ Kievana, inclusive Kiev, foi caindo em

Como sob o mando dos grãoduques lituanos os judeus gozavam de mais direitos sociais e econômicos do que os vigentes na Polônia, foi-lhes outorgada uma carta-privilégio, em 1389, assegurando os direitos dos que viviam na união dinástica. O documento garantia-lhes participação em pé de igualdade com os comerciantes cristãos e assegurava-lhes a compra de propriedades. Até o final do século 15 havia judeus ocupando importantes posições financeiras em Kiev, sendo que na corte circulavam judeus médicos, banqueiros e grandes proprietários de terras. À medida que a comunidade judaica foi prosperando e aumentando numericamente, também aumentou o número de eruditos judeus e o judaísmo floresceu.

REPRESENTAÇÃO DE UM VERSO DOS SALMOS. UCRÂNIA, FINAL SÉC. 19, INÍC. SÉC. 20

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Em 1569, mais um acontecimento geopolítico vai afetar o futuro da vida judaica: o Reino da Polônia e o Grão-Ducado da Lituânia se fundem, tornando-se uma única nação, a Primeira República da Polônia, também conhecida como a Comunidade Polaco-lituana.


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No final da Idade Média, milhares de judeus de várias partes da Europa Ocidental buscaram refúgio no leste da Europa. A grande maioria instalou-se nos domínios da Coroa Polonesa, que concedera aos judeus condições favoráveis ao seu assentamento, abrindo oportunidades econômicas tanto na zona rural como nas cidades onde lhes era permitido viver. Em meados do século 17, viviam no atual território da Ucrânia 45 mil

Judaeis – proibição aos judeus de viver e comerciar dentro dos limites municipais. Em Kiev, em 1619, os cristãos conseguiram que o rei Sigismund III proibisse os judeus de viver e adquirir propriedades na cidade. Tinham permissão para ir a Kiev apenas com propósitos comerciais, podendo lá permanecer um único dia em uma estalagem designada para esse fim. No entanto, esse decreto não era cumprido à risca e muitos judeus

O cossaco CHMIELNICKI entra em Kiev. óleo de Mykola Ivasiuk

judeus e o iídiche era o idioma utilizado por todos. Eram organizados em kehilot (congregações) dirigidas por um conselho comunitário e sua vida girava em torno de suas respectivas sinagogas. Sua profunda religiosidade determinava todos os aspectos de seu cotidiano. À medida em que os judeus prosperavam, incendiava-se o ressentimento da população cristã e repetidamente, durante os séculos 17 e 18, inúmeras cidades enviavam pedidos à Coroa para banir os judeus. Era o famoso non tolerandis

continuaram a viver na cidade sob a proteção do governador distrital e de nobres latifundiários.

Os massacres de Chmielnicki Entre 1648 e 1667 a Polônia foi sacudida por lutas internas e externas conhecidas, na história polonesa, como “Dilúvio” (Potop, em polonês). Iniciada em 1648, uma rebelião de cossacos e camponeses ucranianos, liderada pelo chefe cossaco Bohdan Chmielnicki, alastrou-se por todo o território da atual Ucrânia. 45

À frente de um exército de cossacos do Dnieper e de tártaros da Crimeia, Chmielnicki semeou terror e morte por toda parte. O pesadelo só chegaria ao fim em agosto do ano seguinte. Apesar de o principal alvo serem os poloneses católicos, foi sobre os judeus que se abateu toda a sua fúria e violência. Assassinaram a maioria da população judaica que vivia no território da atual Ucrânia, incluindo a de Kiev. Nas crônicas judaicas há uma descrição da devastação e obscena brutalidade. É muito difícil determinar o número total de vítimas judias desses massacres, conhecidos entre os judeus como Gzeyres tach vetat (Malignos decretos). As crônicas judaicas dizem que foram assassinados 100 mil judeus, mas há relatos de terem sido 300 mil e mais de 300 comunidades destruídas. A história da Ucrânia daria mais uma guinada quando Chmielnicki procurou a ajuda dos russos, que invadiram a Ucrânia. Após a ocupação russa, em 1654, os cidadãos de Kiev demandam ao governo czarista que os judeus sejam proibidos de se estabelecerem na cidade. O Czar Alexis os atende e o banimento tornou-se definitivo em 1667 quando da anexação de Kiev à Rússia.

Zona de Residência No final do século 18, quando a Polônia deixa de existir como país soberano, sendo dividida entre Prússia, Áustria e Rússia em 1772, 1793 e 1795, o Império Russo fica com a maior parte do território da Ucrânia. Consequentemente, centenas de milhares de judeus que viviam nesse território se tornam súditos indesejáveis dos czares. abril 2022


COMUNIDADES

UM JUDEU É ATACADO NA PRESENÇA DE MILITARES. POGROM EM KIEV, 1881

Em 1775, a Czarina Catarina decide confinar a população judaica de seu Império na chamada “Zona de Residência” ou “Território do Acordo” – em russo, Cherta Osedlosti. Na área que incluía a antiga Polônia, Ucrânia, Bielorrússia e Lituânia passaram a viver mais de 90% dos judeus do Império. Kiev era, no século 18, o centro econômico e comercial da região sudoeste da Rússia e, em 1793, após cerca de 150 anos, é reerguida a comunidade judaica de Kiev. Mas, ainda era vivo o ódio entre a população cristã e a judaica. Enquanto os judeus se empenham em obter permissão de se estabelecer na cidade, os cristãos persistem em bani-los, justificando seus pedidos no status quo vigente desde 1619, acrescentando ainda que a “sagrada” Kiev, símbolo da Ortodoxia cristã, seria “profanada” pela presença judaica. No século 19, a comunidade judaica de Kiev consegue se reerguer e desabrochar, tornando-se uma das maiores da Ucrânia. Em 1815, contava com cerca de 1.500 pessoas; era altamente organizada e tinha duas sinagogas, entre outras instituições comunitárias. Além

dessas, contava com uma filial muito atuante da Haskalá, a Sociedade para o Iluminismo dos Judeus Russos, que mantinha 21 escolas judaicas na cidade. Em 1825, Nicolau I torna-se Czar. A vida dos judeus piora drasticamente pois ele tinha ódio deles. O Czar Nicolau é o responsável pelos famigerados “Decretos Cantonais” de 1827, que tornaram obrigatório o alistamento

Judeus na Ucrânia nos séculos 18 e 19. Fonte: COJECO

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militar a partir de 18 anos para cristãos e 12 anos para os judeus, com a duração de 25 anos. Como se não bastasse, reduziu a área de residência permitida à população judaica do Império. E, ainda em 1827, proibiu aos judeus residir em Kiev. O decreto chegou a ser indeferido duas vezes, já que os governantes temiam que a expulsão dos judeus levaria à grave crise econômica. Contudo, em 1835, eles tiveram que deixar a cidade, que se tornou conhecida pelas oblavy (caçadas) policiais atrás de judeus que não possuíam permissão de residência. Mesmo assim, eles continuaram a ter importante papel na economia local, pois os comerciantes judeus eram o elemento principal das grandes feiras de Kiev. Em 1843, os visitantes judeus foram novamente autorizados a entrar na cidade, com a condição de que se alojassem em duas estalagens indicadas para esse fim. A situação dos judeus do Império melhora em 1855 com a subida ao trono do Czar Alexandre II. Este inicia reformas para implantar na Rússia o sistema de produção capitalista e, em 1865, permite que os chamados judeus “úteis” – comerciantes, banqueiros, artistas e artesãos qualificados e os que tinham curso superior – se estabelecessem fora da Zona de Residência. Em Kiev, são abolidas as estalagens obrigatórias para visitantes judeus, em 1858, sendo substituídas por um imposto à prefeitura. E, três anos mais tarde, judeus “úteis “ têm permissão de residir na cidade em dois subúrbios, Lyebed e Podol. Assim, em 1863, três mil judeus viviam em Kiev e, em 1872, já eram 13 mil.


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No entanto, na década de 1870, a vida dos judeus da cidade e de toda a Rússia volta a piorar, pois Alexandre II dera uma guinada reacionária aderindo ao nacionalismo eslavo. Como sempre, os judeus são os principais alvos e vai-se acumulando contra eles uma enorme massa de leis discriminatórias. Em 1881, Alexandre II é assassinado por revolucionários. A subida ao trono do novo Czar, Alexandre III, faz o ódio aos judeus crescer exponencialmente. Sob a proteção de “eslavófilos”, da Igreja Ortodoxa e do próprio governo agindo nos bastidores, o antissemitismo se torna um movimento organizado. São organizados pogroms e são publicados os famigerados “Protocolos dos Sábios de Sião”. Seis semanas após a morte de Alexandre II inicia-se, no sul da Ucrânia, uma nova onda de pogroms contra os judeus. Kiev é varrida por um pogrom em maio de 1881, insuflado pelo governador geral, General Drenteln. Muitos judeus são feridos, outros tantos mortos e inúmeras propriedades judaicas destruídas. Em 1882, Alexandre III outorga as “Leis de Maio”. Extremamente discriminatórias e cruéis, as novas leis restringiam ainda mais a liberdade de movimento e de residência da população judaica, seu acesso à educação e atividade econômica. Os judeus são proibidos de comprar terras, ter cargos públicos, ser professores universitários, entre outros. Apesar dessas novas leis, a comunidade judaica de Kiev continua forte. Muitos dos profissionais liberais assim como cerca da metade dos comerciantes da cidade eram judeus. Em 1822, 17% dos estudantes que cursavam

Sholem Aleichem

GOLDA MEIR, 1917

a Universidade de Kiev também o eram. Em Kiev nasceram Golda Meir (Mabovich), que viria a ser primeiro-ministro de Israel. O conhecido escritor Sholem Aleichem, que viveu em Kiev por algum tempo, descreveu a cidade em seu livro Yehupets. A insegurança da permissão de residência judaica na cidade criou o senso de ansiedade que é a característica que define seus personagens e que, em parte, era compartilhado pelo próprio autor.

Século 20

Em 1862, é inaugurado em Kiev um hospital judaico para os carentes, que atendia toda a população da Ucrânia. A principal sinagoga da cidade, a Sinagoga Brodsky Choral, é erguida em 1897-1898. Durante décadas, as autoridades proibiram a construção de uma grande sinagoga, somente permitindo que convertessem construções existentes em casas de oração judaicas. Temiam que a cidade se tornasse um importante centro religioso judaico – o que era considerado “indesejável” em virtude da importância simbólica de Kiev para o Cristianismo Ortodoxo.

No início do século 20 a Rússia passava por uma grave crise político social. A situação dos judeus era a mais precária. Além da pobreza e problemas econômicos e sociais, o antissemitismo e os pogroms eram constantes e sancionados pelo governo czarista. Os que moravam em Kiev não eram exceção, pelo contrário, pois o ódio dos ucranianos pelos judeus conseguia superar o antissemitismo russo. Retrato de uma família judia, Kiev, 1911

Segundo o censo realizado no Império Russo nos últimos anos do século 19, viviam em Kiev 32 mil judeus. 47

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COMUNIDADES

estavam profundamente arraigadas na população.

O fim do czarismo

Mendel Beilis, Do caso Beilis

A Ucrânia foi palco de sangrentas batalhas durante a 1ª Guerra e, à medida que as forças russas iam debandando, atacavam as populações judaicas. Refugiados judeus começam a surgir em grandes contingentes, em Kiev.

Entre os judeus também crescia a convicção de que sua situação só melhoraria se houvesse uma mudança política. Assim surgem, em grande número, os partidos socialistas judeus. Entre eles, o Bund, partido socialista-sionista, e o Poalei Tsion (Trabalhadores de Sion).

violência por toda a cidade. Mas nem esse pogrom conseguiu interromper o desenvolvimento da comunidade, que se tornou uma das mais ricas da Rússia, cultural e economicamente.

A miséria e as derrotas sofridas nos campos de batalha levaram o povo russo a se revoltar contra o regime czarista e, em 15 de fevereiro de 1917, as forças de oposição (liberais, burguesas e socialistas) depuseram Nicolau II, dando início à Revolução Russa de 1917.

