GRAMADO GONE WILD
Como um congresso pandemoniza a pacata Serra Gaúcha
rÉQUIEM PARA UM BOZO O velhinho de agasalho que parava o Playcenter
Os sons da cidade ESCUTE O COTIDIANO EM DIFERENTES PLANOS
POGOVIAS PIRIGUETES SOFÁs engajados sevilha revistanaipe.com
ÍNDICE 10 – /pogovia/ 14 – /ore ãu/ 16 – /sofá/ 21 – /kover/ 25 – /pretesto/ 28 – /sõ/ 36 – /bozo/ 45 – /amore/ 49 – /pirigete/ 50 – /sevi a/ y
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A Naipe é uma publicação da editora Naipe Comunicações Ltda. Redação, administração, publicidade e correspondência à rua Victor Meirelles, 600, Kobrasol, São José. Diretor executivo: Marlos Momm; Diretor administrativo e de publicidade: Thiago Steiner; Editor-chefe: Thiago Momm, thiagomomm@ revistanaipe.com; Repórter fotográfico e editor: Jerônimo Rubim, jeronimo@revistanaipe.com; Repórter: Rosielle Machado, rosielle@revistanaipe.com; Comercial: Daniele Marchi, comercial@revistanaipe.com; Direção de arte: Lobotomáticos, info@lobotomaticos.com; webdesign revistanaipe.com: In Vitro Digital. Foto da capa: Bruno Ropelato Impressão: Coan. Jornalista responsável: Thiago Momm, MTB 45919/SP.
FALE REALMENTE CONOSCO: Para resmungos e sugestões, fale com nossos editores pelo tel. (48) 9632 8866 ou o e-mail naipe@ revistanaipe.com. Assinaturas: assinatura@ revistanaipe.com Para anunciar, fale com nosso diretor de publicidade Thiago Steiner, (48) 8856 7646, thiagosteiner@ revistanaipe.com.
sotaques Uma universitária anda de pogobol na fila da ponte. Um editor dirige com a peruca original do primeiro Bozo por Balneário Camboriú. Um liquidificador é fotografado na rua Esteves Júnior, no centro de Florianópolis. E com essa pegada comemoramos um ano de Naipe. Até hoje foram seis edições da revista, um Guia de Verão e mais de 400 matérias, crônicas e ensaios publicados no site, que entrou no ar em 21 de junho de 2010.
E di to rial
Foram tantos e tão variados elogios neste ano de trabalho que mais vale começar pela autocrítica. Entre tantas metas, a Naipe ainda tem muito público e influência a conquistar; contato com a cidade a ganhar; equipe a ampliar, para que tenhamos mais e mais matérias ambiciosas. As coisas boas? Entre Luiz Carlos Prates de prancha, a redação vestida de Bozo e matérias sobre pornografia virtual, cerveja caseira, amor nos tempos da bolha ou sons da cidade, criamos uma voz própria – uma maneira jornalística, visual e manezinha particular de dizer as coisas. Está aí, acreditamos, nossa contribuição para quebrar um pouco a previsibilidade do mercado editorial. Esperamos não decepcionar os inúmeros leitores que apontam isso na Naipe. Um abraço, Thiago Momm, editor-chefe
cartas e quem fa z
Te irritamos? Te enternecemos? Escreva para a redação: naipe@revistanaipe.com Vamos reiniciar Floripa A matéria "Vamos reiniciar Florianópolis" da @revistanaipe é sensacional. Leitura obrigatória pra quem mora entre Naufragados e a Brava. @jofmeyer
Legenders Muito boa a última edição da @revistanaipe! Destaco a matéria sobre os legenders. @ZePauloSpeck
Antônio Prata Realmente ele escreve muito bem. Criatividade e originalidade bem aguçadas. Não sabia que ele era filho do Mário Prata. Parabéns pela entrevista. Gabriel, via site
Luiz Carlos Prates Acabo de ler a matéria da @revistanaipe com o Prates, tão vazia quanto as posições do entrevistado. Bem escrito mas #Fail @Compromitto Prates de prancha? vi isso agora na @revistanaipe. Mandaram muiiiito! @tatiope
Erramos medonhamente A Naipe escreveu que Luiz Carlos Prates era chileno. “Com aquela cara, bem que eu desconfiava”, disse um leitor. Mas não, Prates é gaúcho. Nasceu na pequerrucha Santiago, RS. Um erro antológico do editor Thiago Momm.
Chapeiros desta edição Thiago Momm é editor-chefe de Naipe. Nesta edição, abriu os ouvidos para escrever Os sons da cidade (p.28). Jerônimo Rubim é editor de Naipe. Para esta edição, resumiu o zeitgeist na matéria Gramado Gone Wild (p.25) Rosielle Machado é repórter de Naipe. Nesta edição, dormiu pensando no Bozo para escrever Réquiem para um Bozo (p.36). Bruno Ropelato é um fotógrafo prafrentex, colaborador de Naipe. Nesta edição, fotografou Os sons da cidade e outras. Luisa Nucada é estudante de jornalismo da UFSC. Para a Naipe 6, escreveu Ode à piriguete (p.48). Nina Guilhermetti é estudante de Arquitetura na Unisul e de Artes Visuais na Udesc. É dela a ilustração de Ode à piriguete (p.48). Claudia Mebs Nunes é intercambista em Sevilha. É dela a colaboração Vapores e ciganas (p.50) O sempre elogiado visual da Naipe cabe ao Lobotomáticos, estúdio de criação dos irmãos-sinapse Bruno e Diogo Rinaldi. Bruno foi diretor de arte por sete anos em agências publicitárias dos EUA. Diogo trabalhou como desenhista industrial nos EUA e no Brasil. Para esta edição, encarnaram os periodistas e escreveram a matéria "Play It Again, Sam" (p.14).
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Sopão•flertes
Naipe reforçada A Naipe, essa editora batuta, vem se engraçando cada vez mais por aí. Em maio, fechamos duas importantes parcerias: com o grupo RBS e com a editora Publish. Naipe e RBS fecharam um acordo entre sites. O clicRBS de Santa Catarina, maior site do Estado e top 60 do país, chamará na sua home conteúdos do revistanaipe.com. Ganha a Naipe com a associação a uma grande marca e a difusão das suas matérias, ganha o clicRBS com mais um tom de voz. “A parceria é muito importante para nós porque o site da revista Naipe traz para o portal um conteúdo inteligente, bem-humorado, jovem e com a cara de Floripa”, diz o gerente de internet da RBS em Santa Catarina, Eduardo Lorea. No revistanaipe.com o leitor encontrará uma barra fixa do clicRBS, podendo fazer o tráfego contrário. Já a parceria com a Publish visa aumentar a força das duas editoras. A Publish, responsável por revistas como Welcome to the Top, Sidesc e Top Gesto, vem crescendo rapidamente. “A parceria com a Naipe vai consolidar nossa expertise e levar ao mercado o que há de melhor em novas mídias”, entusiasma-se Jader Melilo, diretor-geral da Publish. A Naipe vê uma empolgante oportunidade de trabalhar com pessoas que enxergam lá na frente. E vamos que vamos.
iPod A World Study de Florianópolis está dando, todo mês, um iPod Shuffle para os ganhadores da promoção Curto meu mundo. Nada espinhoso. Uma foto criativa e você pode levar. Saiba mais a respeito no blog No campus do revistanaipe.com.
revistanaipe.com
Blogs e ninjas Confira cinco matérias negavelhas do revistanaipe.com Olha, mãe, um ninja http://bit.ly/ehakyK Performance com duas mulheres de burca no Shopping Iguatemi mostra com que olhos o diferente pode ser visto.
Procura-se o novo http://bit.ly/ipJlUT Colaboradora Camila Dias questiona a enxurrada de blogs de moda e a relevância dos conteúdos.
Mobilidade Urbana http://bit.ly/k5Qq75 Em fórum sobre mobilidade urbana, Naipe constata a presença zero de políticos, a despeito do interesse público: no Facebook, 64 pessoas curtiram a matéria.
Terezinha de Jesus http://bit.ly/mSKGc3 A Descomplicada Daniela Cucolicchio fala sobre segurar a alma de uma desconhecida a partir de um sorriso no ônibus.
Siga a Naipe no twitter: @revistanaipe Naipe no Facebook: Revista Naipe Leia todas as revistas já publicadas: issu.com/revistanaipe Acesse o site: revistanaipe.com
3º Congresso de Jornalismo Cultural http://bit.ly/kETdyr Durante uma semana em São Paulo, Naipe cobre evento que mescla críticos, artistas e até uma espécie de stand-up intelectual.
n a ipe • 09
Sopão•frases & visões
Veja vídeo e campanha
.com em revistanaipe.com
oLhó Frases que nos fizeram repensar o universo este mês
“Eu já fui uma promessa, cara.” Dentista entendendo o que é a vida de quase todo mundo aos 30 anos
“Putaria é o transporte público dessa cidade.” Prostituta mineira que mora em Florianópolis
“Será que você vai conseguir?” Uma morena no ouvido de um conhecido da redação que tentava se ereconcentrar
“Os funkeiro lá do Rio pega as mulhé melancia/ a gente tem a Farmácia/ pra fazê nossa alegria.” O lúdico Funk do Linguição. Assista em http://tiny.cc/js83s
Bruno Ropelato
revistanaipe.com
Pelas pogovias
A Prefeitura de Florianópolis mais do que demorou para incentivá-los; em 40 segundos, um pogobol ultrapassa até 10 carros na fila próxima à ponte Colombo Salles às 18h, como a Naipe comprovou ao observar a estudante da UFSC e usuária Fernanda Vieira, que protesta contra a falta de pogovias pela cidade: “Florianópolis ainda não está preparada”.
n a ipe • 11
Sopão•subterrâneos
Vou ativar a Storm Silver Range!
