Revista
Pajeu zeiro Ano I - Número 2
Distribuição gratuita
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Editorial
eXPEDIENTE PRODUÇÃO E PROD. EXECUTIVA
William Tenório REDATOR CHEFE
Alexandre Morais Jornalista DRT-PE 2707 ASSISTENTE DE REDAÇÃO
Flaviany Bruna Tavares CORREÇÃO ORTOGRÁFICA
Alexandre Morais Wivianne Fonseca FOTÓGRAFOS
Claudio Gomes Thiago Caldas ARTE E DIAGRAMAÇÃO
William Tenório
TRATAMENTO FOTOGRÁFICO
Thiago Caldas FOTO CAPA
Claudio Gomes EQUIPE DE REDAÇÃO
Alexandre Morais Flaviany Bruna Tavares Genildo Santana William Tenório Wivianne Fonseca COLABORADOR CONVIDADO
Tarcio Oliveira
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revistapajeuzeiro@gmail.com
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lá vamos nós seguindo a estrada. A estrada margeada de cultura popular e tradicional dos Pajeuzeiros. Com a primeira edição demos uma ótima caminhada. Começamos emparceirados com os artistas e o grupo logo cresceu com a chegada e a vibração de cada leitor. Agora a missão aumenta. Temos que manter os já integrados e atrair mais gente. O que não vai ser difícil. Os novos parceiros fazedores de cultura já chegaram. E os leitores também. Olha você aí! Então vamos seguir? Nesta segunda edição temos uma capa abençoada: traz o Papa da Poesia, o mestre Dedé Monteiro. Em matéria especial, mostramos porque ele é a referência poética e humana que é. E o porquê desse título de Papa. Falando em mestre, fomos a Serra Talhada conversar com o decano dos forrozeiros do Pajeú. Travamos um Papo de Boteco com o Homem de Ferro do Forró, o cantor Assisão. Do alto de seus 75 anos de idade e 54 de forró, ele conta descontraído todo o seu roteiro artístico e de vida. Ainda na música, fomos a um recanto rural de Carnaíba conversar com seu Dezinho do Pífano. Mais do que fazer os dedos bailarem entre os furos da taboca, ele sabe muito. Coisas da experiência ganha em uma vida nem sempre tocada fácil. E lá em outro recanto, desta vez em Itapetim, encontramos seu Reinaldo, outro mestre. (Mas como tem mestre nesse Pajeú, não é não?) Velhinho, corpo que expressa cansaço, mas o quê! Ele não para e quando para tá produzindo artes em couro. Parecido fazem os ferreiros-artesãos de Flores. Uma família que mantem a tradição de moldar ferro e aço nestes tempos de luta desigual com a dominadora produção industrial. Mas estão lá. Firmes. Coisa que só lendo mesmo para acreditar. Na coluna Vale a pena conhecer... Genildo Santana nos traz o Padre Frederico Bezerra Maciel, uma personalidade quase desconhecida por aqui. Estudioso incansável, desenvolveu junto ao sacerdócio as artes da pesquisa e da escrita. É dele uma das mais bem conceituadas obras sobre o cangaceiro Lampião. Figura que, realmente, vale a pena conhecer. Da mesma forma que vale a pena ler o artigo desta edição, assinado pelo artista plástico de Tuparetama, Tárcio Oliveira. Sem qualquer acordo, ele também se pautou em um mestre. Em uma mestra, na verdade. É Datargnam, uma mestra de pastoril que tem muito mais a ensinar do que o próprio folguedo. Ôh quantos mestres. Quanta maestria. Isto é Pajeuzeiros. Vamos conferir?