Para os judeus, a Revolução Russa de 1905 teve consequências dramáticas. Naquele ano o descontentamento, as greves e as manifestações se alastraram por todo o Império. Diante do clima de revolta do povo, o czar Nicolau II lançou um manifesto que garantia liberdades civis básicas e criava a Duma – uma Assembleia Legislativa.

Ocorrido em Kiev entre 1911 e 1913, o Caso Beilis foi uma clara demonstração do antissemitismo do governo czarista. Em Tisha B’Av de 1911, Mendel Beilis, um judeu, é preso sob a acusação de matar um jovem cristão de 12 anos, Andrei Yushchinsky, por “motivos religiosos”. Os verdadeiros assassinos – uma gangue de ladrões – que já estavam na custódia da polícia, são libertados pela Procuradoria de Kiev. Não apenas Beilis, mas o próprio judaísmo, era acusado pelo crime hediondo. Não era a primeira vez, nem seria a última, que as autoridades czaristas usavam os judeus como bode expiatório para fins políticos.

Mendel Beilis é levado a julgamento, 1913

Para “distrair” o povo de seus reais problemas, o governo czarista passa a instigar a violência contra os judeus e as Centúrias Negras (bandos de rua armados) atacam os judeus em dezenas de cidades e vilarejos. No período de 1903 a 1907, cerca de 660 pogroms ocorreram na Ucrânia e Bessarábia, sendo o mais violento deles o de 18 de outubro, em Kiev. Na época viviam na cidade cerca de 80 mil judeus. Nem a polícia nem o exército controlaram os arruaceiros, que, durante três dias, espalharam

O caso Beilis

Em outubro de 1913, iniciase, em Kiev, seu julgamento. Surpreendentemente, um júri popular, composto em sua maioria por camponeses, declara Beilis inocente. Mas as suspeitas de que os judeus eram “maus e traidores” 48

Após a Revolução de Fevereiro ou Revolução Branca, como também foi chamada, toma posse um governo formado por liberais que constituíam as bases do partido menchevique. Esse governo, no entanto, foi derrubado poucos meses depois pelos bolcheviques. A Revolução de Outubro, como é chamada, impôs o governo socialista soviético e desencadeou uma guerra civil. Com a Revolução de Outubro de 1917 os judeus viram abolidas todas as restrições e discriminações impostas pelo governo czarista. Iniciava-se um novo capítulo na história dos judeus de Kiev, infelizmente não menos sangrento e doloroso ...

BIBLIOGRAFIA

Dubnow, Simon, History of the Jews in Russia and Poland: From the Earliest Times Until the Present Day, Ed. Nabu Press, 2010. Meir, Natan M. Kiev, Jewish Metropolis: A History, 1859-1914, Ed. Indiana University Press, 2010.


BRASIL

A presença nazista na Amazônia Por Ilko Minev

Pouco antes DE ECLODIR a 2ª Guerra Mundial, os alemães fizeram uma expedição Ao Norte do Brasil, com interesses que iam além de apenas conhecer a fauna e a flora local.

E

m 1935, as movimentações políticas que dariam origem à 2a Guerra Mundial já estavam em construção. Naquele ano, o Partido Nazista, que comandava a Alemanha e começava a impor restrições aos judeus por meio das Leis de Nuremberg, pediu uma autorização inusitada ao governo de Getúlio Vargas: os alemães queriam realizar uma sofisticada expedição científica para coletar e estudar a flora e fauna na área da serra do Tumucumaque, uma imensa área selvagem na fronteira do Brasil com a Guiana Francesa.

que lembram a região de Foz do Iguaçu (mas que até hoje não é explorado para o turismo). A sepultura impressiona pelo tamanho da cruz e pela suástica esculpida nela. Ela ainda está lá, no mesmo local, bem conservada. Ainda é possível ler o que está escrito, em alemão: Joseph Greiner faleceu aqui em 02-01-36, de febre, a serviço da pesquisa científica alemã – Expedição Alemã Amazonas – Jari 1935-1937. Há pouquíssimo material disponível sobre essa expedição. Depois de muito procurar em bibliotecas, arquivos e antiquários, aqui e no exterior, encontrei três livros que me ajudaram a colher dados. O primeiro, o próprio livro escrito pelos participantes da expedição – em alemão gótico, já que o Reich queria resgatar as características que considerava clássicas do povo germânico. O título original pode ser traduzido como Enigmas do inferno na selva. São muito raros e caros seus exemplares, hoje em dia (na Amazon há uma edição rara traduzida para o inglês, que custa cerca de duas mil libras esterlinas). Nele contam detalhes da expedição, como conseguiram as licenças com o governo Getúlio Vargas – o embaixador alemão se reuniu diversas vezes com o presidente brasileiro, até conseguir uma licença para virem com um avião.

Dois anos mais tarde, na véspera da 2ª Guerra, os trabalhos terminaram e os resultados foram uma enorme e valiosa coleção de amostras – a pele de uma Anaconda e de outros animais coletados estão espalhados pelos museus alemães. Eles levaram amostras de mais de 1.500 espécies de animais e plantas, e também produziram um livro e um documentário de grande sucesso. Ao longo da expedição, um dos participantes, Joseph Greiner, morreu em decorrência da malária e foi sepultado a poucos metros da Cachoeira de Santo Antonio, no Vale do Jari, no sul do estado do Amapá, um dos lugares mais bonitos da Amazônia, com cachoeiras 49

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BRASIL

Os militares brasileiros foram contra, mas o próprio Vargas intercedeu para conceder a permissão. É possível encontrar documentos nos arquivos do Itamarati com esses pedidos. O segundo foi de um historiador brasileiro (paraense), Cristovão Lins. Ele cita essa expedição em seu livro Jari – 70 anos de história. Consegui um exemplar em uma biblioteca, em Macapá. O terceiro foi um livro de 2008, do jornalista alemão Jens Glüsing, intitulado O projeto Guiana: uma aventura alemã na Amazônia, que não foi traduzido para o português. O autor também refez os passos dos alemães na Amazônia e revelou diversos documentos dos arquivos alemães. Também descobri no YouTube o filme (editado) sobre a expedição, que tinha o mesmo nome do livro e foi exibido nos cinemas alemães em 1938. Durante minha pesquisa, descobri que os alemães tinham a intenção de estabelecer uma base na América do Sul e essa expedição pretendia mapear a região. Isso está registrado

que falava português e ajudava na tradução e na comunicação com os nativos.

Na partida para o Pará: Kahle, SchulzKampfhenkel e o engenheiro Krause

na comunicação de Heinrich Himmler, alto comandante da SS, com Otto Schulz-Kampfhenkel, o chefe da expedição. Foram realizados voos de reconhecimento de terreno pela equipe, para escolher o melhor lugar para estabelecer uma base no continente – essa é uma das razões para que os alemães trouxessem um hidroavião para cá, que acabou debaixo d’água (um dos flutuadores do avião bateu em algum tronco de madeira do rio, causando o capotamento da aeronave). Otto era ainda jovem, 24 anos, assim como seu companheiro de empreitada, o piloto Gerd Kahle, com 26. Já no Brasil, foi contratado Joseph Greiner (o que morreu devido à malária), de 30 anos,

Nos arquivos federais alemães, há um documento chamado de Guayana-Projekt, no qual Otto recomenda explicitamente a invasão e a conquista da Guiana Francesa para marcar a presença alemã no continente, já que os ingleses tinham a Guiana e os holandeses, o Suriname. “A tomada das Guianas é uma questão de primeira importância por razões político-estratégicas e coloniais”, afirma ele, no documento. E Otto já tinha o caminho para fazer isso acontecer: aproveitar a amizade com os indígenas e as boas relações com o Brasil, cujo presidente, Getúlio Vargas, segundo ele, seria admirador de Hitler e Mussolini. Quando voltou para a Alemanha, Otto foi recebido com honras e foi aceito na SS, a principal agência de segurança nazista. Quando acabou a Guerra, ele foi capturado e preso pelos norte-americanos. Além de marcar a presença alemã na região, os nazistas queriam usar o local para ser base de seus submarinos. Eles tinham em torno de mil dessas embarcações. Por isso, precisavam de uma base para fazer manutenção e treinamento das equipes durante a Guerra, e aquela região seria ideal. Com a eclosão da 2ª Guerra e a atenção dos alemães voltada prioritariamente a seus vizinhos, e com a posterior derrota nazista, o projeto nunca saiu do papel.

Seguindo os passos da Alemoa Outra descoberta foi que, durante a expedição, eles deixaram uma

Membros da expedição alemã e caboclos da região

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Cachoeira de Santo Antônio, Rio Jari, Laranjal do Jari, Amapá. Foto: reprodução Instagram @icmbio/Rubens Matsushita

descendente na região. Na época, uma índia ficou grávida e deu à luz uma menina “loira, de olhos azuis”, segundo reza a lenda local, que ficou conhecida como “Alemoa”. Há relatos diferentes sobre ela. Lins afirma que seria filha do líder da expedição e seu nome era Macarrani. Ela pertenceria à aldeia dos Aparaí e teria, posteriormente, se casado com um índio. Já Glüsing acredita que o pai da Alemoa seria o piloto, que, de acordo com o diário da expedição, permaneceu alguns dias a sós com duas índias. Outro nativo importante durante a expedição foi Pitoma, que praticamente se tornou um guia dos alemães pela selva.

de Macapá era um judeu – o Major Eliezer Moysés Levy, mas não se sabe se ele chegou a ter contato com os nazistas. Muito provavelmente não teve, considerando-se que era um fervoroso sionista, que se correspondia com David BenGurion e criou o primeiro jornal sionista do Brasil, como relatamos em Morashá Ed. 103. Hoje em dia não há mais pistas sobre o paradeiro da Alemoa ou de seus descendentes. A maioria

dos índios Aparaí migraram para a Guiana Francesa. Alguns remanescentes da aldeia dizem que sua família teria ido para a França, mas não encontrei indícios de sua presença em território francês. Este episódio obscuro da história da América do Sul poderia ter mudado toda a geopolítica da região caso os planos dos alemães se concretizassem. Felizmente, isso não ocorreu.

Livro Toda essa história está contada em meu romance “Nas Pegadas da Alemoa”. Embora os personagens sejam fictícios, assim como suas tramas pessoais, toda a parte histórica e de pesquisa é verdadeira. O livro foi lançado pela editora Buzz e tem figurado nas listas dos mais vendidos no país, na categoria ficção.

A região continua inexplorada, ou seja, está praticamente igual à época em que eles vieram para cá. Tanto que há relatos de que foram atacados por diversos piuns, insetos minúsculos, cujas picadas são bastante dolorosas. Os alemães os apelidaram de “castigo do Jari”. Estes insetos continuam existindo em grande quantidade na região.

Ilko Minev nasceu na Bulgária, vive em Manaus e é autor de quatro livros: Onde estão as flores?, As filhas dos rios, Nas pegadas da Alemoa e Na sombra do mundo perdido, suas obras foram lançadas pela Buzz Editora.

Um fato curioso é que, durante a passagem dos alemães, o prefeito 51

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ISRAEL

Em Israel, inclusão passa da teoria à prática Programa criado por ex-agentes do Mossad, em 2013, prepara jovens com autismo para as Forças de Defesa, absorção no mercado de trabalho e integração à sociedade, SEMPRE BUSCANDO desenvolver seu potencial.

N

os últimos anos, o espírito empreendedor israelense e sua criatividade foram colocados a serviço de uma parcela especial da população do país, visando permitir sua inserção na sociedade: estamos falando dos jovens diagnosticados dentro do espectro autista. Denominado em hebraico Ro’im Rachok (em tradução livre, “Olhando para o Futuro”), o programa tem como objetivo treinar adultos com autismo para atuarem em diferentes áreas profissionais, tanto nas Forças de Defesa de Israel (FDI) quanto no mercado civil. O programa procura desenvolver as habilidades específicas dos jovens participantes, considerando suas características individuais.

de indivíduos com autismo para atender às necessidades de segurança de Israel. É uma relação benéfica para as FDI, os participantes, suas famílias e para o país.