Por toda a minha vida Jogadores de RPG também fazem faculdade, casam, envelhecem – e seguem jogando por Rosielle Machado Sexta-feira, 19h, centro de Florianópolis esvaziando. Raul Barbosa bate o ponto na livraria em que trabalha e pega o caminho contrário ao fluxo. Sobe a rua ao invés de descer, anda até o supermercado, muda de calçada, entra no prédio, desce dois lances de escada. Garrafa de cerveja numa mão, pacote de Ruffles na outra, passa pela vitrine cheia de HQs e para na porta: – E aí, loucos do inferno! As três mesas da loja estão ocupadas por homens entre 20 e 39 anos que, como Raul, poderiam ter largado o expediente e ido para casa. Mas não: eles são advogados, fisioterapeutas, funcionários públicos, engenheiros e estagiários que preferem ficar no centro para jogar War Games, Board Games, D&D,
Magic e todas essas ramificações que nós, leigos, levianamente chamamos de RPG. A Toca da Revistaria, onde Raul e os amigos se reúnem às sextas, é um dos dois redutos dos jogadores ilhéus. O outro é a Dragon´s House. As lojas são parecidas: graphic novels, tabuleiros, manuais e miniaturas misturam-se a adolescentes magrelos e adultos nerds. Nas hobby stores, como são chamadas, ninguém olha torto para um homem barbado que diz gostar de temática medieval. Olham é com respeito, principalmente se você fizer algo como “matar o Dwarf com o Sneak Atack”, coisas assim. Frases enigmáticas desse tipo são comuns nas noites de torneio na Toca. Como a sala tem apenas três mesas, os participantes sobem para a praça de alimentação do prédio e duelam até as 23h. Um desavisado pode achar a cena meio esquisita: 12 homens, apenas dois ou três adolescentes, num silêncio sepulcral só quebrado por comentários como “Rola a iniciativa!”. Lá embaixo, na loja, a atmosfera é mais descontraída. Há frequentadores que nem fazem questão de subir para a competição. Preferem jogar em um clima mais amigável, do jeito que aprenderam há 10, 15, 20 anos.
Quando eu der a carga teu carinha fica stunned!
Astronauta, cavaleiro “Pra mim, o prazer de jogar é o mesmo da leitura”, compara Raul, 28 anos. “É um exercício de imaginação. Na infância o cara sempre quis ser um super-herói, e no jogo você pode ser um astronauta, um cavaleiro”, acrescenta o auxiliar administrativo Anderson Marques, de 29. Não é um prazer barato. Os mais aficionados por jogos gastam, por mês, cerca de r$ 250 em livros, quadrinhos, miniaturas e cards. Mas, dizem, é o preço que se paga para manter o aperfeiçoamento constante. “Comecei em 1989 e não consegui parar”, depõe o analista de sistemas Jean Charles, 39 anos. Ele explica que seu caso é raro, já que a paixão pelos jogos precisa passar por algumas provações como faculdade, namoradas, casamento. Jean, atualmente na fase do noivado, conta que o nirvana é resistir a tudo para, um dia, jogar com os filhos e levar o hobby adiante. Se instituída a tradição, pode ser que no futuro as mesas da Felipe Schmidt tenham tabuleiros e cartas de Magic em vez de peças de xadrez ou dominó. Vai saber.
Esta pauta foi sugerida pelo leitor Raony Osório. Envie também as suas ideias: naipe@revistanaipe.com
Perdi no dado play!
n a ipe • 13
Sopão•Toca raul
"Play it again, Sam!" Florianópolis insiste em covers de 40 anos atrás e não se abre para o que temos hoje por Bruno e Diogo Rinaldi Led Zeppelin. Rolling Stones, Queen, U2. Quem não gosta dessas bandas? Hoje em dia até sua vizinha deve ter uma camiseta com a linguinha de fora. Bobear ela comprou o LP na época que saiu, com encarte e tudo. Uma rápida pesquisa na agenda cultural revela que o fim de semana começa com forte tendência a clássicos do rock e um tributo a Bob Marley. Sábado, show de uma banda chamada Radio Vintage ("o melhor do pop rock internacional dos anos 80 e 90"), e daqui alguns dias há a oportunidade de se presenciar a “melhor banda cover do Abba do mundo”, uma homenagem a Bon Jovi ou a lamaceira de um tributo a Chico Science. Na colagem de cartazes nos muros da cidade, as palavras cover e/ou tributo são as mais comuns. Rodar pela ilha à noite às vezes soa como um velho cassete em modo repeat. Os Berbigão, Os Chefes, Projeto Immigrant. As bandas que tocam músicas dos outros são as mais conhecidas e fazem mais shows do que qualquer grupo ilhéu com composições próprias. Não há nada inerentemente errado com músicas cover. Nada melhor para algumas noites do que soltar seu Bono Vox, seu Mick Jagger ou até seu Freddie Mercury a todo volume. Música conhecida tem apelo, lógico. Entre uma música masomeno que você não conhece e um hit semi-bem-tocado, a maioria das pessoas escolheria a segunda opção para acompanhar seu caneco gelado. “Tentamos inúmeras vezes trazer trabalhos de bandas autorais, porém sem grande aprovação do público”, explica Cahuê Carvalho, um dos proprietários do John Bull Pub. Parece consenso entre as casas mais famosas dizer que bandas covers geram mais renda e uma empolgação previsível. “Estamos tendo um excelente retorno desde o ano passado, quando começamos a fazer [shows covers] com mais frequência”, conta Cahuê, completando: “O público tem correspondido em quantidade e a própria noite tem sido muito animada, pois os covers seguem à risca a interpretação, figurino e tudo o mais.” Para Léo Passos, gerente do Chopp do Gus, existe um problema técnico: “O tempo de show é muito grande, de 3 a 4 horas. É complicado ter uma banda que tenha um repertório próprio para tanto tempo”. Verdade. Temos bandas na ilha que conseguiriam tocar só músicas autorais por esse tempo todo? Bom, talvez o Dazaranha.
Immigrant garante casa cheia, mas casas noturnas poderiam alternar covers e bandas autorais
Start me up and I'll never stop Há, claro, bandas com composições originais tocando pela ilha e pelo litoral catarinense. Hoje mesmo um amigo demonstrou surpresa com um show de jazz num restaurante próximo. Bandas como The Skrotes, Samambaia Sound Club e Sociedade Soul já carregam gente suficiente para encher qualquer casa de bom tamanho na ilha. Para Emerson Gasperin, que editou a revista nacional de música Bizz, as bandas também tem que assumir a responsabilidade pela sua exposição: “Não serve mais essa desculpa de falta de espaço. Não é só palco, tem internet, outros espaços. Bandas tem que parar de colocar a culpa na cena. Falta autocrítica.” E não é só música cover que gera grana. Há casas que sobrevivem bem apenas promovendo músicas originais. O recém-reaberto Célula, por exemplo, abriga o Clube da Luta, vitrine de sons autorais desde 2006. “É consequência da união dos músicos pela música autoral”, explica Bruno Tristão, proprietário do Célula Showcase. Segundo Bruno, no passado "nunca se criou o hábito de colocar musica autoral, apenas esforços pontuais" que não vingaram pela falta de comprometimento da mídia, do público e das casas de show. E aí surge o problema do ovo e da guitarra. Qual vem primeiro, bandas com composições próprias e um show original sem espaço para tocar, ou oportunidades de mostrar seu trabalho afinado, mas tocando música dos outros? Segundo Gasperin, isso gera um ciclo vicioso. E aí soa a nota dissonante no universo cover. Cada show que depende de músicas dos anos 70, 80, 90 é um show em que o público não tem a chance de apreciar novas canções – que talvez tenham ainda mais a ver com sua realidade. Floripa está cada vez mais cosmopolita, com pessoas de diversos backgrounds culturais. Essa mistura é terreno bastante fértil para ideias diversas. Mas a produção cultural só tem chance se… derem/ dermos chance. Não adianta só cantar sobre a Inglaterra dos anos 70. Mais canções sobre o que é viver em Floripa em 2011, por favor.
Papéis Trocados Você conseguiria fazer o trabalho alheio? Com essa pergunta em mente, Naipe e Lobotomáticos trocaram de papéis. A redação da Naipe foi a responsável pelo visual desta matéria, e o estúdio de criação Lobotomáticos a apurou e escreveu.
