ANO XXV - Setembro 2018 - Nº 101
caixa em prata para etrog, decorada com cenas da festa de sucot. londres, 1867
Coordenação Editorial: Vicky Safra Assistentes de Coordenação: Clairy Dayan Fortuna Djmal Assessora Internacional: Muriel Sutt Seligson Supervisão Religiosa: Rabino Y. David Weitman Rabino Efraim Laniado Rabino Avraham Cohen Jornalista Responsável: Desirée Nacson Suslick MTb 13603 Colaboradores especiais: Esther Chaya Levenstein Jaime Spitzcovsky Reuven Faingold Tev Djmal Zevi Ghivelder Revisão e tradução de texto: Lilia Wachsmann Consultor: Marcello Augusto Pinto Coordenação de Marketing: Hillel de Picciotto Produção Gráfica: Joel Rechtman JR Graphiks - Tel: 3873 0300 Projeto Gráfico: LEN - Tel: 3815 7393 Serviços Gráficos: C&D Editora e Gráfica - Tel: 3862 8417 Tiragem: 28.750 exemplares
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Carta ao leitor Um dos principais temas da festa de Rosh Hashaná, Ano Novo Judaico, é o Shofar, que se tornou o próprio símbolo da festividade e constitui seu principal mandamento. De acordo com Maimônides, nosso maior filósofo e um dos grandes legisladores da Torá, o Shofar é um despertador de D’us para todos nós, transmitindo a mensagem de que devemos sair da letargia e atentar para as possibilidades que D’us nos concede e assim contribuir ao mundo. Por meio dos toques do Shofar, D’us nos conclama a consertar este mundo fraturado. Rosh Hashaná é o início do ano judaico e também o aniversário da humanidade. Um dos principais temas da festa é o fato de que o ser humano é o centro da Criação. A Torá nos ensina que entre todas as obras de D’us, somente o homem foi criado à Sua imagem. Significa que ao homem foi dado um poder Divino: o livre arbítrio. Nem os animais e nem mesmo os anjos mais elevados receberam tal dádiva. Este dom foi o maior presente de D’us para o homem. O livre arbítrio faz com que o ser humano se assemelhe ao seu Criador, pois lhe dá a liberdade de ser dono de seu destino e a oportunidade de influenciar o curso do mundo. Contudo, isto representa ter poder, e ter poder significa ter grandes responsabilidades. Graças ao livre arbítrio que D’us nos confiou, podemos tanto ser construtores quanto destruidores de mundos. Permite-nos, também, elevar-nos espiritualmente aos mais altos níveis ou afundar-nos aos níveis mais baixos. Na Torá e ao longo da História, houve inúmeros homens e mulheres que superaram enormes obstáculos e se tornaram gigantes espirituais. Por outro lado, houve filhos de reis e profetas e justos que, a despeito de sua família, berço e educação, optaram por se afundar, moral e espiritualmente. Já que apenas o homem foi agraciado com o livre arbítrio, apenas ele é responsabilizado por suas decisões e ações. Rosh Hashaná, o aniversário da humanidade, é também o Dia do Julgamento: data em que D’us convoca o ser humano a prestar contas de quão bom uso ele fez do dom Divino do livre arbítrio.
Em Rosh Hashaná, diferentemente de Yom Kipur, não se mencionam erros, pecados ou transgressões. Antes de bater no peito e confessar uma longa lista de transgressões, o homem deve primeiro prestar contas a D’us acerca das decisões que tomou por meio do livre arbítrio que lhe foi concedido. E um dos motivos para o fato de Rosh Hashaná anteceder Yom Kipur é que as grandes decisões precisam ser tomadas antes de se lidar com os detalhes. Na tradição judaica, a data dos aniversários não é um dia de festejos, com bolo e velas, mas um dia de exame de consciência e de uma prestação espiritual de contas. Da mesma forma, Rosh Hashaná, o aniversário do homem, é o dia em que a humanidade deve fazer uma avaliação honesta de quão bem está cuidando do mundo que D’us nos confiou. Rosh Hashaná é tanto uma festa alegre como um dia que deve invocar sentimentos de reverência, pois é a data em que D’us julga o mundo, individual e coletivamente. Mas Maimônides nos ensina que D’us considera o conjunto da obra. Se a maioria de nossos atos foram benéficos e de boa fé, seremos julgados favoravelmente. Além disso, em Rosh Hashaná, o Todo Poderoso, que conhece os segredos de todos os corações, leva em conta nossas boas intenções e resoluções para o ano que se iniciou. Assim sendo, fazemos votos de que D’us nos conceda sabedoria, força e compaixão para que, em Rosh Hashaná, tomemos boas decisões e resoluções – para o nosso bem e para o bem de nossa comunidade, de nosso país e do mundo como um todo.
Shaná Tová Umetucá! Um ano bom e doce para todos!
ÍNDICE
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03 carta ao leitor
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nossas grandes festas Sucot: As Nuvens de Glória e as Quatro Espécies israel Segredos guardados da Guerra do Yom Kipur
06 nossas grandes festas
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Por que tocamos o Shofar em Rosh Hashaná
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Dez Ensinamentos para os Dez Dias de Teshuvá
por zevi ghivelder
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antissemitismo Judeus na “Guerra de Malvinas” - 1982 por reuven faingold
nossas LEIS Algumas leis relacionadas a Yom Kipur
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REVISTA MORASHÁ i101
06
27 42
64
comunidades
shoá Biblioteca Wiener, um dos maiores acervos da Shoá
Judeus na Argélia Francesa
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destaque O antissemitismo no Partido Trabalhista britânico por JAIME SPITZCOVSKy
68
HISTÓRIA Os heróis esquecidos da Operação Tocha
56
shoá O segredo de Jacob Sztejnhauer
74 5
cartas
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nossas grandes festas
Por que tocamos o Shofar em Rosh Hashaná O principal mandamento da festa de Rosh Hashaná, Ano Novo Judaico, é ouvir os toques do Shofar. Trata-se de um mandamento bíblico. Todas as demais leis e costumes de Rosh Hashaná, como as refeições festivas, as maçãs imersas no mel e, mesmo as orações, têm importância secundária. Em Rosh Hashaná, a prioridade para todos os judeus deve ser ouvir os toques do Shofar.
A
Torá não nos explica por que devemos ouvir o Shofar em Rosh Hashaná, primeiro dia do mês de Tishrei. Todos os mandamentos da Torá estão acima da razão humana. Têm origem Divina, são produto da vontade e sabedoria Divinas e, assim como D’us é infinito e insondável, também o são Suas Leis. Cumprimos os mandamentos da Torá, como ouvir o Shofar em Rosh Hashaná, pela simples razão de que D’us nos ordenou fazê-lo. Contudo, a Torá nos estimula a investigar o significado de seus mandamentos. Nossos Sábios revelaram algumas das razões pelas quais a Torá nos ordena ouvir os toques do Shofar em Rosh Hashaná.
É em Rosh Hashaná que D’us decide se os seres humanos estão cumprindo seu propósito neste mundo e se Ele ainda está interessado em ser seu Rei. Se D’us decidisse ter perdido o interesse em ser Melech HaOlam – Rei do Mundo –, o universo e tudo o que nele há reverteria ao nada – como tudo era, antes da Criação. A decisão Divina depende de nós. É o homem, e principalmente o Povo Judeu, quem deve tentar convencer a D’us que é válido que Ele continue a manter o mundo. Vale lembrar que nosso relacionamento com D’us é unilateral: somos totalmente dependentes d’Ele, ao passo que Ele não depende de ninguém nem de nada. Em Rosh Hashaná, o Povo Judeu se aproxima de D’us, pedindo-Lhe que continue sendo nosso Rei e Rei de todo o universo. E o destino do mundo depende de Sua concordância.
A Coroação do Rei Rosh Hashaná é o aniversário da humanidade. Celebra o sexto dia da Criação, Yom HaShishi – dia em que D’us criou Adão e Eva. Em nossas orações, nos referimos a Rosh Hashaná como o início da Criação porque o mundo apenas se tornou relevante no dia em que o homem nasceu. O ser humano é o ponto alto da Criação; e, para ele, D’us criou o mundo. Se o homem parasse de cumprir o propósito para o qual foi criado, o mundo deixaria de existir.
Quando um rei é coroado, soam as trombetas. Em Rosh Hashaná, tocamos o Shofar para anunciar o ininterrupto reino de D’us. Seus toques indicam que estamos coroando D’us como nosso Rei. Já deve estar claro por que razão ouvir o toque do Shofar é o principal mandamento de Rosh Hashaná. 6
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Se não proclamamos a coroação do Rei – se não conseguimos levar D’us a continuar em seu papel de Senhor do Universo –, o mundo não existiria além de Rosh Hashaná. Nessa festividade, desejamos uns aos outros um ano bom e doce, mas isso não teria nenhum valor se não houvesse um novo ano por vir. Em Rosh Hashaná, pedimos que D’us nos inscreva no Livro da Vida, mas nossa principal preocupação deveria ser se Ele concordará em continuar sendo nosso Rei. A ideia de um rei pode parecer infantil e anacrônica. Pensamos nos reis como seres gananciosos, loucos pelo poder, déspotas cruéis. No entanto, na tradição judaica, como ensina Maimônides, o rei é um servo do povo, cuja única preocupação é fazer esse povo viver em paz e harmonia. Suas leis e decretos apenas visam ao bem de seu povo,
não ao seu próprio (Maimônides, Leis dos Reis, 2:6). Tocamos o Shofar em Rosh Hashaná para coroar D’us como Rei: para dar as boas-vindas a Seu Reinado sobre nós e sobre o mundo todo.
SHOFAR E TALIT. ISRAEL MUSEUM, JERUSALéM
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Despertador Divino Maimônides, o maior dos filósofos judeus, ensina que o Shofar é o despertador de D’us, que nos deve despertar do “sono apático” em que vivemos grande parte de nossa vida. Ele explica que geralmente desperdiçamos nosso tempo com coisas que “nem nos ajudam nem nos salvam”. Desperdiçamos nosso tempo, apesar de esse ser o maior presente Divino para nós. O Rebe de Lubavitch disse: “Dizem que tempo é dinheiro. Eu digo que tempo é vida”. Tempo é, de fato, vida, e, diferentemente do dinheiro, não se ganha de volta o tempo perdido. São tantas as coisas extraordinárias que a pessoa pode fazer … mas o dia tem apenas 24 horas, a semana sete dias, e um número de anos que é muito curto, ainda que se viva mais de 100 anos... SETEMBRO 2018
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ensinam os cabalistas que os sons chorosos do Shofar simbolizam o pranto soluçante de um coração judeu que anseia por se conectar, crescer e se realizar (Tikunei Zohar – 20-21, 49a).
Ouvimos o toque do Shofar em Rosh Hashaná, o primeiro dia do ano judaico, que também é o primeiro dos Dez Dias de Teshuvá, para despertar-nos de nossa apatia. O Shofar é o recurso Divino que nos conclama a examinar nossos atos e repensar a maneira como passamos nosso tempo para que não nos arrependamos de como vivemos quando já for muito tarde. O Talmud nos ensina: “Quando o julgamento vem de baixo, não há necessidade de julgamento do Alto”. Isso significa que se despertarmos, não haverá necessidade de que D’us nos desperte. Todos precisamos fazer uma avaliação honesta para saber se estamos aproveitando a vida ao máximo. O toque do Shofar em Rosh Hashaná deve fazer-nos recordar as palavras atemporais do Pirkei Avot: “Rabi Tarfon disse, ‘O dia é curto, o trabalho grande, os trabalhadores preguiçosos, a
shofar e seu ESTOJO. MARCUS JONAS. CALIFÓRNIA, 1870
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recompensa grande e o Mestre de tudo nos apressa’” (Avot 2:20)
O Shofar no Monte Sinai O evento mais grandioso na história humana foi a Revelação Divina no Monte Sinai – única instância em que D’us Se revelou explicitamente a um número muito grande de pessoas reunidas. D’us se apresentou perante toda a geração de judeus que deixaram o Egito – 600.000 homens com suas famílias –, proclamou os Dez Mandamentos e iniciou o processo de transmissão da Torá a Moshé. Conta-nos a Torá que um toque muito alto de Shofar se fez ouvir no Monte Sinai quando D’us Se revelou ao Povo Judeu. Recitamos as seguintes palavras durante a oração de Mussaf, em Rosh Hashaná: “E no terceiro dia, ao raiar a manhã, houve
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trovões e relâmpagos, e uma pesada nuvem estava sobre o monte e um som de Shofar muito forte; e todo o povo que estava no acampamento estremeceu” (Êxodo 19:16). Em Rosh Hashaná, tocamos o Shofar para recordar o evento mais extraordinário na história humana, quando a existência Divina se fez conhecer, tornando-se fato histórico e não mais dependendo da fé pessoal. O toque do Shofar lembra-nos que devemos nos dedicar à Torá – a seu estudo e ao cumprimento de seus mandamentos. O poderoso som do Shofar serve, também, para nos defender perante o Trono Celestial, recordando o vínculo eterno forjado por D’us com Seu povo, no Monte Sinai.
Profecia O Shofar relembra a voz de nossos Profetas, que exortava nossos antepassados para que corrigissem seus caminhos, seguindo os mandamentos Divinos e tendo comportamento exemplar perante seus semelhantes. Há milênios, o Povo Judeu teve muitos profetas que transmitiam o que D’us esperava deles, lembrandolhes que deviam aperfeiçoar seu modo de vida. Hoje, já não temos profetas, mas o toque do Shofar deve sacudir nossa alma, forçando-nos a reexaminar nossa vida, corrigir nossos erros e melhorar, ainda mais, o que está certo.
O pranto soluçante de um coração judeu São dois, basicamente, os sons do Shofar. Tekiá é o som longo e Teruá uma série de sons curtos em staccato. Em Rosh Hashaná, ouvimos ambos, mas Teruá constitui a maioria dos
Rosh Hashaná, Elena Flerova
toques. O Talmud explica, no Tratado de Rosh Hashaná, que o toque de Teruá é o som do choro. Em Rosh Hashaná, muitos olham para o ano que terminou e percebem que não conseguiram viver a vida em todo o seu potencial. Desperdiçaram tempo e oportunidades. Isso os faz soluçar – é seu coração quem chora. Ensinam os cabalistas que os sons chorosos do Shofar simbolizam o pranto soluçante de um coração judeu que anseia por se conectar, crescer e se realizar (Tikunei Zohar – 20-21, 49a). O Rei David escreveu em seus Salmos: “…Os que ora semeiam em lágrimas, hão de chegar à 9
colheita com alegria” (Salmo 126). Devemos traduzir o choro do Shofar em ações significativas no ano que se inicia, para que nosso pranto se transforme em júbilo.
O sacrifício de Yitzhak O Shofar é feito do chifre de um carneiro. Este foi o animal que Avraham sacrificou em lugar de seu filho, Yitzhak, no famoso episódio da Torá conhecido como Akedat Yitzhak. O Sacrifício de Yitzhak é um dos temas principais de Rosh Hashaná. Lemos essa passagem da Torá no segundo dia da festa e tocamos o Shofar, chifre de um carneiro, para recordar D’us da devoção sem SETEMBRO 2018
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paralelo e do autossacrifício dos dois primeiros Patriarcas do Povo Judeu, Avraham e Yitzhak. O Sacrifício de Yitzhak é relevante para Rosh Hashaná por outra razão. Avraham, segundo nossos Sábios, era o paradigma da bondade e compaixão. De acordo com a Cabalá, ele personifica a Sefirá de Chessed – bondade, generosidade e amor. Pedir a um pai que sacrifique seu próprio filho, mesmo se o pedido vem do Todo Poderoso, é o mais difícil dos pedidos – para qualquer pai, mas especialmente para Avraham, personificação da
Em Rosh Hashaná, quando D’us está no Trono Celestial do Julgamento, tocamos o Shofar para recordar o Sacrifício de Yitzhak e, dessa forma, fazer chegar ao Juiz Supremo que: “Se Avraham, simples ser humano mortal, pôde reprimir sua emoção para cumprir a Tua Vontade, Tu, também, o Onipotente, podes reprimir Tuas emoções, caso sejam de ira”. Recitamos durante o Mussaf de Rosh Hashaná: “Lembra-te, em nosso benefício, ó D’us Eterno, o pacto, a bondade e a promessa que fizeste a Avraham, nosso Patriarca, no Monte Moriá; deixa aparecer diante de Ti a Akedá,
Que assim possa a Tua compaixão reprimir Tua ira contra nós, e em Tua infinita bondade, deixes tua severa ira contra Teu povo se desfazer…”.
A Infinitude Divina O som do Shofar tem poder indescritível. Em Rosh Hashaná, seus sons nos preenchem de reverência e humildade ao contemplar a infinitude do Rei que neste dia tem Sua coroação. Infinitude é um conceito que nós, seres humanos, não conseguimos entender, totalmente – pois somos criaturas finitas, em um mundo finito. Empregamos o conceito de infinito em Matemática, mas raramente paramos para pensar em suas implicações. A Matemática nos ensina que comparado ao infinito todos os tamanhos e medidas são iguais. Comparados ao infinito, não há diferença entre o grande e o pequeno. Isso significa que para um D’us Infinito, não existe o mais e o menos importante: tudo é igualmente importante – o que explica por que o Judaísmo nos ensina que cada detalhe da Criação, inclusive nossa vida pessoal, tem tanta relevância para o Altíssimo. Ser Infinito não significa apenas que D’us é Todo Poderoso. Significa, também, que Ele está em toda parte, sempre, e está ciente de tudo, mesmo de cada um de nossos pensamentos, palavras e atos.
O SHOFAR, MARC CHAGALL
bondade. Contudo, Avraham teve forças para reprimir seu sentimento de compaixão e amor a fim de cumprir a Vontade de D’us.
quando Avraham, nosso Patriarca, amarrou seu filho Yitzhak sobre o altar e reprimiu sua compaixão a fim de cumprir Tua Vontade, com um coração puro e conformado. 10
Uma das razões para o Shofar nos encher de reverência é o fato de nos fazer lembrar que D’us Infinito nos observa, a todo instante. Como nos diz o Pirkei Avot: “Mantém teu olhar sobre estas três coisas e não pecarás:
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o chamado do shofar, BEN SHAHN
Conhece o que está acima de ti: um Olho que tudo vê e um Ouvido que tudo escuta, e todas as tuas ações estão gravadas em um livro” (Avot 2:1).
Anunciando a chegadA do Mashiach O som do Shofar transmite muitas mensagens, uma das quais é a liberdade. Quando chegar o Mashiach, ensinam nossos Sábios, o Shofar anunciará sua chegada. A Era Messiânica será um tempo de paz e liberdade para todos os seres humanos. Quando o Mashiach estiver entre nós, a humanidade estará livre de qualquer forma de escravidão e opressão – livre de sofrimento, guerras, pobreza, doenças e, até mesmo, da morte.
os residentes da Terra: quando nas montanhas for erguido um estandarte (da reunião de Israel), todos o vereis; e quando soar o toque do Shofar, o ouvireis. E nesse dia será tocado um grande Shofar, que atrairá os que se perderam na terra da Assíria e os que foram dispersos pela terra do Egito, e virão adorar o Eterno no sagrado monte de Jerusalém” (Isaías 18-3; 27:13). Rosh Hashaná celebra o nascimento da humanidade. No mesmo dia
em que nascia o homem, ele transgrediu a Vontade Divina e D’us o baniu do Jardim do Éden. Seu pecado trouxe morte e toda forma de sofrimento ao mundo. O propósito da humanidade, especialmente do Povo Judeu, é retificar o pecado de Adão e Eva, para que o mundo volte a ser o Jardim do Éden. É esse o significado da Era Messiânica. Em Rosh Hashaná, tocamos o Shofar não apenas para compelir D’us a renovar o mundo por mais um ano, mas para lhe trazer redenção e salvação. BIBLIOGRAFIA
Lightstone, Mordechai - 11 Reasons Why We Blow the Shofar on Rosh Hashanah https://www.chabad.org/library/article_ cdo/aid/2311995/jewish/11-ReasonsWhy-We-Blow-the-Shofar-on-RoshHashanah.htm Simmons, Rabbi Shraga. Symbolism of the Shofar http://www.aish.com/h/hh/rh/shofar/ Shofar_Symbolism.html
Durante o Mussaf de Rosh Hashaná, recitamos as seguintes palavras do profeta Isaías: “Ó vós, todos os habitantes do mundo, todos 11
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Dez Ensinamentos para os Dez Dias de Teshuvá Os Dez Dias de Teshuvá, também conhecidos como os Yamim HaNorayim (“Dias Temíveis”), iniciam-se em Rosh Hashaná – o Ano Novo Judaico – e terminam no final de Yom Kipur. O Talmud ensina que esses dez dias constituem um período de julgamento Divino. Os Yamim HaNorayim são, pois, uma época de profunda introspecção que deve ser dedicada a orações, exame de consciência e tomada de boas resoluções. Neste artigo, preparamos dez ensinamentos que tocam alguns dos temas relevantes para os Dez Dias de Teshuvá.
Portanto, erra quem pensa em Rosh Hashaná como o dia 1o de janeiro judaico. Nosso ano novo não é um momento de se estourar champanha e festejar. Pelo contrário, os dois dias de Rosh Hashaná são os mais cruciais do ano. Rosh Hashaná é, por certo, um Yom Tov, e, como em todos os dias sagrados, devemos nos alegrar, vestir nossas melhores roupas e realizar refeições festivas. No entanto, devemos nos comportar em Rosh Hashaná com a seriedade que a data requer. Nesses dois dias, o destino do mundo está em jogo. Nosso comportamento nessa festividade – nossas preces, nossa atenção plena e nossas resoluções – influenciarão o curso do ano inteiro, para nós mesmos e para o mundo.
1o Dia: Rosh Hashaná: o destino do mundo está em nossas mãos Contrariamente ao que muitos pensam, Rosh Hashaná não é o aniversário da Criação do mundo, mas sim, de Adão e Eva. Em nossas preces, muitas vezes nos referimos a Rosh Hashaná como o dia que marca a gênese do universo, mas apenas por que o homem é seu ponto alto e propósito de sua criação. Rosh Hashaná – Ano Novo Judaico – é o aniversário da humanidade. É, também, Yom HaDin: Dia do Julgamento. É em Rosh Hashaná que D’us decide se renovará Seu contrato com o mundo para mais um ano: se manterá sua existência ou não. D’us decreta o destino de todo o universo – e de todos aqueles que nele habitam – em Rosh Hashaná.
2o Dia: uma oportunidade de se ter um julgamento Divino mais favorável
Quando nós, Povo Judeu, vamos à sinagoga em Rosh Hashaná, e oramos e ouvimos o toque do Shofar, estamos compelindo D’us a continuar sustentando o mundo durante mais um ano. A Humanidade pode não perceber isto, mas os Céus decidem seu destino em Rosh Hashaná. D’us confiou ao Povo Judeu a missão de sermos os agentes de toda a Criação. Nenhum de nós pode descuidar-se dessa responsabilidade. Nos ombros de cada um de nós, judeus, repousa o destino do mundo no ano por vir.
Rosh Hashaná é celebrado durante dois dias, mesmo em Israel. Há razões técnicas para a festa ser observada durante dois dias mesmo na Terra Santa. Estas são, também, profundas e místicas. A Cabalá ensina que o primeiro dia de Rosh Hashaná está associado com a Sefirá de Guevurá – o Divino atributo de força, justiça e severidade. Se D’us apenas julgasse o mundo no primeiro dia de Rosh Hashaná, Ele o faria de acordo com Seu 12
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adão e eva expulsos do paraíso, 1954-1967. óleo sobre tela. marc chagall
atributo de Guevurá – a justiça rígida. Se assim fosse, é possível que muitos de nós – e talvez o mundo todo – não fôssemos atendidos. D’us, portanto, deu-nos um segundo dia de Rosh Hashaná – um dia adicional de julgamento – para atenuar qualquer Decreto Celestial severo que porventura tenha sido emitido no primeiro dia da festa. O segundo dia de Rosh Hashaná é uma dádiva da misericórdia Divina, que todos nós tanto necessitamos, quer estejamos em Israel ou na Diáspora. Muitos judeus observam apenas o primeiro dia de Rosh Hashaná. Costumam ir à sinagoga apenas no primeiro dia porque creem já ser suficiente. Grave erro. O segundo dia da festa é uma oportunidade de se conseguir um Julgamento Divino mais favorável, para nós e para o mundo todo. É aconselhável
guardarmos o segundo dia de Rosh Hashaná com igual respeito como no primeiro. São muitos os judeus que passam os dois dias da festividade imersos em oração. Há um costume de se
recitar todo o Livro dos Salmos duas vezes durante esses dois dias. Como os dois dias de Rosh Hashaná influenciam todos os outros dias do ano, cada um de seus minutos é precioso. Assim sendo, reduzimos as horas de sono e evitamos conversas triviais. Rosh Hashaná são os dois dias no ano em que precisamos dar o melhor de nós, espiritualmente.