O que é autismo? O autismo entrou na pauta internacional quando, em 18 de dezembro de 2007, a Organização das Nações Unidas (ONU) criou o Dia Mundial de Conscientização do Autismo, que passou a ser comemorado anualmente em 2 de abril. A iniciativa visava conscientizar a população e derrubar preconceitos. O autismo, afirma essa resolução, não é uma doença, mas um transtorno do neurodesenvolvimento, conhecido como “Transtorno de Espectro Autista” – TEA, que varia de indivíduo para indivíduo. O TEA se manifesta na criança antes dos dois ou três anos e, de modo geral, pessoas dentro do espectro têm dificuldades nas relações sociais, na comunicação (fala e linguagem) e no comportamento (com interesses restritos e comportamentos repetitivos). Porém, o espectro tanto de suas habilidades quanto dificuldades é muito amplo, manifestando-se em

Para muitos jovens israelenses classificados dentro do espectro autista, a isenção do serviço militar obrigatório, visto como um rito de passagem para a vida adulta após o ensino médio, é uma fonte de frustração, tanto por não poderem servir ao seu país quanto pelo sentimento de marginalização em relação à sociedade. Ro’im Rachok surgiu como um programa de inclusão que utiliza as habilidades especiais 52


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diferentes níveis de intensidade. Inclui desde pessoas não-verbais até pessoas independentes, com vida normal, muitas das quais nem mesmo sabem que estão no espectro, pois nunca foram diagnosticadas.

- estejam dentro do espectro do autismo, representando cerca de 1% da população mundial. Em Israel, no ano 2000, uma em cada duas mil pessoas era diagnosticada com alguma forma de autismo;

Mesmo com a evolução da medicina, ainda não há uma definição clara sobre qual a causa do autismo. Acredita-se que seja consequência da combinação de fatores genéticos e ambientais. Porém, estudos contínuos têm permitido aos profissionais da saúde uma maior compreensão do TEA e seu espectro, levando, portanto, à realização de diagnósticos precoces e possibilitando abordagens mais adequadas a cada caso.

atualmente, uma pessoa em cada 100 tem esse diagnóstico no país. O aumento recente de casos mundo afora é relacionado, pelo menos em parte, com o maior conhecimento sobre o Transtorno de Espectro Autista e com mudanças na prática diagnóstica. Essa parcela de 1% da população não pode permanecer ignorada pelas políticas públicas.

Projeto inédito O programa israelense Ro’im Rachok é fruto das vivências pessoais de seus dois principais idealizadores. Leora Sali, física, ex-coordenadora de uma unidade de tecnologia do Mossad, ela mesma mãe de um jovem autista; e Tal Vardi, ex-agente do Mossad (participou da Guerra de Yom Kipur, em 1973, e no Resgate de Entebe, em 1976). Vardi conta

Estima-se que 75 milhões de pessoas em todo o mundo - mais de dois milhões das quais no Brasil 53

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ISRAEL

que começou a pensar sobre o tema ao ouvir um amigo falar sobre as dificuldades enfrentadas pelos seus dois filhos com autismo e a preocupação com o seu futuro, a mesma de Sali, acrescida da tristeza por saber que seu filho não poderia servir o exército. Sem se conhecerem, ambos tiveram a mesma ideia: criar um projeto que permitisse a uma parcela de jovens diagnosticados com autismo uma maior inserção no mercado de trabalho e participação nas FDI. Leora começou a desenvolver sua ideia em 2011 e, pouco tempo depois, foi apresentada a Tal Vardi através de um amigo comum, Tamir Pardo, então diretor do Mossad. Com a aprovação das FDI, os dois começaram a traçar as bases do que viria a se tornar um dos projetos mais inovadores em Israel, em termos de educação especial, fazendo do país um pioneiro nesta área. O Programa Ro’im Rachok foi iniciado em 2013 e, além dos subsídios governamentais, conta também com doações privadas. No que se refere à área militar, a iniciativa tinha dois objetivos fundamentais: formar analistas altamente capacitados para o setor, canalizando suas habilidades singulares, e dar aos jovens com autismo a oportunidade de servir nas FDI, oferecendo-lhes treinamento específico, tanto para voluntários homens quanto mulheres. Posteriormente, esses jovens são integrados à unidade conhecida como 9900, de reconhecimento aéreo, da qual fazem parte também soldados que não se incluem no espectro autista. O programa já expandiu para outras unidades.

Poster em Israel sobre o dia 2 de abril - Dia Mundial da Conscientização sobre o Autismo instituído pela ONU.

as habilidades singulares de pessoas com autismo não seriam suficientes para integrá-los à Unidade 9900 ou a qualquer outra do exército. As FDI não sabiam como lidar com as características especiais dos jovens – razão pela qual as pessoas com espectro autista, mesmo que sejam altamente funcionais, são isentas do serviço militar compulsório. Eles sabiam que, para que a experiência fosse positiva para todos, era preciso encontrar um parceiro

O Ten. Cel. Rosenfeld explicando os processos para recrutamento de jovens com autismo

apto a oferecer treinamento para os recrutas e também para seus comandantes. O Ono Academic College, instituição de nível superior com um programa reconhecido por sua excelência na área de saúde, em Kiriat Ono, cidade próxima a Tel Aviv, foi considerado a melhor opção. Trabalhando com as FDI, os criadores do projeto elaboraram um programa intensivo a ser executado antes do período no exército, que não apenas ensinaria aos recrutas a analisar imagens de satélites e outras

Ambos os idealizadores do Ro’im Rachok tinham consciência de que 54


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tarefas militares, mas também lhes daria ferramentas básicas para o cotidiano.

tornam esses jovens ótimos candidatos para a 9900, unidade de reconhecimento aéreo. Nessa unidade, esses jovens soldados são encarregados de examinar inúmeras imagens aéreas e de satélites em busca de mudanças minuciosas. Mudanças que podem significar pequenos sinais de atividade inimiga e são fonte de inteligência crítica para as FDI. Deixar passar um detalhe pode custar vidas.

Treinamento intenso O programa foi dividido em duas etapas de três meses cada. A primeira etapa é ministrada na Ono Academic College e a segunda em unidades das FDI, onde os participantes trabalham inicialmente como civis e, em seguida, são alistados como voluntários, se assim o desejarem. Diferentemente dos jovens israelenses que servem o exército por três anos, jovens com espectro autista cumprem um serviço básico, voluntário, por um ano. Mas podem estender esse período por até dois anos, se for de sua vontade. Este período no serviço militar também os qualifica para ingressarem, posteriormente, no mercado de trabalho. Intel e eBay estão entre as primeiras empresas que mantêm parcerias com o programa para absorção desses jovens. As habilidades desenvolvidas no programa têm aplicação direta nas áreas de alta tecnologia. Nem todos os diagnosticados com TEA podem participar do programa, mas apenas aqueles que possuem elevado nível de funcionalidade, são autossuficientes nas atividades de rotina diária e conseguem gerenciar o tempo. É necessário, também, ser cidadão israelense e saber hebraico. Cerca de 80% dos que se candidatam são aceitos. Destes, 90% completam o programa e entram para o exército. O próprio filho de Leora Sali entrou no programa, mas não se qualificou para servir nas FDI devido a problemas emocionais. Um dos objetivos do projeto é garantir que os jovens vejam a si

Treinamento dos recrutas em análise visual .

mesmos de forma mais positiva e que entendam que possuem potencial, pontos fortes e habilidades a desenvolver. “É isso que Ro’im Rachok faz, ensinando-lhes a usar sua inteligência, determinação e foco de forma produtiva e desenvolvendo suas ferramentas de sociabilidade e comunicação. Eles são treinados em áreas da inteligência militar para as quais são utilizados talentos únicos, que apenas alguém com espectro autista possui”, destaca Leora. Muitos desses talentos, como habilidades visuais excepcionais e alta capacidade de concentração, 55

Eles são treinados para ver o que está diferente, seja um carro, uma pessoa ou uma bomba, ou algum outro detalhe menos óbvio como, por exemplo, um pequeno monte de areia, que pode indicar o começo de um novo túnel subterrâneo. Esses analistas olham foto após foto do terreno, apontando o que mudou. A concentração demandada é intensa; são inúmeras horas por dia olhando telas no computador, visualizando imagens e processando um amplo volume de dados sem perder o foco total. abril 2022


ISRAEL

Durante a primeira fase do programa, uma equipe de terapeutas ocupacionais, fonoaudiólogos e psicólogos ensina aos jovens algumas habilidades sociais como fazer uma apresentação perante um grupo, comunicar-se com um comandante, escrever um e-mail e até pegar um ônibus sozinho, algo que muitos jamais haviam feito. Há uma grande lacuna entre as habilidades cognitivas e as sociais desses recrutas, explica Efrat Selanikyo, terapeuta ocupacional especializado em autismo que atua como gerente profissional de Ro’im Rachok. “Eles têm capacidade para entender algoritmos, mas frequentemente falta-lhes compreensão social básica”. A mesma atenção é dada aos comandantes da Unidade 9900 que aprendem a se comunicar com esses jovens. “Antes de vir para esta unidade eu não tinha nenhum conhecimento sobre autismo. Mas desde que comecei a trabalhar com eles, percebi que são muito inteligentes, apenas seu cérebro trabalha de uma forma diferente”, diz uma das oficiais de 20 anos da Unidade 9900.

Soldado da unidade 9900 analisando imagens

O JOVEM SHACHAK SHRIKI AO SER ACEITO PARA AS FDI

florescendo não apenas no exército, mas na vida em geral, sendo mais independentes”, ressalta Leora.

PROGRAMA ESPECIAL QUE INTEGRA JOVENS com autismo NAS FDI

serviço militar. Um dos recrutas, por exemplo, surpreendeu sua avó quando foi visitá-la pela primeira vez sozinho. “É muito satisfatório para os pais verem seus filhos

E continua: “Eles tendem a ver as coisas em termos absolutos – preto ou branco. Se eu disser ‘Venham aproximadamente às 4h15’, não saberão o que fazer. Mas se eu disser ‘Voltem exatamente às 4h15’, eles dirão ok e voltarão no horário exato. Tive que me adaptar e aprender a me explicar de forma diferente. Eles são atentos, possuem enorme capacidade de concentração e são altamente motivados, além de sentirem muita emoção por usar um uniforme”. O impacto que o programa tem sobre os jovens ultrapassa o 56

Ro’im Rachok também teve um grande impacto nos comandantes. Segundo ela não são poucos os comentários feitos por comandantes que afirmam que trabalhar com soldados com autismo tornou-os melhores líderes e também melhores seres humanos. Sentem-se mais abertos para aceitar os outros como são, com seus pontos fortes e fracos. Destacam ainda que se tornaram mais pacientes e sensíveis. O sucesso de Ro’im Rachok na unidade 9900 levou à inclusão de outras unidades do exército no programa. Atualmente há equipes


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dedicadas à garantia de qualidade buscando bugs em software e hardware, análise de dados, eletroóptica, além de desempenharem diferentes tarefas na Força Aérea. Com o aumento no número de indivíduos diagnosticados com algum nível de autismo, em Israel, a demanda pelo programa é crescente. O projeto já conta com três grupos de recrutas por ano. Para muitos desses jovens significa a realização de um sonho. “É revolucionário”, diz um soldado participante no Ro’im Rachok. “Pois comprova que ainda que os outros digam que não conseguiremos, nós conseguimos”.