Leia sobre música no blog
.com Pirão do revistanaipe.com
O que a Naipe conclui da história? “As questões técnicas do design já não são muito fáceis. E ainda queríamos tentar um visual mais subjetivo, sem referências muito explícitas, para não fugir do padrão da revista. Achamos que conseguimos um pouco, só”, dizem os editores Jerônimo Rubim e Thiago Momm E o Lobotomáticos? "Já tinha escrito um monte de redação na escola", diz um designer que não quis se identificar. "Mas pra deixar o processo mais realista entregamos o texto super-atrasado", acrescenta o patife.
Sopão•orelhõnx
Orelhões, esses invisíveis Eles dizem “oi”, ninguém dá bola; em quatro anos, um terço sumirá No meio da tarde de terça-feira, os três orelhões em frente ao Mercado Público de Florianópolis parecem cabisbaixos. Durante 20 minutos, nada. Passam pombos, emos, engradados, equipe de televisão. Os telefones ali, ignorados, tão carentes que estampam nas coberturas de acrílico verde: “Oi”. Ao redor, como por escárnio, quatro pessoas falam no celular, um homem até cospe. São tempos difíceis para ser um telefone público. De repente, mãe e filha se aproximam. A Naipe, que vigia a cena, se ajeita no banco para observar melhor. Mas nada: a menina chega perto do telefone, aponta, a mãe dá um sorrisinho, puxa a filha de volta. A coisa fica por isso. A criança só queria ver melhor aquele objeto sozinho, deslocado no meio do centro. Em Santa Catarina há 35 mil telefones públicos, seguindo a norma da Anatel de seis aparelhos para cada 100 habitantes. Até 2015 o número deve ser reduzido para quatro. A mudança, divulgada no começo de junho, levou em conta a redução nas vendas de cartões telefônicos, que foi de 53% nos últimos sete anos. A época de ouro dos orelhões foram os anos 1970 e 1980. Em 1972, recém-instaladas as coberturas em forma de orelha, a novidade era tanta que se fez necessária a explicação num jornal: “Para se conseguir o efeito desejado, deve-se ficar com a cabeça dentro do orelhão, bem junto ao aparelho”. Depois que a população aprendeu a usar os telefones, o governo decidiu multiplicá-los pelo país. O número pulou de 50 mil no começo da década de 1980 para 1,1 milhão em 2011.
Hoje, em tempos de distribuição quase gratuita de celulares pré-pagos (segundo o Censo 2010, a quantidade de aparelhos já ultrapassou a de habitantes), parece desperdício que num trajeto de 300 metros existam 15 telefones públicos. Caso se espalhasse a notícia de que falar em orelhão pode ser 90% mais barato, talvez a procura aumentasse. Enquanto a ligação de telefone público para fixo custa r$ 0,12 o minuto, a tarifa num pós-pago sai até r$ 1,36. “Mas usando as promoções de cartão compensa mais usar o celular, né?”, diz Nilcides Maria, prépago no bolso. Antes da compra, há dois anos, ela era adepta dos telefones públicos. Agora, mal lembra deles. “Celular é mais prático, você não precisa pegar chuva, vento e não corre o risco de não conseguir fazer a ligação porque o orelhão está estragado. Mas conheço gente que ainda usa.” Depois de 25 minutos esperando alguém dar atenção aos orelhões próximos ao Mercado Público, a Naipe enfim constata: sim, ainda há quem use. O triunfo dos cabisbaixos ocorre às 16h14. Um velhinho de boina, uma moça de guarda-chuva de oncinha e um homem de calças sujas se aproximam, quase que ao mesmo tempo, dos três telefones. Quando o último usuário, o velhinho, põe o telefone no gancho, o marasmo orelhonístico volta. Cinco minutos depois, como que em desespero, um deles até toca. Sete vezes. Ninguém parece escutar. (Rosielle Machado) n a ipe • 17
Sopão•With a little help from my friends
O bicho-grilismo contra-ataca De sofá em sofá, eles criam um mundo melhor – e acumulam invejáveis milhagens
Argentinos, poloneses, austríacos, gaúchos, cariocas e manezinhos falam sobre Floripa, América do Sul, o mundo, azeitados por doses da vodca Popokelvis. Mas o astro da noite é um sofá laranja-cansado meio rasgado.
o pior tipo, evito receber”. Todos concordam. Então o objetivo do Couch não é proporcionar viagens mais baratas? “É muito mais que isso: é um intercâmbio, uma troca”. Todos concordam efusivamente.
Muito já se escreveu sobre o Couchsurfing, site de hospitalidade que ajuda viajantes a arranjar guarida ao redor do planeta. Mas pouco se lê a respeito do real e ambicioso plano desses surfistas pós-modernos: “Participe da criação de um mundo melhor, um sofá por vez”, estampa a home do couchsurfing.com.
Mais de 17 mil pessoas se inscrevem por semana no site, já com quase três milhões de surfistas. Em sete anos de existência, os seus encontros formaram uma comunidade mundial que elegeu o sofá como símbolo de um novo mundo. As pessoas reunidas no Campeche viajam sempre que podem, sempre têm lugar para ficar e amigos espalhados pelo mundo. “Couchsurfing é ver com olhos locais”, alguém fala.
Em um dos muitos encontros dos Couchsurfers de Florianópolis, Raony Osório, 24 anos e muitas horas dormidas em sofás alheios, alerta os que só pensam em economia: “A pessoa que só quer viajar de graça é
Claro, há relatos de tentativas de abusos e recepções não muito legais. Mas são poucos,
e tudo isso passa a constar no perfil dos usuários, construído a partir de referências acessíveis a todos.
abrigou nove convidados de uma só vez na pequena casa do Campeche – e hoje recebe 18 no encontro.
No fim das contas, cada um recebe quem quiser, quando quiser, nas condições que quiser. As histórias comprovam o alcance inesperado da ideia: Raony já hospedou uma delegada aposentada da Polícia Federal no seu sofá, certamente alguém com salário de cinco dígitos; em uma viagem a Salvador, ele se surpreendeu ao ser recebido por um motorista no aeroporto e levado para uma mansão nos subúrbios; no site, há dezenas de depoimentos de pessoas estupefatas com “a riqueza, generosidade e interação genuína” proporcionadas.
Ela hospeda o simpaticíssimo casal argentino Alexander Novoa e Giannina Bazzi, que já passeou por vários países da América do Sul através do site. Os dois produzem e vendem artesanato para pagar as viagens, no melhor estilo hippiesem-destino. “Couch surfing és dar”, simplifica Giannina. Renata não estava em casa quando eles chegaram. “A janela da cozinha está aberta, entrem por lá”, escancarou a anfitriã numa ligação. Eles nunca haviam trocado mais do que algumas mensagens pelo site. O casal preferiu esperar pacientemente por quatro horas. Os anos 60 contra-atacam virtualmente. (Jerônimo Rubim)
“Se vicia? Eu não diria que é viciante... se bem que tenho sete pessoas em casa agora”, sorri Renata Kroeff, que já
Sopão•drops
Os domingos na capital andam mais traquinas. O agitado pessoal do Coletivo Sem Fronteiras agora inventou o Pic Nic Inusitado, um encontro meio-leseira-meio-atividade que propõe a contemplação das áreas de lazer da cidade com outras gafas. No primeiro encontro, em maio, umas trinta pessoas partilharam comida e risadas ao sol outonal da Beira-Mar Norte. Tinha até gente distribuindo abraços pra quem quisesse um chamego. A intenção é fazer o encontro em locais diferentes a cada 15 dias e promover oficinas de cultura, saúde e arte. Informe-se em coletivosemfronteiras.wordpress.com.
Prenda-me se for capaz
Qual Dalton Trevisan e Carlos Heitor Cony, o escriba de Jaraguá do Sul Carlos Henrique Schroeder está entre os 50 finalistas do insigne Prêmio Portugal Telecom de Literatura. Estariam as letras catarinenses mostrando que há mais coisas entre Curitiba e Porto Alegre do que os caldos de cana da BR-101?
Pois claro que há. Como em qualquer estado, temos mentes prenhes de grande literatura, escritores laureados na imaginação com o Prêmio Jabuti, milhares de páginas de romances elaboradas silenciosamente nos chuveiros e abortadas neste iconoclasta que é o Microsoft Word. Publicado mesmo temos Schroeder. Mas maldito mundo veloz, de vozes veladas veludosas vozes, que, a despeito da classificação de As certezas e as palavras à final da peleja lusófona com seu prêmio máximo de 100 mil patacas (resultado em novembro), quiçá não entenda passagens quiromaníacas como “Quando o jovem Werther de Goethe toca Carlota, ou mesmo o Charlus do Proust segura o queixo do narrador, o toque não é um gesto/ato fetichista ou egóico, mas sim o CONTATO no sentido barthesiano, assim como o inocente roçar de lábios no final de uma noite”. Filisteus.
As certezas e as palavras (Editora da Casa, 2010, 128 p., r$ 25, ou disponível para download pelo próprio autor em http://migre.me/4HxDk)
Gabriel Vanini
Chamegos dominicais
cancioneiro local
Como escreveram os designers da Naipe na matéria "Play It Again, Sam" (pág. 14), a ilha tem tendências musicais repetitivas. Mas dois projetos sinalizam novos tempos. No Songwriters, que acontece uma vez por mês, músicos autorais locais dão a cara à tapa em pocket shows no palco do Caffe Cult, junto à Escola de Música Rafael Bastos (R. Dom Jaime Câmara, 202, centro, Fpolis). Julgue as canções de pesos pesados e calouros saboreando uma Einsenbahn num clima de happy hour intimista – e ganhe argumentos para elogiar ou trucidar depois. Entrada gratuita. Saiba mais em projetosongwriters.wordpress.com.