3o Dia: O Jejum de Guedália: o propósito de um jejum segundo o Judaísmo
toque dO shofar, na sinagoga. óleo sobre tela, 1860. edouard moyse
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O dia após Rosh Hashaná é o Jejum de Guedália. Trata-se de um meio-jejum: diferentemente de Yom Kipur e Tisha b’Av, inicia antes do sol nascer e termina após o pôr-do-sol. As razões para nossos Sábios terem instituído o Jejum de Guedália vão além do escopo deste setembro 2018
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artigo. Mas, têm relevância para nossa discussão algumas das razões por que o Judaísmo nos ordena jejuar em certas ocasiões, ao longo do ano. Muitos erroneamente creem que o jejum seja uma forma de autopunição. Na realidade, como ensina Maimônides, o dia de jejum é uma oportunidade de introspecção e arrependimento. O dia em que deixamos de comer e beber – quando temporariamente nos abstemos das necessidades da vida física – é o momento de refletirmos sobre nossa posição espiritual e nosso comportamento. O Judaísmo ensina que um dos objetivos do jejum – e, de fato, de qualquer forma de aflição – é a elevação espiritual. O processo de busca interior e crescimento espiritual é particularmente relevante durante os Dez Dias de Teshuvá. Um dos propósitos do Jejum de Guedália é nos forçar a intensificar o processo de autoanálise moral e espiritual, para que estejamos prontos para o grande jejum – Yom Kipur, o Dia da Expiação – que ocorre uma semana depois. O Talmud ensina que um dos méritos de se cumprir o jejum está em dar ao necessitado o dinheiro que usaríamos para comer e beber, se não estivéssemos jejuando. A Torá nos ordena transformar a privação física e o desconforto de um dia de jejum em atos de generosidade e bondade. Ademais, jejuar alguns dias ao ano nos mostra as dores da fome, para que possamos começar a compreender o terrível sofrimento de muitos, no mundo, que frequentemente sentem fome. O jejum deve inculcar em nós
uma maior compaixão e um sentido de responsabilidade pelos menos afortunados.
4o Dia: Shabat Shuvá e o verdadeiro significado da Teshuvá O Shabat que cai entre Rosh Hashaná e Yom Kipur é conhecido como Shabat Shuvá – o “Shabat do Retorno”. O nome vem da Haftará que é lida nesse Shabat, que se inicia com a palavra Shuvá: “Volta”! O Shabat Shuvá é também chamado de Shabat Teshuvá – o “Shabat do Arrependimento” –, um jogo de palavras que revela a verdadeira definição de Teshuvá. O fato de as palavras Shuvá (Retorno) e Teshuvá (Arrependimento) serem quase idênticas, do ponto de vista semântico, nos ensina que a Teshuvá genuína não significa culpa ou auto recriminação, como muito acreditam. Significa um retorno ao caminho correto: às nossas raízes, ao âmago de nossa alma e a D’us. De acordo com o Judaísmo, as transgressões, quer por comissão quer por omissão, são o resultado da opção por um caminho estranho à alma judaica. Teshuvá significa retornar ao caminho correto, que deve resultar em aperfeiçoamento, crescimento espiritual, equilíbrio e paz interior. É significativo que a palavra Shabat tenha a mesma raiz semântica que Shuvá e Teshuvá. Isso nos transmite um dos propósitos e o poder do 14
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Shabat. Nossos Sábios ensinam que quem guarda o Shabat tem os pecados cometidos contra D’us perdoados. Sendo assim, o cumprimento do Shabat é um meio de Shuvá – de retorno a D’us e ao Judaísmo – e, portanto, à Teshuvá. Muitos podem surpreender-se ao saber que é mais importante guardar o Shabat do que Yom Kipur. É inegável o fato de que o Dia da Expiação é o mais sagrado do ano – e, para muitos judeus, a única ocasião em que vão à sinagoga. No entanto, no que concerne a Lei Judaica, o Shabat é até mais importante do que Yom Kipur. E o Shabat Shuvá, que cai durante os Dez Dias de Teshuvá, é um Shabat particularmente especial, que os judeus devem se esforçar para guardar da melhor maneira que puderem.
5o Dia: Os Dez Dias de Teshuvá correspondem às Dez Sefirot Um dos ensinamentos fundamentais da Cabalá é a noção de que D’us criou e mantém o mundo por meio das Sefirot, que são canais de energia Divina. Tudo o que existe e acontece no universo são manifestações das Sefirot. Ensina a Cabalá que D’us criou o mundo com dez Sefirot. Três delas são intelectuais: Chochmá (Sabedoria), Biná (Compreensão) e Da’at (Conhecimento). As outras sete são emocionais: Chessed (Bondade, Generosidade e Expansividade), Guevurá (Poder, Contenção e Severidade), Tiferet (Compaixão, Harmonia e Beleza), Netzach (Vitória, Ambição e Eternidade), Hod (Humildade, Submissão e Glória), Yessod (Carisma) e Malchut (Liderança e Autoridade). A alma de todo ser humano é formada por essas dez Sefirot, e cada um de nossos pensamentos, palavras e atos são uma manifestação de uma ou mais dentre elas. Os Dez Dias de Teshuvá correspondem às Dez Sefirot porque os erros, pecados e transgressões, seja por comissão ou por omissão, são resultado de uso indevido que fazemos dessas dez faculdades da alma. Por exemplo, quando perseguimos algo que a Torá nos proíbe, estamos fazendo mau uso de Chessed; quando somos cruéis e mesquinhos, estamos usando inadequadamente Guevurá; quando somos 15
preguiçosos, estamos desperdiçando nossos poderes de Netzach. Um dos propósitos da Teshuvá é o reequilíbrio e realinhamento das Sefirot de nossa alma. A Torá e seus mandamentos nos ajudam a melhor utilizar as Dez Sefirot para que tenhamos uma vida mais produtiva, proativa e espiritualmente mais saudável. Os Dez Dias de Teshuvá são um período de reflexão sobre o quão bem estamos usando as Dez Sefirot de nossa alma, para que possamos refinar nossos pensamentos, palavras e atos.
6o Dia: O Shofar nos ensina que o progresso espiritual requer sacrifícios O mandamento mais importante da festa de Rosh Hashaná é ouvir os toques do Shofar. Uma das várias razões para esse mandamento é que o Shofar é o chifre de um carneiro – o animal que nosso Patriarca Avraham sacrificou em lugar de seu filho, Yitzhak, no famoso episódio da Torá conhecido como Akedat Yitzhak. Os sopros com o chifre de carneiro “relembram” a D’us da extraordinária devoção dos primeiros dois Patriarcas do Povo Judeu. Para atender o mandamento Divino, Avraham estava pronto a sacrificar seu filho e, de igual maneira, Yitzhak estava pronto a ser sacrificado por seu pai. A extraordinária devoção de Avraham e de Yitzhak a D’us é fonte de eterno mérito para seus descendentes – o Povo Judeu. Em Rosh Hashaná, quando os Céus nos julgam, invocamos o mérito da Akedat Yitzhak como fonte de bênção e proteção, seja por mencioná-la em nossas preces, seja por ouvir os toques do Shofar. setembro 2018
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O sacrifício tem sido tema comum ao longo de toda a História Judaica. Desde o nascimento de nosso povo, inúmeros judeus se sacrificaram para santificar o Nome de D’us e salvar o Judaísmo daqueles que queriam extirpá-lo. Muitos judeus personificaram Avraham e Yitzhak, especialmente durante a Inquisição e o Holocausto. Ainda hoje, no Estado de Israel, milhões de judeus estão dispostos a se sacrificar em defesa do Povo Judeu e da Pátria Judaica. No entanto, para muitos judeus que vivem confortavelmente na Diáspora, particularmente em países como o Brasil e os Estados Unidos, a ideia de sacrificar sua própria vida em prol do Judaísmo é, graças a D’us, um conceito estranho. Em nossa geração pós-Holocausto, pós-êxodo dos países árabes, pós-União Soviética, grande parte do Povo Judeu vive em relativa paz e segurança. Mesmo as ameaças enfrentadas pelos judeus em Israel e em certos países europeus são leves se comparadas com o que nosso povo enfrentou quando não tinha seu país nem seu exército. Nossa geração é privilegiada de viver em uma época em que a grande maioria dos judeus não precisam dar sua vida em prol do Judaísmo. Ainda assim, o som do Shofar transmite a mensagem de que D’us exige alguma forma de sacrifício de cada um de nós, judeus. Esse sacrifício é necessário para nosso crescimento e progresso espiritual. Para a maioria dos judeus de hoje, os sacrifícios que se exigem nada são em comparação com o que se exigiu das gerações que nos precederam. O sacrifício em prol do Judaísmo, hoje, não significa enfrentar legiões romanas,
fogueiras da Inquisição, campos de extermínio nazistas e nem gulags soviéticos. Para a maioria dos judeus de hoje, o sacrifício pelo Judaísmo talvez signifique acordar mais cedo do que de costume para ir à sinagoga e rezar em companhia de um Minyan ou dar um pouco mais de Tzedacá a cada mês; pode significar passar menos tempo assistindo à televisão e mais tempo estudando a Torá. Em nossa geração, a maioria de nós não é chamada para morrer pelo Judaísmo; mas, se quisermos avançar espiritualmente, temos que estar prontos a viver pelo Judaísmo – e isso requer certos sacrifícios.
7o Dia: Yom Kipur: um jejum festivo no “Shabat Shabaton”
Quando ouvimos os toques do Shofar em Rosh Hashaná, devemos recordar o Sacrifício de Yitzhak e o que esse episódio nos ensina. Devemos inculcar em nosso íntimo a ideia de que D’us espera que deixemos nossa zona de conforto e façamos sacrifícios diários.
Shabaton – o Shabat dos Shabatot – o Shabat Supremo.
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Para a grande maioria das pessoas, jejuar é uma experiência muito desagradável. É por isso que a Torá nos proíbe jejuar no Shabat – dia sagrado de deleite espiritual e físico. Não jejuamos nem mesmo em Tisha b’Av se a data cair em um Shabat: adiamos o jejum para o dia seguinte. Há apenas um cenário possível no qual a Torá não só permite como nos ordena jejuar no Shabat – e é quando Yom Kipur cai nesse dia sagrado. Isto porque a Torá chama Yom Kipur de Shabat
Jejuamos no Shabat se Yom Kipur cai nesse dia sagrado porque jejuar no Dia da Expiação é diferente de deixar de comer e beber em qualquer outro dia do ano. O jejum do Yom Kipur é único, especial, por
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ser um jejum alegre. Apesar de a Torá nos ordenar “afligir nossa alma” nesse dia, o prazer espiritual de Yom Kipur deve ofuscar o desconforto do jejum. Abster-se do alimento e bebida em Yom Kipur é uma oportunidade de elevação espiritual. Nesse dia, os judeus são comparados a anjos, que transcendem a fisicalidade deste nosso mundo. O Talmud ensina que Yom Kipur deve ser o dia mais feliz do ano por ser a ocasião mais propícia para que os judeus purifiquem sua alma de qualquer mancha espiritual que possa ter-se acumulado durante o ano. Não devemos considerar o jejum de Yom Kipur um ônus – o preço a pagar pelos nossos pecados –, mas, uma oportunidade de renovação e purificação espiritual. Yom Kipur é o dia mais propício do ano para se fazer Teshuvá – retornar ao caminho adequado e mudar nossa vida para melhor.
8o Dia: Yom Kipur e o poder do estudo da Torá Na época do Templo Sagrado de Jerusalém, o ponto culminante do serviço de Yom Kipur era a entrada do Sumo Sacerdote, o Cohen Gadol, no Kodesh HaKodashim – o Sagrado dos Sagrados –, câmara mais interna e sagrada do Beit HaMikdash. Apenas em Yom Kipur, dia mais sagrado do ano, o Cohen Gadol, o mais sagrado dos judeus, podia entrar no local mais sagrado da Terra, o Kodesh HaKodashim. O privilégio de entrar nesse recinto foi concedido a pouquíssimos judeus, em toda a nossa História. No entanto, sempre houve uma maneira de qualquer judeu poder
judeus na sinagoga em Yom Kipur, Óleo sobre tela,1878. Maurycy Gottlieb
replicar a experiência de entrar no Kodesh HaKodashim – e não apenas em Yom Kipur, mas a qualquer dia do ano. Ensina o Talmud que quando um judeu estuda a Torá, ele se assemelha ao Cohen Gadol ao entrar no Sagrado dos Sagrados em Yom Kipur. Estudar a Torá significa abraçar e ser abraçado pelo Divino. O grau de proximidade a D’us que se atinge ao estudar a Torá equivale a entrar no Kodesh HaKodashim – local tão sagrado que nem mesmo os anjos podiam entrar. 17
Esse ensinamento talmúdico é estupendo. Surpreende muitas pessoas porque a maioria de nós não aprecia o imenso poder do estudo da Torá. Não percebemos que seja a experiência extraordinariamente mística que é. Mas, a bem da justiça, devemos perguntar: Se o estudo da Torá é tão potente, por que a maioria de nós não sente seu fogo Divino ao estudá-la? Por que, quando estudamos a Parashá da semana ou tentamos entender uma passagem do Talmud, não nos sentimos como o Cohen Gadol entrando no Kodesh setembro 2018
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HaKodashim? Uma das respostas da Cabalá a essa pergunta é que nossa falta de sensibilidade face ao estudo da Torá é um escudo que nos permite estudá-la sem ficarmos estupefatos por seu fogo espiritual. Se sentíssemos a força do estudo da Torá, não íamos querer fazer outra coisa na vida. Ficaríamos viciados com esse estudo e impossibilitados de realizar as obrigações mundanas do cotidiano, necessárias para nossa existência física e a manutenção do mundo. fivela de cinto em prata, para uso em yom kipur. polônia, início séc. 20
A maioria de nós não sente o intenso fogo e poder do estudo da Torá, mas temos que ter bem claro em nossa mente que estudar a Palavra de D’us se assemelha a entrar no Kodesh HaKodashim em Yom Kipur. Isso é algo que todos nós, judeus, podemos fazer em todos os dias de nossa vida.
9o Dia: Yom Kipur e os cinco níveis da alma Ensina a Cabalá que são cinco os níveis da alma: Nefesh, Ruach, Neshamá, Chayá e Yechidá. Os três primeiros residem dentro de nosso corpo; os dois últimos o transcendem. Na maioria dos dias do ano, podemos acessar apenas os primeiros três – uma das razões para orarmos três vezes ao dia: Shacharit, Minchá e Arvit. Em certos dias, como o Shabat e Rosh Chodesh (o novo mês judaico), podemos acessar o quarto nível da alma, Chayá, razão pela qual temos uma oração adicional no dia – Mussaf. O único dia no ano em que temos livre acesso ao quinto nível da alma, Yechidá, é Yom Kipur. Por essa razão, Yom Kipur é o único dia no ano em que recitamos uma quinta prece – a Neilá –, a última oração do dia. Muitos judeus que não frequentam a sinagoga ao longo do ano – no Shabat, feriados judaicos e nem mesmo em Rosh Hashaná – vão à sinagoga na oração de Neilá. A razão para esse fenômeno é que o quinto nível, o mais elevado de sua alma, Yechidá, brilha durante a oração de Neilá, forçando-os a ir à sinagoga. O poder da Yechidá desperta muitos judeus que estão adormecidos espiritualmente, levando-os à sinagoga, apesar de não entenderem bem nem poderem explicar o que os leva a fazê-lo. A agitação do mais alto nível de nossa alma é uma poderosa experiência. A oração de Neilá tem feito muitos judeus iniciarem o processo de Teshuvá. No entanto, temos que saber que ir à sinagoga na hora da Neilá não compensa nossa ausência no restante do ano. Ir à sinagoga uma vez ao ano é melhor do que não ir nunca, claro.
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E a Neilá, em geral, é o último elo entre muitos judeus e seu cumprimento do Judaísmo. Mas, ir à sinagoga uma vez ao ano não é o mesmo que fazê-lo uma vez por semana – no Shabat –, ou melhor – diariamente. O brilho da nossa Yechidá não deve ser relegado a uma única experiência no ano, mas deve ser um trampolim para um relacionamento mais forte e profundo com D’us e Sua Torá.
10o Dia: O dia que se segue a Yom Kipur: verdadeira medida de Teshuvá Em Yom Kipur, as sinagogas ao redor do mundo estão lotadas. No dia mais sagrado do ano, a sinagoga pode receber centenas ou até milhares de pessoas, especialmente, como vimos acima, na hora da Neilá. Contudo, em muitas das sinagogas em que
é difícil se encontrar um lugar vazio nessa hora, dificilmente se consegue um Minyan – um grupo de dez homens judeus – nas orações matinais do dia seguinte a Yom Kipur. No dia mais sagrado do ano, muitas sinagogas ficam lotadas; no dia seguinte, praticamente vazias. A verdadeira medida de crescimento espiritual e de Teshuvá se toma não em Yom Kipur, mas no dia seguinte. É relativamente fácil ser religioso em Yom Kipur – o único dia no ano em que podemos acessar todos os cinco níveis da alma e o dia em que milhões de judeus, mundo afora, se unem em oração. A melodia do Kol Nidrei e as palavras das orações de Neilá têm o poder de derreter até o coração mais duro. Mas, é muito mais difícil sentir-se inspirado e religioso no dia seguinte: acordar cedo apesar do cansaço provocado pelo jejum para ir à sinagoga, colocar os Tefilin e fazer parte do Minyan. 19
Os Dez Dias de Teshuvá – os Yamim HaNorayim –, que se iniciam em Rosh Hashaná e terminam na conclusão de Yom Kipur – são o período mais intenso espiritualmente do calendário judaico. Contudo, o Judaísmo não se resume a uma questão de dez dias – requer estudo e prática diários. Se queremos dominar qualquer coisa na vida – uma arte, um esporte ou qualquer área do conhecimento –, precisamos estudar e praticar continuamente. O mesmo é válido para o Judaísmo. O caminho para a sabedoria e o domínio espiritual é um empenho contínuo e duradouro que requer um esforço tremendo e sacrifícios diários. A verdadeira medida da Teshuvá e dedicação ao Judaísmo não é evidenciada nos dez dias entre Rosh Hashaná e Yom Kipur, mas do dia após Yom Kipur até Rosh Hashaná do ano seguinte. setembro 2018
NOSSAS LEIS
Algumas leis relacionadas a Yom Kipur Neste ano, Yom Kipur se inicia na TERÇA-feira, 18 de setembro, e termina na noite de QUARTA-FEIRA, 19 de setembro .
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ostuma-se fazer caparot – abate de um galo, para um homem, e uma galinha, para uma mulher, no dia 9 de Tishrei de madrugada, dia 18 de setembro, por um shochet qualificado. Também é possível cumprir este costume com dinheiro, doando-o para Tzedacá.
Veshel Yom HaKipurim”. Se a mulher quiser locomover-se de automóvel ou usar o elevador antes do início de Yom Kipur, deverá, antes de acender as velas, fazer uma ressalva dizendo que não está recebendo Yom Kipur com o ato de acendimento das velas. É, porém, necessário antecipar o recebimento de Yom Kipur para antes do pôr-do-sol.
É proibido jejuar no dia que precede Yom Kipur, mesmo se este jejum for por Taanit Halom. É, ao contrário, uma mitzvá fazer uma refeição adicional. A refeição que antecede o jejum deve ter pão e pratos de fácil digestão e ser concluída 20 minutos antes do pôr-do-sol. Bebidas alcoólicas são proibidas.
É costume os pais abençoarem os filhos, pedindo que estes sejam selados no Livro da Vida e que, em seus corações, permaneça sempre o amor a D’us. Convém também ir à sinagoga antes do pôr-do-sol, para poder participar do Kol Nidrei, a “anulação dos votos”.
Restrições durante Yom Kipur
As mulheres devem acender as velas antes de ir à sinagoga, dizendo a bênção “Lehadlik Ner Shel Shabat
Yom Kipur é o Shabat dos Shabatot e, portanto, todo trabalho profano deve 20
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Seguem-se os horários do início e término do jejum de Yom Kipur, em algumas cidades brasileiras. Nas demais, sugerimos que sejam consultadas as sinagogas locais:
interior de uma sinagoga durante serviço religioso. séc. 18, óleo sobre tela
cessar e todas as leis do Shabat devem ser respeitadas. Assim como no Shabat, é proibido carregar qualquer objeto durante Yom Kipur. Além de observar as leis do Shabat, em Yom Kipur outras cinco restrições são acrescidas: “Não comer, não beber, não trabalhar, não se lavar e nem massagear a pele (perfumes, cremes etc.), não calçar couro, não ter relações conjugais”.
Recife: Início às 17:25 n Término às 18:15 Salvador: Início às 17:11 n Término às 18:02 Manaus: Início às 17:39 n Término às 18:28 Belém: Início às 17:53 n Término às 18:42 Rio de Janeiro: Início às 17:29 n Término às 18:22 São Paulo: Início às 17:43 n Término às 18:36 Belo Horizonte: Início às 17:32 n Término às 18:26 Brasília: Início às 17:49 n Término às 18:40 Curitiba: Início às 17:53 n Término às 18:46 Porto Alegre: Início às 18:00 n Término às 18:55
O jejum diz respeito tanto aos homens quanto às mulheres, mesmo grávidas ou amamentando. Só em caso de doença ou onde haja algum perigo à vida, o jejum pode ser suspenso (consulte seu rabino). As crianças de 9 a 10 anos podem jejuar algumas horas, e, a partir dos 11 anos, conforme avaliação dos pais, podem jejuar o dia todo. Mas o jejum torna-se obrigatório aos 12 anos, para meninas, e aos 13, para meninos. O uso de sapato, sandálias ou tênis de couro é proibido tanto para homens como para mulheres. As crianças também devem ser orientadas neste sentido. Ao término de Yom Kipur, a Havdalá deve ser feita sem bessamim, e a Bênção da Luz deve ser feita sobre uma vela que permaneceu acesa desde o dia anterior. 21
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Sucot: As Nuvens de Glória e as Quatro Espécies Sucot, festa de sete dias que se inicia no dia 15 do mês judaico de Tishrei, celebra a proteção que D’us ofereceu ao Povo Judeu durante sua jornada de 40 anos a caminho da Terra Prometida. Em nossas orações, nos referimos a Sucot como Zman Simchateinu – “Época de nosso júbilo” – porque o tema da festa é o amor Divino por nós e Sua preocupação com nosso bem-estar.
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nome dessa festividade, Sucot, literalmente significa “cabanas”. Alguns comentaristas explicam que a Torá nos ordena habitar nas Sucot durante a festividade para relembrar as tendas nas quais o Povo Judeu habitou durante os longos 40 anos em que viveram no deserto, e que lhes deu abrigo e proteção. Outros afirmam que as cabanas nas quais habitamos durante a festa de Sucot simbolizam as milagrosas Ananei HaKavod, as Nuvens de Glória, que conduziram, abrigaram e protegeram os Filhos de Israel durante aqueles anos. Quer o nome Sucot se refira às tendas, quer às Nuvens de Glória ou a ambas, trata-se de uma festa que recorda a proteção e o abrigo provido por D’us ao Povo Judeu no Deserto de Sinai.
ainda que as Nuvens da Glória tenham acompanhado o Povo Judeu na saída do Egito, elas desapareceram após o pecado do Bezerro de Ouro. Somente quando D’us concordou em novamente residir em meio ao Povo Judeu e se iniciou o trabalho da construção do Mishkan, o Tabernáculo, as Nuvens voltaram. A cronologia dos eventos é a seguinte: em Yom Kipur, dia 10 de Tishrei, D’us perdoou nosso povo pelo pecado do Bezerro de Ouro e concordou em voltar Sua Presença ao nosso meio, no deserto. Naquele mesmo dia, Moshé desceu do Monte Sinai trazendo as Segundas Tábuas e informou ao povo sobre a ordem de construir o Mishkan. No dia seguinte, dia 11 de Tishrei, Moshé ordenou ao Povo Judeu que trouxesse os materiais para a construção do Tabernáculo. Eles o fizeram durante os dois dias seguintes (v. Êxodo 36:3). No 14o dia de Tishrei, Moshé disse ao povo que não mais trouxesse material para o Mishkan. E finalmente, em 15 de Tishrei, começaram a construir o Tabernáculo. Foi então que as Nuvens de Glória retornaram. Como Sucot também celebra as Nuvens de Glória que abrigaram nosso povo no Deserto do Sinai, faz todo o sentido que essa festa se inicie em 15 de Tishrei – data em que esse abrigo Divino
O Gaon de Vilna pergunta: se o tema de Sucot é a celebração da proteção de D’us aos judeus após o Êxodo do Egito, por que razão essa festa cai no mês de Tishrei e não em Nissan – mês em que celebramos Pessach? E ele responde que se Sucot comemora as Nuvens de Glória – uma visão aceita por Rashi em seu comentário no Chumash –, a data de 15 de Tishrei para o início da festividade está correta. E explica: 22
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sucot em jerusalém. gravura colorida à mão, AUSBURG, alemanha, séc. 18
sobrenatural voltou a proteger o Povo Judeu, permanecendo com eles durante sua longa jornada pelo deserto.
As Quatro Espécies – Arbaat HaMinim
Lulav O Midrash compara o Lulav à coluna vertebral devido a seu comprimento e formato. Chama a atenção o fato de que a bênção
O Lulav lembra a coluna vertebral, tão importante para o corpo humano já que sem ela, cérebro e corpo não se poderiam comunicar. A coluna é o caminho para os impulsos do corpo ao cérebro e vice-versa. Junto com o cérebro, a coluna vertebral controla as funções do corpo humano, inclusive seu movimento e comportamento.