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Forjado em família
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Texto William Tenório | Fotos Thiago Caldas
aímos de Afogados cedo. A viagem durou aproximadamente uma hora. O destino era o Sítio Jatobá, no município de Flores, a cerca de 7km da cidade. Como pouco antes havíamos visitado o local, não tivemos dificuldades em chegar. De longe ouvimos o som agudo das marretas batendo no ferro, som característico da atividade ali desenvolvida. A oficina é bem grande, feita em tijolo batido sem reboco. Possui
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duas portas largas, uma em cada extremidade, e quatro janelões, dois em cada lado, o que garante ventilação e uma boa iluminação. Lá dentro os homens trabalhavam. Neste dia eram cinco: seu Zé Milton, um irmão, dois sobrinhos e um tio. Trabalhavam em duplas, exceto o tio, o senhor Raimundo, que tem 70 anos de idade. “Não tem quem bote ele pra correr do trabalho”, brinca seu Zé Milton. “Meus meninos já correram tudo e ele tá aí todo dia”, completa. “A gente acostuma com o trabalho e
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não quer parar,” justifica seu Raimundo. Seu João, irmão de seu Zé Milton, explicou que trabalhando em dupla, enquanto um molda uma peça o outro coloca o cabo e dá o acabamento, tornando o trabalho mais rápido. A atividade é familiar e aprendida desde cedo. Seu Zé Milton lembra que ainda criança frequentava a oficina para aprender o ofício com o pai. “São 55 anos de porrada” diz, se referindo ao tempo em que trabalha como ferreiro-artesão
e alertando que também repassou o aprendizado. “Os filhos estão em São Paulo, mas sabem também”. “Com 12 anos já ajudava aqui”, diz João Vianei. Hoje com 19 anos é o mais novo na oficina e tem de conciliar o trabalho com os estudos. Ele está prestes a se formar no curso de Técnico de Edificações, mas assim como os filhos de seu Zé Milton, João tem outros planos. “Tenho participado dos encontros vocacionais”. João pretende seguir o sacerdócio. O trabalho é dividido com a atividade no campo. “Quando chega o período da chuva a gente vai pra roça”, diz seu Zé Milton, justificando não depender da chuva “porque tem trabalho o ano inteiro na oficina”, ao
tempo em que coloca mais uma peça no braseiro. As peças produzidas no Jatobá são vendidas em quase todo sertão. “Deixe eu contar: Arcoverde, Custódia, Serra Talhada, Flores, Belmonte, Salgueiro...”. A produção gira em torno de 100 peças por semana, entre facas, facões e foices, tudo depende do período do ano. Durante as chuvas a produção de foices aumenta. A atividade tem como matéria prima feixes de mola usados, que são conseguidos em oficinas mecânicas em Afogados da Ingazeira. Os cabos podem ser feitos de madeira, PVC, acrílico e chifre de boi, tudo depende do cliente. Segundo seu Zé Milton o mais difícil tem sido conseguir a bigorna,
ferramenta indispensável para o ofício. “Meu irmão está procurando uma para montar uma oficina e não encontra.” E isto talvez seja sinais do fim de uma atividade que hoje concorre com a produção em larga escala da indústria. É um trabalho de resistência em uma sociedade industrial. Oficinas como a da família de seu Zé Milton são cada vez mais raras e é impossível não fazer um paralelo entre elas e as sociedades préindustriais. Saímos de lá no final da manhã e uma das coisas que mais chamaram a atenção foi a felicidade desses homens enquanto trabalham. Todos sorrindo e conversando, com uma receptividade típica de interior.
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Um mestre chamado Dezinho
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Texto Bruna Tavares | Fotos Claudio Gomes
ra uma manhã agradável de sexta-feira, saímos pouco antes das 8 horas, tendo Cida como guia, educadora social do Grupo Mulher Maravilha e integrante do Grupo de Coco do Travessão Caroá. No caminho conversamos sobre a história da comunidade e as belezas da zona rural que liga Afogados da Ingazeira à Carnaíba, nosso destino. Não demorou muito e lá estávamos, na Comunidade Quilombola do Travessão Caroá, lado carnaibano da vegetação
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da caatinga. Em frente à casa um terreiro de cimento batido já denunciava: ali é um lugar de encontros. Seu Dezinho nos esperava à porta, de pé. Nascido José Alfredo da Silva, seu Dezinho é uma liderança na comunidade que abriga mais de 180 famílias. Cresceu entre o Moxotó e o Pajeú. “Minha vida todinha foi aqui dentro dessas Serras. Primeiro, não tinha casa nenhuma, era só mato, resto de palha né, nos anos 60.” Viveu as dificuldades da estiagem na região. “Vivia do caroá e da vassoura, arrancava o caroá,
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desfibrava ele e levava pra cidade que hoje se chama Iguaraci”. Ainda jovem fez seu primeiro pífano para ajudar no sustento da família, composta por onze irmãos. “Comprei um material, um pedaço de cano, fiz um pífano e ficava no departamento de polícia, tocando pros presos e quando eu vinha de lá, já trazia o feijão e a farinha garantido né. Isso era todo dia”. Na busca por um lugar melhor nos tempos de necessidade, seguiu para Floresta, onde viveu por 19 anos, até casar e voltar para Carnaíba.