Juju Barbi
O Palco Livre, que acontece todas as quartas no Porão 1007 (Al. Adolfo Konder, 1007, Centro de Fpolis), é outra oportunidade para o networking musical. Além de oferecer espaço para bandas, a ideia é que músicos (wannabe artists também são bem-vindos) individuais se unam para fazer um saladão musical de improviso.
Ilha da magia
Por um daqueles alinhamentos cósmicos que ocorrem de tempos em tempos e produzem uma modinha, pipocou certa onda de shows de mágica em Florianópolis: quase que ao mesmo tempo, o bar O Bohêmio, no continente, e o Porão 1007, no centro, começaram a promovê-los; em maio, a cidade recebeu o Le Magic Internacional Festival. Milena Moraes, produtora do La Bohême Magique, em cartaz há três meses no Bohêmio, diz que a novidade tem dado certo: no começo o público podia até ficar meio ressabiado com essa arte meio festinha de criança, mas logo tomou (ou retomou) gosto pelas cartas que desaparecem, mãos que criam neve do meio dos dedos e espadas atravessadoras de gargantas.
Devido a uma injunção de um desembargador em nome da sua filha (presente em algumas fotos), a Naipe foi obrigada a retirá-las pouco antes da impressão. Nos desculpamos profundamente pela falta das imagens Se beber não case 2 do congresso.
Gramado gone wild Entre open busões e avarias em hotéis, simpósio de Direito liquidifica a pacata serra gaúcha por Jerônimo Rubim
– Nome? – pergunta o motorista do ônibus – Ágata.
– Teu pai acertou no nome, és a gata mesmo. Também o motorista da excursão parece ter captado, já na saída de Florianópolis, o espírito do lendário Simpósio Nacional de Direito de Gramado. Reza a lenda que, há alguns anos, meninas no banco de trás de um carro abaixaram os vidros e levantaram as blusas. Em pleno frio e centro da cidade. Girls gone wild. Gramado gone wild. Mas você conta essa história para os que já foram ao simpósio e eles acham pouco.
n a ipe • 23
Sopão•benemerências
“O evento mais esperado pelos estudantes e profissionais da área de Direito!”, anuncia o site do Instituto de Ciências Jurídicas de Gramado. Verdade. Mas é também o evento mais esperado por centenas de estudantes de outros cursos. Todos sonham com o simpósio e suas virtudes: álcool, esquentas barulhentos em hotéis, pegação nos quartos, poucas horas de sono ao longo do final de semana. Se há público para as palestras, há mais ainda do lado de fora – o saguão do evento é um dos pontos de encontro no meio da tarde.
Open busão Não se sabe como tudo começou, mas o evento no final de maio já foi decretado feriado esporrento no calendário de party animals ilhéus há anos. Chega o mês das noivas e os alunos do curso de Direito da UFSC se alvoroçam pensando na serra gaúcha e suas promessas. “É um carnaval no frio”, confirma Diogo Figueiredo, 23, fundador da excursão Pinguim, que já funcionou quatro vezes desde 2006. Ele é um dos engajados em garantir que a tradição etílico-excursionista nunca pare. Esse ano, já formado, cedeu às pressões (diz ele) e organizou a ida de 65 cabeças a Gramado. r$ 300 garantiam aos festeiros transporte, estadia em hotel três estrelas e um open busão – Absolut, energético, refri e suco liberados durante a viagem. Na outra excursão que saiu do campus da Federal e tinha o sugestivo nome Desce Mais, o mesmo esquema. O estudante de Direito Mário Kobus e colegas levaram 86 pessoas em dois ônibus. O estoque de 12 garrafas de Absolut, 12 energéticos de 2 litros, 516 latas de Bohemia e seis Jose Cuervo durou até o primeiro esquenta em solo gaúcho. 2 4 • n a ipe
Contando com as inevitáveis garrafas seguintes, é de se entender que alguns hotéis não aceitem esse público. Outros fecham para hospedar apenas as excursões que usam o simpósio como desculpa. Restaurantes, baladas e lojas recebem de braços abertos a invasão barriga verde. Com manezinhos e os turistas de sempre, Gramado fica abarrotada. Os 11.500 leitos da cidade são ocupados no final de semana do Simpósio. “Os donos aumentaram o valor da estadia para cobrir custos de troca de gesso, carpetes, essas coisinhas”, diz Júlio Kraemer, gerente de hospedagem do Hotel Estrelas da Serra, que ficou lotado com excursionistas. O esquentas nos hotéis são famosos, assim como a manguaçada pós-balada dos hóspedes. As traquinagens vão de futebol no corredor com um globo espelhado a uma apresentação não-autorizada de banda de pagode, como uma patrocinada por Diogo há dois anos.“Não é exatamente que seja ruim, mas é bem diferente de ter só casais e senhores, como temos normalmente. Estamos acostumados a um ritmo mais calmo, de repente chegam 300 e poucos adolescentes...”, conta Júlio.
foram no evento”, chuta Mário. Contatada pela Naipe, uma delas diz que não foi – a outra não foi encontrada. Nenhum outro entrevistado sabe de alguém que tenha trocado o risco de um bom coma alcoólico pelos saberes jurídicos.
El Divino Depois de passar horas bebendo na Rua Coberta e esquentar no hotel, o destino inevitável de todos é o Bill Bar – balada com três ambientes disparando pagode/sertanejo, rock, pop, funk, e que em junho teve como atração um show de Vinny, aquele loiro dos anos 90. Ou seja, centenas de pessoas saem da ilha para se encontrar no Bill Bar de Gramado. “É Floripa em peso mesmo, parece o El Divino. Mas sem parecer o El Divino”, sorri Diogo.
Na verdade, a maior parte do pessoal é bem crescidinha e já está nas últimas fases da faculdade. Ou já se formou há anos. Um veterano que prefere não se identificar (“fui escondido”) participa da zorra desde 99. “Vou pela festa”, economiza.
Patricinhas melindradas têm que descer do salto ou acabam isoladas. Este ano, quatro deusas platinadas da Medicina da Unisul acharam que podiam valorizar tanto seu passe na viagem quanto em uma night da ilha. Foram esquecidas por um bom tempo no fundo do ônibus, até que resolveram se enturmar. Ficaram tão à vontade que uma delas até tascou beijos em um sortudo. “Ela se afeiçoou com as cantadas que ele dava imitando o Mr. Catra”, explica Diogo.
Com tanta gente indo pela festa, realmente sobra pouco tempo para palestras. “Parece que duas meninas
E mais ele não diz. What happens in Gramado stays in Gramado.
OS SONS
DA CIDADE por Thiago Momm, com fotos de Bruno Ropelato
As ruas nunca foram tão barulhentas, mas especialistas falam em escutá-las (e escutar-se) em diferentes planos “Na época de que falamos, reinava nas cidades um fedor dificilmente concebível para nós, hoje. As ruas fediam a merda, os pátios fediam a mijo, as escadarias fediam a madeira podre e bosta de rato; as cozinhas, a couve estragada e gordura de ovelha. Sem ventilação, as salas fediam a poeira, mofo; os quartos, a lençóis sebosos, a úmidos colchões de pena, impregnado do odor azedo dos penicos. Das chaminés fediam enxofre; dos cortumes, as lixívias corrosivas; dos matadouros fedia o sangue coagulado. Os homens fediam a suor e a roupas não lavadas; sua boca fedia a dentes estragados, seu estômago fedia a cebola, e o corpo, quando já não era mais bem novo, a queijo velho, a leite azedo e a doenças infecciosas. Fediam os rios, fediam as praças, fediam as igrejas, fedia sob as pontes e dentro dos palácios. Fediam o camponês e os padres, o aprendiz e a mulher do mestre, fedia a nobreza toda, até o rei fedia como um animal de rapina, e a rainha, como uma cabra velha, tanto no verão quanto no inverno.” É o que narra o escritor alemão Patrick Suskind no clássico O Perfume, referindo-se ao século 18. No começo do século 21, o mundo cheira bem melhor. Em contrapartida, reina nas cidades uma poluição sonora dificilmente concebível para eles, homens e mulheres de 300 anos atrás. No período em que falamos, agora, as ruas soam a britadeiras, os pátios soam a crianças hiperativas, as escadas rolantes dos shoppings soam o vozerio; as cozinhas de programas de TV, a uma algaravia sem fim. Em bairros inquietos, as salas de escritórios soam a conversas 28•c apa
barulhentas, ruidosas; os quartos, a sons das rádios, a jogos estrondosos nos computadores, impregnados da nossa agitação. Dos porta-malas dos carros soa a música eletrônica; das lojas de eletrodomésticos, o sertanejo; das boates, os graves abafados. Os homens soam seus celulares, suas buzinas; sua impaciência faz soar motores, pneus, portas, guinchos de freios. Soam os ônibus, soam os caminhões, soam as motos, soam o engarrafamento nas pontes e alarmes disparados por todo lugar. Soam restaurantes, soam as mulheres a agudos monólogos, soam as propagandas televisivas acima do resto da programação, soam os alto-falantes das igrejas por várias quadras, soam as construções, até as madrugadas soam mais do que deveriam, e o dia infernalmente, tanto no verão quanto no inverno.