Os dois mandamentos principais da festa de Sucot são habitar na Sucá e segurar as Quatro Espécies. O Midrash encontra muitos simbolismos no mandamento das Quatro Espécies. Um deles é o seguinte: o Etrog (cidra amarela ou citrus medica) se parece ao coração; o Lulav (folha de palmeira), à coluna vertebral; o Hadass (murta), aos olhos; e o Aravá (ramo de salgueiro), aos lábios. Ao utilizar as Quatro Espécies em conjunto, estamos simbolizando a necessidade que temos de fazer bom uso de nossas faculdades a serviço de D’us.
que recitamos ao cumprir o mandamento das Quatro Espécies apenas mencione o Lulav. Não mencionamos nenhuma das outras três espécies nessa bênção. Isso indica que, de certa forma, o Lulav é a espécie destacada.
na sucá, ILYA SCHOR.
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O Lulav nos transmite várias lições. Uma delas é a importância de um relacionamento saudável entre o cérebro e o restante do corpo. Nossos Sábios ensinam que se o ser humano deseja ser justo e íntegro SETEMBRO 2018
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e viver uma vida com moralidade e propósito, sua mente deve comandar seu corpo. A racionalidade deve prevalecer sobre nossos instintos e impulsos. A sabedoria deve ditar nosso comportamento.
Hadass
A Horá do chá na Sucá. Tela em tinta, grafite e guache,1906. SOLOMON J. SOLOMON
As folhas do Hadass, a murta, se parecem com o olho humano. Essa espécie nos ensina o quão importante é ver os outros com um olhar bondoso e generoso. As obras sagradas do Judaísmo usam o olho como metáfora para descrever as percepções humanas, os sentimentos e desejos em relação aos demais. Por exemplo, o Ayin HaRá, o “olho gordo”, é um famoso conceito que denota inveja e ciúme, e que, como ensina o Talmud, é um fenômeno real – veículo de poder espiritual que pode afetar a vida de outras pessoas. Por outro lado, ter um “olhar bondoso” significa desejar o bem dos demais e julgá-los favoravelmente.
examinando o LULAV. óleo sobre tela. LEOPOLD PILICHOWSKI
Muitas pessoas de boa índole podem ser dominadas por sentimentos de ciúmes, inveja e ressentimento ou mágoa. O Ayin HaRá, infelizmente, é um fenômeno comum entre os seres humanos. Além do mais, temos a tendência de julgar erroneamente aqueles de quem não gostamos. É comum não darmos aos outros o benefício da dúvida. Quem não combate a inveja e o ciúme e é rápido em julgar os demais deve ter em mente que a energia espiritual negativa se volta contra quem a carrega. O Talmud ensina que os Céus julgam as pessoas da mesma forma como esta pessoa julga os demais. Quem julga os outros favoravelmente é julgado também favoravelmente pelos Céus; e o oposto também é verdadeiro. De forma semelhante, o Baal Shem Tov, mestre da Cabalá e fundador do Movimento Chassídico, ensinava que “um suspiro emitido em virtude da dor de um outro rompe todas as barreiras impenetráveis dos acusadores celestiais. E quando a pessoa se alegra com o júbilo de seu amigo e o abençoa, ela é tão querida a D’us e por Ele aceita como as preces de Rabi Yishmael, o Sumo Sacerdote, no Kodesh HaKodashim”. Em outras palavras: o Altíssimo está mais aberto às preces daqueles que sentem a dor de outras pessoas e se alegram com a felicidade e o sucesso delas.
Aravá As folhas alongadas do Aravá se parecem com os lábios. Os ramos do salgueiro nos transmitem um dos mais sábios ensinamentos do mais sábio dentre os homens, o Rei Salomão, que escreveu em seus Provérbios: “A vida e a morte estão sob o poder da língua...” (Provérbios 18:21). 24
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Nossos Sábios ensinam que uma das razões para a Torá usar a metáfora da fala para descrever a Criação Divina do Universo é mostrar que as palavras podem construir mundos. No entanto, podem também os destruir. Uma ou outra palavra errada, mesmo se dita, por vezes, de forma descuidada, pode destruir um casamento, uma antiga amizade, o bom nome de uma pessoa e a reputação e solidez de uma empresa. Palavras maldosas já destruíram muitas esperanças, sonhos e vidas. Palavras maldosas já resultaram em guerras e genocídios.
e realizar grandes feitos; pode restaurar relacionamentos rompidos e construir novos. Não surpreende o fato de que alguns dos principais mandamentos do Judaísmo sejam cumpridos com palavras: a leitura e o estudo da Torá e a recitação de orações e bênçãos, para citar apenas alguns.
Ensina o Talmud que não há pecado maior do que o de Lashon HaRá – “a má língua”. Aos olhos da Torá, assassinar um caráter ou assassinar uma pessoa são atos que guardam incrível semelhança. Por outro lado, palavras que expressam sabedoria e bondade têm o poder de erguer vidas e mundos – criando novas realidades. Uma palavra animadora pode curar um coração ferido e restaurar uma alma desprovida de esperança; pode instilar fé e coragem; pode levar a pessoa a seguir seus sonhos
hoshaná rabá, 7º dia de sucot, na sinagoga de amsterdã. os fiéis dão sete voltas com as Quatro Espécies na mão. Bernard Picart, 1722
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O Aravá nos ensina que devemos escolher com muito cuidado nossas palavras. A pena é de fato muito mais potente do que a espada – assim como o são as palavras que saem de nossos lábios.
pessoas possuem forte coluna vertebral (Lulav) – são sábias e de conduta reta; um olhar bondoso (Hadass) – não guardam rancor, inveja ou ciúme dos demais; e bons lábios (Aravá) – não falam mal dos outros. Mas, apesar disso, não têm coração. Não fazem mal a ninguém, mas tampouco fazem o bem. Não guardam ódio ou falam mal dos outros, mas não se preocupam com ninguém. Falta-lhes amor, calor humano e compaixão.
Etrog A Torá se refere ao Etrog, a cidra amarela, como um belo fruto. Entre as Quatro Espécies, é o que mais atrai por sua aparência. Por seu formato, esse fruto simboliza o coração. O Etrog nos ensina que a beleza verdadeira está no coração. Muitas
copo de kidush, prata. ausburg, alemanha, c. 1730
O Etrog é o fruto da beleza porque não há nada mais atrativo no ser humano do que um bom coração. Bem verdade, o amor não cura todos os males e as boas intenções não substituem a sabedoria. Mas se em nosso mundo houvesse mais corações bondosos, viveríamos em um lugar bem mais bonito. No Pirkei Avot, cujas palavras deveriam ser gravadas no coração e na mente de todo judeu, ecoa o seguinte ensinamento atemporal: “(Rabi Yochanan) disse a (seus alunos): Procurem saber qual o melhor traço de caráter que a pessoa deve possuir. Respondeu Rabi Eliezer: Um olhar bondoso. Disse Rabi Joshua: Ser um bom amigo. Disse Rabi Yossi: Ser um bom vizinho. Disse Rabi Shimon: Ser alguém que se preocupa com o resultado de suas ações. Disse Rabi Elazar: Ter um bom coração. (Rabi Yochanan) lhes respondeu: Prefiro as palavras de Elazar, filho de Arach, às vossas, pois suas palavras incluem todas as vossas” (Avot 2:10).
BIBLIOGRAFIA
Interlinear Chumash – The Schottenstein Edition – Vayikra – Artscroll Mesorah 26
ISRAEL
SEGREDOS GUARDADOS DA GUERRA DO YOM KIPUR POR ZEVI GHIVELDER
Um campo de batalha tem pouco a ver com as cenas que nos acostumamos a ver no cinema. A rigor, por causa da distância que separa os combatentes, quem está do lado de cá não sabe o que está acontecendo do lado de lá. A guerra só se faz presente quando se ouve o estrondo de um tiro de canhão e, em seguida, há o sopro de um vento quente, resultante do disparo. Eu sei que é assim porque estive no canal de Suez e no campo de batalha das colinas do Golã, 45 anos atrás, durante a Guerra do Yom Kipur.
h
á cinco anos, 40 anos depois da Guerra do Yom Kipur, o governo de Israel tornou público um de seus mais importantes documentos confidenciais. Trata-se do depoimento prestado por Golda Meir, à época chefe do governo, perante a Comissão Agranat, a comissão presidida por Shimon Agranat, então juiz da Suprema Corte de Israel. Competia a essa comissão apurar as responsabilidades individuais e coletivas referentes aos antecedentes e desdobramentos daquela guerra que custou as vidas de 2.500 militares da ativa e da reserva das Forças Armadas de Israel.
Na manhã do dia 2 outubro, portanto quatro dias antes do início do conflito, Golda Meir teve que fazer uma viagem a Estrasburgo, França, para participar de um encontro com o Conselho da União Europeia. No aeroporto, antes de embarcar, foi informada de que a Síria tinha reunido grande quantidade de tropas junto à sua fronteira com o Golã e o Egito tinha feito o mesmo na margem do canal de Suez. Entretanto, ao mesmo tempo, um relatório do serviço de inteligência dizia que a movimentação síria se devia ao temor de um ataque por parte de Israel e que o Egito não poderia empreender qualquer agressão antes de duas semanas.
Golda declarou que tinha uma intuição no sentido de que, em outubro de 1973, uma guerra com o Egito era iminente, mas se absteve de ordenar um ataque preventivo. No seu entender, conforme testemunhou, se Israel disparasse o primeiro tiro, decerto seria reprovado pelos Estados Unidos que não se envolveriam para ajudar Israel caso uma guerra se concretizasse. Mas, de fato, no posterior decorrer do conflito, Israel recebeu dos Estados Unidos 6 mil toneladas de armamentos e equipamentos, além de 40 aviões do tipo Phantom e 35 caças Skyhawk de combate.
Golda regressou a Israel pouco depois da meia-noite e convocou uma reunião para a manhã seguinte com Dayan, Ministro da Defesa, os generais Elazar e Shalev, do Estado-Maior, e Benny Peled, comandante da Força Aérea. Todos concordaram que não havia um perigo imediato de guerra. Golda, então, convocou Eli Zaira, chefe do serviço de inteligência militar, para uma reunião na manhã seguinte à da celebração do Yom Kipur. Nesse meio tempo, enfatizou, era preciso concluir a lista de pedidos a ser encaminhada ao presidente Nixon e acentuar que a remessa era urgente. 27
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Porém, antes do dia acertado, Zaira foi ao encontro de Golda e lhe disse ter recebido uma notícia preocupante: as famílias dos consultores e assessores soviéticos estavam partindo às pressas do Cairo e de Damasco.
Na véspera da eclosão do conflito, houve uma reunião do gabinete israelense. Golda informou que estava pensando em convocar os reservistas, que constituíam 80 por cento das forças armadas, mas nenhum ministro concordou.
Golda Meir e David Elazar
Zaira acrescentou estar surpreso em face do comportamento do chefe do Mossad, Zvi Zamir, que havia deixado o país horas antes, ainda de madrugada. Golda ignorava que Zamir estava fora de Israel numa hora tão crucial, mas imaginou que decerto ele tinha ido ao encontro de alguma fonte muito importante, o que de fato foi o que aconteceu, conforme se ficou sabendo anos mais tarde.
O general Bar Lev lhe disse: “Você está aqui cercada pelos militares mais experientes do país. Nenhum deles julga conveniente chamar a reserva. Só você, que é civil, está
O juiz Agranat perguntou a Golda se era comum o chefe do Mossad deixar o país sem dar conta de seus passos à Chefe do Governo. Ela respondeu que era algo realmente inusitado, porém justificado pela premência das circunstâncias. 28
insistindo nisso”. Às quatro horas da manhã de sábado, Golda ordenou a convocação dos reservistas, por causa do relatório assinado por Zamir, que lhe havia sido entregue pelo chefe de gabinete do Mossad. Às duas horas da tarde os sírios e egípcios partiram para o ataque contra Israel. Sadat e Assad tinham objetivos bélicos diferentes. Para Sadat, a guerra era uma opção desesperada, mas ele não ele via outra saída se o Egito quisesse recuperar o orgulho nacional ferido após a derrota sofrida na Guerra dos Seis Dias. Sadat não pretendia recapturar militarmente todo o Sinai, mas queria desferir um golpe certeiro que servisse para solidificar ainda mais sua posição diplomática no plano externo e sua política no âmbito interno do país. Ele se arriscava numa jogada complexa, destinada a algum dia, num futuro próximo, sentar-se à mesa de negociações com Israel numa posição de maior igualdade. Assad, por sua vez, via a guerra apenas como um veículo para reconquistar, pela força, o território do Golã perdido em 1967 e, ao mesmo tempo, ratificar sua recusa em reconhecer o direito de Israel à existência. O primeiro passo que Síria e Egito deram na direção de um confronto bélico foi a reestruturação de seus exércitos e modernização de seus armamentos. Em abril de 1972, a CIA chegou a alertar Israel sobre o aumento e a modernização do poderio militar daqueles dois países, mas os israelenses não deram a devida importância à informação. Não só isso, como no dia 25 de setembro o rei Hussein, da Jordânia, fez uma viagem secreta a Tel Aviv, onde, numa casa preparada pelo Mossad, se encontrou durante uma hora com Golda Meir. O monarca
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TANQUES ISRAELENSES NO GOLÃ DURANTE A GUERRA
advertiu a primeira-ministra que tudo indicava que o Egito e a Síria fariam uma incursão militar contra Israel. A conversa foi ouvida numa sala contígua pelo coronel Keniezer, encarregado pelos assuntos jordanianos no serviço militar de inteligência. Este comunicou o que ouvira a seu superior, o general Shalev. Porém, por algum motivo insondável, o assunto ali ficou parado. Nos meses anteriores à guerra, a União Soviética tinha vendido à Síria e ao Egito grande quantidade de modernos armamentos, incluindo equipamentos para visão noturna, uma nova geração de veículos de infantaria e os mísseis antitanques Sagger, que podiam ser manejados por um único artilheiro. Israel soube que a Síria e o Egito tinham recebido aqueles mísseis, mas as forças armadas não demonstraram grande interesse nos Sagger.
Para os dois países inimigos, a Força Aérea israelense representava o maior perigo, já que nas guerras anteriores seus extraordinários pilotos haviam imposto grandes perdas aos adversários. Para tentar resolver o problema, egípcios e sírios instalaram um amplo sistema de defesa antiaérea, equipado com mísseis superfície-ar de fabricação soviética. No Golã, os consultores e técnicos soviéticos assumiram a tarefa de integrar um conjunto desses mísseis apontados para diferentes altitudes, radares e sistemas óticos de controle de disparos sadat, à esq., e mubarak diante dos planos de guerra
Entretanto, assim que irrompeu a guerra, ficou claro que eles eram uma ameaça à superioridade dos tanques israelenses no campo de batalha. 29
Apesar de todos os cuidadosos preparativos militares, o fator surpresa seria o elemento-chave da estratégia. Se conseguissem surpreender Israel com um ataque simultâneo em duas frentes – no Sinai e no Golã – sírios e egípcios SETEMBRO 2018
ISRAEL
Líderes do Congresso dos Estados Unidos em reunião para debater a Guerra de Yom Kipur, Washington, 10 de outubro de 1973
ganhariam preciosas horas de vantagem para avançar e consolidar suas posições antes que Israel pudesse reagir de forma decisiva. Foi devido às circunstâncias das indecisões que o governo israelense achou por bem instituir a Comissão Agranat, composta por cinco membros: dois juízes da Suprema Corte, Agranat e Landau, o controlador das finanças do Estado, Itzhak Nebenzahl, e dois ex-chefes do Estado-Maior das Forças Armadas, Ygal Yadin e Chaim Laskov. Depois de examinar centenas de documentos e ouvir dezenas de testemunhos, eles recomendaram o afastamento de cinco militares de alta patente, incluindo o general-chefe do Estado-Maior, David Elazar, responsabilizados por não terem tomado providências efetivas nos dias que antecederam a Guerra do Yom Kipur. Moshe Dayan e Golda Meir foram inocentados. A Comissão apresentou suas conclusões em fevereiro de 1974, seis meses depois do conflito, acentuando que Israel podia considerar-se
vitorioso porque tinha obtido ganhos territoriais e suas forças armadas tinham-se posicionado a uma estratégica distância do Cairo e de Damasco. Mesmo assim, duas semanas depois da divulgação do chamado Relatório Agranat, Golda Meir renunciou a seu posto, dizendo não suportar a mágoa e a revolta da opinião pública pelos mortos na guerra. Assim como Golda, o general David “Dado” Elazar também renunciou à sua posição no exército. Nascido em Sarajevo, de origem sefaradi, Dado chegou à antiga Palestina em 1940. Lutou na Guerra da Independência e teve importante atuação na Guerra dos Seis Dias, quando assegurou a posse das colinas do Golã. Cumpriu uma brilhante carreira militar e, com a patente de general, foi nomeado chefe do Estado-Maior em 1972. Aqui abro um parênteses. Conheci David Elazar no Rio de Janeiro em novembro de 1975. Acho que tinha ganhado uma espécie de prêmio de consolação por parte do governo de Israel, que lhe havia permitido dar uma volta ao mundo. Veio ao Rio 30
ministro das relações exteriorES do egito, Ismail Fahmi (à esq.), presidente Nixon (centro) e Henry Kissinger, secretário de estado, 31 de outubro de 1973
forças egípcias cruzam o canal de suez, 7 de outubro de 1973
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sozinho, sem nenhuma escolta, um turista anônimo. Encontramo-nos num fim de tarde na minha sala na Manchete, onde conversamos por mais de duas horas. Eu o conhecia por fotografias e por tê-lo visto de longe, duas ou três vezes, em Israel. Em 1973, ano da Guerra do Yom Kipur, Dado exibia um vigor físico fantástico, completado por seus cabelos negros e porte atlético. Não foi esta a pessoa que encontrei no Rio. Estava quase grisalho e a voz parecia ter sumido. Cada vez que fiz menção a algum aspecto da Guerra do Yom Kipur, respondia com monossílabos, ou mudava de assunto ou recorria a evasivas. Era um homem irremediavelmente triste. Eu tinha curiosidade de saber sua opinião sobre o polêmico Arik Sharon, que era meu amigo e que tinha virado o curso da guerra a favor de Israel, quando atravessou o canal de Suez na direção do Cairo. Respondeu sobre Arik com poucas restrições e poucos elogios. Depois da divulgação das conclusões da Comissão Agranat, a opinião pública de Israel se dividiu com relação a Dado. Houve quem lhe atribuísse culpa por ter hesitado no início do conflito e também quem o justificasse, argumentando que ele nada poderia ter feito contra as decisões do gabinete ministerial. David Elazar morreu em Tel Aviv no dia 25 de abril de 1976, com apenas 51 anos de idade. Seus amigos dizem que a causa da morte não foi um ataque do coração, mas deveu-se a seu coração partido por grande sofrimento. Dentre os segredos referentes à Guerra do Yom Kipur, somente há pouco tempo foi desvendado o mistério da viagem do chefe do Mossad, Zvi Zamir, para o exterior, na quinta-feira, 4 de outubro, 48
DAVID ELAZAR, chefe do estado-maior, gal. YITZHAK HOFI e cel. ADAM YEKUTIEL.
horas antes do começo da guerra. Ele ia ao encontro do egípcio Ashraf Marwan, que fora genro do ditador Gamal Abdel Nasser e era do círculo próximo a Anwar Sadat. Por incrível que pareça, desde os anos 70, Marwan vinha atuando como espião a favor de Israel, sob o codinome Anjo. Mas seu único contato com Jerusalém era um agente do Mossad estacionado no Reino Unido, conhecido como Dubi. Eram dez horas da noite em Londres, no dia 4, quando Zamir e Dubi chegaram a um apartamento fortemente protegido. Esperaram durante uma hora e meia, o que
não era comum, porque Marwan tinha o hábito da pontualidade. Finalmente o egípcio apareceu e os três homens se sentaram em volta de uma mesa. Marwan estava tenso e logo começou a falar: “Eu passei a tarde inteira na nossa embaixada, em Kensigton, de onde telefonei muitas vezes para o Cairo a fim de obter o maior número possível de informações. Agora posso lhes dizer que Sadat vai desfechar uma guerra amanhã”. Ante a surpresa de Dubi e Zamir, o próprio egípcio se surpreendeu. Ele achava que Israel já possuía essa informação. Na verdade, quando Zamir soube que as famílias dos soviéticos estavam sendo evacuadas, concluiu que uma ação militar era iminente, mas não num espaço de tempo tão imediato. Naquele momento, Zamir ficou cético. Em primeiro lugar porque em outras ocasiões Marwan informara sobre ataques que não aconteceram. Em segundo lugar porque a informação que estava transmitindo se baseava em telefonemas. Ele não tinha falado pessoalmente com nenhuma fonte válida de credibilidade. Marwan retrucou,
reunião do estado-maior na “sala de guerra”. MOSHé DAYAN, ministro da defesa; gal. rehavan zeevY e gal. SHMUEL GONEN
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ISRAEL
paraquedistas israelenses marcham na estrada do canal de suez ao cairo
dizendo que estivera no Cairo na semana anterior, que frequentara os corredores do poder, e que sentiu que ali havia uma atmosfera diferente do habitual. Zamir insistiu: “Mas você tem certeza que havia preparativos para uma guerra?” Marwan irritouse e elevou o tom de voz: “O Sadat não bate bem. Tem horas que ele diz que vai avançar, manda todo o mundo avançar, e depois volta atrás”. Enfim, o chefe do Mossad concluiu que não tinha alternativa a não ser acreditar em Marwan. O que o afligia é que estava há muitas horas longe de Israel e não sabia se àquela altura o gabinete já tinha decidido convocar os reservistas. Ele mesmo, na condição de ex-general, estava certo de que a convocação já deveria ter sido ordenada. Marwan não trouxera nenhum documento, mas passou a reconstituir de memória os telefonemas que havia feito para o Cairo. Disse que a infantaria egípcia atravessaria o canal de Suez numa extensão de dez quilômetros no rumo Norte; que a Força Aérea faria incursões no Sinai de modo a dificultar a aproximação de tropas israelenses até o canal de Suez; que aviões do tipo Tupolev iriam bombardear, em Tel Aviv, o quartelgeneral das Forças de Defesa de
Israel. Ao final do encontro, Zamir tinha a cabeça feita: de fato, Síria e Egito estavam prestes a atacar Israel. Zamir e Dubi se dirigiram para o escritório do Mossad, a dez minutos a pé. O chefe do Mossad fervilhava: e se nada viesse a acontecer? Será que ele deveria mesmo relatar tudo para Golda? No escritório encontrou-se com Zvi Malhin, agente encarregado da segurança de sua entrevista com Marwan. Experiente, Malhin
também julgava que a eclosão de um conflito era uma questão de horas. Zamir, então, mandou a seguinte mensagem criptografada para seu chefe de gabinete: ”Parece que a empresa pretende assinar o contrato, nas condições que já conhecemos, antes do anoitecer. A empresa sabe que amanhã é feriado. Falei com o gerente; ele ainda depende da decisão de outros gerentes, mas está disposto a manter o trato. A empresa quer evitar que o contrato se torne público antes da assinatura
Golda Meir , Moshe Dayan e Israel Galili no Sinai
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tanque israelense no golã durante a guerra
porque teme que seus acionistas possam pensar de maneira diferente. Eles têm parceiros fora da região. Segundo informação de Mr. Anjo, a chance de assinatura é de 99 por cento”. De manhã cedo, Dubi levou a mensagem para a embaixada de Israel em Palace Green, em cuja sala de comunicações enviaria o conteúdo para Tel Aviv. Contudo, por causa do Yom Kipur, a sala estava fechada e levou um bom tempo até que achassem o funcionário encarregado de abri-la e enviar a
mensagem. O destino de Israel dependia daquela transmissão.