Talentos ocultos Ainda que todos estejam dentro do espectro autista, os participantes do programa possuem interesses diferenciados e uma vontade enorme de aprender. Muitos têm talentos que surpreendem constantemente quem com eles convive, afirma Selanikyo, terapeuta ocupacional e gerente profissional do Ro’im Rachok. Um deles, por exemplo, aprendeu a tocar a Quinta Sinfonia de Beethoven vendo seu professor tocar e memorizando o movimento de seus dedos. Outro surpreendeu o pai durante uma viagem de férias à China ao falar mandarim fluente, idioma que havia aprendido sozinho. Cerca de 10% das pessoas com autismo têm a Síndrome de Savant, distúrbio psíquico que lhes confere habilidades intelectuais extraordinárias, muito acima da média. A extensa rede de apoio oferecida pelo Ro’im Rachok garante não apenas que os soldados cumpram

ESPeRA-SE QUE 500 JOVENS ISRAELENSES INCLUÍDOS NO ESPECTRO AUTISTA SE ALISTEM ANUALMENTE NAS FDI

Cerca de 10% das pessoas com autismo têm a Síndrome de Savant, distúrbio psíquico que lhes confere habilidades intelectuais extraordinárias, muito acima da média.

os requisitos do serviço militar, mas também que recebam a ajuda que necessitam. Cada voluntário mantém reuniões semanais com psicoterapeutas para aconselhamento emocional e com um terapeuta ocupacional para ajudá-lo a se relacionar no ambiente de trabalho. Este apoio é fundamental para o sucesso do programa. Para Tal Vardi, a criação de um programa como o Ro’im Rachok não visava apenas transformar o serviço militar ou resolver uma situação específica. “Mais do que isso, foi uma forma de provar ao mundo que jovens no espectro autista podem não apenas atuar, mas serem excelentes em suas atividades. Senti que esta era a razão para eu estar aqui, ou seja, para criar um novo modelo de vida para pessoas com TEA”. 57

Para ele, o programa é uma espécie de start-up social, fazendo uma analogia com o fato de Israel ser chamado de Start-Up Nation, que procura integrar jovens com espectro autista na sociedade israelense de acordo com suas características e potencial. Bibliografia

https://www.Ro’im-rachok.org The Israeli Army’s Ro’im Rachok Program Is Bigger Than the Military, artigo publicado pelo jornalista David Kushner no dia 2 de abril de 2019 no site https://www.esquire.com An IDF Program for Teen on the Autism Spectrum, artigo publicado por Leora Eran Frucht em setembro de 2017 no site “Israeli Scene Feature”. For Autistic Soldiers, Army Service Opens Door to Integration, artigo publicado por Tia Goldenberg em 20 de de fevereiro de 2016 no jornal Times of Israel. Soldiers with Autism Give Army Rare View Into Intel and Disorder, artigo publicado por Mitch Ginsburg em 8 de março de 2015 no jornal Times of Israel.

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COMUNIDADES

Judeus de Kiev nos séculos 20 e 21 A história dos judeus de Kiev nos últimos 100 anos é tão difícil e sangrenta quanto a dos séculos anteriores. Ela tem início NA ESTEIRA da Revolução Russa de 1917 e se estende até hoje. Durante esse periodo, Kiev foi o centro do judaísmo ucraniano e de suas instituições religiosas e culturais.

é

difícil dizer quantos judeus viviam na Ucrânia quando do ataque russo no dia 24 de fevereiro deste ano de 2022. Sergio Della Pergola, demógrafo israelense, estimava em 49 mil judeus, enquanto o Congresso Judaico Europeu avaliava entre 360 mil e 400 mil, dos quais 110 mil viviam em Kiev. Quantos ainda vão estar em Kiev quando a paz voltar à região é uma incógnita...

Na época, a comunidade judaica de Kiev, composta de 87 mil indivíduos, reestruturou-se sob a liderança de Moisés Nahum Syrkin. Membro do Rada e da intelligentsia russo-judaica, Syrkin era um sionista convicto. Kiev tornou-se centro do judaísmo ucraniano e de instituições culturais. Era grande o número de escritores judeus que viviam na cidade, onde livros e jornais eram publicados pela Liga de Cultura Iídiche, a Yiddish Kultur Lige, fundada em Kiev em 1918.

O nacionalismo ucraniano

A luta pela independência ucraniana

Uma das consequências da Revolução Russa de Fevereiro 1917 foi o fortalecimento, na Ucrânia, do movimento nacionalista ucraniano. Criou-se em Kiev um Conselho Nacional (Rada) cujo objetivo era a criação, nesse país, de um Estado burguês. Em janeiro de 1918, após a tomada de poder na Rússia pelos bolcheviques, a Rada proclamou a independência da República Nacional da Ucrânia (RNU). A Rada, órgão supremo da nova República, iniciou uma luta aberta contra o Poder Soviético. Nem todos os ucranianos, no entanto, concordavam com o estabelecimento de um estado burguês e as facções pró-bolcheviques pediram ajuda à Rússia.

A guerra pela independência ucraniana constitui um capítulo importante na história dos judeus de Kiev. Os partidos políticos judaicos das mais diferentes ideologias uniram-se à Rada e muitos judeus juntaramse às fileiras do movimento nacionalista ucraniano. Para manter o apoio judaico, os políticos ucranianos comprometeram-se a dar aos judeus igualdade civil plena e autonomia comunitária, criar um Ministério de Assuntos Judaicos, destinar parte da arrecadação tributária para programas educacionais judaicos e declarar o iídiche como um dos idiomas oficiais do Estado. Após a proclamação da independência 58


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VISTA ÁEREA DA PRAÇA GLÓRIA, EM PECHERSK, BAIRRO CENTRAL DE KIEV, UCRÂNIA

da República Nacional da Ucrânia, os judeus passaram a ser representados na Rada por 50 delegados. E algumas das promessas se concretizaram, mas todas as concessões foram de curta duração. No início de 1919, os 114.524 judeus de Kiev acreditavam que suas vidas melhorariam... Quando Symon Petliura, ultranaciolanista e comandante Supremo do Exército Ucraniano entrou em Kiev, a vida dos judeus sofre um forte golpe. O líder da República Popular ucraniana até a sua dissolução era um antissemita convicto. Uma de suas primeiras ações foi prender os membros da unidade judaica de autodefesa, executando 36 deles. Durante seu governo, os pogroms foram uma constante. Ao invés de coibir suas tropas, quando não as incentivava, ele fingia não saber da violência

antijudaica cometida por seus soldados. Hoje, na Ucrânia, Petliura é considerado herói nacional.

Casa do Ator. Antiga propriedade judaica confiscada pelos soviéticos. Kiev

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A Guerra de Independência ucraniana de 1918-21 trouxe em seu bojo uma violência sem igual contra a população judaica, mais de 156 mil judeus foram assassinados no país. Todas as facções que lutaram na guerra pela independência ucraniana participaram da matança, mas os nacionalistas ucranianos foram responsáveis por grande parte dos mortos. Em janeiro de 1919, a Rússia despacha 30 mil homens do Exército Vermelho à Ucrânia para ajudar as facções prósoviéticas. Em agosto, os russos tomam Kiev. Dois anos mais tarde, após o Exército Vermelho conquistar dois terços do território ucraniano, é criada a República Socialista Soviética da Ucrânia, que passou a ser uma das repúblicas da URSS. abril 2022


COMUNIDADES

elemento no imaginário antissemita ucraniano: a figura do “judeubolchevique”, do “opressor judeucomunista”, uma associação que iria custar aos judeus muito caro na década de 1940.

Domínio soviético Em 1934, Kiev tornou-se a capital da República Socialista Soviética da Ucrânia, a segunda mais poderosa, econômica e politicamente, república da URSS.

Em 1923 viviam na Ucrânia 1,5 milhão de judeus, desses 128 mil em Kiev e, em 1939, já eram 224 mil. Toda a população da URSS passara por um processo de proletarização e, em Kiev, os judeus passam a trabalhar nos órgãos burocráticos estatais ou do partido e nas indústrias estatais.

A Ucrânia sempre foi vista com desconfiança por Moscou. Os líderes soviéticos sabiam do enraizado nacionalismo ucraniano, e que teriam que enfrentar uma contínua resistência a menos que fizessem concessões à autonomia cultural de seu povo. No início da década de 1920, o regime soviético adotou uma política chamada korenizatsiya, em sentido literal, “arrancar raízes”. O lema era “nacionalista em sua forma, mas socialista em seu conteúdo”. Os judeus foram incluídos na korenizatsiya, como uma minoria cultural distinta. Essa política acrescentaria mais um conflito aos existentes entre os judeus e os ucranianos. Esse últimos acreditavam que os judeus ucranianos deviam se “assimilar” totalmente à sua cultura.

CERTIFICADO EM NOME DE E.I.SHRAER, ATESTANDO TER COMPLETADO O CURSO DE ELETROMECÂNICA NA ESCOLA TÉCNICA JUDAICA DE KREMENCHUG, 1930

Acuados pelo nacionalismo ucraniano intrinsecamente antissemita, os judeus optaram por se aproximar dos russos. Essa aproximação e o fato de muitos judeus terem tido participação na Revolução Russa fez com que eles passassem a ser associados com os bolcheviques e a opressão soviética. Surge, então, mais um

TEATRO IÍDICHE ESTATAL, KIEV. CARTAZ DO REPERTÓRIO ITINERANTE EM IÍDICHE E UCRANIANO, CHERNOVTSI, 1945

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Nos primeiros anos do domínio soviético a maioria dos judeus (76%) ainda falavam iídiche, e Kiev continuava sendo um centro de cultura iídiche, desprovida, no entanto, de qualquer conteúdo religioso.

O ateísmo como ideologia política A União Soviética abraçara o ateísmo enquanto parte da sua ideologia política. Apesar do governo soviético realizar campanhas contra o antissemitismo até o início dos anos 1930, a religião judaica era, no minimo, malvista. As duas principais sinagogas de Kiev foram transformadas em “clubes para artesãos” e os soviéticos entregaram a condução da comunidade judaica à Yevsektsiya, a seção judaica do Partido Comunista. Todos os seus esforços visavam romper os vínculos judaicos com sua religião, fechar as instituições comunitárias e prender os sionistas. Em 1921, a Yevsektsiya organiza uma farsa judicial colocando o Judaísmo no banco dos réus. Este é acusado e condenado, por ser o responsável pela “opressão burguesa da classe operária judia”.


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Em Kiev, a vida cultural judaica foi-se adaptando ao domínio soviético. A cidade tornou-se um importante centro para a nova cultura iídiche, como já mencionamos sem qualquer conteúdo religioso. É criado o Instituto de Cultura Proletária Judaica, que fazia parte da Academia Ucraniana de Ciências, e um sistema de instituições educacionais e culturais de língua iídiche promovidas pela Kultur Lige. Fundam-se escolas, teatros, jornais e editoras em iídiche, bem como o teatro judaico estatal. O governo financia a publicação de livros e jornais nesse idioma.

Era Stalinista Quando Stalin sobe ao poder em 1927, o ditador reforma a sociedade através de um planejamento econômico agressivo que visava a coletivização da agricultura e uma industrialização estatal de base acelerada. Seu governo foi marcado por execuções e expurgos múltiplos. As perseguições contra opositores políticos, intelectuais e escritores – judeus e não judeus – atingiram proporções absurdas. Centenas de milhares foram presos, enviados ao exílio ou executados. Em 1929, Stalin inicia uma campanha contra a cultura ucraniana e judaica, reprimindo brutalmente os aspectos “nacionais” de ambas. É indiscutível o antissemitismo do ditador, bem como a sua determinação de se livrar dos judeus enquanto judeus. Em Kiev, assim como em outras partes da URSS, os judeus veem suas instituições culturais, teatros e escolas serem fechados; e as publicações judaicas reduzidas ao mínimo.

As ruas Kerosinnaja e Lagernaja em Kiev, abarrotadas de judeus que seguiam para a execução. foram agrupados por policiais ucranianos portando braçadeiras da “Organização de Nacionalistas Ucranianos”

Em Kiev, a vida judaica organizada chega ao fim no final da década de 1930, com os expurgos stalinistas. A maioria dos envolvidos na propagação da religião judaica e do sionismo são presos.