Não-escuta A partir da Revolução Industrial, em 1750, “sinais acústicos individuais dão vez a uma densa população de sons”, descreve a mestre em Comunicação Fátima Carneiro dos Santos no livro Por uma escuta nômade: a música dos sons da rua. Se antes os ruídos nasciam e morriam, depois eles passaram a permanecer indefinidamente na paisagem, como percebemos andando 20 segundos por aí. É claro que a algazarra da Revolução Industrial em diante foi incômoda. O barulho de tantas máquinas era inédito na história. O cotidiano contemplativo perdeu força. Não faltaram especialistas para
protestar que, ouvindo o fuzuê das ruas, o homem se agitava e deixava de escutar a si mesmo. Na segunda metade do século 19, o filósofo alemão Friedrich Nietzsche resmungou que nunca os intraquilos haviam valido tanto; mais tarde, o poeta indiano Rabindranath Tagore, vencedor do prêmio Nobel de 1913, observou que o homem se misturava na multidão “para abafar o seu próprio clamor por silêncio”. Décadas depois, avaliando as esporrentas cidades do século 20, músicos falaram em “esquizofonia”, ou seja, esquizofrenia sonora. Era grande o alvoroço, resultando numa massa de ruídos indistinta, padronizada. Na tentativa de ignorála, nos habituamos à “não-escuta”. A medicina e a psicologia estudaram o excesso de decibéis e entre os seus efeitos encontraram surdez, estresse, musculaturas tensas, alta nas pressões arteriais. Também a Organização Mundial de Saúde levou a poluição sonora a sério, passado a considerála um grave problema ambiental.
No túnel Já que os barulhos nos acompanhariam como o zumbido ao mosquito, muitos resolveram abraçá-los. Em 1909 o poeta italiano Filippo Marinetti, mais tarde militante do fascismo, publicou no jornal parisiense Le Figaro o manifesto futurista. Nele, tentou enterrar o século anterior exaltando a “beleza da velocidade” e dizendo querer “entoar hinos ao homem que segura o volante”. Na música, o futurismo se traduziria no uso de ruídos nas composições.
Os instrumentos eletrônicos criados a partir das décadas seguintes sopraram a favor da proposta. Hoje, muitos outros movimentos e gêneros musicais depois, a agitação das cidades, do nível que seja, sempre tem sons para representá-la. Mais forte ainda que o nome de Marinetti é o do compositor norte-americano John Cage (1912-1992), citação obrigatória quando o assunto é música experimental. Na sua famosa definição, “música são sons à nossa volta, quer estejamos dentro ou fora das salas de concerto”. Cage, Marinetti e outros sustentaram que havia não só uma questão de abrir os ouvidos aos sons da rua, mas também de incorporá-los às composições. Décadas depois, é o que seguem fazendo músicos experimentais como Peter Gossweiler. Em outubro do ano passado ele tentou promover em Florianópolis, com os amigos Gustavo Serpa e Dael Limaco, o evento No túnel, anunciado como um “tubo de ensaio para um experimento sensorial de música extrema”. Eles já tinham conseguido até duas ambulâncias dos bombeiros, indispensáveis para as possíveis arritmias e mal-estares dos graves amplificados pelo túnel. Quando tudo estava pronto, o experimento foi proibido. Os desvairados sons não seriam uma perfeita tradução de Florianópolis, mas de qualquer maneira um marco cultural para a cidade, lamenta Peter – que julga o ruído algo “necessário”, que não deveria nos “deixar tão nervosos”. Filho de pais músicos da Orquestra Sinfônica de Porto Alegre, ele cresceu n a ipe • 31
escutando Brahms mas aderiu ao hardcore e mais tarde ao noise, gênero composto principalmente de sons desconfortáveis. Hoje morador da Lagoa da Conceição, Peter, 33 anos, frequenta acupuntura. Voz baixa e pausada, ele explica seu apego pelos sons experimentais: “Nós temos que buscar a música contemporânea. A erudita é limitada. O computador tem muitas possibilidades. Se eu te mostrar o que dá pra fazer nele...”.
Orquestração do mundo A trilha das cidades mudara; a dos músicos também. Faltava ainda que o ouvinte comum repensasse sua relação com os sons à sua volta. O ideal era que deixássemos de ser passivos e os colocássemos no centro do sistema sonoro. Foi o que John Cage provocou com o silêncio de 4’33’’: nos quatro minutos e meio da composição o músico não deveria tocar nada, a partir do que a plateia se inquietava e fazia ruído, tornando-se obrigatoriamente o centro das atenções.
“É possível construir uma sensação silenciosa [diante dos barulhos das ruas]. Mas isso é uma criação quase meditativa, e hoje nós treinamos menos a habilidade de nos construirmos”, afirma Heller. Realmente não é fácil escutar Mozart no trânsito da Trindade, nas proximidades da UFSC, onde ele e a Naipe conversam. Ouvidos mais musicais como o dele, no entanto, rapidamente comprovam que os sons da cidade não são os mesmos para todos. Escutamos em diferentes planos, privilegiando esse ou aquele ruído, exatamente como focamos e desfocamos paisagens com os olhos. Para músicos, isso se traduz numa musicalidade diferente do carrinho de supermercado; a junção de sons distantes que harmonizam; a forte percepção das folhagens do outro lado da avenida, apesar do trânsito intenso no meio; além da surpreendente conclusão de que “a mistura de sons não é necessariamente ruim”.
Também valorizando o espectador ativo, o compositor canadense Murray Schafer falou em “poetização do ruído”, “maximização dos sons agradáveis e informativos e minimização dos sons indesejados ou sem significado”, “melhorar a orquestração do mundo”, “ouvir como um modo de tocar à distância” e “ouvir a cidade como a uma sinfonia de Mozart”.
Para os leigos, no mínimo é um treino para a sensibilidade auditiva. Geralmente é também um exercício psicológico com benefícios como aprender a distinguir barulhos externos e internos. Nada mais típico que o enervado permanente – que no interior se vê mais inquieto ainda e nos grandes centros urbanos tende sempre a colocar no entorno a culpa da sua intranquilidade.
Quão possível é isso? Foi o que encafifou a Naipe, que para discutir o assunto alugou por duas horas a cabeça musical de um dos mais importantes pianistas do sul do país, Alberto Heller.
“Há muito romantismo nisso [de esperar menos ruídos]”, diz Heller. “Não é ouvir barulho e achar lindo. É lidar com os ruídos em vez de querer apagá-los, entrar no castelo com os demônios”.
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Os sons da ilha
A Naipe passeou quatro horas de uma quarta-feira pela Grande Florianópolis fazendo um exercício de escuta. O tour começou às 8h no Kobrasol, no continente, e terminou às 12h no Beiramar Shopping, no centro, um ônibus e uma lenta caminhada depois.