voando de helicóptero para o Sinai
A Guerra do Yom Kipur foi travada no auge da guerra fria entre os Estados Unidos e a União Soviética. Como os russos estavam firmemente engajados do lado árabe, incluindo assessores militares, Israel sempre julgou que, num momento de grande perigo, poderia contar com os Estados Unidos. Mas, embora os americanos viessem a fornecer grande quantidade de armas e equipamentos para Israel, Golda e seu gabinete sofreram enorme angústia entre os dias 6 e 13 de outubro, primeira semana do conflito. Desde o começo da guerra, Israel havia perdido um quinto de sua força aérea e as forças terrestres começavam a acusar falta de munição. A Casa Branca já recebera a lista enviada por Golda, mas o Pentágono se opunha à liberação dos armamentos. O embaixador de Israel em Washington, Simcha Dinitz, mantinha bom relacionamento com Henry Kissinger, que era favorável ao auxílio a Israel. Apesar das posições do Secretário de Defesa e do Pentágono americanos, Kissinger
Israel e Egito assinam cessar-fogo, 11 de novembro de 1973
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fez valer sua influência junto ao presidente Nixon para que fosse atendido o pedido da lista. Um dos segredos da Guerra do Yom Kipur, até hoje não desvendado, dá conta de que no dia 12 de outubro Kissinger teria recebido uma informação segundo a qual Golda havia mandado armar artefatos atômicos para enfrentar uma situação que caminhava para ser desesperadora. Verdade ou
sitiado e conversar com alguns de seus oficiais. Foram todos cordatos e nenhum deles manifestou qualquer sintoma de ódio, nem mesmo de raiva, com relação a Israel. Estavam conformados com aquela situação e pressentiam que alguma solução seria encontrada em seu benefício. De fato, havia mais gente preocupada com eles, a começar por Leonid Brejnev, o poderoso chefão
O general Ariel SHARON e o Ministro da Defesa, o General Moshe DAYAN na ponte do Canal de Suez em outubro de 1973
não, o fato é que, a partir do dia 13 de outubro, a remessa de aviões, veículos blindados e toneladas de munições começou a ser feita para Israel. Outro segredo da guerra é referente ao destino do Terceiro Exército egípcio, que tinha atravessado o canal de Suez, mas não pode mais se mover, porque as tropas israelenses estavam na sua retaguarda, do outro lado do canal, e à sua frente no Sinai. Tive a oportunidade de observar de perto aquele exército
do Kremlin. Brejnev mandou uma mensagem para Nixon, dizendo que se Israel não abrisse passagem para os egípcios, ele mandaria tropas e paraquedistas para libertálos. Kissinger interpretou aquele ultimato como o prenúncio de uma guerra mundial. Chamou o embaixador Dinitz e praticamente ordenou que ele tomasse uma providência imediata. Ao final do que poderia ser um grave entrevero, nenhum soldado egípcio do Terceiro Exército sofreu sequer um arranhão. A par de alguns outros episódios 34
ocorridos durante a Guerra do Yom Kipur, sobre os quais já escrevi aqui na Revista, outros dois me foram marcantes durante a cobertura do conflito. O fotógrafo Paulo Scheunstuhl, meu companheiro de jornada, chegara a Israel um dia antes do que eu. Rumou para a batalha no Golã e lá viu um cinegrafista americano sendo atingido por um estilhaço de granada. O rapaz sangrava e dizia que estava sentindo muito frio. O Paulo tirou sua jaqueta de couro e cobriu o jovem, logo levado por uma ambulância. Só mais tarde se deu conta de que no bolso da jaqueta estava seu passaporte. No dia seguinte, já na minha companhia, quando descemos do Golã fomos para o hospital Rambam, em Haifa, onde nos disseram que deveria estar internado o americano ferido. Fomos recebidos pelo administrador, muito gentil, que prometeu fazer o possível para localizar o passaporte. E agora? Bem, sem o passaporte, só restaria ir à Embaixada do Brasil e pedir algum documento válido para sair do país. Três dias depois, estávamos no Beit Sokolov, o centro de imprensa em Tel Aviv, tarde da noite, quando apareceu um oficial do exército procurando pelo Paulo para entregar-lhe o passaporte perdido. Naquele momento, pensei comigo mesmo, que, se em meio àquele conflito tão sombrio, um militar israelense ainda havia se empenhado para ir ao encontro de um aflito jornalista brasileiro, então não tinha como Israel perder aquela guerra. O outro episódio é pungente e me emociona até hoje, tantos anos depois. Uma bizarrice do conflito em Israel era que a cobertura jornalística tinha que ser feita com um carro alugado em cujo parabrisa colocávamos a palavra “Press”
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primeira reunião em jerusalém da comissão de inquérito (Comissão Agranat) que investigou a conduta na guerra de yom kipur. da esq. à dir.: Ygal YADIN, MOSHE LANDO, SHIMON AGRANAT, Itzhak Nebenzahl e Chaim LASKOV
com letras grandes. As viagens de Tel Aviv até o canal de Suez, atravessando todo o deserto do Sinai, eram penosas: pelo menos sete horas numa estreita estrada de asfalto, a cada momento bloqueada por tanques e outros veículos militares. Quando passávamos junto a esses veículos, muitos soldados nos interrompiam. Vinham até nosso carro e nos entregavam pequenos pedaços de papel nos quais escreviam o telefone de suas casas, nomes femininos, e me pediam, já que eu entendia o básico do hebraico: “Quando voltar para Tel Aviv, por favor telefona para a minha mãe, diz que eu estou vivo e bem”. Como eu regressava ao hotel já de madrugada, deixava os telefonemas para o dia seguinte. Era uma tarefa difícil, primeiro porque eu mal falava hebraico, segundo porque as pessoas que atendiam aos telefones se assustavam na certeza de que iriam receber uma péssima notícia. Um daqueles telefonemas foi para
me a história que transcrevo, sem acrescentar uma vírgula.
Zevi Ghivelder na ponte sobre o canal de Suez
uma mulher da qual me recordo apenas o sobrenome: Pinto. Depois do susto, quando ela soube em que hotel eu estava, disse que viria se encontrar comigo para colher um depoimento ao vivo, já que morava ali por perto.Não sei mais descrevê-la com pormenores. Só lembro que tinha pouco mais de 50 anos, olhos negros e as mãos pequenas. Depois de perguntar sobre o filho uma dúzia de vezes, contou35
“Quando os alemães começaram a arrasar o gueto de Vilna, fui levada com meu marido e um filho pequeno para o campo de Maidanek. Na chegada, fiquei separada do meu marido e nunca mais o vi. Meu filho ficou comigo pouco tempo no barracão das prisioneiras. Um dia, foi levado com outras crianças e também nunca mais o vi. Sobrevivi à guerra e desembarquei sozinha em Haifa três semanas depois da independência. Aqui casei com um rapaz sefaradi de sobrenome Pinto e temos um filho, o que você encontrou no Sinai. Olha, se este filho não voltar, não vou chorar, porque vou saber porque ele morreu. Mas choro todos os dias pelo que ficou em Maidanek. Choro porque nunca vou saber por que ele morreu”. ZEVI GHIVELDER É ESCRITOR E JORNALISTA
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ANTISSEMITISMO
Judeus na “Guerra de Malvinas” - 1982 POR REUVEN FAINGOLD
As cicatrizes ainda continuam abertas e as controvérsias entre argentinos e britânicos sobre as Malvinas seguem marcadas por provocações e tensões, basicamente pela importância econômica e relevância territorial para cada uma das partes. A seguir, um breve estudo sobre a repercussão deste conflito na vida de toda uma comunidade judaica.
soberania”, razão pela qual o tema não era discutido. A visita às ilhas era permitida apenas a veteranos de guerra e seus parentes, que podiam chorar seus mortos nos cemitérios militares. Viu-se esta situação no filme “Iluminados por el fuego” (Argentina-Espanha 2005): O jornalista Esteban Leguizamón recebe a informação de que seu amigo Alberto tentou matar-se. Esteban vai até o hospital e encontra Alberto em coma. Em flashbacks, o espectador vê que os dois soldados haviam lutado juntos, 20 anos antes, na Guerra das Malvinas. Ambos voltaram do front com suas cicatrizes, como lembrança do horror e do inferno. Alberto nunca se recuperou. A depressão que o levou à tentativa de suicídio é mais um crime da ditadura militar argentina. Em 1982, a ditadura tentou perpetuar-se no poder apelando ao patriotismo dos argentinos: enviaram milhares de jovens para lutar contra o poderio militar britânico nas Malvinas.
PANO DE FUNDO As Malvinas, ou Ilhas Falklands, em inglês, eram desabitadas quando foram descobertas pelos holandeses, no século 18. As potências colonialistas que travaram lutas pelas mesmas foram Espanha e, depois, Argentina. Em 1833 essas terras foram invadidas pelo Império Britânico, com o objetivo de servir de apoio para a abertura de rotas de navegação no Atlântico Sul. No entanto, os governos argentinos nunca abandonaram a ideia de manter sua soberania sobre as ilhas, no que sempre contaram com o apoio da diplomacia brasileira. Tratava-se de uma luta pelo nacionalismo e a integridade do território, fortalecida a partir de 1930-1940, quando a aliança com os britânicos começou a ser questionada na Argentina. Durante a 2ª Guerra, a principal atividade econômica local era a criação de carneiros.
A ascensão dos Kirchner, na década de 2000, trouxe em seu bojo o retorno do forte nacionalismo argentino, encontrando expressão em conflitos territoriais e na exploração de recursos naturais. Isso levou ao recrudescimento das disputas pela soberania argentina em Malvinas.
Na década de 1980, Argentina e Inglaterra cortam relações diplomáticas, que foram retomadas durante a presidência de Carlos Menem. Sua política para as Malvinas foi denominada de “Guarda-chuva da 36
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memorial aos soldados argentinos da guerra das malvinas, PLAZA MALVINAS, USHUAIA
A importância dessas ilhas para a exploração da Antártida crescia em relevância. E a descoberta local de reservas de petróleo e gás e a alta no preço dos hidrocarbonetos aguçaram os embates com os britânicos. Estes reagiram pela mídia: para lá enviaram o príncipe William (2º na sucessão do trono), despertando a atenção da imprensa. Despacharam, também, um navio de guerra e um submarino armados com mísseis nucleares. Eram gestos simbólicos para demonstrar a capacidade de poder que, dificilmente, a combalida economia britânica teria como sustentar. A estratégia argentina foi denunciar na ONU a permanência dos britânicos nas Malvinas como uma situação colonial, criticando o que chamaram de “militarização dos recursos naturais do Atlântico Sul”. Já o Reino Unido afirmava que não
se podia abandonar o direito de autodeterminação dos kelpers (como eram chamados os habitantes das Falklands) e o primeiro-ministro David Cameron chegou a afirmar: “Colonialistas são os argentinos”. Dito isso, analisemos a repercussão que esse conflito teve na vida dos judeus argentinos.
Judeus argentinos lutaM na Guerra das Malvinas Vale ressaltar um dado importante: na Argentina é obrigatório o alistamento militar. Todos os cidadãos devem servir o exército. Há um sorteio para isentar os chamados “número baixos”, mas em geral judeus e não-judeus devem servir indistintamente. Assim, os contingentes militares sempre contaram com judeus e não judeus 37
em suas fileiras. Porém, desde sempre foi hostil o comportamento das Forças Armadas com os judeus. E durante a Guerra das Malvinas não foi diferente. Em 11 de abril de 1982, o jovem judeu argentino Silvio Katz chega às Malvinas junto com seus companheiros do 3º Regimento de Infantaria Mecanizada (RIMec 3), localizado na localidade de Tablada. Silvio, de apenas 19 anos, havia poucos dias tomara conhecimento de que a Argentina retomara as ilhas, mas nunca poderia imaginar ser transportado até lá num avião sem assentos, partindo da Base Aérea de Palomar apenas com roupa de verão e um fuzil que não funcionava. Ainda sem se acostumar ao frio, Silvio foi trazido por seu subtenente Eduardo Flores Ardoino à dura realidade militar. Mais de 30 anos SETEMBRO 2018
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Sílvio Katz como seu “inimigo”. Ele era argentino, mas era judeu. Pelo contrário, com o passar dos dias, descarregava todas suas tensões intensificando os maus tratos. O jovem judeu passava noites inteiras sem dormir pelo intenso ruído das bombas, acumulando-se também dias e dias sem comer, pois seu superior lhe negava alimentos. SILVIO KATZ
depois de encerrado o conflito, ele se lembra das torturas impostas por esse subtenente: “Castigava-me todos os dias da minha vida por ser judeu. Congelava minhas mãos na água, jogava minha comida dentro do lixo... e lá eu tinha que buscá-la com a boca... Dizia que os judeus são medrosos, além de outras mil palavras ofensivas. Ele curtia, ficava feliz me vendo sofrer. Eu podia apenas dizer aos demais soldados que eles experimentariam o mesmo (sofrimento) se fossem judeus como eu”. Nem os bombardeios ingleses em 1º de maio de 1982 fizeram com que Flores Ardoino deixasse de tratar
Enquanto preparava o grupo para o combate, Flores Ardoino conseguia uma garrafa de uísque e colocava todos os soldados enfileirados. Dava, a seguir, um trago a cada um deles, mas ao chegar a Katz, dizia: “Você não vai beber, você será morto”. O soldado judeu se recorda de ter pensado que seria melhor morrer e torcia para que fosse logo. Encerrada a guerra, Katz denunciou o militar à justiça.
NAZISMO EM MALVINAS Por mais terrível que pareça, a história de Silvio Katz não é a única acerca da raiva dos oficiais contra os soldados judeus nas Malvinas. Relatos e denúncias fazem parte do livro do jornalista judeu Hernán Dobry, “Los Rabinos de Malvinas”,
Soldados do exército argentino leem jornais em Port Stanley, durante a Guerra das Malvinas
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publicado no 30º aniversário do conflito. Mesmo sem saber o número exato de combatentes judeus, Dobry conseguiu localizar 25 deles, sendo que 10 deram depoimentos reveladores. Em meio aos bombardeios, enquanto ingleses destruíam as defesas antiaéreas argentinas, um suboficial argentino ficou surpreso ao saber que Pablo Macharowski, do 4º Grupo de Artilharia Aerotransportada, lutara até cair ferido. Numa ocasião, diz: “É estranho que você, um judeu, esteja combatendo aqui”. O jovem Macharowski respondeu: “Sou argentino e nada tem a ver minha condição de judeu ou não”. A poucos quilômetros de Macharowski, Claudio Alejandro Szpin, do 3º Regimento de Infantaria Mecanizada (RIMec 3), vivia situação similar enquanto fazia guarda com seu amigo Vainroj. Para alguns dos seus superiores, ser judeu impossibilitava ser totalmente “argentino” – como se isto fosse excludente. E, os oficiais que assim pensavam, faziam de tudo para tornar a vida dos soldados judeus um inferno. No continente, grupos de soldados se preparavam para cruzar até as Malvinas e combater. Alguns viajavam durante a noite, voando perto da água para não serem detectados e derrubados pelos radares britânicos. Em 3 de junho de 1982, Marcelo Eddi, do Regimento de Infantaria Patrícios (RIP 1) já estava em Comodoro Rivadavia. Nessa pequena cidade, seu superior lhe ordenou que fizesse guarda frente ao galpão dormitório. Ali anunciaram aos soldados que, nesse dia, a seção de morteiros sairia rumo às ilhas. Já prestes a partir, o chefe da unidade afastou Marcelo Eddi do
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grupo, dizendo-lhe que “não partiria por ser judeu”. Eddi fez tudo o que estava a seu alcance para viajar às Malvinas, trocando de lugar com outro soldado que estava apavorado de embarcar. Em 6 de junho chegou ao cerro Dos Hermanas na primeira linha de fogo. Ele comenta: “O 1º Tenente que nos acompanhava parecia ser filho de Hitler; era um nazista, vestia-se como ele e penteava o cabelo com gel como ele”. Eddi foi colocado de lado. Então, esse tenente se aproximou dele e lhe disse: “Vou levar todos os soldados criollos1, mas jamais um judeu”. Então Eddi, ironicamente, lhe respondeu: “Não há problema. Acontece que por aqui todos são valentes como o senhor”. O tenente o repreendeu forte por ter dito aquilo, dizendo: “Não me conteste, soldado”. Eddi, sem nada a perder, replicou: “O que vai me acontecer? O senhor vai me bater ou me pôr na cadeia?”. O tenente, irritado, o ofendeu com palavrões. Desta forma acabou uma das várias conversas agressivas entre um soldado judeu e seu superior. Uma situação parecida experimentou Sigrid Kogan, também do 1º Regimento de Infantaria. Sua unidade estava ainda em formação, em Palermo, e os oficiais passavam com listas selecionando os soldados que iriam às Malvinas. Mais uma vez, o fato de ser judeu foi motivo de deboche e ódio por parte dos superiores. Os oficiais confinaram todos os soldados num lugar de agrupamento e, de repente,
soldados argentinos NAS Malvinas
perguntaram: “E os judeus não virão? Quem aqui é judeu? Soldado Kogan, um passo à frente... e quando mencione o nome Fernandez, diga ‘Presente’”. Assim, o judeu Kogan foi obrigado a usar outro sobrenome e assim substituir outro soldado que sequer havia chegado ao grupo. Fernandez não estava na lista original dos que viajariam às Malvinas, e o judeu Kogan acabou sendo seu substituto.
O trato a ele dado não mudou ao chegar às Ilhas Malvinas e, muito menos, após o início dos bombardeios. Ao sentir-se mal, ficava na sua trincheira e evitava ir à enfermaria para não ser maltratado. Num depoimento em seu diário pessoal, registrou: “Mesmo nas horas de maior dor evitei ir à enfermaria para não ouvir a fala agressiva de meu superior”.
AGRESSÕES ABSURDAS Muitas vezes, as ofensas beiravam o absurdo. Adrián Hasse, um soldado do 6º Regimento de Infantaria Mecanizada (RIMec 6), localizado na cidade de Mercedes, comenta que, em meio aos bombardeios ingleses sobre o Monte Goat Ridge, confessou a seu superior: “Um dia desses o Subtenente Frinko me disse: ‘Sabe uma coisa? Eu odeio judeus’”. Adrián, ainda estupefato pela observação, ousou perguntar-lhe: “Por quê?”. E Frinko lhe retrucou: “Não sei, mas os odeio”.
Na América espanhola, criollo, em geral, designa os descendentes de europeus nascidos na América. O termo era, na época, usado como sinônimo para todo aquele que nascesse fora de seu país de origem. Atualmente, o termo apresenta várias nuances desse significado original, dependendo de cada país ou região.
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O antissemitismo não era dissimulado e, por vezes, se manifestava abertamente com 39
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ANTISSEMITISMO
essa postura existiu com bastante frequência.
extrema violência e desprezo. Essa postura antijudaica se intensificava com o passar dos dias, acentuandose ainda mais quando começaram os bombardeios britânicos. Era como se os bombardeios legitimassem as agressões contra soldados judeus. Receber encomendas de casa era excelente pretexto para despertar a ira dos oficiais. Sergio Vainroj comenta que, em junho de 1982, recebeu uma encomenda e o sargento lhe ordenou: “Traga isso para cá”. Olhou o pacote e desabafou: “Judeu maldito, te enviam encomendas, não? Como pode ser que teu sargento não receba nada? ”. O sargento gritava palavras de baixo calão e, fervendo de ódio, acusou Vainroj de insubordinação perante o capitão. Ele ainda “chegou a solicitar que o enviassem ao front, na primeira fileira de combatentes”. O soldado Claudio Alejandro Szpin, citado anteriormente, apanhou por intervir e querer defender seu amigo Vainroj. A história de Vainroj teve um final feliz, pois através da intervenção de outro superior foi deixado longe da frente de batalha.
As hostilidades incluíam insultos e maus-tratos físicos, sobrecarga de tarefas, especialmente aquelas que eram insalubres. Jorge Carlos Sztaynberg, soldado da 10ª Companhia de Engenheiros Mecanizada, baseada na província de Buenos Aires, lembra haver suboficiais especialmente nomeados para chutar e maltratar judeus.
TORTURAS E “BAILES” Alguns soldados judeus que receberam maus-tratos nas Malvinas não se surpreenderam com a violência, a intolerância e os abusos de poder reinantes nas fileiras do exército argentino. A discriminação contra judeus não era diferente para os soldados nascidos em 1962 e 1963. Desde décadas anteriores, era hostil o comportamento dos membros das Forças Armadas. Não podemos afirmar que se trate de um fenômeno institucional, mas certamente
Margaret Thatcher com as tropas britânicas nas Falklands, 1982
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Havia soldados judeus que eram convocados para as sessões de “baile” (tortura), as vezes em terrenos pedregosos ou sob baixas temperaturas. “Éramos cinco soldados judeus e éramos perseguidos. Às 2h da manhã nos acordavam e nos torturavam apenas de cuecas, ceroulas e camisetas. Isto se realizava em lugares inóspitos, no campo, obrigando-nos a aplaudir com cactos nas mãos, arrastar-nos na lama e no chão pedregoso de granito. Todos tínhamos os cotovelos e pés sangrando”, lembra Gustavo Guinsburg, soldado judeu da 11ª Brigada de Infantaria Mecanizada, de Rio Gallegos. Sílvio Katz também concorda: “Durante o serviço militar (Colimba) torturavam todos nós, judeus, uma ou duas vezes por semana”. Parte dos castigos aplicados aos judeus encontravam “explicação” na religião, vinculando-os à acusação de que os judeus haviam crucificado Jesus. “Recebíamos maus-tratos, nos chamavam de ‘judeus malditos’, e diziam que era preciso matar-nos, a todos. O oficial Kauffmann, dizia que nós (judeus) havíamos matado Jesus, e que tínhamos toda a culpa nesta vida; éramos traidores e ele (Kauffmann) iria me converter ao Cristianismo. Ele me ordenava ir à missa. Eu ficava do lado de fora da
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capela e escutava. Certa vez, disseme: ‘Você será um coroinha’. Eu aceitei, para sua surpresa. Colocou em mim a túnica e fui para o lado do padre. ‘Muito bem, farei de você um bom cristão’. E eu lhe respondi: ‘O único que fiz foi ajudar um padre, mas continuarei sendo judeu’”, relata Cláudio Alejandro Szpin. O antissemitismo que pairava no exército argentino era intenso, inclusive com fortes ameaças de morte e lembranças dos nazistas e de Hitler. “Realmente não entendo como vocês (judeus) ainda estão aqui, pois os nazistas já deveriam ter matado todos”, lembra ter ouvido o soldado Marcelo Laufer do 1º Regimento de Infantaria. Pablo Kreimer, fez um discurso similar: “Havia um cabo que, enquanto fazíamos a instrução militar básica, passava o dia inteiro cantando a seguinte estrofe: ‘Aí vem Hitler pelo paredão, matando judeus para fazer sabão’. Certo dia, esse cabo comentou com muito orgulho: ‘Sabia que Hitler também foi cabo?’. E Laufer lhe respondeu: “Isso não é coincidência, pois ele [Hitler] não dava para nada melhor do que isso, como o senhor”.
O RETORNO DE MALVINAS Em 14 de junho de 1982, o general Mario Benjamín Menendez (19302015) assinou a rendição argentina. O clima entre os soldados judeus era de ódio e dor pela morte de companheiros, e sossego e alívio pelo encerramento de três meses de sofrimento. Porém, poucos imaginavam que o sofrimento dos soldados não acabara: seus correligionários, judeus argentinos, pouco fizeram para
reintegrá-los à vida normal. Vários procuravam retomar estudos ou buscar trabalho. Muitos entraram em depressão. Atualmente, estatísticas demostram que, entre 1982 e 2012, o número de suicídios de ex-combatentes superou àquele de soldados mortos em combate na própria guerra. As instituições da comunidade judaica não se preocuparam pelo estado psicológico-emocional dos soldados judeus. Entidades como DAIA e AMIA nem tomaram conhecimento do delicado momento quando eles voltaram para casa; muito menos da forma em que cada um deles continuou sua vida particular. O desinteresse comunitário provocou uma forte dor entre os ex-combatentes judeus. Diante dessa situação, o jornalista Hernan Dobry propôs ao então Presidente da DAIA, Aldo Donzis, organizar um ato oficial para homenagear os combatentes judeus, reconhecendo-lhes sua bravura nas Malvinas. Nessa ocasião, seria distribuída uma lista com os dados de cada soldado. Esse ato, no entanto, não foi realizado. A campanha comunitária foi retomada somente 41
em 17 de novembro de 2011, quando os soldados Szpin, Vainroj e Katz foram até Donzis e “cobraram” sua homenagem, solicitando também realizar visitas nas escolas judaicas e contar suas histórias do front. Passou-se outro ano e somente em 20 de abril de 2012 esses soldados foram finalmente reconhecidos por seus atos de bravura e heroísmo. A comunidade judaica argentina pode estar orgulhosa de ter em suas fileiras judeus orgulhosos de fazer parte de nosso povo milenar. BIBLIOGRAFIA
Alonso Piñeiro, A., Historia de la Guerra de Malvinas. Editora Planeta. Buenos Aires 1992. Ben Dor, Graciela, Católicos, nazis y judíos. La Iglesia argentina en los tiempos del Tercer Reich. Editora Lumière. Buenos Aires 2003. Dobry, Hernan, Los Rabinos de Malvinas. Editora Vergara. 1ª edición. Buenos Aires 2012. Lotersztain, Gabriela, Los judíos bajo el terror: 1976-1983. Ejercitar la Memoria. Buenos Aires 2008. Lvovich, Daniel, Nacionalismo y antisemitismo en la Argentina. Editora Vergara. Buenos Aires 2003. Prof. Reuven Faingold é historiador e educador; PHD em História e História Judaica pela Universidade Hebraica de Jerusalém. é responsável pelos projetos educacionais do “Memorial da Imigração Judaica e do Holocausto” de São Paulo.
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Judeus na Argélia FRANCESA A vida dos judeus da Argélia mudou drasticamente no século 19. A conquista do país pela França, em 1830, iniciara o último capítulo da história judaica argelina. Aos poucos, os judeus se “afrancesaram”, tornando-se cidadãos franceses. A independência da Argélia, em 1962, marcou o fim de dois mil anos de sua presença no país. Os judeus, em grande maioria, foram para a França. Hoje não há judeus na Argélia.