A Shoá Para os judeus da República Ucraniana, o pesadelo teve início no dia 22 de junho de 1941, quando a Alemanha deu início à invasão

da União Soviética. Para muitos ucranianos a invasão nazista foi vista como a libertação do jugo soviético, do julgo “opressor judeu-comunista”. Em toda a Ucrânia, antes mesmo de os nazistas iniciarem a matança, a população local foi responsável por sangrentos pogroms. Milhares de ucranianos se voluntariaram para ajudar os nazistas, participando da perseguição e do assassinato de judeus, ou tornando-se guardas nos campos de extermínio.

Prisioneiros de guerra soviéticos sendo usados pelos nazistas para cobrir uma vala comum após o massacre de Babi Yar, 01/10/1941

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COMUNIDADES

Kiev caiu em mãos alemãs em 19 de setembro. Acredita-se que cerca de 70% dos 225 mil judeus deixaram a cidade a tempo. Desde o primeiro dia da ocupação, os judeus perceberam a “face radiante de felicidade” de muitos habitantes. No dia seguinte, policiais ucranianos apareceram portando braçadeiras e anunciando que faziam parte da “Organização de Nacionalistas Ucranianos” (OUN), liderada por um grande antissemita, Stepan Bandera. Em 21 de setembro, após serem submetidos a humilhações públicas, foram assassinados dez importantes membros da comunidade judaica. Em 27 e 28 de setembro, os nazistas colocaram cartazes em russo e ucraniano por toda Kiev, convocando os judeus para o “reassentamento”. Nos dois dias seguintes, véspera de Yom Kipur, uma multidão de judeus, homens, mulheres e crianças, foram levados a Babi Yar, uma ravina nos arredores da cidade. Acreditavam que seriam embarcados em trens para um “reassentamento”.

que, por meses após os assassinatos, o solo de Babi Yar continuava a esguichar gêiseres de sangue”. Nos meses seguintes Babi Yar tornou-se um local de execução para prisioneiros soviéticos e “ciganos”. O número de executados no local talvez jamais seja conhecido.

Sinagoga construida em Babi Yar pela firma de arquitetura Manuel Herz

Unidades da polícia ucraniana foram usadas para agrupar e conduzi-los até o local de fuzilamento. O massacre foi realizado em dois dias por uma unidade dos Einsatzgruppen e por um batalhão das Waffen-SS. Foi enviado um relatório: “Em dois dias, 33.771 judeus foram exterminados em Babi Yar e os operadores das metralhadoras foram auxiliados pelos milicianos ucranianos”. Sobre o massacre de Babi Yar, Elie Wiesel escreveu: “Testemunhas oculares disseram

Em março de 1944, à medida que os exércitos alemães iam se retirando frente ao avanço russo, receberam a ordem de destruir as evidências dos assassinatos. Um comando especial foi incumbido de ir aos locais dos massacres para exumar e queimar cadáveres em piras, mas a quantidade de vítimas enterradas em Babi Yar não permitia esse “modus operandi”. Como testemunhou o comandante da macabra operação: “A terra sobre a imensa cova comum foi removida; os corpos foram cobertos com material inflamável e incendiados”. Quatrocentos judeus e prisioneiros de guerra soviéticos foram levados ao local para executar a horrenda tarefa. Eles sabiam que assim que o trabalho se encerrasse todos seriam mortos. Decidiram então que ao menos um entre eles precisava sobreviver para contar ao mundo o que acontecera. No 3º aniversário do massacre em Babi Yar, 325 dos prisioneiros conseguiram milagrosamente fugir, mas apenas 14 estavam vivos quando o Exército Vermelho entrou em Kiev.

Após a 2ª Guerra Mundial No final da 2ª Guerra, quando judeus sobreviventes voltaram a Kiev, defrontaram-se com um violento antissemitismo ao tentarem recuperar suas casas e propriedades. Pelo censo realizado em 1959, viviam em Kiev 154 mil judeus, mas acredita-se que eram mais de

Interior da Sinagoga Choral Brodsky em Kiev, Ucrânia

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200 mil, e ainda se concentravam nos bairros historicamente judaicos da cidade. Devido à contínua hostilidade soviética quanto a religião judaica, apenas a sinagoga do bairro de Padol funcionava. Nas festas judaicas, especialmente em Yom Kipur, e no dia do memorial do massacre de Babi Yar, milhares de judeus iam à sinagoga. Inúmeros minianim eram secretamente organizados em residências, mas, quando descobertos, eram fechados e os participantes, presos. Entre 1960-1966 era proibido assar matzot em Pessach e não foram poucos os judeus punidos por assá-las em suas casas.

Sionismo Na URSS o sionismo era ilegal e, em Kiev, periodicamente as autoridades prendiam os judeus por envolvimento em “atividade sionista”. Em Kiev a hostilidade antijudaica era mais forte de que outras cidades soviéticas. Em 1952, 1953 e 1956, foram presos, nessa cidade, vários judeus que protestaram contra o antissemitismo e a discriminação antijudaica. Em 1957, quatro sionistas mais velhos foram sentenciados a vários anos de prisão por “atuação sionista”. Um deles, Baruch Mordekhai Weissman, escrevera um diário, em hebraico, sobre os “anos tenebrosos”. Esse diário foi contrabandeado e publicado anonimamente em Israel, em 1957, sob o título To my Brother in the State of Israel. Na década de 1960, muitos judeus da cidade continuavam engajados em atividade sionista underground, um movimento que ganhou ímpeto no final da década.

publicação do livro Judaism Without Embellishment (Judaísmo sem Enfeite, em tradução livre), pela Academia Ucraniana de Ciências. Escrito por T. Kichko, membro da Academia, a obra antissemita falsamente alegava que existia uma conspiração judaica mundial, que os judeus queriam subverter a União Soviética e que tiveram um importante papel na invasão da Alemanha nazista ao país, em 1941. O PRESIDENTE ZELENSKY NO MEMORIAL ÀS VÍTIMAS DE BABI YAR, 2021

Contudo, a identidade judaica estava rapidamente em declínio e, em 1959, apenas 13% dos judeus de Kiev reivindicara o iídiche como língua nativa. Em 1962, durante as campanhas contra os “crimes econômicos” supostamente cometidos por burgueses capitalistas, dois judeus que trabalhavam em uma editora de Kiev, foram condenados à morte. Na época, a imprensa local travou uma acirrada campanha antissemita que culminou, no ano seguinte, com a

BABI YAR, MONUMENTO ÀS CRIANÇAS

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Apesar disso e das autoridades ucranianas coibirem eventos culturais em iídiche, Kiev continuava sendo o centro dos escritores nesse idioma, muitos dos quais haviam cumprido penas de prisão sob o regime de Stalin. Entre 1960-1970 foram publicadas várias obras em iídiche e traduções das mesmas ao russo e ao ucraniano. Em 1966, um grupo de judeus de Kiev foi a Moscou pleitear, sem resultados, perante o Comitê Central do Partido Comunista, a criação de um teatro iídiche na cidade.

A memória do Holocausto Os anos do pós-guerra foram caracterizados pelo silêncio oficial soviético em relação ao sofrimento dos judeus durante o Holocausto. As autoridades soviéticas davam ênfase ao mito da “Grande Guerra Patriótica” e aos comunistas mortos, negligenciando completamente o fato da identidade judaica de 1,5 milhão de vítimas. A linha oficial referia-se a eles como os “pacíficos cidadãos soviéticos”. No início de 1959, a ravina de Babi Yar foi aterrada e transformada em área residencial, apesar dos inúmeros protestos de judeus e nãojudeus. Em 1961, uma enchente varreu o local, destruindo casas abril 2022


COMUNIDADES

relação aos judeus e ao Estado de Israel. Quando, em maio de 1990, o Pamiat, organização de extrema direita russa, atiçou a violência antissemita, o Rukh rechaça esses ataques, convencendo a maioria dos judeus de que o movimento nacional merecia o seu apoio.

A sinagoga ROSENBERG. KIEV, UCRÂNIA

e afogando várias pessoas. E em fins da década, Babi Yar era um descampado abandonado. O local tornou-se um símbolo do esquecimento oficial do sofrimento judaico, e do antissemitismo soviético. Por anos, apesar de recorrentes pedidos inclusive por parte de intelectuais soviéticos, as autoridades se recusavam a erguer um monumento em lembrança do massacre. Os sobreviventes judeus que tentavam relembrar o massacre na véspera de Yom Kipur, o Dia do Perdão, eram presos, assim como qualquer judeu que participasse de algum tipo de manifestação em Babi Yar. Na campanha contra o antissemitismo na então União Soviética, Babi Yar se tornou um símbolo, cristalizado no poema com esse nome do poeta russo Yevgeny Yevtushenko. Nele Yevtushenko faz um apelo para que os terríveis acontecimentos não fossem relegados ao esquecimento.

para os judeus, jovens, em sua maioria, que não apenas se reuniam no local do massacre para dizer o Kadish, a oração pelos mortos, mas para expressar publicamente sua identificação judaica. Mas todas as suas tentativas de discursar eram silenciadas pela polícia. Quando, em 1976, foi erguido um monumento em pedra, na inscrição explicativa não havia menção aos judeus, somente a cidadãos soviéticos.

A Ucrânia tornou-se oficialmente independente em 1991, com o colapso da então União Soviética. Ao longo dos anos 1990, o país enfrentou uma dura trajetória na transição da economia socialista planificada para uma de livre mercado.

Independência Ucraniana

Apesar de a maioria dos judeus de Kiev ter emigrado na década de 1990, a vida judaica vivenciou um ressurgimento comunitário. Foi organizada inicialmente sob a liderança do Rabino Yaakov Dov Bleich, um chassid americano que se tornara rabino-chefe da Ucrânia durante os últimos anos de dominação soviética. Sentia-se, por toda parte, um despertar entre os judeus locais, apesar de seu declínio numérico.

Com o início da Era da Glasnost, o Rukh, movimento ucraniano predominante na luta por mudanças, adota uma postura amistosa em

Em 1997, a população judaica na cidade chegava a 110.000 pessoas, representando mais de um terço do total de judeus da Ucrânia.

Rabino Yaakov Dov Bleich, rabino chefe da ucrânia

Primórdios do Século 21 Mais uma vez Kiev se torna o centro da vida religiosa e comunitária judaica no país. O trabalho do Rabino Yaakov Dov Bleich foi fundamental para a recuperação comunitária da cidade. Foram criadas rede de escolas, sinagogas e instituições culturais. As propriedades comunitárias que haviam sido confiscados pelo regime da URSS foram devolvidas à comunidade e foram reavivadas,

Após a Guerra dos Seis Dias (1967), ressurge publicamente um sentimento nacional judaico em Kiev. O aniversário de Babi Yar se torna um dia de reunião sombria 64


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como o Museu Tkuma sobre o Holocausto e o Centro de Pesquisa Judaica, em Dnipropetrovsk. A Federação das Comunidades Judaicas Ucranianas foi fundada em 1999, em Kiev. A Grande Sinagoga Choral, nessa cidade, também conhecida como a Sinagoga Podil, serve de centro comunitário e contém uma ieshivá, um jardim de infância e uma escola, um lar de idosos, um orfanato, além de uma funerária judaica, um centro de assistência social, um restaurante casher e um tribunal rabínico. Há outras sinagogas em Kiev, como a Galitska e a Rosemberg. O Centro de Cultura e História Judaica é responsável por diversas atividades culturais para a juventude, bem como para o público, em geral. Sob sua direção também está o Museu Judaico da cidade. A partir de 2014 subiram ao poder, na Ucrânia, forças responsáveis por reposicionar o país, geopoliticamente, afastando-o da Rússia e o aproximando da União Europeia e dos Estados Unidos. Vladimir Putin, presidente da Rússia, considera a “perda geopolítica” uma grande derrota, em suas próprias palavras. Em Kiev, o movimento antirrusso argumentava defender a democracia e a modernização do país. O mundo judaico, no entanto, olhava com preocupação nacionalistas ucranianos homenagear assassinos antissemitas como Symon Petliura, Stepan Bandera e Yaroslav Stetsko. E, em 2015, foi aprovada uma lei “proibindo insultos a heróis nacionais”, o que incluiu criminosos de guerra. Um relatório anual do governo israelense classificou a Ucrânia como principal foco de

Volodymyr Zelensky, PRESIDENTE DA UCRÂNIA

antissemitismo na Europa Oriental. Isso, porém, não impediu que Volodymyr Groysman, judeu, fosse eleito, em 2016, primeiro-ministro do país. Uma pesquisa recente indica uma nova atitude face aos judeus. Em 2017, um estudo da Pew Research apontava que a Ucrânia era o país mais favorável aos judeus entre todos os países da Europa Central e Oriental. De acordo com essa

pesquisa, apenas 5% dos ucranianos afirmaram não aceitar os judeus como seus compatriotas. Na vizinha Rússia esse percentual foi de 14%, na Polônia 18% e na Romênia, 22%.