Asas de pombo, slosh da pisada de Havaianas, um bom-dia sem ruídos ao fundo. Florianópolis ainda tem alguns bairros e muitas ruas silenciosas, onde os sons nascem e morrem como antigamente. Mas a manhã do Kobrasol logo fica polifônica. Um pneu de carro passa por um declive, os vidros de um Pálio tremem com dance music, um avião se sobrepõe a tudo. Chega um ônibus, o freio chia, a porta pneumática faz fssss, lá dentro há tosse, catraca, moedas na madeira, apito da próxima parada e acima de tudo o motor; uma buzina de moto e a aceleração de um caminhão entram pelas janelas. O passeio segue no principal terminal de ônibus da ilha. Com tempo frio e acinzentado há menos conversas, menos volume, mais introspecção. Um sotaque do interior, um grasnar de gaivota, passe, compro e vendo, alguns saltos, pedestres ao celular, uma marquise do camelô sendo levantada. O centro começa a engrenar: na rua Trajano, alarmes vendidos por um ambulante, as cadeiras do Senadinho ajustadas pela garçonete no calçadão, só dez vezes sem juros de cinquenta e nove e noventa mensais no som de uma loja, um DVD do Rappa na TV de outra. Dentro da casa de sucos, marteladas para quebrar açaí, xícaras pousadas nos pires, liquidificador, o caixa cobrando os clientes. Na praça XV, às 9h10, um cortador de grama, ao longe batuques. Dentro da catedral, cantoria. Um microônibus. Uma mala pelos ladrilhos da rua Felipe Schmidt, a flauta tocada por um cego sentado na porta da lotérica, ...um suporte para cada advogado..., outras frases perdidas, o assobio de um gari. No cruzamento das avenidas Rio Branco com a Osmar Cunha o clichê da urbanização, o som do trânsito que não para, amalgamado, grudado, sem pausas. De dentro da farmácia com as portas automáticas fechadas, quase silêncio. Ao longo da caminhada, betoneira, bate-estaca; na frente do Beiramar Shopping, um poodle latindo. Dentro do shopping, engrenagens da escada rolante, chafarizes; às 11h, na praça de alimentação, poucas vozes, mas ao meio-dia falatório, latinhas de chá, suco e refrigerante abrindo. Cadeiras no piso, bandejas nas mesas. Bipes de senhas. Muitos bipes de senha. 3 4 • n a ipe
Escute música experimental feita a partir desse passeio em revistanaipe.com
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Em uma quarta-feira de manhã na Grande Florianópolis, a Naipe escuta latinhas, chinelos, pneus, liquidificadores
Réquiem para um bozo
Wanderley Tribeck, que há 30 anos incorporava o personagem mais benquisto e bem pago da TV nacional, hoje lida com o seu restaurante e o seu passado em Balneário Camboriú por Rosielle Machado, com fotos de Bruno Ropelato
O helicóptero sobrevoou a fila da marginal Tietê e aterrissou no Playcenter. Da cabine se ouvia a multidão de crianças ansiosas movidas a algodão doce, pipoca e refrigerante. Algumas já puxavam o coro de “Começa! Começa!”. Atrás do palco, recém-saído do helicóptero, estava o responsável pela gritaria, pelo engarrafamento, pelos ingressos esgotados e pela histeria infantil. Ao ouvir o sinal de que estava na hora do show, ajeitou o nariz vermelho e pegou o microfone:
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– Alô criançada, o Bozo chegou, trazendo alegria pra você e o vovô! O mar de crianças pulava junto, elas de bocas abertas e ele de braços escancarados, as mãos frenéticas, os pés enlouquecidos: o rockstar infantil dos anos 1980. Três décadas depois, as mesmas mãos agitadas e pés serelepes estão lá, em algum lugar no homem de 60 anos que caminha no calçadão em Balneário Camboriú. De agasalho Adidas e tênis amortecedor de impacto, ele se confunde com os outros senhores meio calvos, meio ofegantes que caminham para manter-a-saúdeque-nem-o-médico-mandou. Mas nenhum dos outros senhores meio calvos, meio ofegantes, tem o que Wanderley Tribeck guarda na carteira: um cartão de visitas em que se lê “o primeiro Bozo do Brasil”. A vida de Wanderley já foi uma mistura de fama e correria, agenda lotada e pó de arroz. Hoje, o ex-bozo passa a maior parte dos dias com a mulher e a filha no restaurante que abriu há 10 anos em Balneário, o Ex-Petinho do Wandeko, especializado em pratos-feitos a r$ 8,50 (com direito a dois tipos de carne). Quando não está lá ele assiste televisão, lê a bíblia e reza na Assembleia de Deus. Quebra a rotina com as viagens que faz para outras igrejas, onde dá testemunhos sobre a mudança que Jesus fez em sua vida. Nesses testemunhos, a referência ao Bozo entra sempre nos primeiros minutos: “Os irmãos imaginem uma pessoa que foi sucesso no mundo inteiro. Eu fui o maior palhaço do mundo!”, proclama. E não exagera. O Bozo, franquia criada nos Estados Unidos, existiu em 30 países. No Brasil, o fenômeno alcançou tal proporção que ia ao ar duas vezes por dia, quatro horas de duração cada programa. Misturava desenhos infantis a esquetes e outras loucuras de auditório: Show de calouros do Bozo, Papai Papudo, Vovó Mafalda, Professor SalsiFufu, Bozo Corrida, Bozo Game, Bozo Memória, King Bozo, Bozo Coelhão. Wandeko foi o primeiro de seis intérpretes nacionais do palhaço. Seu reinado no SBT durou de 1980 a 1985, mas foi soberano apenas até 1983. No terceiro ano do programa outros atores começaram a se revezar
no papel para cumprir a agenda que às vezes exigia a presença do Bozo, no mesmo dia, em São Paulo, Porto Alegre e Rio de Janeiro. Era a Bozomania.
Crupiê Lageano, Wanderley já era humorista há 10 anos quando fez o teste para Bozo. Após ter se aventurado como engraxate, lavador de carro, cobrador de ônibus e ponta direita do Internacional de Lages, decidiu ganhar a vida sendo engraçado. Com 20 anos começou a se apresentar em boates de Florianópolis, Rio Grande do Sul e Curitiba com o nome de Wandeko Pipoca. Passava as noites sentado ao lado de travestis esperando a hora de subir no palco, eles com vestidos de paetês, ele de smoking. Até que cansou, comprou uma passagem para São Paulo e embarcou para tentar a sorte. Foi lá que ouviu falar do teste para um tal de Bozo. Wandeko não tinha ideia de onde estava se metendo. Nunca nem havia se vestido de palhaço. Quando passou os olhos pelos concorrentes e viu o comediante Moacir Franco, pensou que seria difícil conseguir o papel. Mas se enganou: foi como se tivesse nascido para seu destino. Assim que os dois americanos e o diretor do programa pediram que ele cantasse, Wandeko engatou um verso de Criança feliz. Pediram que ele risse e o som saiu automático, “hohohoho”. Na hora de dançar, se concentrou e exibiu o melhor rebolado possível. Quando viu já estava apertando a mão dos gringos, pronto para começar um treinamento de 35 dias. Era o início da fase da vida em que Wanderley passaria a maior parte do tempo de cara pintada, ostentando a distinta peruca vermelha na cabeça. A ponto de, em 1982, no dia em que a filha Ludmilla nasceu, sair da maternidade às 6h da manhã maquiado, dirigindo por São Paulo vestido de Bozo. Tudo para cumprir a rotina diária de gravação, das 8h às 14h. Foram anos corridos, insanos, com seis horas de sorrisos, pulos, cantorias e bitocas no nariz por dia – isso sem contar os shows. Não importava. A correria sufocante
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era compensada por discos de ouro e troféus. O Wandeko de 30 anos de idade respirava fundo e inspirava forte aquela sensação poderosa: o sucesso. Hoje, é com dezenas de fotografias expostas no ExPetinho que Wanderley homenageia o próprio passado. “Eu tinha o maior salário da televisão brasileira”, conta à Naipe, sentado em uma cadeira de plástico, de costas para a pintura desbotada do Bozo na parede do restaurante. “Tudo que tenho hoje”, diz, abrindo os braços, “tudo que tenho hoje foi por causa do Bozo”. E quando ele diz tudo, é tudo mesmo. Até a esposa com quem é casado há três décadas. Os dois se conheceram no estúdio enquanto Deise, com 14 anos, assistia a gravação do programa. O Bozo estava pronto para entrar em cena quando notou a morena de largo sorriso no auditório. Para a garota, por baixo da maquiagem o palhaço deveria ser um velho careca feioso, mas na entrega do Troféu Imprensa ela o viu de cara limpa e mudou de ideia. Não teve jeito: se apaixonou, casou e até hoje dorme com o Bozo. “Tive uma vida antes e outra depois do programa. Ele me deu minha mulher, me deu mais uma filha [além dela, teve um filho da primeira esposa, falecida], cinco troféus imprensa, disco de ouro, de platina, título de Embaixador da Boa Vontade da Unesco”, enumera Wandeko, apontando os prêmios expostos em uma prateleira capenga do restaurante. Nos testemunhos que dá na Assembleia de Deus, ele é mais dramático. “Deus me deu até minha família e eu, arrogante, desperdicei tudo”. Wandeko hoje sabe: a teimosia foi a culpada por ter deixado para trás a vida de hotéis cinco estrelas, de jantares na casa de Sílvio Santos, das chegadas de helicóptero no Playcenter. Os atritos com o SBT começaram por causa de seu desagrado quanto a algumas novidades do programa: a corrida de cavalo, a batalha naval, o bingo. Wandeko pensava – e ainda pensa – que não havia sentido em colocar crianças para apostar em cavalos branquinhos, pretinhos e malhadinhos. “O Bozo virou crupiê”, declarou em uma reportagem da época. Dos desentendimentos com a produção à demissão foi só questão de tempo. Os jornais noticiaram sua saída
com o furor dispensado às celebridades: uns disseram que Wandeko havia morrido, outros que tinha recebido uma proposta milionária para mudar de emissora, ou ainda que estava na pior, desempregado. O Notícias Populares, ao saber que ele comprava uma churrascaria em São Paulo, anunciou: “Bozo troca criança por carne”.
Frentista Depois que deixou de ser Bozo, Wandeko peregrinou alguns anos por outras emissoras. Fez a Turma do Pipoca, na Gazeta, e a TV Criança, na Band. No começo dos anos 1990, abandonou as (ou foi abandonado pelas) câmeras e passou a fazer shows de humor e música com a esposa. Até o fim da década, a dupla Wandeko & Deise apresentouse em festas de peão e boiadeiro, inaugurações de boliche, encontros de terceira idade e o que mais aparecesse pela frente. Chegaram a participar de 400 eventos em um ano, mas a nova vida não andava bem: o ex-Bozo estava exausto, bebendo, descontando as frustrações na família. Uma noite, depois de um show, ao chegar em casa não encontrou Deise, que tinha ido embora. Wanderley chorou durante cinco meses, entrou em depressão, emagreceu 25 kg. Fora de si, andava com um revólver debaixo do braço para matar a mulher. Com a conta bancária no vermelho, foi pedir emprego num posto de gasolina em Balneário Camboriú, cidade onde vivia desde antes do abandono da esposa. O dono do posto balançou a cabeça, fez que não. Falou que conhecia a história do humorista e que não iria deixá-lo terminar a carreira como frentista. Apontou para a esquerda: “Tá vendo aquela árvore? Pega aquele espaço ali e faz um negócio pra você. Depois a gente acerta aluguel, essas coisas”. Wandeko ficou mudo e ainda ouviu: “Mas se você montar qualquer coisa sem Deus, você vai cair de novo”.