N
ão se pode negar que houve melhoras substanciais na vida da população judaica durante o período colonial. Para eles, a derrota otomana significara o fim do sofrimento, humilhações e arbitrariedades impostas pelos Deys, como eram chamados os governantes da Regência de Argel, parte do Império Otomano após 1671. Contudo, não se tornou um “mar de rosas”, já que na Argélia francesa era profundo e declarado o antissemitismo dos colonizadores franceses e europeus, os colons, popularmente chamados de “pieds-noirs”, principalmente antes e durante a 2a Guerra Mundial. No entanto, os judeus argelinos sempre mantiveram a imagem da França em suas dimensões ideais: sua cultura, seu espírito de tolerância e de respeito pela liberdade pessoal. Acreditavam em sua “pátria”, embora nem sempre essas virtudes estivessem presentes na conduta dos assuntos de interesse nacional.
diplomáticos que resultaram na tomada de Argel por forças francesas. O incidente diplomático chamado de “pá mata-moscas”, ocorreu em 1827 quando Hussein Dey, então governador da Regência de Argel, convocou o cônsul francês, Pierre Deval, exigindo um posicionamento em relação à dívida francesa em aberto. Na década de 1790, o governo francês costumava comprar à crédito trigo argelino, quase sempre através de duas famílias judias dedicadas ao comércio, os Busnach e os Baqri. Na virada do século, a França devia aos dois fornecedores vários milhões de francos. Estes, por sua vez, não tinham como pagar os impostos exigidos pelo governantes. As dívidas continuavam em aberto quando, em 1818, Hussein sobe ao poder. Convocado, então, pelo Dey, o cônsul Deval desconversou altivamente sobre as exigências de pagamento. Não contendo sua fúria, Hussein o golpeia no rosto com uma pá mata-moscas que tinha em mãos. A França considerou o incidente “uma ofensa à honra francesa” e, em represália, declarou um bloqueio ao porto de Argel. A resposta de Hussein foi destruir os entrepostos comerciais franceses em seu território.
Invasão e colonização francesa Dívidas contraídas por Napoleão na Argélia, durante a campanha no Egito, e não pagas pelos sucessivos governos, provocaram o primeiro dos incidentes 42
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FONTE NA PLACE DES VICTOIRES. Orã, Argélia
A tensão chegou ao ponto de ruptura, três anos mais tarde, quando os argelinos atacam o navio francês que levava a bordo um embaixador portador de uma proposta de negociação para o Dey. Carlos X, rei da França, decide então adotar uma ação militar contra a Regência de Argel. Os ataques à honra francesa não eram, porém, a principal razão por trás dessa decisão. O Rei queria desviar a atenção dos franceses da impopularidade de seu governo.
não consegue, no entanto, salvar a monarquia. Na França, manifestações e levantes culminam na Revolução de 1830. Após as chamadas “jornadas gloriosas de julho”, Carlos X abdica e seu primo, Louis Philippe, é proclamado rei da França pela Assembleia Nacional. Entre os membros do novo governo, muitos eram contrários à invasão da Argélia, mas uma comissão parlamentar concluiu que a ocupação deveria seguir em frente, para manter o “prestígio nacional”.
Em 12 de junho de 1830, os franceses iniciam a ação militar contra a Regência. Após intenso bombardeio naval, 34 mil soldados franceses desembarcam a oeste de Argel, em Sidi Ferruch, e, três semanas mais tarde, em 5 de julho, tomam a cidade. O êxito da ação militar
Forças francesas ampliam as áreas de ocupação. A forte resistência por parte da população muçulmana leva a França a enviar forças adicionais. A retirada dos franceses da Argélia provaria ser bem mais difícil do que sua conquista, pois, apesar das divergências políticas dos governos sucessivos, todos mantiveram a ocupação, que durou 130 anos. Durante a conquista, inclusive no decorrer da chamada “penetração pacífica” – quando a França expandiu sua presença do litoral até as áreas rurais, ao sul – os franceses saqueiam e massacram aldeias inteiras, destruindo mesquitas e profanando cemitérios. Em 1834, a França anexa as áreas conquistadas como colônia, e determina que será administrada por um governo militar – o
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Régime du Sabre. Nos anos que se seguem, a Argélia se torna o destino preferido para milhares de imigrantes franceses e europeus, conhecidos como colons. O assentamento colonial é realizado através de expropriação ou compra de terras a preços baixos dos argelinos muçulmanos. A maioria dos colons visava enriquecer através da “obtenção” ou compra de todo tipo de propriedades, principalmente terras cultiváveis, a preços irrisórios. Nas décadas de 1840 e 1850,
francês para disponibilizar mais propriedades. As autoridades, então, passam a confiscar terras e propriedades muçulmanas. Em 12 de novembro de 1848, a Argélia é oficialmente declarada “território francês” e, até a independência argelina em 1962, toda a região mediterrânea do país será administrada como parte integrante da França. Três “territórios civis” – Argel, Orã e Constantina – são organizados como unidades administrativas, sob
Entrada dos franceses em Argel
para incentivar esse assentamento nas áreas rurais, a política oficial da França era oferecer concessões de terra por pequena soma, com a promessa de que o governo se ocuparia das melhorias necessárias. Entre os primeiros a se assentar estavam os soldados franceses, juntando-se a eles imigrantes das regiões empobrecidas da França, Itália e Espanha, em sua maioria camponeses ou operários. À medida que cresce o número de colonos, aumenta a pressão sobre o governo
um governo civil. Apenas o vasto interior, árido e desértico, nunca é tratado como parte da França e sua administração permanece sob o “Regime do Sabre”. Os cidadãos das unidades administrativas passam a eleger seus próprios conselhos administrativos e prefeitos. Os muçulmanos, porém, eram nomeados, e não podiam deter mais do que um terço dos assentos nesses conselhos. Tampouco podiam ocupar os cargos de prefeito e viceprefeito. 44
Os judeus sob domínio francês Quando os franceses desembarcaram na Argélia, viviam no país entre 15 mil a 17 mil judeus – estimase que 6.500 em Argel, 3.000 em Constantina, 2.000 em Orã e 1.500 em Tlemcen. Havia, também, pequenas comunidades nos oásis, ao Sul – os judeus de M’zab e Laghouat. A conquista francesa foi bem recebida pela população judaica, já que sob domínio dos Deys viviam sob o estatuto de dhimmis. Considerados súditos de 2ª classe, sua vida fora marcada por muito sofrimento e humilhação. De imediato, os franceses abolem esse estatuto, e eles passam a ter direitos iguais aos muçulmanos. Antes da chegada dos franceses, o estilo de vida, idioma e vestuário da população judaica eram semelhantes aos dos muçulmanos, mas logo a influência francesa se fez sentir em seu dia a dia. No plano econômico, porém, a maioria continuou a exercer seus ofícios tradicionais - alfaiataria, relojoaria, tecelagem, ourivesaria. Ainda havia uma pequena minoria mais abastada, formada por comerciantes e financistas. Esse segmento da população judaica foi o que mais rapidamente adotou o estilo de vida e a cultura francesa. Assim que as primeiras escolas francesas foram abertas, em 1831, judeus mais abastados enviaram seus filhos para lá estudar. No ano seguinte, nas principais comunidades foram abertas escolas judaicas, onde o idioma de ensino era o francês. No início do domínio francês, as comunidades continuaram se autogovernando, mas essa autonomia foi de curta duração.
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Com a anexação da Argélia a França, em 1848, alguns cargos foram abolidos, como, por exemplo, o de muqadam, encarregado de chefiar as comunidades judaicas, que foi substituído por um vice-prefeito. Nos conselhos administrativos municipais e nas câmaras de comércios um ou dois de seus membros eram judeus.
A influência dos judeus franceses Após a conquista da Argélia, a comunidade judaica francesa procura avaliar as “necessidades” dos judeus argelinos. Em 1842, dois judeus franceses, Jacques Isaac Altaras e Joseph Cohen, são incumbidos pelo governo de ir à Argélia para estudar o procedimento a ser adotado na “reforma” das comunidades judaicas. Os relatórios desses enviados apontavam a “vontade dos judeus argelinos de se aproximar da civilização francesa” e continham propostas radicais. Entre outras, a extinção dos tribunais rabínicos, a obrigatoriedade de frequentar escolas sob controle do Estado, e a proibição dos trajes tradicionais. A principal, e que iria modificar o judaísmo argelino, era a criação do“ sistema conciliar”, à exemplo do que vigorava na França, com a criação de consistórios – conselhos de rabinos e leigos responsáveis pela administração dos assuntos comunitários. O governo francês decide instituir o sistema conciliar na Argélia em novembro de 1845. É então criado um consistório central em Argel e outros dois em Orã e Constantina. Rabinos-chefe franceses asquenazitas, nomeados e pagos pelo governo francês, são enviados para tomar conta dos consistórios.
Como era de se esperar, a medida provocou grandes atritos com as autoridades rabínicas locais. Entre as atribuições dos rabinos-chefes franceses estava a implementação do “ponto de vista consistorial” entre os judeus argelinos. Isso significava seu afastamento das ricas tradições judaicas norte-africanas. A influência do judaísmo francês cresce ainda mais após 1867, quando a França determina a extinção do Consistório Central de Argel. Após essa data, todos os consistórios
argelinos ficam sob o comando do Consistório Central dos Judeus da França, alçando o seu Rabino Chefe da França a Rabino Chefe da França e Argélia.
Educação secular francesa Em países muçulmanos, o objetivo da Alliance Israélite Universelle (AIU), criada na França em 1860, era a alfabetização em francês das crianças judias. Mas não foi o caso da Argélia, onde a educação
FALTA SINAGOGA DE MILIANA, ARGÉLIA, ÉDOUARD-MOYSE
de crianças judias sempre ficou a cargo das escolas públicas francesas. Nesse país, a AIU se encarregava unicamente da educação religiosa.
rabINO abraham enkaoua mascara, 1880
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A educação francesa, apesar de suas vantagens, levou muitos judeus argelinos a se afastarem do judaísmo tradicional. Sua aculturação foi extremamente rápida. Em pouco tempo, adotam o francês como idioma e o estilo de vida, cultura e valores da burguesia francesa. Para tentar frear a total aculturação, foram abertas em setembro 2018
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muitas cidades, escolas tradicionais de Talmud Torá (ensino religioso) e gráficas judaicas em Argel, em 1853, e Orã, em 1856 e 1880.
forçado a abdicar. Chega ao fim o Segundo Império, sendo proclamada a Terceira República, um regime republicano que vigoraria até 1940.
A assimilação não chega, no entanto, aos níveis do que ocorre na comunidade judaica francesa, pois na Argélia vai surgindo uma intelectualidade judaica, que, apesar de aculturada, consegue manter suas tradições. Seus membros foram os primeiros a seguir profissões liberais. A proporção de judeus entre tais profissões foi bem maior do que entre a população geral; eles abraçaram a cultura francesa, consumindo e produzindo arte.
Adolphe Crémieux, político judeu e membro do Governo de Defesa Nacional, assume o cargo de ministro da Justiça, que ocuparia até fevereiro de 1871. Crémieux, também presidente da AIU, era um defensor das liberdades universais, e, principalmente, da causa judaica. Como ministro, em 1870 assina um decreto, que mais tarde ficaria conhecido como o Decreto Crémieux, pelo qual todos os 35 mil judeus da Argélia são naturalizados coletivamente, tornando-se cidadãos franceses plenos, com todos os direitos. O decreto não se aplica aos judeus do Mzab e, a seguir, uma lei exclui os judeus nascidos na Tunísia ou Marrocos.
Decreto de Crémieux A intelectualidade judaica argelina, assim como os judeus e os liberais franceses, queria que a França naturalizasse os judeus argelinos. Em 14 de julho de 1865, um decreto do governo abre a judeus e muçulmanos da Argélia o direito à naturalização individual. Mas, para se tornar cidadão francês, o indivíduo teria que abrir mão de seu estatuto religioso – ou seja, teria que se sujeitar às leis seculares francesas e servir o exército. É interessante lembrar que, sob os otomanos, como a lei islâmica (shaaria) não tem jurisdição sobre não-muçulmanos, as minorias religiosas eram entidades legais, podiam autogovernar-se e, cada minoria possuía seus próprios tribunais, onde eram julgados de acordo com suas leis.
no bairro judaico, em constantina. THEODORE CHASSERIAU, 1851
Pressionado pelos judeus franceses, o governo consulta as autoridades religiosas judaicas argelinas sobre sua posição na eventualidade de uma naturalização coletiva. Estas acabam concordando com a naturalização coletiva. Na época, a França passava por um período político conturbado. Derrotado na guerra francoprussiana, no dia 2 de setembro de 1870, Napoleão III assina a rendição e, dois dias depois, é
O Decreto Crémieux, seguido pelas leis de Jules Ferry1, torna o ensino obrigatório e gratuito na Argélia e na França. Esse ensino laico foi a causa mais importante do “afrancesamento” dos judeus da Argélia. Mais “permeáveis” às influências francesas do que os muçulmanos, os judeus passam a se vestir como europeus. E nomes franceses substituem os hebraicos ou árabes. O “afrancesamento” dos judeus pode ser notado no vocabulário muitas vezes usado para marcar as etapas da vida judaica. Utilizavam, por exemplo, o termo “batizado”,
Poucos judeus e muçulmanos se naturalizaram. A maioria não quis renunciar a seu estatuto religioso. 1
No cargo de Ministro da Educação, Jules Ferry (1832-1893) tornou a escola francesa laica e republicana. Em 1881, torna o ensino primário gratuito; e, em 1882, obrigatório.
O fato da naturalização coletiva não ter sido estendida aos muçulmanos – como o desejava Crémieux – é explicado pela hostilidade dos militares franceses e dos colonos, que recusavam qualquer concessão aos muçulmanos.
Adolphe Crémieux
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para se referir à Brit Milá, e “comunhão”, para o Bar Mitzvá. Embora mais pronunciada do que na Tunísia ou no Marrocos, essa assimilação não chega aos níveis da observada entre os judeus na França. São raros os casamentos mistos; eles continuam sendo um grupo distinto. Não há uma integração com os colons e tampouco com os muçulmanos. Essa identidade separada judaica foi mantida por duas fortes razões: o antissemitismo dos “pieds-noirs” e o sistema inerente à sociedade islâmica, no qual religião e família eram os fatores determinantes de seu status social – e não a nacionalidade formal e o comportamento cultural. Na Argélia, um judeu continuava sendo, apenas, um judeu, e não um “francês”.
Ademais, na própria França, no final do século 19, o “nascimento” do antissemitismo político e o Caso Dreyfus desestabilizaram a posição dos judeus. O antissemitismo político era um “mix ideológico” do anti-judaísmo “tradicional”, a judeufobia anticapitalista da esquerda e a pseudociência das teorias raciais, que afirmava ser a “raça ariana” superior à “raça judaica”. O Affaire Dreyfus, que teve início na França em 1894, é um fator incandescente na campanha antijudaica na Argélia. É criado um
No entanto, conforme piora a situação econômica dos muçulmanos, notadamente na agricultura, eles passam a acusar os judeus de contribuir para seu fracasso. Ademais, a política colonial fomentava a oposição entre árabes e judeus. Uma das particularidades do judaísmo argelino era o fato de ser “quase que totalmente hermético à atividade sionista”, apesar das atividades da WIZO (Organização Sionista Internacional das Mulheres) e outras entidades no país, devido à sua estreita ligação com a França. Essa especificidade fez com que a imigração para Israel (Aliá) sempre se mantivesse em níveis reduzidos.
O antissemitismo Com a naturalização coletiva, os judeus passam a ter o mesmo estatuto jurídico que os colonos, e isso provoca uma violenta reação antissemita. Esta se deve, em grande parte, ao medo de uma quebra da hierarquia colonial, permitindo que elementos “inferiores” – como os judeus, ou ainda pior, os muçulmanos – se tornassem parte da classe dominante. Na década de 1880 uma onda de violência anti-judaica tomou conta da Argélia: os judeus foram atacados em Tlemcen, em 1881; em Argel, em 1882, 1897 e 1898; em Orã e Sétif em 1883. As agressões alcançaram seu auge em 1897, em Mostaganem. Até 1900, em todas as cidades e aldeias onde viviam foram registrados saques e assassinatos; numerosas sinagogas foram saqueadas e Sefarim profanados. É importante enfatizar que, nesse período, a onda de antissemitismo partiu dos colons.
À medida que antissemitas contumazes assumem seus cargos, eles passam a tomar “atitudes” contra a população judaica. Em Constantina, por exemplo, por decisão do vice-prefeito Émile Morinaud, pacientes judeus não eram admitidos em hospitais. A ilegalidade das medidas, juntamente com o fato de que não tiveram o apoio dos muçulmanos, levou à extinção, em 1902, do partido antissemita.
As décadas antes da 2a Guerra Mundial
antissemitismo argelino
partido antissemita e vários de seus notórios membros conseguem eleger-se. Entre eles, Max Régis torna-se prefeito e Édouard Drumont, representante parlamentar de Argel. Drumont é autor de La France Juive. Essa famigerada “obra”, publicada em 1886, ajudou a disseminar pelo mundo a “nova face” do antigo ódio aos judeus. 47
A 1a Guerra Mundial causara um temporário apaziguamento ao anti-judaísmo dos colons, com a mobilização de todos os franceses, inclusive os da Argélia, judeus e não judeus. Morrem em combate 2.850 judeus da Argélia. Mas, “a calmaria” dura pouco – em 1921 irrompe, em Orã, nova onda de ódio. Com a subida de Hitler ao poder, saudada com júbilo por muitos colons, uma forte corrente antissemita toma vulto entre os “pieds-noirs”, como setembro 2018
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O primeiro conjunto de leis antissemitas de Vichy (o “Estatuto Judaico”), aprovado em outubro de 1940, determina que a religião dos avós definia quem era judeu. Ainda no início daquele mês, o governo de Vichy repudia o “Decreto Crémieux”, sendo, portanto, revogada a cidadania francesa de judeus argelinos. O antissemitismo entre os colonos franceses iria facilitar a instauração de leis antissemitas, aplicadas com grande severidade na Argélia. FAMÍLIA JUDAICA NA ARGÉLIA
testemunho da manchete do jornal antissemita “Le Petit Oranais”: “É preciso colocar enxofre, piche e, se possível, o fogo do inferno nas sinagogas e escolas judaicas, apropriar-se de seu capital e caçá-los a céu aberto, como a cães furiosos”. As campanhas contra judeus resultaram, entre outros, em um massacre em Constantina, em 1934. A crise recrudesceu em 1936, quando Léon Blum, judeu, torna-se Primeiro Ministro da França.
O governo de Vichy passa a administrar as possessões francesas, no norte da África: Argélia, Marrocos e Tunísia. Os judeus nesses locais são sujeitos a leis que levam à discriminação política e jurídica, injustiça econômica e, em inúmeros casos, prisão, trabalhos forçados, danos físicos e morte.
Os 17 mil judeus que viviam no país, em 1940, são excluídos da vida econômica, financeira, profissional e de funções públicas. E apenas 2% do total de profissionais liberais podiam ser judeus. A eles é proibido lecionar, bem como estudar em escolas e universidades públicas. Em resposta, a comunidade judaica estabelece e custeia seu próprio sistema educacional, com professores judeus. Tais escolas eram
Período do Holocausto Em 1940, o exército francês foi fulminantemente derrotado por tropas nazistas. Após a Terceira República do Marechal Pétain se render, foi assinado um armistício com Hitler, segundo o qual a França seria dividida: o Norte ficaria sob controle direto da Alemanha e, no Sul, os alemães permitem o estabelecimento de um governo colaboracionista que tinha Vichy como capital. O Marechal Pétain, homem forte da França de Vichy, como o novo regime é conhecido, prega uma união entre França e Alemanha nazista.
o “chefe de estado” francês e o primeiro governo do regime de vichy
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administradas pelos Consistório de Argel, Orã e Constantina – embora fossem regulamentadas pela legislação do governo de Vichy. Esse infame regime também procede à “arianização” das propriedades judaicas. Uma lei, de julho de 1941, determina o confisco dos bens imóveis da população judaica, exceto suas moradias. As autoridades coloniais prendem e enviam para campos de detenção milhares de judeus. Mais de 4 mil refugiados judeus são despachados para campos no sul do Marrocos e da Argélia para efetuar trabalho escravo na construção da ferrovia subsaariana. Graças a uma combinação única de fatores políticos, militares, estratégicos e geográficos os judeus que viviam no norte da África não foram sistematicamente assassinados e tampouco enviados para campos de extermínio da Europa Oriental. A resposta de muitos jovens judeus foi entrar na Resistência contra Vichy. Entre seus líderes estavam José e Colette Aboulker, Raphaël Aboulker, Roger e Pierre Carcassone, Jean Dreyfus, Jean Gozlan e Roger Jais.
Casal de judeus argelinos
Entidades e personalidade judaicas argelinas e norte-americanas passam a pressionar para que fossem restabelecidos os direitos civis dos judeus. Mas, com a cumplicidade de Robert Murphy, principal conselheiro de Roosevelt para questões da África do Norte, as autoridades francesas de Vichy haviam sido mantidas no poder. E elas não pretendiam abolir as leis discriminatórias, tampouco libertar os judeus presos nos campos de
detenção e de trabalhos forçados. Em dezembro daquele ano de 1942, aprisionam os jovens judeus argelinos que haviam neutralizado Argel, permitindo o desembarque aliado. Perante a situação paradoxal, é iniciada uma campanha mundial contra a colaboração dos Aliados na Argélia junto aos membros do regime de Vichy que haviam sido mantidos no poder. Jornais, como
Em Argel, a Resistência, em sua maioria judeus liderados por José Aboulker, levou a cabo, em 8 de novembro de 1942, a insurreição de Argel. Os jovens conseguiram neutralizar a capital enquanto os americanos desembarcavam no país, como parte da Operação Tocha (Ver artigo na pág. 68). Mas, ao contrário do que acreditavam, o desembarque dos Aliados no norte da África, em novembro de 1942, não resultou em uma melhoria na vida dos judeus da Argélia.
manchete do jornal le matin, em 19/10/1940: anúncio da promulgação do “estatuto judaico”
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o The New York Times, passaram a pedir a abolição das leis raciais e a dispensa de Robert Murphy. Em março de 1943, Henri Giraud, um general do regime de Vichy que ocupava o posto de Comissário Superior para a África Francesa, afirma repudiar oficialmente o governo de Vichy e abole as leis racistas e discriminatórias. Porém
organizações judaicas. Entre elas, a Federação das Comunidades Israelitas da Argélia, reunindo 60 diferentes grupos comunitários. A Escola Rabínica da Argélia inicia suas atividades em 1948; o Comitê Judaico-Argelino de Estudos Sociais, criado após a 1ª Guerra Mundial, retoma suas atividades nesse mesmo ano.
para descrever os raids realizados pelo exército, como “um pente fino” ou um rastelo passado em cidades e vilarejos, não poupando nada. Durante oito anos, até a independência da Argélia em 1962, o exército francês e os colonos lutaram contra grupos próindependência. Não se sabe quantos morreram. As estimativas vão de 300 mil a mais de um milhão de pessoas. Em 1954, quando o conflito eclodiu, judeus, sobretudo nas grandes cidades, especialmente Argel e Orã, se viram entre duas forças violentamente opostas. Sua posição marginal na sociedade local os expunha a constante perigo. No decorrer do conflito, a estrutura comunitária oficial argelina foi-se desintegrando. Cada comunidade passou a girar em função dos costumes e tradições locais.
bairro judeu, Orã
Giraud, antissemita convicto, não restaura o Decreto Crémieux, afirmando, injustamente, que ele diferenciava os muçulmanos dos judeus. Somente após meses de uma ferrenha campanha por parte do Congresso Judaico Mundial, Congresso Judaico NorteAmericano, Comitê Francês para a Liberação Nacional e da intervenção do Presidente Roosevelt, dos EUA, o Decreto é revalidado, em 20 de outubro de 1943. No pós-guerra, os judeus reorganizam sua vida e suas comunidades, criando várias
Os judeus durante a Guerra da Argélia O fim da presença judaica na Argélia foi determinado pela luta nacionalista argelina pela independência. A Guerra da Argélia se iniciou em novembro de 1954, quando a Frente de Libertação Nacional (Front de Libération Nationale - FLN) lançou ataques contra instalações militares e policiais francesas, e iniciou uma campanha de terror contra colonos. Os franceses responderam com prisões, torturas, bombardeios aéreos e ratissages – jargão usado 50
Quando irrompe a guerra, a comunidade judaica não toma partido, mantendo cautela em assumir uma posição política. Se, de um lado, ainda sentiam na pele o antissemitismo dos colonos e o sofrimento dos anos de Vichy, do outro mantinham uma forte ligação cultural e emocional com sua “pátria”. Mas os nacionalistas muçulmanos queriam um posicionamento. No início de novembro de 1954, a FLN “convida” todos os habitantes, independentemente de sua religião, a lutar contra o exército francês. Dois anos mais tarde, lança um apelo específico aos “argelinos de origem judaica”, que “ainda não venceram sua consciência perturbada, ou não se decidiram sobre que lado escolher” a “optar pela nacionalidade argelina”. A resposta da comunidade judaica foi: “Somos franceses, somos republicanos, somos liberais, somos judeus”.