Em 2019, Volodymyr Zelensky, um ator cômico judeu sem experiência

política, obteve 73% dos votos e assumiu a presidência da Ucrânia. E dois anos depois, o parlamento aprovou uma lei que declara “banidos do país o antissemitismo e suas manifestações”. A lei evita menção a Israel, mas a Ucrânia é cossignatária da definição de antissemitismo aceita pela IHRA – Aliança Internacional para a Lembrança do Holocausto, que define certas afirmações anti-Israel como antissemitas. Isso faz com que o pretexto para a guerra do presidente russo, Vladimir Putin, de “desnazificar” a Ucrânia soe especialmente falso, para não dizer completamente hipócrita. Em outubro de 2021, oito décadas após a trágico massacre de Babi Yar, os presidentes da Ucrânia, Israel e Alemanha inauguraram um memorial para as vítimas. Na ocasião, Volodymyr Zelensky descerrou o Mural das Lágrimas de Cristal. Numa área arborizada de 152 hectares, haverá esculturas e estruturas que materializarão a história do lugar. O complexo desse museu estava programado para ficar pronto em 2025. No fechamento desta edição, Kiev ainda estava sob acirrado bombardeio russo. Sinagogas se tornaram bunkers. Muitos judeus conseguiram deixar a cidade, outros estão refugiados. Há meses Israel está de prontidão para acolhê-los. Não se sabe o que restará da cidade de Kiev e tampouco de sua comunidade judaica. BIBLIOGRAFIA

A estrada coberta de neve no memorial de Babi Yar leva a uma Menorá - monumento dedicado aos 33 mil judeus assassinatos no local

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Brandon, Ray (Editor), The Shoah in Ukraine: History, Testimony, Memorialization, Indiana University Press. Levine, Naomi, Jews in Soviet Union (Vol. 1): A History From 1917 to the Present, NYU Press. abril 2022


shoá

A LEI, A CIÊNCIA E A MEDICINA NAZISTA Por Silvia R. N. Lerner

A adoção da ideologia nazista levou ao abandono de valores éticos, morais e científicos e os médicos e acadêmicos alemães que abraçaram essa ideologia se tornaram agentes e cúmplices de atrocidades imperdoáveis. Milhões de vítimas foram sacrificados em nome de uma “nova Ciência”.

d

urante séculos o Juramento de Hipócrates1 tem sido proferido por todos os profissionais a caminho do exercício da Medicina. É um compromisso solene de praticar esta ciência com a consciência de sempre atuar em benefício dos doentes e da integridade da vida, evitando cometer todo e qualquer mal voluntário. Porém, após Hitler ter assumido o poder na Alemanha, o juramento de Hipócrates e seus princípios foram substituídos pela ideologia nazista.

de língua alemã. Entre esses ganhadores havia um bom número de judeus. A Alemanha era considerada um grande centro de Ciência e Tecnologia. Quando Hitler subiu ao poder, em 1933, a Ciência, a Medicina e a Tecnologia se submeteram ao Terceiro Reich, sendo esse o único caminho para se obter o apoio do governo. E, de imediato, uma grande representação de cientistas e médicos alemães, juntamente com acadêmicos e intelectuais, declarou sua subserviência ao Estado Nazista, endossando a legislação racista. Uma sequência de decretos antissemitas culminou com a demissão de todos os médicos e cientistas judeus. Faltava apenas adaptar a Ciência à ideologia nazista e isso foi prontamente resolvido.

A CIÊNCIA NO INÍCIO DO SÉCULO 20 Entre 1919 e 1933, durante a República de Weimar, a lista de ganhadores de metade dos Prêmios Nobel concedidos às Ciências Naturais e à Medicina era composta por alemães ou, pelo menos, por pessoas

1

NAZIFICAÇÃO DOS MÉDICOS Em seu livro Mein Kampf (cuja venda é proibida em vários países), onde Hitler expôs suas teorias e objetivos futuros, ele chega a afirmar que “o Estado deve dirigir a educação do povo, não no sentido puramente intelectual, mas visando sobretudo à formação de corpos sadios... Um homem de modesta educação, mas fisicamente sadio, é mais útil à comunidade do que um indivíduo fraco,

Acredita-se que o juramento original tenha sido escrito em grego (século 5 a.E C.). por Hipócrates — pai da Medicina Ocidental. Na era contemporânea o Juramento foi reeditado em duas ocasiões: em Lausanne em 1771 e posteriormente sendo ratificada em 1948 pela Declaração de Genebra (e atualizada em 1968, 1983 e 2017). 66


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FOTO: NIELS ANDREAS

GRÁFICO QUE DESCREVE AS LEIS DE NUREMBERG, 1935. ESSAS LEIS DETERMINAVAM UMA BASE PSEUDOCIENTÍFICA PARA A IDENTIFICAÇÃO RACIAL. NO GRÁFICO, A DEFINIÇÃO DE QUEM ERA JUDEU, PELA LEGISLAÇÃO NAZISTA

mas altamente instruído... Nosso primeiro princípio de beleza é a saúde!”. Hitler continua, “Quem, física ou espiritualmente, não é sadio ou digno, não deve perpetuar seus defeitos através de seus filhos! Nisso consiste a maior tarefa educativa do Estado nacionalista... É uma prova de grande nobreza de sentimentos que o doente renuncie a ter filhos seus...”. O Regulamento dos Médicos da Alemanha Nazista, de 1935, já refletia essa doutrina e declarava ser “obrigação do médico cuidar e assegurar a saúde da nação, sua saúde hereditária e a pureza da raça”. Foram criados na Alemanha cursos de Medicina seguindo esses princípios, aumentando dessa forma o contingente de médicos dentro do Partido Nazista. Com isso, cerca de 50% dos médicos de toda a Alemanha pertenciam ao Partido, sendo “doutrinados” para defender a

ideia da extinção da raça “deformada” e a criação de uma raça “superior”; o corpo sadio se torna o belo e o médico não está mais a serviço do indivíduo.

Uma das sedes do programa Lebensborn, 1943

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Para isso se criou o programa “Lebensborn” (Fonte da Vida), patrocinado pelo Estado Nazista com o apoio das SS, com o objetivo de aumentar a taxa de natalidade das crianças arianas através da “seleção dos melhores reprodutores”. Esse programa foi responsável pelo sequestro de cerca de 50 mil a 200 mil crianças, consideradas arianas, das áreas ocupadas pela Alemanha, a quem foi atribuída nova identidade. Esse programa proporcionou a criação de centros de maternidade assistida e funcionou como uma verdadeira fábrica onde casais geravam filhos para serem educados e criados pelo Estado. Estima-se que houvesse oito casas onde reuniam mulheres grávidas, e que tenham nascido no mínimo umas 12 mil crianças durante a vigência do programa implantado por Heinrich Himmler em 12 de dezembro de 1935. abril 2022


shoá

Cartazes de propaganda NAZISTA, COMPARANDO o custo de vida de uma família saudável com um portador de “descendência hereditariamente doentia”

Experimentos Humanos Nazistas Os responsáveis por essas experiências eram cientistas premiados, médicos, físicos, doutores. Suas macabras experiências resultaram em morte, desfiguração ou incapacidade permanente. Os profissionais encarregados das mesmas encaravam suas cobaias como pessoas que possuíam “vidas sem valor”, como os judeus, ciganos, homossexuais, bem como os portadores de deficiências físicas e mentais e aqueles que sofriam de doenças incuráveis.

considerado “saudável” ou “desejável” não deviam ser reprodutores, devendo ser esterilizados pelos médicos e cientistas. Essa lei, que passou a vigorar a partir de 1º de janeiro de 1934, conferia ao Estado o poder de esterilizar portadores de doenças que se supunham hereditárias, como esquizofrenia, doença bipolar, epilepsia, cegueira, surdez. Dessa forma visavam compor uma sociedade “saudável” de acordo

ESTERILIZAÇÕES Em 14 de julho de 1933, com a promulgação da Lei para Prevenção da Descendência Hereditariamente Doentia, a Alemanha se tornou o primeiro e único Estado oficialmente eugenista. A eugenia visava a “melhoria” genética da população alemã tendo como objetivo perpetuar a “pureza” da raça “ariana”. A lei visava “limpar” a sociedade alemã de indivíduos “geneticamente doentes”, considerados ameaças biológicas à “saúde” da nação. Segundo a doutrina nazista, aqueles que não se encaixavam no perfil genético

com a definição nazista. Essa lei permitia a vasectomia de alcoólatras e portadores de outras doenças, além dos prisioneiros dos campos, e afirmava que o indivíduo a ser esterilizado não precisava estar ciente do que lhe estaria ocorrendo. Ao se referir a essa lei Hitler declarara: “Esta lei vai ajudar a eliminar a doença. É vital o auxílio aos fortes e sadios”. Após sua publicação, Hitler intitulou os médicos de “líderes da política racial em busca do sangue puro”. Com isso ele deu início ao registro de pessoas portadoras de deficiências físicas e mentais. Estima-se que entre 1933 e 1944, cerca 400 mil pessoas foram esterilizadas à força na Alemanha nazista. O cofundador da Liga de Médicos Nazistas, Kurt Klare, falava da “influência decompositora da judiaria”, que precisava de uma limpeza e “cauterização do tumor”.

Site of mass murder in Grafeneck The gas chamber was located in the middle two rooms of the building. This is also where the people deported to Grafeneck from Ulm were murdered. Source: Gedenkstätte Grafeneck

PROPAGANDA NAZISTA DENUNCIANDO OS DOENTES COMO UM ÔNUS INACEITÁVEL QUE RECAÍA SOBRE OS TRABALHADORES

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Principalmente entre março de 1941 e janeiro de 1945, em Auschwitz e Ravensbrück, o Dr. Carl Clauberg desenvolveu um método de esterilização que permitia atingir milhões de pessoas, no menor tempo e esforço possíveis, utilizandose raios-X, cirurgias e diversas Denouncing the sick as an unacceptable burden The propaganda poster is intended to depict the enormous burden borne by healthy, working members of the nation due to the “useless hereditarily diseased”. People are valued here only in terms of cost and benefit. Source: Volk und Rasse, Volume 8, 1936

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drogas, como injeções intravenosas com iodo e nitrato de prata, que causavam efeitos colaterais, como sangramento vaginal, dor abdominal grave e câncer do colo uterino. Porém, a radiação mediante sessões de raio-X era o tratamento favorito para a esterilização, pois destruía a capacidade de se produzir óvulos ou espermatozoides, e foi administrada sem o conhecimento dos presos. Numa carta do administrador das SS, Viktor Brack, a Himmler, em junho de 1942, ficava evidente a política da esterilização em massa: “Entre 10 milhões de judeus na Europa, calculo que haja, no mínimo, dois a três milhões de homens e mulheres suficientemente aptos para o trabalho. Defendo a opinião de que, para tal finalidade, devem ser tornados incapazes de gerar filhos”.I Carl Clauberg (1898-1957) foi capturado por tropas soviéticas em Ravensbruck, em 1945. Em 1948, foi levado a julgamento na União Soviética, recebendo pena de 23 anos. Sete anos mais tarde, devido ao acordo de troca de prisioneiros de guerra entre a União Soviética e a Alemanha Ocidental, Clauberg voltou à Alemanha, onde continuou suas “realizações científicas”. Depois que grupos de sobreviventes o descobriram, Clauberg foi preso e novamente julgado, em 1955. Porém, morreu de um ataque cardíaco em sua cela antes do seu julgamento estar concluído. 2

O termo “eutanásia” significa literalmente “boa morte”. Geralmente se refere a causar uma morte indolor para um paciente em estado terminal evitando o prolongamento de seu sofrimento. No Brasil, é prevista em lei como crime de homicídio. A propaganda nazista era conhecida por usar eufemismos para encobrir seus planos nefastos.