Na TV de hoje Wandeko acompanha alguns programas, mas não sem o mesmo olhar desconfiado de 25 anos atrás: gosta das sacadas do CQC, mas se incomoda com os palavrões. Prefere um humor mais inocente, à la Paulinho Mixaria. “Sabe, aquele tipo de piada como ‘Azeitona tem perna? Não? Então acho que comi um gafanhoto’.”
Foram as palavras mágicas para a conversão. No domingo seguinte, lá estava Wandeko na Assembleia de Deus – ele, que sempre teve nojo da igreja. Naquele mesmo dia foi até a praia e atirou o revólver no mar. Depois, comprou uma bíblia e fez de tudo para reconquistar a esposa e construir, no espaço anexo ao posto, seu restaurante. Conseguiu as duas coisas. Hoje o Ex-Petinho, com 10 anos, é administrado pela filha Ludmilla. Para Wanderley, sobra a tarefa de fazer uma ou outra reforma, ajustar a borracha da geladeira, consertar o telhado. Os dias de jogos do Brasileirão são os mais movimentados: sempre tem quem queira o conhecer, conversar e ouvir uma velha piada. Lá está o ex-Bozo sempre de prontidão, distribuindo cartões de visita. “Se eu tiver que tirar fotografia o dia inteiro, eu tiro. Só faço isso da vida, eu nem trabalho”, sorri.
Sopa sem letrinhas
quitutes•EI, PATIFE
Se em 2007 já se percebia o crescimento dos filmes dublados, hoje há mais Jack Sparrow falando português do que inglês – Meu deus, Jamal, eu quase poderia jurar que há cada vez mais filmes dublados nos cinemas. – Você não está maluco nem nada, Leroy. Nos cinemas dos shoppings da Grande Florianópolis hoje, quatro de cada 10 cópias em cartaz são dubladas. Percebendo a tendência nacional já em 2007, a Folha de S.Paulo descobriu que 28% das cópias de Piratas do Caribe 2 que circularam pelos cinemas brasileiros eram dubladas. O que dizer então, anos depois, dos 55% de cópias dubladas de Piratas do Caribe 4 na capital catarinense? Sim, é essa a porcentagem, meu chapa. Filhos da mãe. A Naipe fez um levantamento dos filmes em exibição nos shoppings locais no começo de junho. Entre os quatro cinemas observados, o do Iguatemi se saiu quase como um candidato a cult: 85% de cópias legendadas em cartaz. Depois a coisa ficou feia. O Shopping Via Catarina, na Palhoça, estava com 50% de cópias legendadas. Ainda piores, o ilhéu Floripa Shopping e o josefense Shopping Itaguaçu tinham 40%. Por deus, cara.
¡Joder, coño! A justificativa para tantas dublagens, claro, não está no analfabetismo. Se fosse o caso, nós manezinhos dificilmente escutaríamos “os tiras estão chegando” nas poltronas vermelhas. Somos uma das 64 entre as mais de 5,5 mil cidades do país com o selo Municípios Livres de Analfabetismo, do MEC. Oficialmente, pelo menos, 97 a cada 100 adultos da ilha sabem ler. Por que então só estamos livres de ouvir “volte aqui, paspalho” nos longas gringos dos cineclubes ou do Paradigma Cine Arte, tido como um espaço alternativo? O editor da Naipe Jerônimo Rubim jogou o tema dublagem no seu Facebook. A churrasqueira logo inflamou.
A aversão ao português colocado em bocas estrangeiras ficou evidente. “Alguém não odeia?”, perguntou retoricamente o designer Bernardo Presser, um dos 11 cidadãos a declarar repúdio à falta de legendas. Alguns suavizaram: animação dublada, tudo bem – são melhores. A engenheira Aline Almeida falou da lástima que são os filmes dublados na França, com o áudio original ao fundo. A mãe do nosso editor, que por anos morou na Espanha, lembrou quão capenga a coisa é lá pelas bandas ibéricas com George Clooney dizendo “¡joder, coño!”. Isso até que a estudante de jornalismo Manoela Tzelikis, 23 anos, subiu nos tamancos: “Eu gosto, essa viadagem de ‘ai, é dublado’ não é comigo, não. Tenho preguiça de ler a legenda. Ouvindo (sem olhar as bocas se mexendo) e vendo a imagem pra mim tá bom!” Então a crescente preguiça de ler explica por que mesmo um universitário às vezes prefere ouvir “ah, Mary Jane, como você é quente!” em vez de ler isso na tela ou traduzir a frase por conta própria? Em parte, sim. Em casa “deitada, com o cérebro não querendo se esforçar muito”, Manoela prefere filmes dublados; nos cinemas, legendados, a não ser filmes 3D: “Nesse caso, eu não tenho como ler e ver a imagem ao mesmo tempo.” Mas ela também baseia suas escolhas em outro fator. Com mais de 200 DVDs em casa, já comparou bem legendas e dublagens e contra-ataca: “A legenda é a que mais altera [as falas]. Se as pessoas ouvissem o que os personagens dizem em inglês e lessem o que está escrito, veriam que 70% das vezes não têm nada a ver.” Segundo pesquisa do Datafolha de 2008 feita com 2120 brasileiros de dez grandes cidades, os espectadores sempre preferem filmes dublados, no cinema, na TV ou em DVD. No caso do cinema, 37% do público prefere legendados, e 56%, dublados. (Thiago Momm) Acompanhe a programação de cinema
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quitutes•va xmetê um romance?
Principais livros sobre amor nas livrarias não se limitam à exploração do tema
Além do tatibitate Amor sem fim. Eis o título que mais sugere romantismo neste mês dos namorados. Muita gente deve ter levado o livro com grandes expectativas sentimentais para casa. Mas Amor sem fim, do inglês Ian McEwan, 63, é a menos romântica de três histórias amorosas que no final de maio chegaram às livrarias paulistanas (e na internet podem ser encomendados via fnac.com.br ou livrariariacultura.com.br, com descontos que compensam o frete). Os outros dois livros são O Museu da Inocência, do turco Nobel de Literatura Orhan Pamuk, 59, e Um dia, do menos conhecido dos três escritores, o inglês David Nicholls, 44 anos.
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Cena de Um dia, filme com Anne Hathaway baseado no livraço homônimo do inglês David Nicholls
Mas é de Nicholls o melhor livro. Mesmo se você for meio resistente à literatura em geral, compre Um dia imediatamente. Não gostando, fique à vontade para mandar um email furibundo à Naipe.
romance. “Inteligente, engraçado, sagaz e, por vezes, insuportavelmente triste”, diagnosticou o jornal The Times. Perfeito. A Naipe deu cabo das 416 páginas em três deitadas no sofá e assina modestamente embaixo.
Dexter Mayhew e Emma Morley passam juntos o dia 15 de julho de 1988. Recém-formados, eles vão à casa de Emma. Cada capítulo a partir de então traz o 15 de julho deles nos anos seguintes, até 2007. Amigos com rumos diferentes, algumas vezes Emma e Dexter estão juntos na data, outras não. O tema de Um dia, portanto, não é apenas amor, mas também “ser cosmopolita e ter de 20 a 40 anos nas últimas duas décadas”, ou seja: viver sob cada vez mais tecnologia, consumismo, individualismo e desconfiança do amor tradicional.
Obsessões
Dexter é mais playboy, e Emma, mais alternativa. Longe das caricaturas que essas referências sugerem, o livro esmiúça as milhares de motivações que nos compõem, construindo figuras complexas, palpáveis, óbvias apenas na medida em que também somos óbvios na realidade. Tão bom quanto é o retrato social a partir dos meios que Emma e Dexter frequentam em Londres. Não à toa, os resenhistas se empolgaram.
Se essa pulada de cerca se repete mas um dia termina, o amor de Kemal por Füsun persiste. Daí surgirão sua melancolia e o museu da inocência: o lugar em que ele compila objetos que evocam instantes vividos pelos dois – taças, pente, caneta, pincel, guimbas de cigarro. Objetos que ela usava sempre ou apenas havia tocado. Coisas que no começo Kemal vê como um “doente estudando seus remédios”. Na vida real, Pamuk vem colecionando objetos diversos e volta e meia fala em abrir um Museu da Inocência em Istambul.