Quando perguntado sobre como aprendeu a tocar o pífano, ele responde sincero, lembrando dos seus antepassados, tios tocadores e do respeito que existia nas festas. “Antigamente tinha moral, porque se chegasse numa festa e eles estavam tocando não podia passar no meio, tinha que sentar no pé da parede e ficar só assistindo.” E assim, na observação, ele foi acompanhando o grupo de pífanos da família e aprendendo as lições de vida e da cultura regional. Especialmente o tio Zé, que pouco antes de morrer lhe deixou a banda de herança “para tomar de conta”. Hoje a banda já tem 45 anos, entre irmãos, fazendo shows em todo Brasil e com dois CDs gravados. Seu Dezinho é tocador de pífano, sanfona, violão, prato, pandeiro, triângulo, flauta e está tentando aprender clarinete, estudando em casa, vendo e ouvindo outros tocadores. Porém, mantém as atividades da banda de pífanos, reestabelecendo os contatos com as cidades e comunidades por onde passou nos sertões do Moxotó, Itaparica e Pajeú. Sobre a banda de pífanos, ele ressalta a renovação do grupo. “Hoje de idoso na banda de pífano só tem eu, agora né. Dos mais velhos. Hoje é tudo da escola de música. Tudo menino aprendido aqui. Menino bem inteligente faz um serviço diferente dos mais velhos que tinha aqui. É tudo diferente o trabalho deles hoje, até porque estudaram muita teoria comigo aqui”, conta orgulhoso. Durante anos seu Dezinho manteve uma escola de música na zona rural de Carnaíba que atendeu a muitos jovens. Na sua
casa, ele reservou uma sala para ensinar os mais jovens sobre o pífano e outros instrumentos musicais. Quando perguntado se eles também aprenderam a fazer o pífano, a resposta foi sem jeito. “Estamos tentando, mas o pífano é muito difícil se você não tiver paciência pra fazer ele. Ele exige tanta matemática, que dá até enjoo. Se você não tiver uma boa cabeça pra fazer um trem desse, é muito difícil.” Porém, a escola parou de receber o apoio público, como ponto de cultura e da prefeitura. Os gastos se acumularam e seu Dezinho teve que fechar a escola. “As crianças choraram quando a escolinha fechou. Ainda hoje tem menino que aparece e eu paro pra ensinar uma besteirinha.” O material da escola continua lá, guardado no canto, sobrevivendo ao tempo e satisfazendo os momentos de saudade dos alunos e de seu Dezinho. Ele mantém o sentimento de esperança ao contar que as escolas regulares na comunidade também estão sendo fechadas e só resta a turma dele, no EJA, à noite. “Sempre aquela
questão, nunca falta tempo para você aprender as coisas, né. Basta você querer, ter a boa vontade de ajudar você próprio, né.” Das outras atividades na comunidade, seu Dezinho destaca o Grupo de Coco, herança dos antepassados. “Os nossos antepassados todos eles eram cantador de coco e tocador de pífano. Eu canto o coco! Sambo o coco!” brinca ao lembrar das festas de junho, nos anos 1960, em que a família se reunia na Ribeira (Moxotó) para festejar sambando o coco e conclui que “essa dança, ela é mais brincada pelos negros né. E aqui escondia muita gente”, fortalecendo a tradição da cultura afro-brasileira na região. Dos ensinamentos daquela manhã, a maior certeza foi de que “tudo vem do idoso né. Nada é novidade, tudo é velhice”, como ele mesmo diz, suas histórias e lições contagiam e mantém viva a tradição cultural entre as novas gerações, a começar pelos filhos e netos, tocadores de pífano, sambadores de coco e orgulhosos do Mestre Dezinho.