O CASTELO DE HARTHEIM, 1940. CENTRO DE MATANÇA DURANTE O PROGRAMA NAZISTA DE EUTANÁSIA, “AKTION T4”

Viktor Brack (1904 – 1948) foi julgado em Nuremberg, condenado em 1947 e enforcado em 1948.

EUTANÁSIA OU PROGRAMA T4 Em fins de 1938, Hitler incumbiu Philip Bouhler, chefe de sua chancelaria, e o Dr. Karl Brandt, seu médico pessoal, de iniciar o programa aplicando injeções letais em crianças portadoras de alguma deficiência física ou mental. Essa iniciativa foi o prelúdio do Programa de Eutanásia2 Nazista, que passou a incluir os adultos portadores de doenças mentais. Esse programa ganhou força de lei com um decreto do Führer em outubro de 1939.

1.

Ele mudou a data oficial da lei, antecipando-a para 1º de setembro, de modo a coincidir com o início da Guerra, e a mesma passou a ser conhecida como T4, devido à sua localização, no No 4 da Rua Tiergarten, em Berlim. De acordo com esse decreto, os pacientes eram avaliados e transportados para “centros de recuperação”, onde eram envenenados com gases tóxicos. Esse “programa” envolvia seis centros: Bernburg, Brandenburg, Grafeneck, Hadamar, Hartheim e Sonnenstein, todos na Alemanha. As famílias recebiam falsos atestados de óbito e, em face das dimensões assustadoras do programa, o segredo que o envolvia durou pouco. Porém, Hitler ordenou que a “eutanásia” não terminasse. Crianças e adultos continuaram a ser assassinados nesses “centros de recuperação”. O programa T4 funcionou oficialmente entre 1939 e 1941, exterminando mais de 275 mil pessoas.

coleção de CABEÇAS Depois que o programa T4 entrou em funcionamento, o Professor

2. 1. INSTRUMENTOS USADOS PARA IDENTIFICAÇÃO DAS “CARACTERÍsTICAS físicas da RAÇA” 2. Medição do nariz, um dos testes para determinação da raça ariana

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Julius Hallervorden (1882-1965) passou a ir pessoalmente ao Centro Brandenburg para supervisionar os assassinatos e remover os cérebros. Estes, após serem lavados, eram encaminhados ao Instituto Kaiser Guilherme de Pesquisas do Cérebro, onde Hallervorden trabalhava. Ele os armazenava como se fosse uma coleção e, em 1944, já contava com 697 cérebros. Esses cérebros permaneceram no renomado Instituto, que depois foi renomeado para Instituto Max Planck, e lá ficaram até 1990! August Hirt, médico da Universidade de Estrasburgo (hoje, França), não queria apenas os cérebros, mas as cabeças inteiras e, especificamente, que fossem de judeus. “Encomendou” a Auschwitz que fossem escolhidos 115 prisioneiros judeus, que foram prontamente executados e enviados para Estrasburgo. Era junho de 1943. Mas médicos como Hirt e Hallevorden ainda não tinham as mesmas possibilidades que Sigmund Rascher (1909-1945), médico responsável pelo campo de concentração de Dachau, que usava prisioneiros vivos em suas pesquisas. “Sou, sem dúvida, o único que conhece por completo a fisiologia humana, porque faço experiências em homens e não em ratos”, costumava dizer, com orgulho, aos colegas. Em 1945, August Hirt (1898-1945) cometeu suicídio.

OFICIAIS DAS SS NO CAMPO DE AUSCHWITZ, 1944. DA ESQ. À DIR., RICHARD BAER, COMANDANTE DO CAMPO, DR. JOSEF MENGELE E RUDOLF HOESS

O Dr. Fritz Klein, médico das SS, colega de Josef Mengele, chegou a Auschwitz em 15 de dezembro de 1943. Afirmava que “...o Juramento de Hipócrates dizia ser obrigação extirpar o apêndice infectado de um enfermo para salvá-lo. O judeu é o ‘apêndice infectado’ no corpo da Europa. Por isso, tenho que exterminá-lo”.

Bloco de experimentos médicos de Auschwitz, onde Mengele trabalhava

Josef Mengele, idealizador dos experimentos com gêmeos e pessoas com nanismo, estava interessado em entender as semelhanças e diferenças na genética dos mesmos, realizando experiências com mais de 1.500 pares de gêmeos, dos quais menos de 200 sobreviveram.

CRIANÇAS PRISIONEIRAS EM AUSCHWITZ. FOTOGRAFIA A PEDIDO DE JOSEF MENGELE

EXPERIÊNCIAS COM “OS DIFERENTES” Na rampa da ferrovia de Auschwitz, o Dr. Josef Mengele, na companhia de médicos e antropólogos, escolheu vários pares de gêmeos, cerca de cem famílias de pessoas com nanismo e outras pessoas com malformações congênitas para seu laboratório de experiências. 70


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Mengele frequentou a Universidade de Munique, estudando Filosofia e Medicina, com ênfase em Antropologia e Paleontologia. Adepto da ideologia nazista, recebeu seu doutorado com a tese de que a raça de uma pessoa poderia ser identificada pelo formato de sua mandíbula. A cúpula nazista viu seus estudos como fruto de grande talento e convidou Mengele a ser o médico e pesquisador principal em Auschwitz, em maio de 1943. Após selecionar os gêmeos por idade e sexo, Mengele os mantinha isolados durante a fase dos experimentos, que variavam de injeções de produtos químicos diferentes nos olhos dos gêmeos, para ver se haveria variação nas cores dos olhos, a costurar essas pessoas para tentar criar gêmeos siameses. Também costumava abrir o corpo dessas pessoas para descobrir “como os gêmeos eram produzidos”. Justificava sua perversidade dizendo que assim se poderia criar a raça ariana em maior quantidade, ou seja, aos pares. Parte do trabalho de Mengele com gêmeos pôde ser reconstruída pelo relatório de seu “assistente-escravo”, o judeu húngaro Dr. Miklos Nyisli (1901-1956). Segundo Perla Ovitz, de uma família de sete pessoas com nanismo, a quem Mengele chamava de “grupo Lilliput”, “...todos os dias os doutores nos tiravam sangue. Na noite anterior, tínhamos que fazer jejum. Era uma seringa grande, a quantidade que tiravam era enorme e, como estávamos fracos pela fome, com frequência desmaiávamos. Isso, contudo, não freava Mengele. Ele nos fazia deitar, enquanto nos recuperávamos, para continuar a extrair nosso sangue.... Eles nos furavam sem cuidado.... Quando voltávamos para nosso barracão, desabávamos no estrado de madeira

AS GÊMEAS EVA E MIRIAM MOZES, 10 ANOS, LEVADAS A AUSCHWITZ EM 1944. HAVIAM SIDO SELECIONADAS COMO COBAIA PARA OS EXPERIMENTOS DE MENGELE

que fazia as vezes de cama, e antes que tivéssemos tempo para nos recobrar, éramos convocados para um novo ciclo”.II Fritz Klein (1888-1945) foi condenado à morte no Julgamento dos Médicos, em Nuremberg, por seus trabalhos nos campos de Auschwitz e Bergen-Belsen. Foi enforcado em dezembro de 1945. Josef Mengele (1911-1979), no entanto, nunca foi punido por suas experiências. Após a guerra, passou

por vários países da América do Sul e faleceu no Brasil, no litoral paulista.

EXPERIMENTOS COM CONGELAMENTO Entre 1941 e agosto de 1942, Sigmund Rascher, médico da Luftwaffe e da Instituição Experimental Alemã da Aviação, conduziu experimentos para aprender a tratar a hipotermia/ congelamento, simulando as condições vividas e sofridas no inverno pelos exércitos no Leste. O estudo forçava prisioneiros a ficarem em um

Família OVITZ, composta por sete pessoas com nanismo. Todos foram vítimas dos experimentos de Mengele

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tanque de água gelada por até três horas. Outros estudos colocavam prisioneiros nus, em campo aberto, durante várias horas, suportando temperaturas abaixo de zero, para avaliar as diferentes formas de reaquecimento dos poucos que sobreviviam. Também eram colocados em câmaras especiais de baixa pressão para testar a resistência a grandes altitudes. Os prisioneiros eram utilizados para simular as condições a altitudes de até 20 km (66.000 pés). A maioria das vítimas morreu nos experimentos e as demais foram executadas. Eram conduzidos em em Dachau e Auschwitz e seus resultados notificados diretamente a Heinrich Himmler, que os divulgou na Conferência de Médicos, em 1942, intitulada “Problemas Médicos decorrentes do mar e do inverno”. Sigmund Rascher (1909-1945) foi executado no campo de concentração de Dachau, tendo suas experiências sido consideradas “desumanas e criminosas”.

EXPERIMENTOS COM MALÁRIA Entre fevereiro de 1942 e abril de 1945, foram realizados experimentos no Campo de Concentração de Dachau a fim de investigar meios de imunização no tratamento da malária. Cerca de 1.200 prisioneiros foram submetidos a infecção por malária sendo expostos a mosquitos. Outros eram picados e infectados pelos mosquitos contidos em uma pequena caixa que era atada às suas mãos. Após contraírem a doença, eram tratados com fortes drogas para se apreciar a reação. Mais de mil 1. pessoas foram utilizadas nesses experimentos e, desses, mais da metade morreu por doses excessivas dessas medicações.

Execução de Karl Gebhardt, enforcado em 1948, na prisão de Landsberg, na Baviera

O responsável por essa “pesquisa” foi o Dr. Klaus Schilling (1871-1946), professor emérito de Parasitologia da Faculdade de Medicina da Universidade de Berlim e diretor da Comissão de Malária da Liga das Nações. Klaus Schilling foi condenado à morte, por enforcamento, pelo Tribunal de Nuremberg. Foi enforcado em maio de 1946.

EXPERIMENTOS COM GÁS MOSTARDA Entre setembro de 1939 e abril de 1945, em Sachsenhausen e Natzweiler, foram realizados CAMPO DE CONCENTRAÇÃO E EXTERMÍNIO DE AUSCHWITZ-BIRKENAU

experimentos para investigar o tratamento mais eficaz das feridas causadas por gás mostarda, visando beneficiar as forças armadas germânicas. As pessoas eram deliberadamente expostas ao gás mostarda e a outros gases que lhes causavam graves queimaduras químicas. Objetivo: descobrir um antídoto para a exposição a esses gases. Os principais responsáveis por essa experiência foram o Professor Dr. Karl Brandt e o Professor August Hirt. Klaus Schilling foi condenado à morte pelo Tribunal de Nuremberg e enforcado em maio de 1946.

EXPERIMENTOS COM SULFONAMIDA Entre julho de 1942 e setembro de 1943, foram realizados experimentos para investigar a eficácia da sulfonamida, um agente antimicrobiano sintético. Realizados em Ravensbrück, onde mulheres eram submetidas a experiências de transplantes de ossos, órgãos e nervos. Com a sulfonamida, criavam-se ferimentos que eram deliberadamente contaminados e infectados com bactérias, provocando o tétano. Após o ataque nazista à Rússia, no inverno de 1941-42, ocorreram no front muitos casos de gangrena e os experimentos com sulfonamida se tornaram mais intensos para avaliar se esse medicamento poderia ser usado pelos soldados no campo de batalha. À frente dessas experiências estava o Dr. Karl Gebhardt (1897-1948), consultor cirúrgico da Waffen-SS e médico pessoal de Himmler. Adolf Hitler descreveu-o como o “homem com coração de ferro”. Gebhardt foi condenado à morte no Julgamento dos Médicos, em Nuremberg, e enforcado em junho de 1948.