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Nos anos que se seguiram, os assassinatos e ataques contra os judeus, bem como a profanação e destruição de sinagogas por integrantes do movimento nacional argelino, fazem com que cada vez mais se posicionem a favor da França. Em 1955, o rabino de Batna é agredido. No ano seguinte uma sinagoga de Orã é incendiada. Dois rabinos, um de Nedroma, em 1956, e um de Médéa, no ano seguinte, são assassinados. Em maio de 1956, o Mossad executa uma ação de represália contra os muçulmanos de Constantina. Era um aviso aos muçulmanos argelinos para não envolver os judeus em sua luta com os franceses. Os temores judaicos aumentam quando, em 18 de fevereiro de 1958, dois emissários da Agência Judaica são assassinados pela FLN. Em dezembro de 1960, a grande sinagoga de Argel e o cemitério judaico de Orã são, mais uma vez, profanados. E uma granada é lançada em uma sinagoga de Boghari. O filho de William Levy, líder judeu, é morto pela FLN. Em seguida, o próprio Levy é assassinado pela OAS (Organisation Armée Secrète). O reinado de terror e contraterrorismo da FLN e OAS, em 1961 e 1962, tiveram consequências catastróficas. Atentados são realizados nos bairros judeus em 1957, 1961 e 1962, em Orã e Constantina. E, em junho de 1961, Cheikh Raymond Leyris, cantor do estilo maalouf e sogro de Enrico Macias, é assassinado em Constantina por um muçulmano. Os eventos abalaram os judeus argelinos. Cada vez mais a lealdade emocional e as predisposições culturais são francesas. Cada vez
sinagoga da rua dijon, em ruínas
sinagoga de médéa, em ruínas.
mais temem que o ódio muçulmano contra o colonialismo francês seja direcionado contra eles, não apenas como europeus, mas como judeus e sionistas. Consequentemente, apesar da comunidade não ter adotado uma posição oficial contra a independência, em março de 1961 uma delegação do Comitê Judaico-Argelino insiste que as negociações entre a França e os grupos nacionalistas incluam o reconhecimento oficial sobre a natureza francesa de sua comunidade.
Na França, a Guerra da Argélia provocou uma verdadeira guerra civil entre grupos a favor e contra a presença francesa na colônia. Causou estragos suficientes para provocar o colapso da Quarta República e a instalação da Quinta República, chefiada por Charles de Gaulle. Em 1962, de Gaulle promove um referendo sobre a autodeterminação argelina, que é aprovada pela maioria da população, na França e na Argélia. Finalmente, em 18 de março de 1962, são assinados os Acordos de Évian, trazendo consigo uma nova Argélia independente e pondo fim a oito anos de guerra. Após a independência do país, todos os judeus com cidadania francesa decidem mantê-la. No fim de julho de 1962, 70 mil judeus já haviam deixado a Argélia para a França e outros 5 mil para Israel. A França tratou os judeus argelinos em pé de igualdade com os repatriados nãojudeus.
sinagoga e mercado randon
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O regime de Mohamed Ahmed Ben-Bella, no poder de 1962 até 1965, manteve um relacionamento amigável com os judeus, apesar de ter aprovado o Código de Nacionalidade de setembro 2018
comunidades
década de 1990, apenas 50, todos em Argel. Havia uma sinagoga em funcionamento, porém sem rabino. As demais foram desapropriadas e usadas como mesquitas, ou caíram em ruínas.
Antiga sinagoga de Orã, hoje uma mesquita, sendo atualmente reformada pelo governo argelino
1963, que concedia a cidadania apenas a muçulmanos cujos pais e avós paternos também fossem muçulmanos.
se apenas uma, e as converte em mesquitas. A Suprema Corte declara também que os judeus já não estavam sob a proteção da lei.
Mas, após a subida ao poder de Houari Boumédienne, em 1965, a situação rapidamente se deteriora. Os judeus voltam a ser perseguidos, enfrentando discriminação política e social, além de pesados impostos.
Dos aproximadamente 130 mil judeus que deixam a Argélia, após a independência, estima-se que cerca de 80% deles se estabelecem na França. Os judeus marroquinos que viviam na Argélia e os do Vale de M’zab, no Saara argelino, que não possuíam cidadania francesa, e um pequeno grupo de judeus argelinos de Constantina, emigram para Israel.
Em junho de 1967, ao eclodir a Guerra de Seis Dias, a mídia argelina lança um violento ataque contra Israel e os judeus. As paredes das sinagogas de Argel e outras comunidades judaicas são totalmente pichadas. Cemitérios judaicos do país são novamente depredados. Após a independência, a Argélia se filiara à Liga Árabe e, em junho de 1967, juntamente com outros países árabes, declara guerra a Israel, enviando ajuda militar. Até a aceitação do cessar-fogo pelo Egito foi denunciada pelas multidões argelinas. Naquele ano, o governo desapropria todas as sinagogas do país, excetuando-
A Argélia adota uma atitude extrema anti-Israel, dando total apoio aos terroristas palestinos. Em 23 de junho de 1968, a FPLP (Frente Popular de Libertação da Palestina) sequestra um avião da El Al e pousa na Argélia, com a aprovação do governo. O avião, tripulação e passageiros israelenses do sexo masculino são detidos durante semanas. E só são libertados em troca de terroristas presos em Israel. Em 1969, menos de mil judeus ainda permaneciam na Argélia e, na 52
Desde 2005, o governo argelino vem tentando reduzir a discriminação contra os judeus, aprovando uma lei que reconhece a liberdade de credo. Também permitiu peregrinação judaica aos locais judaicos sagrados mais importantes, proibida desde 1962. Em 2014, o Ministro para Assuntos Religiosos, Mohammed Eissa, anunciou que o governo do país promoveria a reabertura de sinagogas – o que nunca se tornou realidade. Nesse ano de 2018, 80 anos após terem sido perseguidos pelos nazistas e pelo Regime de Vichy, cerca de 25 mil judeus argelinos foram declarados “vítimas do nazismo” pelo governo alemão. Há muito Israel admitiu que os judeus argelinos também foram vítimas do Terceiro Reich, mas não o governo alemão, até agora. Tão importante quanto o montante em dinheiro que irão receber, é o reconhecimento de seu sofrimento. Ainda que não fossem assassinados, os judeus argelinos foram privados de seus direitos e humilhados sob as leis antissemitas de Vichy.
BIBLIOGRAFIA
Gilbert, Martin, In Ishmael’s House: A History of Jews in Muslim Lands. eBook Kindle Bertrand, Jean Marc, Algeria Pre -colonial History, Colonial Era, and self-governance: Religious information, ethnic groups, government and politics . eBook Kindle Masters, Bruce, Christians and Jews in the Ottoman Arab World: The Roots of Sectarianism. eBook Kindle
DESTAQUE
O antissemitismo no Partido Trabalhista britânico POR JAIME SPITZCOVSKY
Fantasma a rondar novamente a Europa, sobretudo nos últimos anos, o antissemitismo encontrou mais um ambiente para brotar: a liderança do Partido Trabalhista britânico. Jeremy Corbyn, a dirigir a oposição desde 2015, destila preconceitos, enfrenta críticas de setores de sua agremiação e da mídia, e joga luzes sobre um fenômeno em expansão: visões antissemitas em grupos de esquerda.
E
m abril, Rabi Lord Jonathan Sacks, que foi rabino-chefe do Reino Unido de 1991 a 2013, falou sobre o ressurgimento do antissemitismo em solo europeu. “Ocorre devido à ascensão de extremismo político à direita e à esquerda e devido a políticas populistas, que manipulam os temores das pessoas, buscando bodes expiatórios a serem responsabilizados pelos problemas sociais”, comentou Sacks em um programa de rádio da BBC. “Ao longo de mil anos, os judeus foram atingidos por serem uma minoria e porque eram diferentes, mas é a diferença que nos faz humanos. Uma sociedade que não oferece espaço à diferença, não oferece espaço à humanidade”.
próximo ao antissemitismo, sob o manto do chamado antissionismo”. Os intelectuais prosseguiram: “Embora os antissionistas busquem se dizer livres de intenções antissemitas, o antissionismo frequentemente recorre às calúnias do clássico ódio ao judeu”.
O discurso do rabino Sacks se somou a uma avalanche de críticas à liderança e militantes do Partido Trabalhista. Em novembro do ano passado, três dos mais prestigiosos escritores britânicos publicaram uma carta no The Times, condenando atitudes racistas de integrantes da oposição britânica. Escreveram Simon Sebag Montefiore, Simon Schama e Howard Jacobson: “Estamos alarmados pelo fato de, nos últimos anos, críticas construtivas a governos israelenses se terem transformado em algo mais
Corbyn, embora se defina como um “socialista democrático”, não vê problemas em se aproximar do regime teocrático iraniano ou em elogiar os fundamentalistas do Hamas ou do Hezbolá. Em 2012, apoiou Raed Salah, líder islâmico em Israel, conhecido por seus discursos antissemitas.
Na missiva, Montefiore, Schama e Jacobson apontaram: “Acusações da conspiração judaica internacional e de controle da mídia ressurgiram para alicerçar as falsas comparações de sionismo com colonialismo e imperialismo”. A observação corresponde a uma precisa radiografia de posições disseminadas por integrantes de grupos esquerdistas, como a liderança de Jeremy Corbyn no Partido Trabalhista.
Quatro anos atrás, Corbyn esteve numa cerimônia na Tunísia para homenagear, com coroa de flores, terroristas responsáveis pelo assassinato de atletas 53
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israelenses na Olimpíada de Munique, em 1972. “Imagine se um político israelense colocasse flores no túmulo de assassinos que mataram pessoas em Londres ou na Inglaterra – como o povo britânico aceitaria isso?”, declarou Ankie Spitzer, cujo marido foi morto no atentado ocorrido na Alemanha.
Trabalhista não vai desaparecer? ” e argumentou: “A acusação contra Corbyn é que ele permaneceu tanto tempo nos extremos do movimento pró-palestino que se tornou incapaz
Um dos maiores escândalos foi protagonizado por Ken Livingstone, prefeito de Londres entre 2000 e 2008. O político, conhecido por suas posições extremadas à esquerda, chegou a disparar, numa entrevista inaceitável e estapafúrdia, que Adolf Hitler havia apoiado o sionismo. Em 2016, foi suspenso por dois anos do Partido Trabalhista e, em maio deste ano, pediu desligamento do vínculo partidário.
Recentemente, um blogueiro britânico postou vídeo de uma entrevista de Jeremy Corbyn ao canal iraniano PressTV, realizada em 2011, quando o político britânico afirmou que a BBC demonstra um viés “ao dizer que Israel tem o direito de existir”. Especialista em assuntos ligados ao trabalhismo, o jornalista britânico Stephen Bush escreveu, em agosto, texto no The New York Times, sob o título “Por que o escândalo de antissemitismo no Partido
de diferenciar, quando a ouve, uma crítica legítima a Israel do discurso de ódio contra judeus britânicos. Adicione-se ao problema o fato de alguns dos mais vocais apoiadores de Corbyn em redes sociais (...) frequentemente repetirem falas antissemitas”.
No trabalhismo britânico, vozes pedem agora a saída de Corbyn da liderança. A deputada Margaret
Jeremy Corbyn
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dos judeus britânicos, declarou sobre as restrições: “A decisão da executiva nacional do Partido Trabalhista e a mensagem enviada à comunidade judaica britânica é totalmente desprezível. O dano a ser imposto em nossa credibilidade como partido político antirracista é responsabilidade da liderança. E apenas dela”.
Hodge, numa reunião do partido, declarou a Corbyn: “ (O problema) não é o que você diz, mas o que você faz, e por suas ações você já demonstrou ser um racista antissemita”. As principais lideranças judaicas do Reino Unido, em março, também se posicionaram, ao lançar uma carta aberta, e apontaram o fato de Corbyn se encontrar “repetidas vezes ao lado de pessoas com visões descaradamente antissemitas, mas argumenta jamais ouvi-las ou lêlas”. O texto acrescentou: “De forma recorrente, Jeremy Corbyn fica ao lado dos antissemitas, em vez de se posicionar ao lado dos judeus”. Numa tentativa de aplacar a pressão e as críticas, a liderança do Partido Trabalhista aceitou endossar a definição de antissemitismo da Aliança Internacional para a Memória do Holocausto, organização criada em 1998 por Goran Persson, ex-premiê da Suécia.
Rabi lord jonathan sacks
A AIMH, se transformou numa referência internacional no trabalho voltado à educação e combate ao racismo. No entanto, a direção do Partido Trabalhista gerou novo capítulo na crise ao rejeitar, até agosto, quatro dos 11 artigos da definição de antissemitismo feita pela entidade baseada em Berlim. Wes Streeting, deputado e co-presidente do grupo parlamentar suprapartidário
Em sua fala recente à rádio BBC, o rabino Jonathan Sacks observou: “Venho fazendo o programa Pensamento para o Dia há trinta anos, mas jamais pensei que, em 2018, eu teria ainda que falar sobre antissemitismo”. No final, o rabino fez um alerta: “Onde houver ódio, a liberdade morre, e é por isso que cada um de nós, especialmente nós, líderes, precisamos agir contra o poder corrosivo do ódio”.
Jaime Spitzcovsky foi editor internacional e correspondente da Folha de S. Paulo em Moscou e em Pequim
Protesto contra o aumento do sentimento antijudaico no Reino Unido e na Europa
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O segredo de Jacob Sztejnhauer A família Sztejnhauer jamais poderia imaginar a importância da participação de seu patriarca, Jacob, junto a Chiune Sugihara e Jan Zwartendijk, respectivamente, cônsules do Japão e da Holanda, na Lituânia, durante a 2a Guerra Mundial. Seu papel foi fundamental no salvamento DE milhares de judeus do Leste Europeu. A revelação dessa história mudou a vida da família para sempre.
Sem entender o que a mãe queria, Joy perguntou: “Eu não sei de ninguém que tenha conhecido esse cônsul. E a senhora? ”. Ao que a mãe respondeu: “Sei, sim. Seu pai”. Mal sabia Joy, então com 37 anos, que ele e sua irmã, Michaela, estavam prestes a ouvir o relato de um segredo de família, guardado durante tantos anos...
S. Paulo, setembro de 1995 No andar superior do número 648 da Rua José Paulino, no Bom Retiro, o interfone toca, interrompendo o trabalho de Joy Sztejnhauer, que conferia a produção da fábrica de roupas femininas, que seus pais, Jacob e Básia, haviam fundado anos antes. Do outro lado da linha, sua mãe pedia que ele a encontrasse na loja, no térreo da fábrica. Ela tinha algo para lhe mostrar.
Pano de Fundo: Vilna, 1940 Após o fim da 1a Guerra Mundial, em 1918, vitoriosos, França e Reino Unido decidiram restabelecer dois Estados nacionais: Polônia e Lituânia. As duas nações passaram a disputar um território que compreendia a cidade de Vilna, ou Vilnius. Em 1920, durante a Guerra polaco-lituana, as forças polonesas ocuparam a cidade. Quando um cessar-fogo foi assinado, Vilna estava em mãos polonesas e foi incorporada à Polônia.
Joy foi ver a mãe, que lhe exibiu o anúncio publicado em um jornal em iídiche, voltado para a comunidade judaica do Leste Europeu que vivia no Brasil. Nele, um pedido para que pessoas que tivessem conhecido Chiune Sugihara, cônsul do Japão na Lituânia, no início da 2a Guerra Mundial, comparecessem a uma homenagem a ele no clube A Hebraica, na qual estaria presente sua viúva, Yukiko Sugihara. Chiune Sugihara havia sido responsável por salvar 4,5 mil judeus da Lituânia1.
Em 1o de setembro de 1939 estoura a 2ª Guerra Mundial. No final do mês, de acordo com o Pacto Nazi-soviético, pacto secreto de não-agressão assinado nove dias antes entre a Alemanha e a URSS, Vilna, juntamente com a região leste da Polônia, é ocupada pelos soviéticos. O restante da Polônia fica em mãos alemãs. Em 28 de setembro, após serem estabelecidas
De acordo com a fundação Sugihara House, com sede em Kovno, Lituânia, o cônsul salvou a vida de 6 mil judeus. Entretanto, numa entrevista dada pelo próprio Sugihara, em 1977, e recuperada pelo Yad Vashem, ele afirma que concedeu cerca de 4,5 mil vistos. De acordo com a Jewish Virtual Library, ele foi o segundo na lista de não-judeus a salvar judeus na Shoá.
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memorial DO GUETO DE VILNA
as linhas divisórias entre Alemanha e URSS, Stalin cede Vilna à Lituânia após concluir um pacto com este país, assim como com a Letônia (Latvia) e a Estônia, obtendo desses países direito a estabelecer bases militares em seus territórios. O número de judeus que viviam em Vilna ao eclodir a Guerra girava em torno de uns 60 mil2. A eles se juntaram milhares de judeus poloneses – estimados entre 12 e 20 mil – que haviam fugido da Polônia sob domínio alemão. Os judeus de Vilna mal podiam acreditar nos relatos desses refugiados sobre o tratamento que os alemães reservavam para os judeus – os maus tratos, os confiscos, os trabalhos forçados, as mortes sumárias.... A população judaica de Vilna, em 1939, varia entre 55 mil e 70 mil, dependendo da fonte.
No verão de 1940, durante uma viagem à datcha da família (em russo, casa de campo), Básia Sztejnhauer entendeu que a Guerra estava prestes a chegar à Lituânia. O retorno a Vilna já prenunciava os tempos difíceis: foi feito a pé, pois
as estradas estavam bloqueadas pelo exército soviético. Em 21 de julho todo o território lituano, inclusive Vilna, foi incorporado à União Soviética, tornando-se uma das Repúblicas da URSS. Forças soviéticas são então enviadas à Lituânia, e um governo prósoviético é instalado. De volta a Vilna, Básia soube que o novo governo determinara que cada família teria sua casa ou apartamento dividido em quatro partes, tendo direito a ocupar apenas uma delas.
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Michaela e Joy Sztejnhauer
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Os Sztejnhauer, Básia, Jacob e seus dois irmãos, Lova e Lipman, porém, ficaram em situação um tanto melhor. O Dr. Lova era renomado médico e diretor do hospital local, e, por isso, a família teria direito a duas partes, sendo uma delas transformada em consultório. SETEMBRO 2018
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Naqueles dias, eram constantes as reuniões no Sindicato dos Peleteiros. E um desses peleteiros era Jacob Sztejnhauer. Num desses encontros, no dia 30 de julho, um coronel da NKVD3 chegou de surpresa e perguntou quem ali dominava os idiomas lituano, iídiche, polonês, alemão e russo. Ainda que assustado com o “recrutamento” inesperado, Jacob se apresentou. Ao que o coronel ordenou: “Amanhã, às 7h, quero você na sede da NKVD”. No dia seguinte, no horário marcado, Jacob estava diante do oficial. A partir daquele encontro, sua vida ganharia outro sentido. Para sempre.
A Missão Milhares de judeus queriam deixar a Lituânia, vendo os avanços dos exércitos de Hitler com preocupação. Além disso, a vida judaica sob os soviéticos não era fácil. Mas, a NKVD: Comissariado do Povo para Assuntos Internos ou Ministério do Interior da União Soviética, embrião da KGB.
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de saída que iriam autorizar os judeus a embarcar no trem Transiberiano que cruzava todo o território soviético. O coronel avisou a Jacob que estava autorizado a emitir os vistos de saída somente àqueles judeus que já possuíssem o visto de trânsito do Japão, fornecido pelo Cônsul Chiune Sugihara.
LOVA Sztejnhauer
burocracia para deixar a Lituânia era imensa. Era necessário um passaporte, um visto de saída soviético, um visto de trânsito e, finalmente, um visto de entrada no país que os tivesse aceitado. Boquiaberto, Jacob ouviu o que deveria fazer a partir daquele 31 de julho. Ficaria sob sua responsabilidade cuidar de um dos pré-requisitos para que os judeus pudessem deixar o país. Ele seria o responsável por emitir os vistos
Durava cerca de um mês a viagem no trem Transiberiano com destino ao fim da linha, Vladivostok, cidade soviética no Oceano Pacífico. De lá, os judeus seguiriam para o Japão e, a princípio, para Curaçao, uma ilha holandesa no Mar do Caribe. A bem da verdade, não era necessário visto de entrada para Curaçao, mas o governador local precisava conceder uma “permissão” de desembarque – algo que raramente acontecia. O cônsul da Holanda na Lituânia, Jan Zwartendijk, decidiu fornecer aos judeus permissões de entrada – por sua própria conta e risco, pois a Holanda havia sido tomada pelos alemães em maio de 1940. Os dizeres das permissões eram propositadamente “diferentes”. Neles constava que “Não é necessário visto de entrada para estrangeiros no Suriname, Curaçao e outras possessões holandesas na América”, mas era omitida a frase “… necessitam da permissão do Governador local”... Como vimos acima, o visto de trânsito do Japão era indispensável para um judeu embarcar no trem Transiberiano. Quando, em julho de 1940, as autoridades soviéticas determinaram que todas as embaixadas estrangeiras deixassem Kovno de imediato, o cônsul do Japão, Chiune Sugihara, obteve autorização para permanecer mais algum tempo. Como relatado no
Lipman, Jacob e Basia Sztejnhauer, no Uruguai
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livro “Passaporte para a Vida”, escrito por sua viúva, Yukiko Sugihara, o cônsul passou a trabalhar de manhã à noite, sem parar, emitindo o maior número possível de vistos de trânsito. Jacob seguia no mesmo ritmo, escrevendo sem parar vistos de saída. Salvar o maior número possível de judeus embarcando-os no trem Transiberiano era uma corrida contra o relógio. O ritmo de trabalho era tão frenético, que Jacob chegou atrasado ao próprio casamento religioso, celebrado no dia 13 de agosto, na clandestinidade, já que ia contra as leis soviéticas.
Chiune Sugihara
A cerimônia estava marcada para as 20h, mas o noivo só chegou à 1h do dia 14. “Não podia parar. Cada minuto era uma vida que eu ajudava a salvar”, costumava dizer Jacob. A operação de salvamento durou 29 dias, encerrando-se em 28 de agosto de 1940, quando Jacob foi novamente convocado pelo
coronel a se apresentar na sede da NKVD. “Yasha ( Jacob, em russo), não emita mais vistos. Você vai sair daqui acompanhado por dois soldados meus. Eles vão levá-lo até uma floresta. De lá, você deverá fugir e não voltar mais para casa. Quanto a mim, saiba que sou judeu. Mas não se aflija. Minha filha conhece uma pessoa importante no governo soviético. Estou protegido. Mas se o pegarem, os soviéticos o matarão”. “Então, coronel, o que fizemos até agora foi ilegal? ”, perguntou Jacob, já desconfiando da resposta que receberia. “Sim”, assentiu o oficial. Jacob deixou a sala do coronel ciente de que ajudara a salvar milhares de correligionários. Mas... ele não obedeceu às ordens do oficial e voltou ao endereço onde vivia com a família. Jacob e Básia, Lova e Lipman tinham aberto mão do direito aos vistos para deixar Vilna, a fim de que outros judeus fossem salvos em seu lugar. Eles confiavam que D’us os protegeria... Como, de fato, aconteceu.
1. Papel timbrado da Ferrovia Transiberiana, produzido pelo Escritório Intourist, com o caminho da ferrovia, 1940-1941 2.Visto de trânsito emitido para Feiga Market, em lituano, com japonês, russo, inglês e francês. Kaunas (Kovno), Lituânia, 1940
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O gueto de Vilna A Alemanha nazista invadiu a União Soviética em 22 de junho de 1941. Eram fortes os sinais de que os alemães se preparavam para invadir, porém, Stalin, iludido pelo Pacto, recusou-se a crer nas evidências apresentadas por seus generais e não ordenou uma mobilização militar. Quando a Alemanha desfechou o ataque, o avanço foi rápido pelo território soviético. O exército alemão entrou em Vilna em 26 de junho de 1941, seguido pelos esquadrões da morte dos Einsatzkommando. Com extrema rapidez, os alemães começam a pôr em prática seus planos para a “Solução Final”. Acredita-se que as primeiras execuções em massa dos judeus de Vilna ocorreram em 4 de julho em Ponary, que ficava a 10 Km da cidade. Desde a chegada dos Einsatzkommando até a criação do Gueto de Vilna, no dia 6 de setembro, mais de 20 mil judeus foram assassinados. A maioria era executada a tiros, em massa, e jogada em valas comuns em Ponary.
Em 6 de setembro, os nazistas ordenaram a transferência de todos os judeus para um Gueto, estabelecido no bairro judaico. Eles dividiram a área em Gueto Grande (I) e Gueto Pequeno (II), separados por um corredor “neutro”. No Gueto Grande foram trancafiados 29 mil judeus e, no Gueto Pequeno, entre 9 e 11 mil. As condições de vida eram infernais: o trabalho escravo, as surras, a fome, a falta de aquecimento, de higiene, de medicamentos, as epidemias, tudo era parte do dia a dia dos judeus do Gueto de Vilna. Até dezembro de 1941, as matanças eram uma constante. Com regularidade, os Einsatzkommando e colaboradores lituanos entravam no Gueto para realizar operações-surpresa, chamadas de Aktionen, levando milhares à morte em Ponary. Para “reduzir” o número de judeus de forma “eficiente”, mantendo os que podiam trabalhar para eles, os nazistas passaram a emitir permissões de trabalho (schein) aos considerados “produtivos”. Os judeus considerados “improdutivos” foram rapidamente “eliminados”.