“Um livro brilhante sobre o assombroso hiato entre o que éramos e o que somos”, avaliou o crítico Tony Parsons, sobre as mudanças de ideais no final do século 20 esmiuçadas pelo
Compulsão “À medida que as piadas se sucediam, Emma sentia suas esperanças para aquela noite se esvanecerem. ‘Ele quer me fazer rir para ir para a cama comigo’, pensou, ‘mas na verdade só está me dando vontade de voltar para casa e rir em frente à televisão’. No cinema ao menos havia o chocolate com passas e a violência para distraí-lo, mas aqui, cara a cara, não havia nada senão a compulsão exibicionista.” Um dia, de Mike Nichols, p.143
Museu da inocência, 568 páginas, demanda um pouco mais de tempo nas almofadas, mas também compensa as horas despendidas. O cenário da história é a Istambul sempre tão bem explorada dos livros de Orhan Pamuk. Nesse caso, partimos de 1970. Aos 30 anos Kemal, membro de uma família tradicional e próspera, está para se casar com a refinada Sibel. O porém é seu reencontro com Füsun, sua linda prima distante de 18 aninhos.
Em paralelo à comovente obsessão de Kemal o romance retrata, como Um dia com Londres, a Istambul de rápidas mudanças do último terço do século 20.
quitutes•va xmetê um romance?
Enduring Love (Amor duradouro) se tornou o livro Amor sem fim e o filme Amor para sempre
Blasé-racional E Amor sem fim, de Ian McEwan? Não, não se trata de uma tradução melodramática – no original o livro tem quase o mesmo título, Enduring Love, amor duradouro. Trata-se de uma história inspirada em um caso real de erotomania ou síndrome De Clérambault. A principal definição da síndrome diz que o paciente está “convencido de ter uma comunicação amorosa” com alguém que ama, por mais que isso seja negado pela realidade. De Clérambault publicou seus estudos a respeito em 1942. Ele partiu, entre outros, do caso de uma francesa de 53 anos que acreditava ser amada pelo rei Jorge V, a partir do que via até na movimentação das cortinas do palácio de Buckingham sinais de correspondência amorosa. Já o livro de McEwan é baseado em uma história de erotomania homossexual. Um homem religioso persegue um escritor científico casado, o que abala o seu relacionamento. Um prato cheio para um bom romance, que McEwan desperdiça se perdendo em digressões e intelectualismos. Sua narrativa lenta e detalhista à la Jane Austen é um diferencial em Reparação e Sábado, livros que fizeram dele um dos maiores nomes da literatura hoje. Em Amor sem fim, porém, sua pegada blasé-racional-inglesa mata uma história que parece ao mesmo tempo sobre muitas coisas e quase nada. Foram os únicos maus momentos literários da Naipe este mês no sofá. (Thiago Momm)
Leia sobre livros nos blogs Pirão e On the Road do revistanaipe.com
Um dia, de David Nicholls; Ed. Intrínseca, 416 p., r$ 39,90 O museu da inocência, de Orhan Pamuk; Companhia das Letras, 568 p., r$ 59 Amor sem fim, de Ian McEwan; Companhia das Letras, 296 p., r$ 46 Os descontos na Fnac e Livraria Cultura passam de r$ 15 por título
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quitutes•rexxxgate
estante naipe As escolhas atemporais dos editores da revista. Donnie Darko (filme, 2001) Ficção científica meio doida, virou objeto de adoração cult mundo afora. A película é intrigante porque nunca entrega respostas fáceis – e pela sensibilidade com que o diretor Richard Kelly conjuga amor, sacrifício, solidão, hipocrisia e viagem entre dimensões. Separe 80 minutos de alta concentração para não perder esse incrível passeio existencial.
Eu sou Charlotte Simmons (romance, 2005) “Críticos são sujeitos que têm mau hálito no pensamento”, espinafrou Vinícius de Moraes. Só assim para explicar os resmungos sobre Eu sou Charlotte Simmons (Rocco, 684 p., r$ 65), do jornalista norte-americano Tom Wolfe (1931-). O romance descreve a vida da interiorana Charlotte na faculdade. Para caprichar no retrato, Wolfe passou meses no meio universitário. O resultado é uma história atual com peso de clássico, um livro que não deve em nada para o consagrado A fogueira das vaidades, também de Tom Wolfe. O bafo dos críticos talvez se deva ao fato de que, enquanto Fogueira fala de racismo e tensões entre classes, Charlotte aborda conflitos universitários, sexo, cachaçais, consumismo – não deixando de gerar reflexões, mas por outro ângulo. No Brasil, fugir do foco favela-e-ferrados garante boas surras do pessoal das resenhas.
Chiclete com Banana (quadrinhos, anos 80 e 90) Angeli é um gênio que há décadas resume e ironiza nosso bunda-lelê brazilian way of life como poucos. Nos bagunçados anos 80, deu vida a lendas urbanas como Os Skrotinhos e Bob Cuspe, um pessoal que cuspia na moral e bons costumes da classe média. Chiclete contou com uma horda de talentosos artistas que mudou a arte dos quadrinhos no país. Coleções à venda, a preços módicos, em devir.net.
quitutes•descomplicadas
à e d O gu ete i r i p por Luisa Nucada, com ilustração de Nina Guilhermetti
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.com Descomplicadas do revistanaipe.com
4 8 • n a ipe
Ela existe dentro de cada uma de nós, variando em intensidade e modus operandi. Numas está sempre aflorada, noutras precisa de estímulo pra vir à tona. Um drinque costuma bastar. Muitas escondem a sua e a das outras. Algumas vezes, ela é espremida numa lâmpada mágica e só sai depois de muita esfregação. Em raros casos, nunca se manifesta. Ela é a piriguete. A piriguete corre sem cautela, sem considerar risco de queda. A vida passa num cruzar de pernas e requer velocidade cinco. Se há tropeços e cortes no joelho, tanto melhor. Toda cicatriz é história pra contar. A piriguete celebra a liberdade e se expõe sem medo de rótulos. Homenageia o feminino exibindo as coxas que muitas não puderam mostrar, ostentando o decote com o sutiã que queimaram por ela. A piriguete não conhece cerimônia: manda o superego ir catar coquinho, ri sem pôr a mão na frente da boca e é feliz sem pedir licença. Cultua o prazer, obedece ao instinto, reverencia o que é gostoso e goza a vida gemendo alto. A piriguete é curiosa e experimenta. É preciso lamber pra saber que gosto tem, alisar pra conhecer a textura, apalpar pra sentir a consistência, experienciar. Ela gosta do novo, do não descoberto, de cutucar o sensorial e brincar com percepções.
A piriguete é beleza, é pureza e coragem, é autenticidade de quem não tá nem aí pra imagem. A piriguete se passa, ultrapassa e não passa vontade, não. Manda beijos pra reputação e um alô pra má fama, a piriguete dá, entrega, pede, reclama, é dona de seu nariz e de todo o resto. A piriguete é uma bola de chiclete: incomodados com sua inconveniência, seu estourar barulhento, poucos se propõem a contemplar o explodir cor-derosa. Pois que vejam, que admirem, que elogiem e que critiquem, porque bullying é recalque e fofoca é ibope. Pobre de quem fica curtindo uma vergonha alheia e esquece de fruir seus próprios vexames. A piriguete não é a ladra de homens, a interesseira ou a promíscua. A piriguete é um estado de espírito. É um estar ingênuo e genuíno, é quando nos permitimos sair da redoma do apropriado, dos pudores imputados, do falso moralismo. A piriguete não teme julgamentos, é transparente e livre. Aí reside sua virtude. Piriguetar é terapia, medicina preventiva. A prescrição é trocar o não fica bem pelo estar bem, o reprimir pelo externar e deixar a piriguete que nos habita sair pra passear de vez em quando. Ou num belo dia ela arromba a porta, foge de casa e faz o maior estrago.
Enquanto isso•em sevilha
Vapores e ciganas por Claudia Mebs Nunes
Se Rio é 40°, Sevilha é 45°. Fácil, fácil. Não é à toa que a capital de Andaluzia ainda faz a siesta. Das 14h às 17h, quase tudo o que é importante fecha: banco, supermercado, correio. Quase tudo. As sorveterias continuam lá, mais fortes do que nunca, badaladas como o Posto 9 de Ipanema. Os restaurantes e as taperias também fervem nesse horário – de gente e de calor. Não é raro passar pelas ruelas do centro e sentir as pequenas quantidades de vapor de água que os restaurantes jorram para refrescar os clientes. Já que a cidade não tem praia, a beira do rio Guadalquivir é o ponto de encontro dos intercambistas sem ar-condicionado. Passe por lá e encontre jovens lendo livros, grupos bebendo uma Cruzcampo, cerveja produzida na cidade, e alemãs com a blusa levantada, obstinadas em tirar a brancura da barriga. Para os viajantes que se arriscam na fila de atrações turísticas, o calor é apenas um dos itens preocupantes. Além de um bom protetor solar, chapéu, óculos e mochila (o visual turista-padrão), eles também devem se proteger das ciganas de Sevilha. Não pense em mulheres com saias compridas e lenços na cabeça. Os tempos modernos substituíram as roupas tradicionais por calças de ginástica, barriga saliente, chinelo de tiras e unhas chamativas. Se der trela, em minutos a vítima ganha um raminho da sorte e uma leitura de mão fajuta, perdendo pelo menos cinco euros. Ai de quem teimar em não pagá-las. Não acredite nas previsões de uma cigana, mas nas maldições...
50• n a ipe
Claudia Mebs Nunes, estudante de jornalismo intercambista em Sevilha, nunca caiu no papo das ciganas. Todo mês a Naipe publica, neste espaço, a experiência de um colaborador pelo mundo.
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