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EXPERIMENTOS COM ÁGUA DO MAR Entre julho de 1944 e setembro de 1944, realizaram-se experimentos no Campo de Concentração de Dachau, privando um grupo de cerca de 90 ciganos, ou romanis, de comida e água, permitindolhes apenas ingerir água do mar. Eles ficaram tão desidratados que lambiam os pisos recém-lavados, numa tentativa de ao menos molhar a boca com água. A cargo dessa experiência estava o Dr. Wilhelm Beiglboeck (1905-1963), consultor médico da Luftwaffe, que foi julgado pelo Tribunal de Nuremberg e recebeu uma sentença de 15 anos de prisão. Alguns anos depois, sua pena foi revista e reduzida para 10 anos.

EXPERIMENTOS COM TIFOIDE O tifo tornou-se um problema grave no início de 1941 e quase não havia disponibilidade de vacinas. Entre dezembro de 1941 e fevereiro de 1945, em Buchenwald e Natzweiler, uma grande quantidade de detentos saudáveis foram deliberadamente infectados com a bactéria do tifo para se conhecer o desenvolvimento da doença. À frente dessas experiências estava o Dr. Erwin Ding-Schuler. Inicialmente foram testados 729 prisioneiros, sendo que 90% deles morreram. Outros detentos saudáveis foram usados para determinar a eficiência das vacinas e um número de diferentes produtos químicos. Foram também realizados experimentos com a febre amarela, varíola, paratifo A e B, cólera e difteria, conduzidos pelo Dr. Eugen Haagen, médico da Força Aérea alemã e professor da Universidade de Estrasburgo. O Professor

BARRACA DAS CRIANÇAS NO CAMPO DAS MULHERES, EM AUSCHWITZ

Kurt Gutzeit, gastroenterologista da Universidade de Breslau, fez experiências com hepatite em crianças judias de Auschwitz. O Dr. Erwin Ding-Schuler (1912- 1945) foi preso pelas tropas americanas em 25 de abril de 1945 e se suicidou em 11 de agosto de 1945. O Dr. Eugen Haagen (18981972) foi condenado em Lyon, em 15 de maio de 1954, a 20 anos de trabalhos forçados, mas foi anistiado a partir de 1955. O Dr. Kurt Gutzeit (1893-1957) nunca foi julgado.

EXPERIMENTOS COM VENENOS Entre dezembro de 1943 e outubro de 1944, foram conduzidos experimentos nos campos de concentração de Buchenwald e Sachsenhausen, sob a responsabilidade do Dr. Joachim Mrugowsky (1905-1948), para investigar o efeito de diferentes venenos. Essas experiências não tinham objetivo científico de cura, mas somente visavam controlar em 73

SELEÇÃO NA “RAMPA” DE BIRKENAU

quanto tempo ocorria a morte e observar a agonia e dor enquanto o veneno se infiltrava, administrado secretamente na alimentação dos prisioneiros. Também atiravam nos prisioneiros com balas envenenadas, para ver com que rapidez o veneno funcionaria. “Segundo o Dr. Mrugowsky, a morte ocorria em 121, 123 ou 129 minutos, no máximo, após a entrada do projétil”.III Mrugowsky foi condenado à morte em agosto de 1947 e executado em junho de 1948. abril 2022


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referindo-se às experiências. Ao que Mengele respondeu: – “Meu amigo, isto vai ser útil para a posteridade e vai continuar sempre, sempre, sempre”.V

Médicos julgados em Nuremberg por crimes de guerra e contra a humanidade, 1947

EXPERIMENTOS COM BOMBAS INCENDIÁRIAS Entre novembro de 1943 e janeiro de 1944, em Buchenwald, o Dr. Ding-Schuler testou o efeito de vários preparados farmacêuticos de fósforo. Estas queimaduras com fósforo extraído de bombas incendiárias foram infligidas a mil prisioneiros, muitos dos quais não sobreviveram.

CONSIDERAÇÕES FINAIS Em 9 de dezembro de 1946, iniciouse o Julgamento dos Médicos, em Nuremberg, quando foram julgados 23 médicos considerados criminosos de guerra. Foram ouvidas 54 testemunhas e 117 acusações. Em 19 de agosto de 1947 conheceuse o veredito, que condenou à morte sete dos acusados. Outros sete foram absolvidos e os demais foram condenados à prisão, com penas variadas. E nós perguntamos: Onde ficaram as centenas de médicos, professores, cientistas, físicos que apoiaram o Regime Nazista? Como ficaram suas descobertas?

referências

Müller-Hill, 193, p.106 II Cornwell, 2003, p. 316 III Koren, 2006, p.86 IV Spitz, 2005, p. 209 V Spitz, 2005, p. 115 I

Andrew Ivy, médico que representou a Associação Médica Americana, afirmou que os médicos que foram julgados eram de menor expressão. Todos os demais haviam fugido ou tinham sido recrutados por outros países. Durante o julgamento, a testemunha Zofia Macska, sobrevivente, perguntou: “Que tipo de recompensa o mundo pode oferecer àqueles que passaram pelas experiências? Que tipo de penalidade pode a Justiça oferecer àqueles que causaram estas experiências?”IV Fica a questão e a reflexão: Como foi possível que cientistas, médicos conceituados, acadêmicos tivessem endossado uma ideologia desprovida de humanidade, ética e moral? Pode a ciência aproveitar dessas experiências assassinas? Hoje em dia, como consequência dos abusos cometidos pelos nazistas, há Códigos de Ética Médica e normatizações que começaram a ser redigidos com base nos julgamentos médicos de Nuremberg e que norteiam a pesquisa científica que envolve seres humanos. Conforme cita Benno Müller-Hill, sob o título “Advertência”: – “Afinal, quando vai terminar este extermínio?” perguntou o Dr. Nyiszli ao Dr. Mengele, em Auschwitz, 74

Apesar dos crimes de guerra cometidos, ao término da 2ª Guerra Mundial cientistas e médicos nazistas receberam imunidade e emigraram para os Estados Unidos, União Soviética e outros países aliados. Esses países estavam interessados ​​em suas inovações científicas: agentes nervosos como o gás Sarin, tratamento contra malária, metanfetaminas, bem como suas descobertas sobre desidratação, hipotermia e hipóxia, entre outras. Todos eles fruto de “avanços” gerados a partir de experimentos humanos em campos de concentração. Sendo assim, constitui uma triste realidade o fato de que “avanços científicos” imoralmente conseguidos pelos nazistas infectem o corpo do conhecimento científico e biomédico mundo afora, enquanto as vítimas desses carrascos, aqueles que passaram pelas piores torturas para se chegar a esses “avanços científicos”, nunca tenham obtido justiça. BIBLIOGRAFIA

Koren, Yehuda e Negev, Eilat. Gigantes no Coração. Ed. Relume Dumará, Rio de Janeiro, 2006. Cornwell, John. Os Cientistas de Hitler, Ed. Imago, Rio de Janeiro, 2003. Muller-Hill, Benno. Ciência Assassina. Ed. Xenon, Rio de Janeiro, 1993. Spitz, Vivien. Doctors from Hell, Sentient Publications, United States of America, LLC, 2005. Bibliografia na íntegra disponível no site www.morasha.com.br Silvia Rosa Nossek Lerner é especializada em Estudos sobre o Holocausto, com graduação em Direito, História e Pedagogia. Tem pós-graduação em História do Século XX e Mestrado em Psicanálise, Sociedade e Cultura.


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Parabenizo o maravilhoso trabalho da revista Morashá ao longo dos anos trazendo Judaísmo para milhares de pessoas ao redor do Brasil e do mundo. Principalmente em épocas de pandemia, uso muito o site da revista e seu vasto arquivo, para estudar à distância - com meus alunos variados temas judaicos. Mendel Katri Belo Horizonte – MG

É sempre motivo de imensa alegria receber a Revista Morashá! E por falar em alegria, o artigo do Rabino Gabriel Aboutboul, intitulado Ser Feliz ou Estar Feliz?, está primoroso, elucidativo e repleto de sábios ensinamentos. Outrossim, tendo nora e netas holandesas, estou ainda mais orgulhosa do povo holandês, após ler com cuidado o artigo A História Secreta do Povoado Holandês que Salvou Judeus. Assim é que parabenizo a valorosa mensagem contida na Carta ao Leitor da Revista, em sua contínua e alcançada luta “para melhorar este nosso mundo”. Ann Helen Wainer Aventura - EUA

Foi um privilégio ler os comentários sobre o poema litúrgico El Nora Alilá. Lembro-me vivamente dessa reza cantada a plenos pulmões quando, ainda criança, ia buscar meu saudoso pai, ao final da cerimônia de Yom Kipur, na sinagoga do Centro Hebraico Riograndense (Porto Alegre). Alberto Zouvi Porto Alegre - RS

Recebemos a Revista Morashá desde o número 1! Apreciamos muitíssimo seu conteúdo e divulgação de nossas raízes e de nossa tradição. Fani e Israel Werthaim Jerusalém – Israel

Sou apaixonado pelos textos da Revista Morashá (e claro, pelo Judaísmo). Prof. Dr. Renan Antônio da Silva Doc. Permanente do PPGPP UECE - UNESP Ribeirão Preto – SP

Espero ansiosamente a Revista Morashá para me deleitar com os seus artigos escritos pelos seus colaboradores, e a Carta ao Leitor. Gostei muito do artigo Comentário sobre o Shemá Israel. FRANCISCO KIRCHENCHTEYN REHOVOT - ISRAEL

Esta revista é fabulosa. Fiquei muito sensibilizada com o artigo da vida do Rabi Abraham Twerski ZT’L. Leio diariamente Vivendo Cada Dia. E tento aplicar seus valiosos ensinamentos. Ruth Kauffmann Rio de Janeiro – RJ

A equipe da Biblioteca Pública Municipal Esmeraldo Siqueira, de Natal, Rio Grande do Norte, agradece a doação dos exemplares da Revista Morashá que muito engrandecem nosso acervo. Tânia Elizabeth da Fonseca Félix Biblioteca Mun. Esmeraldo Siqueira

Externo minha grande admiração pela grande feitura de todos os artigos encontrados nesta formidável revista, onde eu, com 84 anos de idade, aprendo muitos fatos, encontrados em vossas narrações. Envio um forte abraço a todos vocês componentes da Morashá, e a todos os que com muito capricho e perfeição obtêm detalhes importantes e interessantes incluídos na feitura dos artigos desta formidável revista. Prof. Maurício Ary Jalom Rio de Janeiro – RJ

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Apreciei muitíssimo o artigo Os Imbatíveis Comandos Judeus, assinado pelo Zevi Ghivelder. Muito oportuno quando, como judeus, somos relembrados de que devemos sempre estar prontos a nos defender, como fizeram esses bravos homens e mulheres. Salomon S. Mizrahi São Paulo – SP

Um veículo tão rico como a Morashá vai ajudar meus familiares judeus a preencher essa lacuna, aproximando-os de nossas raízes. Bianca Kauffman Por e-mail

Parabenizamos pela qualidade das informações que são de alto nível. Lar dos Velhos Israelitas Bené Herzl Rio de Janeiro - RJ

Muito obrigada pelo envio da Revista! Adoro recebê-la. Traz muito conhecimento e cultura. Dorothy Diament São Paulo – SP

Por muitos anos tenho recebido a Revista Morashá em minha residência, e a coleciono na minha biblioteca, pois sendo de uma qualidade espetacular e de um conteúdo muito instrutivo, é importante para frequentes pesquisas. Leon Benzaquen Rio de Janeiro

Sinto-me honrada em poder ser leitora dessa revista tão importante para nossa comunidade! Deleuse Azulay Porto Alegre – RS

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