Em 1o de outubro, dia de Yom Kipur, foram presos os judeus que não possuíam essas permissões de trabalho, sendo, em seguida, liquidado o Gueto Pequeno. Os que não foram assassinados durante as “ações” foram levados a Ponary e mortos a tiros. As “ações” nazistas pararam em dezembro e o gueto entrou em um período de “estabilidade”. Passara a ser um gueto de trabalho. Sua população havia sido reduzida aos 12.500 judeus com permissões de trabalho válidas e havia cerca de 3 mil escondidos, não se sabendo ao certo quantos tinham conseguido fugir.
de Volta aos Sztejnhauer Básia, Jacob, Lova e Lipman estavam entre os sobreviventes quando o Gueto entrou no “período de estabilidade”. Continuaram vivendo em parte do apartamento da família, que ficava dentro do Gueto Grande, ao lado do muro. Eles contavam com certa “proteção”, devido ao cargo administrativo do Dr. Lova no hospital local, como vimos acima. Básia trabalhava com artigos de couro e graças a esses produtos conseguiu escapar da morte. Certo dia, estava manipulando suas peças quando nazistas invadiram o prédio. O oficial que primeiro entrou onde estavam manuseando o couro usava botas, luvas e casaco de um couro negro reluzente. Ao ver a produção de Básia, seu rosto se transformou em admiração e ele deu ordens para que aquelas pessoas não fossem evacuadas.
Policial lituano, colaborador dos nazistas, com prisioneiros judeus, 1941
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Com o cerco aos judeus se fechando, Básia, Jacob, Lova e Lipman buscavam uma forma de fugir do gueto. Conseguiram convencer
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uma mulher lituana, Stashia, que respeitava muito o Dr. Lova e trabalhara durante anos para a família Sztejnhauer, a escondê-los no porão da casa onde vivia. Mas ela impôs a condição de não trazerem Básia. O temor da lituana era que, sendo mulher, Básia não seria capaz de controlar suas emoções e poderia revelar o esconderijo. Se isso acontecesse, todos, inclusive ela, seriam fuzilados. Os nazistas consideravam crime punido com a morte esconder ou ajudar algum judeu. A decisão que os Sztejnhauer teriam que tomar era terrível, mas Lova tinha certeza de que convenceria Stashia a mudar de ideia – o que de fato aconteceu. Logo após se mudarem para o esconderijo Básia se juntou a eles. Apenas Lipman estava em outro local. Um padre o ajudara a se esconder atrás do altar de uma igreja. O período de estabilidade dentro do gueto durou até agosto de 1943, quando os alemães reiniciaram as deportações. Os nazistas “liquidaram” o Gueto de Vilna nos dias 23 e 24 de setembro, enviando os judeus remanescentes para os campos de trabalho na Estônia e as câmaras de gás de Maidanek. Os Sztejnhauer, porém, haviam conseguido se salvar. Básia, Jacob e Lova continuavam escondidos no porão da casa de Stashia. Eles viviam em silêncio absoluto para não despertar a atenção de vizinhos e transeuntes. Para manter afastados possíveis curiosos, Stashia ainda espalhou nas redondezas o “boato” de que seu porão estava infestado de ratos gigantes. Habilidoso, Jacob usou a lenha que havia no porão para construir um cercado em seu interior, de modo que quem olhasse
ENTRADA DO GUETO DE VILNA, C. 1941-1943
da janela, do lado de fora, do nível da calçada, veria apenas madeiras empilhadas. Como viviam cercados de lenha, eles corriam sérios riscos de morrer carbonizados, já que os alemães incendiavam as casas quando havia alguma suspeita de haver judeus escondidos. Por causa de um desses incêndios, Stashia teve de pedir ajuda aos vizinhos para acionar um hidrante antigo, evitando que as chamas chegassem a seu porão e consumissem sua “valiosa” madeira (cujo real “valor” só ela sabia). Milagrosamente, o hidrante enferrujado funcionou. E assim se passaram meses, durante os quais Jacob, Básia e Lova aprenderam a conhecer as pessoas que andavam pela calçada através de seus sapatos. Stashia levava alimentos uma vez ao dia. Os banhos aconteciam mensalmente, quando o trio era escoltado, sob o mais absoluto silêncio, para dentro da casa onde ela vivia com a mãe (que não desconfiava do “crime” cometido pela filha). Numa dessas ocasiões, oficiais nazistas chegaram à casa delas exigindo comida e bebida. Rapidamente, os Sztejnhauer se esconderam embaixo das camas. Stashia serviu os soldados, que 61
foram embora, sem desconfiar das presenças “indesejáveis” ... Em 13 de julho de 1944, após uma luta ferrenha com as forças alemãs, os soviéticos entraram em Vilna. A cidade havia sido libertada. Mas, dentre todos os judeus da cidade, apenas uns 2 a 3 mil judeus haviam sobrevivido à fúria nazista. Dentre eles, os Sztejnhauer: Básia, Jacob, Lova e Lipman. Finalmente, sairam de seus esconderijos. Mas, enquanto caminham pela calçada, Jacob e Básia são surpreendidos por soldados soviéticos. O casal afirma serem judeus. “Mentira!”, refutam os soviéticos. “Não sobraram judeus por aqui! ”. Acusados de serem colaboracionistas, de terem ajudado os alemães, são levados a um paredão para serem fuzilados. Mas, devido ao russo perfeito falado por Jacob, conseguem se salvar, mais uma vez. Em troca de sua vida, ele, Lova e Básia são obrigados a recolher os cadáveres espalhados pelas ruas da cidade. Os Sztejnhauer decidiram deixar a Lituânia e recomeçar a vida em outro lugar. O Dr. Lova fez Aliá, estabelecendo-se como médico em Israel. Lipman, Básia e Jacob, após SETEMBRO 2018
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pelas que não conseguira salvar, como a de seus pais e sogros. Seu coração não aguentaria reviver tudo aquilo, como, de fato, não aguentou...”, revela o filho, Joy.
Voltando no tempo: Um cônsul com alma de samurai
Jacob e Basia Sztejnhauer com Sra. Sugihara
deixar a Lituânia, foram para a Romênia, dividindo o espaço em um vagão de trem de gado. Dali, seguiram para a Itália e o Uruguai, onde nasceu a primogênita de Básia e Jacob, Ana Michaela (Anita), e, finalmente, se estabeleceram no Brasil, onde tiveram outro filho, Joy. Lipman veio com eles, casou-se com uma israelense, chamada Sharona, mas não teve filhos. Antes de deixar a Europa, Jacob se apossou de fotografias, provas concretas dos crimes cometidos pelos nazistas. Ele as trouxe consigo e as guardou.
S. Paulo, Brasil, 20 de setembro de 1995
Mas a emoção foi grande demais para seu coração. Ao deixar a festa, ele disse ao filho que não se sentia bem. Seguiram para o Hospital Israelita Albert Einstein, onde Jacob sofreu um AVC. Anos depois, ele gravou um depoimento, com sequelas do AVC ainda visíveis, para o “Survivors of the Shoah”, projeto idealizado e realizado pelo diretor Steven Spielberg4. Jacob Sztejnhauer morreu em 2003, aos 90 anos. Sua Básia faleceria em 2014, aos 91. “Ele não gostava de relembrar aqueles acontecimentos... Embora tenha ajudado a salvar tantas vidas, acho que se cobrava
Era o ano de 1940, milhares de judeus tentavam deixar a Lituânia. Assim que a população judaica de Kovno ficou sabendo da possibilidade de conseguir vistos de trânsito para o Japão, aglomerou-se em frente ao Consulado do Japão, na cidade. De centenas, a multidão chegou a milhares. O então cônsul Sugihara foi informado de que uma delegação judaica pedia para vê-lo. Era chefiada por Zerach Warhaftig, que, anos depois, foi um dos signatários da Declaração de Independência de Israel e se tornou Ministro dos Serviços Religiosos, de 1961 a 1974. Comovido com o desespero daquelas pessoas, Sugihara pediu autorização ao governo de seu país para emitir os vistos – o que lhe foi sumariamente negado por três vezes. Sugihara encontrava-se em um dilema. Ou seguia obedecendo as ordens que recebera de seu país,
Com a família, Shiune Sempo Sugihara (sentado, à dir.) e a esposa Yukiko (à esq.)
A noite no clube A Hebraica havia sido maravilhosa. Pela primeira vez, Jacob ficara frente a frente com Yukiko Sugihara, a viúva do Cônsul. De 1994 a 2002, Spielberg coletou depoimentos de sobreviventes do Holocausto e os disponibilizou na USC Shoah Foundation - Institute for Visual History and Education, inaugurada por ele na Universidade do Sul da Califórnia, em 1994, com o intuito de manter viva a memória da Shoá.
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agindo, dessa maneira, de acordo com a disciplina e educação rígidas sob as quais havia crescido, ou cedia aos apelos de sua ancestralidade de samurai, cuja filosofia milenar ensina: “Nem mesmo um caçador pode matar um pássaro que voa em sua direção, buscando abrigo”. Sugihara optou pelo segundo caminho. Assim, como vimos acima, de 31 de julho a 28 de agosto de 1940, ele e sua esposa passaram horas escrevendo e assinando vistos de trânsito. Foram emitidos cerca de 4,5 mil vistos. Quando atingiu a marca dos 2 mil, o cônsul parou de registrá-los e de cobrar a taxa oficial. No final de agosto os soviéticos fecharam o consulado. Mesmo assim, Sugihara continuou a emitir vistos no quarto do hotel onde estava hospedado e, até mesmo de dentro do trem que deixou Kovno rumo a Berlim, em 1º de setembro de 1940. Quando o trem partiu, Sugihara ainda jogava vistos pela janela e entregou seu carimbo a um judeu, para que pudesse salvar ainda mais vidas. Atualmente, calcula-se em mais de 40 mil o número de pessoas que devem a vida aos seus esforços. Profissional de carreira, Sugihara sofreu as consequências de sua escolha. Em 1945, o governo japonês o demitiu do serviço diplomático. Depois da guerra, a exemplo de Jacob Sztejnhauer, ele nunca mencionou seus feitos. Apenas em 1979, seus atos seriam lembrados por um homem a quem havia ajudado a salvar,
O cedro foi a árvore da qual se extraiu a madeira usada na construção do Mishkan, o santuário móvel do deserto.
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Sharona, Jacob, Básia, Alter e Tova Bernstein, pais de Sharona, e Lipman Sztejnhauer
Yehoshua Nishri. Em pouco tempo, centenas de judeus se apresentaram creditando sua vida ao cônsul japonês. Seus depoimentos foram colhidos em todo o mundo e, então, Yad Vashem distinguiu seus atos de coragem. Em 1985, Sugihara e o cônsul holandês Jan Zwartendijk foram reconhecidos como “Justos entre as Nações”. Já muito doente e idoso, Sugihara não conseguiu viajar a Israel para a homenagem, enviando sua esposa e seu filho caçula, Nobuki, para representá-lo. Chiune Sugihara faleceu em 31 de julho de 1986, aos 86 anos – cinco dias antes de que o Japão, por meio de seu então viceministro das Relações Exteriores, Muneo Suzuki, admitisse a grandeza de seu ato humanitário, pedindo desculpas formais à família. Sua viúva, Yukiko, morreu em 8 de outubro de 2008, aos 95 anos, em Fujisawa, no Japão. Na homenagem que recebeu de Israel, Sugihara ganhou uma árvore plantada no Yad Vashem e em um bosque num parque em Jerusalém, com seu nome. A comissão responsável pela escolha da espécie a ser plantada no 63
parque havia decidido que seriam cerejeiras, símbolo do Japão. Mas, de última hora, escolheram os cedros – tanto para a árvore quanto para o bosque no parque. Por sua resistência e conotação sagrada5, seriam uma espécie mais apropriada para homenagear a bravura daquele homem. O fato espantou a Sra. Yukiko e seu filho caçula, já que, “Sugihara”, em japonês, quer dizer bosque de cedros! Naquele dia, ficou claro que a Hashgachá Pratit (Providência Divina) também homenageava Sugihara.
BIBLIOGRAFIA
Entrevista exclusiva concedida a Morashá pelo Sr. Joy Sztejnhauer, São Paulo, julho de 2018 Sugihara, Yukiko, Passaporte para a Vida (Ed. Notícias, Portugal, 1995) Reportagem “Cônsul violou regras para salvar vidas”, jornal Folha de S. Paulo de 24 de setembro de 1995 Site United States Holocaust Memorial Museum, de Washington: www.ushmm.org (“Vilna”) Site Yad Vashem: www.yadvashem.org (“Interview with Chiune Sugihara, recorded on August 4, 1977, in a Moscow hotel by Mr. Michinosuke Kayaba, the bureau chief of Fuji TV, Moscow” e “The Righteous Among The Nations: Sugihara Family”) SETEMBRO 2018
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Biblioteca Wiener, um dos maiores acervos da Shoá Em Londres, Praça Russel, Bairro de Camden, uma construção em meio a tantas casas de classe média alta abriga um dos mais antigos e maiores acervos sobre o regime nazista e o Holocausto - a Biblioteca Wiener, criada na Alemanha em 1920 e reinaugurada na Inglaterra, em 1939, na mesma época em que as tropas alemãs invadiam a Polônia. Soma atualmente mais de um milhão de itens.
Assim denominada em homenagem ao seu fundador, o alemão Alfred Wiener, herói da 1ª Guerra Mundial – condecorado com a Cruz de Ferro, a Biblioteca é fruto da determinação de um homem em coletar informações sobre o crescimento do antissemitismo no Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães1, o Partido Nazista, em outros grupos alemães e no seio da sociedade entre os anos 1910 e 1930. Foi um homem que conseguiu antever o trágico futuro das comunidades judaicas sob domínio nazista e deixou seu país em 1925, instalando-se primeiro na Holanda e, mais tarde, em Londres.
de itens incluindo artigos de jornais, análises inéditas, estudos acadêmicos, fotografias e depoimentos de pessoas que testemunharam um dos períodos mais sombrios da história da Humanidade. Como parte de sua agenda de atividades desenvolve uma série de projetos para incentivar a pesquisa, o ensino e a divulgação de fatos e dados ligados à Shoá, suas causas e consequências. Atualmente é, também, um elemento fundamental no combate ao antissemitismo e a outras formas de preconceito e intolerância. Sua reputação baseiase principalmente na independência e objetividade acadêmica. Tendo como público alvo pesquisadores, a mídia e o público de modo geral, tornou-se um memorial vivo da história da Shoá para as gerações futuras.
Nada no estilo arquitetônico do local revela o peso da história que suas paredes encerram. É internacionalmente reconhecida por estudiosos como uma fonte singular de informação sobre os primeiros passos do nacional-socialismo, no continente europeu, e o seu desenvolvimento até o final da 2ª Guerra Mundial. Possui mais de um milhão
Como começou As origens da biblioteca, antes mesmo de ser assim considerada, remontam à Alemanha da década de 1920, quando Wiener retornou ao seu país ao término da 1ª Guerra Mundial. Ele nasceu em Potsdam, em 1885, em uma próspera família judaica. Ao término de seu doutorado em Literatura Árabe na Universidade de Heidelberg, trabalhou por um curto período como
Em Alemão: Nationalsozialistische Deutsche Arbeiterpartei (abreviado NSDAP). O termo Nazi é alemão e decorre do Nationalsozialist.
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jornalista antes de se alistar em uma unidade de artilharia. Lutou nas frentes oriental e ocidental sendo condecorado com a Cruz de Ferro. Ao retornar, em 1920, assumiu a função de secretário do Grupo Judaico de Direitos Civis, quando pôde acompanhar, horrorizado, o crescimento do antissemitismo no país baseado na perigosa alegação de que os judeus eram os responsáveis pela derrota alemã no conflito. Passou a escrever artigos, proferir palestras e alertar a opinião pública, principalmente a judaica, sobre o que ocorria na Alemanha antes mesmo que o Partido Nazista assumisse o poder. A partir de 1925, data em que Hitler publicou sua famigerada “obra” Mein Kampf, percebeu no discurso dos partidários do nazismo e de outros grupos a ameaça cada vez maior à
continuidade de uma vida judaica em território alemão. Conseguiu convencer membros da comunidade da importância de organizar um arquivo sobre a situação e sobre os nazistas, procurando, com estas informações, combater o antissemitismo. Uma tarefa árdua e sem muitos resultados.
Dr. AlFred Wiener em seu gabinete, na Biblioteca, 1953
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Após anos tentando alertar a comunidade e, vislumbrando o trágico futuro cada vez mais próximo, Wiener e sua família deixaram a Alemanha em 1933, instalando-se inicialmente em Amsterdã, Holanda. Levou consigo seus arquivos. Após a Noite dos Cristais, em 9 de novembro de 1938, Wiener começou os preparativos para transferir sua coleção para a Grã-Bretanha, onde chegou logo após a invasão da Polônia pelas tropas de Hitler, em 1 de setembro de 1939. Ao longo da 2ª Guerra Mundial, o Escritório atuou como centro de informação para o governo britânico, que a ele se referia como “Biblioteca do Dr. Wiener”, nome que acabou sendo adotado posteriormente. Wiener tinha um acordo com departamentos do governo inglês para mantê-lo informado sobre os acontecimentos na Alemanha. SETEMBRO 2018
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Alfred Wiener, no centro, com colegas da Biblioteca, em Londres
Com o fim da Guerra e a divulgação dos horrores cometidos por Hitler e seus asseclas, o Escritório assumiu mais um papel importante: ser fonte de informação para o Julgamento de Nuremberg. Em seu acervo foram encontrados documentos inéditos da propaganda nazista, depoimento de sobreviventes, artigos e livros sobre a filosofia nazista, fotos e outros documentos. Panfletos antinazistas, livros escritos
por crianças, traduções oficiais do Julgamento de Nuremberg e depoimentos de vítimas da Noite dos Cristais também fazem parte de sua coleção. Entre os acadêmicos, há o consenso de que o acervo Wiener ajudou a delinear os primeiros fundamentos para os estudos da Shoá. Seu acervo continua a crescer desde então, levando à necessidade de um local mais adequado à sua importância.
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No entanto, a biblioteca permaneceu anos esquecida em um espaço alugado, mantida graças ao apoio de patronos judeus e um grupo dedicado de voluntários empenhados em conservar o acervo e atualizálo constantemente. Até que, em 2011, foi transferida para o número 29 na Praça Russel, uma casa restaurada em estilo georgiano, dentro da Universidade de Londres, dando início a um programa patrocinado pelo Heritage Lottery Fund cujo objetivo é tornar mais fácil o acesso. Desde a mudança, são realizadas visitas guiadas para professores, educadores e estudantes. Importante destacar que seu acervo inclui temas ligados ao currículo nacional de História, incluindo a ascensão do nazismo na Alemanha, propaganda, antissemitismo e crimes de guerra. Há, também, vasto material sobre religião, política, estudos alemães, cidadania e artes. Propaganda
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e Genocídio, A Experiência dos Refugiados Judeus, Resistência e Resgate são temas de programas especiais oferecidos pela biblioteca, quando solicitados. Em 2012, logo após a inauguração das novas instalações, a Biblioteca realizou a sua primeira exposição aberta ao público: “A, de Adolf: Ensinando os Valores Nazistas a Crianças”. Como parte da mostra, uma prateleira com livros coloridos, um jogo de tabuleiro com cores fortes e uma fotografia de crianças rindo. Ao olhar mais atentamente, o visitante podia perceber que as crianças da foto estavam ao redor de um bolo decorado com uma suástica. O jogo de tabuleiro exposto é uma versão alemã do clássico Parchesi, criado em Dresden, em 1936, chamado Juden Raus! (Fora Judeus!), no qual vence o jogo quem primeiro conseguir caçar seis judeus fora do gueto. Em outra estante, um jogo para adolescentes com fichas mostrando rostos de líderes nazistas com perguntas sobre os personagens. E, finalmente, um lindo livro ilustrado para ensinar o alfabeto para meninos e meninas no qual “A” aparece com a explicação “Adolf ”. “Com um acervo que combina depoimentos, testemunhos, jornais e trabalhos de pesquisadores, a Biblioteca Wiener tem desempenhado um papel único para os historiadores”, disse Richard J. Evans, professor emérito de História Moderna na Universidade de Cambridge e autor de três volumes sobre História do Terceiro Reich. Ele foi a testemunha principal de defesa da acadêmica americana Deborah E. Lipstadt, que, em
Sua Alteza Real, a Princesa Anne, na sala de leitura da nova sede da Biblioteca Wiener
2000, processou o escritor inglês David Irving que afirmava que o Holocausto nunca aconteceu. Para ele, o acervo de Wiener foi fundamental nesse processo. Dan Plesch, autor da obra America, Hitler and the UN, afirmou que a Biblioteca é uma fonte surpreendente de informações. Professor da Escola de Estudos Orientais e Africanos, da Universidade de Londres, disse que ao fazer pesquisas na Biblioteca encontrou uma declaração datada de 17 de dezembro de 1942 dos governos britânico, americano e soviético que parecia sugerir conhecimento detalhado prévio sobre o Holocausto alertando que “as autoridades alemãs estavam executando, de fato, a repetida intenção de Hitler de exterminar o povo judeu na Europa”. Desde a mudança de local, defendida pela professora Joana Bourke, da Universidade de Londres, o número de visitantes triplicou. Ela enfatiza, ainda, que o acervo não se limita ao Holocausto ou aos judeus da Europa, mas a inúmeros temas de interesse histórico. 67
Desde 2012 a Biblioteca Wiener é sede do International Tracing Service, um arquivo que Anne Webber, então vice-presidente da Comissão para a Arte Saqueada na Europa, chama de “o mais importante arquivo sobre o Holocausto na Europa”. Guardado por décadas pelo Comitê Internacional da Cruz Vermelha, o arquivo “possui tanto importância humanitária quanto acadêmica”. Foi somente em 2007 que a Cruz Vermelha permitiu o acesso a tais documentos. Atualmente a Biblioteca Wiener mantém parcerias estratégicas com o Centro para Educação do Holocausto do Instituto de Educação da Universidade de Londres, Instituto Pears para Estudo do Antissemitismo, Museu Judaico de Berlim, European Holocaust Research Infrastructure, Aktion Sühnezeichen Friedensdienste, Association of Jewish Refugees (AJR) Imperial War Museum, ITS International Tracing Service, entre outras instituições. SETEMBRO 2018
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OS HERÓIS ESQUECIDOS DA OPERAÇÃO TOCHA argel, manhã de 8 de novembro de 1942. Liderados por Bernard Karsenty e José Aboulker, 377 combatentes da Resistência anti-Vichy, praticamente desarmados, tomam pontos estratégicos e paralisam as forças de Vichy. O levante facilita a entrada na cidade de tropas norte-americanas da Operação Tocha. A grande maioria dos combatentes e seus líderes eram judeus. Esses jovens destemidos jamais receberam crédito por sua bravura. Simplesmente foram esquecidos pela História.
O
peração Tocha é o nome da manobra militar aliada que visava o desembarque de forças estadunidenses e britânicas na costa norte-africana, entre 8 e 11 de novembro de 1942, e a tomada de três alvos-chave: Argel, Orã e Casablanca. Havendo sucesso, os Aliados avançariam até a Tunísia. No comando da Operação estava o general Eisenhower, futuro presidente dos Estados Unidos1. As complexas preparações e os detalhes da execução dessa Operação, considerada entre as mais brilhantes da 2ª Guerra Mundial, vão além de nosso intuito. Mas, em linhas gerais, os objetivos Aliados eram abrir mais uma frente de luta contra a Alemanha, aliviando, assim, a pressão que os soviéticos estavam sofrendo; expulsar as tropas do Eixo do continente norte-africano e consequentemente controlar o Mar Mediterrâneo, preparando o terreno para uma invasão no sul da Europa, em 1943.
Em Argel, graças à atuação dos combatentes da Resistência local, os Aliados tomaram a cidade com facilidade, mas, por algum motivo, o episódio foi relegado a um mero rodapé na história da 2ª Guerra Mundial. Quando textos históricos que descrevem a Operação Tocha mencionam o “Episódio de Argel”, fazem-no de forma sucinta como sendo um dos atos de heroísmo dos partisans franceses. O relato oficial do exército dos Estados Unidos sobre o envolvimento militar de seu país na África do Norte apenas registra que “A Argélia caiu sob controle dos combatentes clandestinos da Resistência francesa à época em que se iniciaram os desembarques”. Mas esses relatos e praticamente todos os demais deixam de fora um aspecto crucial sobre o Coup d’Argel. Não apenas 315 dos 377 combatentes da Resistência eram judeus, entre quais os seus líderes, mas eles estavam motivados a lutar precisamente porque, sendo judeus, estavam sendo perseguidos e discriminados e lhes haviam sido retirados todos os seus direitos. O movimento de Resistência a Vichy na Argélia era, portanto, em seu cerne, um movimento de resistência
Dwight David “Ike” Eisenhower - Comandante Supremo das Forças Aliadas na Europa, comandou e supervisionou a invasão do Norte da África durante a Operação Tocha, entre 1942 e 1943. Logo depois, assumiu o planejamento da invasão da França e da Alemanha entre 1944 e 1945, no Fronte Ocidental.
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Convés de pouso do USS Santee, com bombardeiros SBD-3 e aviões de caça F4F Wildcat destacados para a Operação Tocha, no Norte da África, nov. 1942. No piso do deck, informações de alvo escritas a giz
judaica. Podemos encontrar esta informação apenas em alguns livros da História e em sites de museus judaicos sobre a Shoá, mas ainda assim de forma bem sucinta. No entanto, ainda que o Levante do Gueto de Varsóvia e outras lutas da Resistência Judaica, na Europa nazista, tenham tido maior importância política e psicológica, especialmente no sentido de ajudar a refutar a imagem de “passividade” dos judeus, o Coup d’ Argel foi o que mais ajudaria a mudar o curso da guerra. E foi, também, o único movimento de resistência judaica que salvou a vida de soldados aliados. Como escreveu Léon Poliakov, gigante entre os historiadores franceses que trataram da 2ª Guerra, “O papel do pequeno grupo de Aboulker foi extremamente decisivo na Guerra, em momento especialmente crucial”.
Resistência na Argélia Em outubro de 1940 o governo colaboracionista de Vichy na Argélia anulou a cidadania francesa dos judeus argelinos, instituindo
Dwight David “Ike” Eisenhower
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em seguida severas medidas discriminatórias anti-judaicas (Ver artigo à pág. 42). Mas, entre os judeus, havia muitos que não estavam dispostos a aceitar passivamente as perseguições e a violência. Entre os que se filiaram à Resistencia havia vários oficiais do Exército francês – jovens com treinamento militar que haviam lutado pela França antes da rendição do país à Alemanha, e que o Regime de Vichy desmobilizara por serem judeus. Encabeçavam a Resistência argelina vários membros da família Aboulker: Henri Aboulker, professor na Universidade da Argel e herói de guerra; seus filhos José e Colette; Dr. Raphaël Aboulker e seu irmão Stéphane; e Bernard Karsenty, primo de José Aboulker. Cultos e financeiramente bem-sucedidos, setembro 2018
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militar, Henri d’Astier iria ser uma das peças-chave da rebelião. Ele era um dos membros do “Comitê dos Cinco”, criado em 1941 por figuras importantes no governo da Argélia Francesa. Apoiavam o regime de Vichy, mas odiavam os nazistas. Em agosto, Roger Carcassonne reúne-se com José Aboulker, em Argel. Os dois concordam em estreitar os contatos e tomar as providências necessárias para preparar a luta armada.
Aliados traçam os planos
Um jipe sai de um barco de desembarque, durante a Operação Tocha
os Aboulker ocupavam lugar de destaque na comunidade judaica de Argel, e eram muito atuantes nas organizações comunitárias. Em Argel, os primeiros passos da Resistência foram dados no clube esportivo chamado Géo Gras onde foi criada uma organização de defesa que incluía cerca de 250 jovens judeus. Para melhor encobrir suas reais atividades, os jovens chegaram até a contratar um técnico não judeu, que não tinha a menor ideia do que realmente acontecia naquele clube. Divididos em pequenos grupos, os jovens começaram a sair em defesa de judeus atacados e a executar manifestações de resistência em pequena escala. Sinais de “V”, de Vitória, surgem nas paredes, da noite para o dia, seguidos por pôsteres contrários a Vichy. As notícias que recebiam por rádio de Londres eram transcritas em panfletos clandestinos. E nas docas ocorriam atos de sabotagem.
Na cidade de Orã, a Resistência havia sido organizada por Roger Carcassonne e seu irmão Pierre, primos de José Aboulker. Roger passa a desviar fundos de sua empresa para custear o movimento. Em março de 1941, um amigo o apresentou a Henri d’Astier de la Vigerie. Oficial da inteligência
Depois que os Estados Unidos entram na 2ª Guerra, logo endossam os planos britânicos de invadir o Norte da África. Nos meses de setembro-outubro de 1942, o presidente Franklin D. Roosevelt nomeia Robert Murphy seu Representante pessoal. Assumindo também o cargo de Cônsul dos EUA na Argélia, ele tem como missão secreta determinar o estado de espírito das forças francesas de Vichy e fazer contato com elementos que pudessem apoiar uma futura invasão aliada na África do Norte. Murphy foi bem-sucedido, recrutando vários oficiais franceses. Entre eles, o general Charles Mast, comandante-em-chefe francês na Argélia. Conseguiu também o apoio do “Comitê dos Cinco”. Além de Astier de la Vigerie, o tenentecoronel Germain Jousse também mantinha contato com a Resistência. Uma reunião clandestina foi realizada em Cherchell, na Argélia, na noite de 21-22 de outubro de 1942. Nessa ocasião foram traçados os planos para o desembarque norteamericano e a rebelião em Argel.
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Estavam presentes na reunião, entre outros, o general Charles Mast e Henri d’Astier de la Vigerie, do lado francês, e o general Mark W. Clark – um os comandantes seniores de Eisenhower. Bernard Karsenty era o único judeu. O general Clark desembarca de um submarino britânico, trazendo consigo uma carabina que foi entregue a Karsenty com promessas de que estavam por vir mais metralhadoras, granadas e outros. As promessas de armamentos nunca se concretizaram, mas os conspiradores estavam irredutíveis. Eles iriam adiante com os planos. Dominariam a cidade, prenderiam os generais, almirantes e prefeitos de Vichy, cortariam as comunicações com o mundo exterior e imobilizariam milhares de soldados franceses em seus barracões. Depois, era só entregar Argel aos Aliados. Nem que tivessem que fazer isso com facas, pistolas e antiquados rifles do século 19, o que de fato aconteceu...
A noite de sábado No dia 7 de novembro de 1942, a BBC transmite a ordem codificada: «Alô, Robert... Franklin chegou». Era a senha decidida em Cherchell para confirmar o desembarque de soldados norte-americanos nas praias perto de Argel. A Resistência recebe o aviso via transmissor de rádio instalado na casa de Henri Aboulker, que se havia tornado o quartel-general dos combatentes na noite de 7-8 de novembro. De acordo com o plano original haveria ao menos 800 combatentes divididos em grupos. As ordens eram neutralizar a 19ª Tropa do
Exército de Vichy, tomar o porto, paralisar as comunicações e tomar edifícios considerados importantes, inclusive a residência oficial do governador. Eles teriam, porém, que enfrentar forças militares superiores e bem armadas: mais de que 11 mil soldados das tropas de Vichy, mais 2 mil integrantes da milícia da Ordem Legionária e várias centenas de fascistas do Partido Popular Francês (PPF). Na última hora, para piorar a situação dos rebeldes, metade deles não aparece. Muitos deram para trás ao perceber que a luta ia ser totalmente desproporcional e que as armas prometidas não haviam chegado. Somente 377 rebeldes, dos quais 312 eram judeus, estavam prontos para iniciar o coup. Conforme os planos acertados em Cherchell, às 0 horas de 8 de novembro, apesar de estarem praticamente desarmados, os combatentes atacam. José Aboulker conseguira formulários em branco assinados pelo general Mast, nos quais havia datilografado autorizações para que tomassem de assalto os edifícios públicos. Alguns ônibus velhos os levariam ao teatro de operações. Eles conseguem neutralizar todos os centros de comando civil e militar de Argel. Os grupos sob o comando de Henri d’Astier de la Vigerie e José Aboulker tomam alvos-chave, incluindo a Delegacia Central de Polícia, o quartel do 19º Corpo Militar, estações de rádio e a residência do governador. Maurice Hayom, um jovem advogado, lidera o grupo que tomou o Palais d’Été, sede do governador geral. Paul 71
Ruff e quinze homens ficam em controle da central da Companhia Telefônica. Entre outros que também se destacaram naquela noite estavam um grupo de alunos do Lycée Ben Haknoun, guiados por um cadete, chamado Pauphilet. Eles haviam cercado a Villa des Olives e capturado o general Alphonse Juin, comandante-em-chefe das forças francesas na África do Norte. Com ele também foi preso o Almirante François Darlan, o segundo na hierarquia do regime de Vichy, que, coincidentemente, estava na Argélia. Para surpresa deles próprios, esse bando de jovens combatentes, munidos de garra, coragem e iniciativa, teve sucesso. Às 3 da manhã de domingo, a cidade de Argel estava em mãos dos insurgentes. Não menos surpreendente foi o fato de conseguirem manter sua setembro 2018
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supremacia durante mais cinco horas cruciais, facilitando às tropas aliadas a entrada na cidade, algo que não acontecera em Casablanca e Orã. Os insurgentes tiveram que fazer de tudo para manter as posições por mais tempo, pois houve atraso das forças aliadas na chegada a Argel. O tenente-coronel Jousse e o general Mast tiveram que ir ao encontro da 34a Divisão de Infantaria, instandoos a apressar a entrada na cidade, onde as forças de Vichy estavam recuperando o controle. No início da tarde, as forças de Vichy haviam conseguido reconquistar os pontos neutralizados durante a noite. Tentam, então, impedir o avanço dos soldados norte-americanos despachando as tropas para o Leste. Não conseguiram. O capitão Guy Pillafort e seus 47 companheiros, após se terem apoderado de inúmeros pontos vitais na cidade, haviam erguido barreiras, impossibilitando qualquer circulação. Mas, perderam seu capitão, que foi abatido mortalmente. Nesse ínterim, Robert Murphy se dirigira à residência do general Juin, levando uma mensagem do Presidente Roosevelt que lhe dizia que ordenasse a rendição e se juntasse aos Aliados. Juin respondeu dizendo que a mensagem devia ser entregue ao Almte. Darlan. Apesar de ser colaborador dos alemães, Darlan era, sobretudo, um oportunista que rapidamente reconhecera que a invasão poderia mudar a balança de poder na África do Norte. Assim sendo, propôs um trato: em troca do reconhecimento de seu status como Alto Comissário francês para a África Ocidental e do Norte, e comandante de todas as forças terrestres, marítimas e aéreas
da França na região, ele garantiria a cessação das hostilidades e o acesso irrestrito dos Aliados ao Marrocos e Argélia. Os Aliados teriam assim o caminho livre para atacar os alemães na Tunísia. Murphy e o general Mark Clark, aceitam a proposta e os combatentes da Resistência depõem as armas. Quinze horas após o início da invasão, a cidade de Argel estava em mãos dos Aliados, e, três dias depois, o Marrocos e toda a Argélia. E o que significou para os judeus o acordo fechado pelos norteamericanos com Darlan, que Roosevelt chamou de “recurso temporário”? Com o explícito endosso norte-americano, os fascistas de Vichy reteriam o poder na região. Argel continuaria em mãos de Vichy. Os americanos tampouco protegeram os corajosos partidários judeus e não judeus da Resistência argelina contra as ameaças de retaliação feitas pelos oficiais de Vichy. Uma vez concretizado o acerto com Darlan, muitos dos combatentes foram
aprisionados por aqueles a quem, horas antes, tinham imobilizado para ajudar as forças invasoras... Um desses combatentes judeus, o Dr. Paul Molkhou, que, à época, tinha apenas 19 anos, recorda o momento quando, após a situação ter virado e os homens de Vichy estarem de novo no comando, um dos altos oficiais que ele mantivera sob custódia prometeu vingança. Molkhou nunca iria esquecer-se “do rosto enfurecido do Secretário Geral do Governo de Vichy, ao lhe dizer: ‘Você é um terrorista gaullista; você será julgado e fuzilado’”. Poupado do pior, Molkhou foi preso na infame prisão Barbarossa de Argel, junto com uma dezena de camaradas. As autoridades militares norteamericanas, já em controle de Argel, defrontavam-se com perguntas cruciais: o que fazer com as centenas de conspiradores judeus que haviam arriscado a vida para apoiar a invasão aliada e a quem os homens de Vichy viam como traidores? O que fazer com os milhares de judeus – e outros antifascistas – que definhavam nos campos de concentração de Vichy e com as dezenas de milhares de outros judeus que se tinham tornado apátridas devido às leis discriminatórias do marechal Pétain? A resposta dos oficiais norteamericanos na Argélia, endossada por seus superiores em Washington, era curvar-se à conveniência da situação. Manter o statusquo facilitava a vida dos aliados interessados em prosseguir a luta contra os alemães, mais do que em resolver “questões locais”, apesar de seu comprometimento com a liberdade dos povos. Contudo, seria um erro alegar que não havia pessoas contrárias a essa visão no Departamento de Estado
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dos EUA. Alguns diplomatas na Argélia odiavam o jogo duplo e a desonestidade que caracterizavam a política pós-Operação Tocha dirigida aos judeus e outros partisans anti-Vichy. Para os judeus, as consequências foram paradoxais e dramáticas. A Argélia estava em mãos aliadas, mas as leis nazistas anti-judaicas continuavam vigorando. Em 15 de novembro, o general Giraud ordena o alistamento dos jovens judeus, mas apenas nos batalhões de trabalho, onde não poderiam portar armas. As crianças judias continuaram proibidas de frequentar os colégios, assim como os profissionais judeus não tinham permissão para exercer a profissão. Mais de mil judeus estavam em campos de detenção, juntamente com republicanos espanhóis, nacionalistas argelinos e comunistas. Todos eram sujeitos a trabalhos forçados, fome, tortura e morte. Ao entardecer de 24 de dezembro de 1942, o jovem Fernand Bonnier de La Chapelle, de 20 anos, atira no almirante Darlan, em Argel, matando-o. O jovem é executado. Giraud assume a posição de Darlan como Alto Comissário. Antissemita convicto, ele e os fascistas que o cercavam decidem livrar-se, de uma vez por todas, dos judeus participantes na Resistência, pois os resistentes não judeus já estavam em liberdade. Mandou prendê-los, entre eles José Aboulker e seu pai, enviando-os para um local remoto no deserto onde seriam executados. Mas, à última hora, a intervenção de agentes do Gabinete de Serviços Estratégicos 2
Operação clandestina de inteligência americana além-mar.
Tropas americanas entraram em Argel em 1942
(OSS)2 salva-lhes a vida. Arthur Roseborough, que dirigia a OSS na Argélia, vai, então, a Robert Murphy, pedindo sua ajuda para libertar o grupo. “A honra americana está em jogo”. “Velho amigo”, responde Murphy, “se você não tem nada melhor a fazer na África do que se preocupar com esses judeus e comunistas que nos ajudaram, por que não aproveita e volta para casa?”... Colette Aboulker conseguiu escapar da prisão e também entrou em contato do Robert Murphy, que nada fez. Mas ela também falou com jornalistas ingleses, na Argélia. O Primeiro Ministro Churchill já havia escrito diretamente a Roosevelt em 9 de dezembro, mostrando sua inquietação com o fato de que organizações fascistas continuassem ativas na Argélia, enquanto simpatizantes dos Aliados eram presos. Finalmente, em vista da preocupação internacional com a questão e a substituição do regime de Giraud pela França Livre de De Gaulle, os campos foram fechados e 73
os prisioneiros, libertados. Com isso, as medidas anti-judaicas foram, aos poucos, desaparecendo. Terá valido a pena? O golpe de Argel foi a vitória mais subvalorizada da 2a Guerra Mundial. Mas, diferentemente de seus irmãos judeus, que, seis meses depois, levantarse-iam em Varsóvia, os membros da Resistência na Argélia não escolheram morrer como mártires para não serem exterminados. Os judeus da Argélia lutaram bravamente ao lado dos Aliados pela França e pela liberdade, e ajudaram, valentemente, a derrotar o Terceiro Reich. BIBLIOGRAFIA
Artigo de Jacques Karoubi “L’opération Torch et l’action de la résistance juive à Alger” publicado no site www.judaicalgeria.com Artigo de Sidney Chouraqui “L’Opération “Torch” – Alger 8 nov 1942” Artigo de Robert Satloff “The Jews Will Have to Wait” publicado no site www. mosaicmagazine.com . Robert Satloff é o diretor executivo do Washington Institute for Near East Policy e o autor de diversos livros no Médio Oriente setembro 2018
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cartas
Vinte e cinco anos da revista Morashá difundindo o judaísmo. Muito mais do que parabéns, um agradecimento pelo belo trabalho e o prazer de ler e curtir o conteúdo de cada edição. Para mim são 100 edições de qualidade editorial, não só pelos artigos como também pela excelência da edição. Mas, certamente, todas as borbulhas do champanhe dQe 100 edições devem ser brindadas para a competente equipe da publicação. Nunca é demais... Parabéns. Max Nahmias Rio de Janeiro - RJ
Minha coleção da revista Morashá, após a encadernação, ficará na Biblioteca da Sinagoga de Passo Fundo, para estudo e pesquisa. Jaime Freitag Passo Fundo - RS
Sempre recebo a Morashá em minha casa, e é com muito prazer que leio e aprecio cada edição. Tenho uma coleção bem vasta desta excelente revista e as reportagens me são muito caras. Maria de Fátima Falcão Tocantins - to
Conheci o site www.morasha.com.br após pesquisar sobre costumes judaicos antigos. Gostei bastante de um artigo sobre a Sinagoga Judaica. Quero parabenizá-los pelo conteúdo muito enriquecedor. Sávio Freitas Acre - ac
Recebo a edição 100 da Morashá e, emocionada, envio nossas congratulações à Equipe. Nós também somos muito gratos pelo trabalho tão elucidativo e histórico, riquíssimo em informações, de textos bem elaborados por profissionais capacitados e fotos. Temas diversos e pesquisas que nos enriquecem e ensinam muitas coisas que ignoraríamos não fosse pelos envios destes 25 anos da revista. Morashá é uma revista que não se descarta nunca. Precioso patrimônio da nossa Herança Espiritual, é orgulho de nossa colônia! Shelly Rasel Salfatis São Paulo - SP
Recebemos a edição dos 25 anos da Morashá. Está maravilhosa, rica em matérias do interesse judaico e sionista. Parabéns pelo único e fantástico trabalho em prol do nosso povo e tradições. Um grande Yeshar Koach. Suzy e Osias Wurman Cônsul Honorário de Israel Rio de Janeiro - RJ
Sinto-me muito privilegiado e abençoado por D’us por ser um dos 28.750 recebedores desta revista que completa sua 100ª edição. Com certeza, devem ser mais de 100 mil leitores, pois quem a recebe, assim como eu, compartilha seus artigos com um círculo de amigos e admiradores do judaísmo, da cultura e sabedoria do povo do livro. Parabéns a toda a equipe Morashá, que brinda seus leitores com este primor de revista. Que D’us possa multiplicar mil vezes mais edições e leitores.
Parabenizo os envolvidos na publicação da revista Morashá, pelo esforço, carinho e elegância nas publicações. Talvez vocês não mensurem o impacto e mudanças na vida das pessoas que folheiam a publicação.Lembro-me que vi a revista pela primeira vez na Biblioteca do Centro Cultural de São Paulo. Chamou-me atenção, de imediato, a extraordinária capa, mas quando vi o conteúdo tornou-se amor à primeira vista. Por incrível que pareça, ontem, no Centro Cultural, deparei-me com a edição nº 100 de 25 anos. Fiquei emocionado. João Antonio dos Santos São Paulo - SP
Recebi e agradeço a Morashá 100, excelente documento histórico e cultural, do judaísmo e da vida.
Em 1960, ano do meu barmitzvá, assisti ao filme “O julgamento do Capitão Dreyfus”. Foi um dos meus primeiros contatos com filmes abordando o antissemitismo, e que me marcou. Cumprimento a revista Morashá pela matéria sobre o Capitão Dreyfus. Se a França da época de Dreyfus estava dividida entre forças reacionárias contra os judeus e os republicanos liberais a favor, atualmente, lamentavelmente, verifica-se que naquele país o antissemitismo perdura, fazendo com que muitos judeus franceses abandonem a França e rumem para Israel. Espero que esta matéria abra os olhos de muitos antijudeus.
Ilson Enk Porto Alegre - RS
Isaac Menda Porto Alegre - RS
Tiago S Bithencourt Por e-mail
Com grande gratidão escrevo para agradecer o envio das revistas. Fiquei muito feliz ao receber esta 100ª edição… seu conteúdo está precioso, aliás, como sempre tem sido com a Morashá nestes 25 anos. Todá rabá. Marcelo Martins Por e-mail
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Quero lhes felicitar por chegarem aos 25 anos. De vossa revista podemos ler artigos que podem nos interessar mais ou quem sabe menos, mas todos têm um nível fantástico. Na edição nº 100 da Morashá li com atenção o artigo sobre “A Lista de Schindler”, um filme que moveu o piso embaixo de nossas existências. Sou da primeira geração pós-guerra, meus pais se conheceram já na América do Sul. Minha mãe saiu de Viena depois do Anschluss, e como meu avô não tinha se naturalizado austríaco por ter documentos poloneses foi enviado a um campo de trânsito na fronteira com a Polônia, de onde pôde sair para a América do Sul, pois um cunhado havia conseguido 16 vistos. A família completa pôde chegar aqui. Minha mãe foi entrevistada pela Fundação de Steven Spielberg por ter sobrevivido à guerra... Eu levo em mim cicatrizes que meus pais me transmitiram e sinto a 2ª Guerra Mundial como uma página aberta. Há cinco anos me armei de coragem e viajei para a Alemanha, ir a Dachau foi uma ferida que se abriu... A esposa de Schindler, Helen, vivia na Argentina e a B’nai B’rit e outras instituições judaicas a ajudavam financeira e psicologicamente. Ela tampouco foi abandonada por seus Schindlerjuden e por aqueles que já sabiam, de antes do filme, quem ela era. Ela também tinha ajudado judeus a escapar. Obrigada por este artigo.
Parabéns, mil parabéns pela edição 100, e pelos 25 anos de dedicação e trabalho. Achei interessante e bem bolada a linha do tempo, e todos os artigos excelentes: “A Torá e os Profetas”, “Os 25 anos da Lista de Schindler” e “Kissinger: a libertação de Ahlem”. Esse, em particular, me deixou de queixo caído, não podia imaginar. Meus sinceros votos que vosso empenho e dedicação durem por muitos e muitos anos. Sem a Morashá o judaísmo do Brasil ficaria bem mais pobre.
Eva Sondermann Montevidéu, Uruguai
Morashá é uma linda revista cujos temas judaicos me permitem seguir a tradição. Parabéns.
Parabéns pela edição Morashá 100. Excelentes matérias e artigos. Semy Glanz Rio de Janeiro - RJ
Meus sinceros parabéns pelos 25 anos e 100 edições de Morashá. Cada exemplar desta revista é uma obra de arte que enriquece nossa cultura. Maravilhosa. Hans Freudenthal Por e-mail
Rafael Cohen Rio de Janeiro - RJ
Parabenizo toda a equipe e comunidade pelos 25 anos e 100ª edição de Morashá. Victor Leon Ades São Paulo - SP·
Tenho a alegria de ser assinante da Morashá. Esta 100ª edição está absolutamente perfeita. Parabéns. Marcelo Kalfelz Martins São Paulo - SP
Nosso agradecimento pelo recebimento regular da revista Morashá, de relevantes temas históricos do povo judeu e textos de grande importância para pesquisa e consulta na nossa Biblioteca. Aruza de Holanda Coordenadora Biblioteca Instituto Ricardo Brenand
Recife - PE
Ricardo Teruchkin Curitiba - PR
Parabéns à bela revista Morashá que completa um quarto de século. Kol Tuv. Ivo Koschland Jerusalém - Israel
Essa revista é tão boa, que merece ser lida e guardada para a posteridade. Fernando G. Oliveira Belo Horizonte, MG
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Informamos o recebimento de doação de exemplares da revista Morashá 25 anos (edição 100, jun. 2018). Reconheço a importância dessa doação para a atualização e enriquecimento do acervo da biblioteca Pública do Espírito Santo. Ana Maria da Silva Gerente do Sistema Estadual de Bibliotecas Públicas do Espírito Santo Diretora da Biblioteca Pública Estadual do Espírito Santo
Vitória - ES
A Morashá permite que eu continue aprendendo e ensinando a cultura do nosso povo. Audrei Pina Recife - PE
Parabenizo a todos os Diretores, funcionários e colaboradores da Morashá pela expressiva marca atingida com a edição nº 100! É um orgulho ser leitor da revista e desfrutar do conteúdo sempre muito interessante. A qualidade é outro predicado, com sua apresentação sempre ao melhor nível. Gilberto Guelmann Curitiba - PR
Nós, da Biblioteca Pública Municipal de Salto, agradecemos a gentileza de nos enviarem a revista Morashá. Carlos Eduardo Chagas Lima Biblioteca Pública Municipal Salto - SP
A revista Morashá é maravilhosa, acho que não tem igual. Muito, muito obrigada. Ivette Kabani Jerusalém - Israel
Não posso lhes contar a quantidade infinita de conhecimento que a revista Morashá me ofertou durante os anos em que a recebi, um tesouro que eu devorava com muita atenção. Com profunda gratidão, enviei-lhes um exemplar do meu romance, “Marrana! Amor e Intolerância em Tempos de Inquisição . Kátia Pessanha Paulínia - SP
SETEMBRO 2018