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Capa
| DedĂŠ Monteiro
O Papa da Poesia
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Texto Alexandre Morais | Fotos Claudio Gomes
magine uma igreja onde o deus é a poesia. O mal a ser combatido é a saudade; a bíblia é a viola e o terço é debulhado em cantoria. A sede é São José do Egito e todos os dias tem missa, cada qual em honra a santos e santas poetas. Nem imagine mais. Essa igreja já foi concebida pela genesialidade de Vinicius Gregório, poeta abdicado, devoto praticante das sagradas escrituras e oratórias poéticas. É a Igreja Protestante do Reino da Poesia. E pra mostrar que sabia o que tava fazendo, o bom escriba não economizou na tinta na hora de apontar o sumo pontífice de tal ordem: “Escolho o papa melhor / Mais sincero e verdadeiro / O de poemas singelos / Com o dom de serem os mais belos / O papa é Dedé Monteiro.” Apois tu acha que depois de uma argumentação dessa e da imediata e unânime aclamação pelos seguidores do reino, Dedé ainda se faz de rogado. Diz que prefere ser
chamado como o homem do fim da feira ou da porca preta pelada, fazendo alusão a dois de seus mais conhecidos poemas. Modéstia de gente grande. O título caiu bem que só mitra em cabeça de papa. Gostou? Mitra é aquele chapéu comprido que o papa usa. Caiu bem porque Dedé também é um religioso ativo. Além de todos os comuns sacramentos, ele foi coroinha e sacristão emprestado. Essa é nova, não é não! O Padre Luiz Muniz, egipciense sacerdote em Tabira no final da década de 60, convocou Dedé pra substituir um sacristão que houvera viajado. “Apesar de não saber distinguir o que era repique nem sinal, ainda fiquei quase um ano na função”, lembra sorrindo o hoje papa. A rejeição ao título não é específica. Dedé sempre achou que deveria estar nos degraus debaixo, na massa. Massa sedimento e massa povo. Muitos foram os convites para cargos, postos, funções, disputas e muitos foram os “não, obrigado”. Diz que pela formação recebida
sempre acreditou que as coisas podem ser corretas, mas sempre se deparou com visões e ações desviadas. E revela que lamenta não ter se proposto a ser um corretor desta realidade. “Sempre busquei o correto e o bem. E nunca me senti capaz de assumir determinados postos por achar que era impossível corrigir ou superar muito do que a gente sabe e vê. No fundo, me sinto culpado por não ter enfrentado isto no tempo certo. Mas quando senti isto, vi que já era tarde, não era mais tempo pra mim.” Assim o militante políticosocial também vive no poeta. Trabalhos como ‘Assassina, Brasil, teus inocentes / Que depois tu terás por quem chorar’, ‘Nós somos tijolos vivos / Na construção do país’ e ‘Soneto de revolta’ expressam esse Dedé ativista. Outra revelação é que gostaria de ter sido advogado. E não o foi pela mesma indisposição de conviver com o contrassenso. “Eu, estudante, vendo as atuações inspiradas de Zé Rabelo, senti vontade
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de segui-lo. Mas depois, vendo muitas outras atuações, essas sem inspiração, só impulsionadas por dinheiro ou outros interesses, acabei desmotivado.” A grande motivação de Dedé, na verdade, foi contemplar, apaziguar, reunir. Como um bom enviado, sempre dispôs um ombro e uma palavra amiga, acreditando nas pessoas e nas famílias. Divide-se e reúnese ao mesmo tempo em três amores: “à família original, à família gerada e a Deus sobre todas as coisas.” Da família original é que veio o gosto pela poesia. Recorda que o pai sempre incluía cordéis nas feiras que fazia. Em casa a mãe os lia e na roça, em tarefas maneiras, recitava e cantava versos com os irmãos. Uma vez letrado conheceu os poemas de Castro Alves, Drummond e outros clássicos, mas se encontrou mesmo com os cordelistas e cantadores de viola. “Eu voltava da banca de feira de meu pai e parava no
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Beco de Pergentino pra assistir as cantorias. Lembro de Miguel Espinhara, Zé Feitosa, Lavandeira do Norte... eu ficava ali, menino, impressionado com aqueles poetas.” Dali pra começar a escrever foi um pulo. A boa memória não lhe distancia dos incentivos e incentivadores. “Não tenho o poema, mas lembro que o primeiro foi na escola, para minha mãe, a pedido da professora Enaide Vidal. Fim de feira foi uma dica de Ducarmo Viana, também professora. A tampa do tabaqueiro foi sugestão de Cicinho Gomes e o primeiro livro, Retalhos do Pajeú, em 1984, foi incentivado por Zelito Nunes.” Dada esta largada, o poeta não parou mais. Faz de um tudo ligado à poesia: recita, julga, apresenta, corrige, prefacia, aconselha e escreve. E como escreve. Ora por inspiração, ora por encomenda. Fazendo e sentindo-se bem. “Eu me sinto muito bem quando escrevo algo que gosto e que sinto que algumas pessoas também vão
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gostar. Fiz poesias para arrancar risos, mas provocando reflexões, sentimentos. E também termino poemas chorando.” Muitos destes risos e prantos foram registrados em seus outros livros Mais um baú de retalhos (1995), Fim de feira (2006) e Meu quarto baú de rimas (2011) e no CD Dedé Monteiro em voz e amigos: 50 anos de poesia (2014). Junto às publicações, claro, vieram as críticas. Sim, nem os papas estão livres delas. A mais recorrente, a de ser um poeta bairrista. De só abordar o que lhe rodeia. Diplomaticamente responde que vai morrer assim. “Quem se concentra em sua aldeia cuida do planeta. Nunca fui de voar, não. Gosto é do meu canto mesmo.” E seu canto é Tabira. É o Pajeú. É o sertão. Lugar onde nasceu e se fez mito em tudo que fez. Muito mais que poeta, como homem, como trabalhador, como desportista, como professor. Como homem em tudo. Como trabalhador desde cedo junto à família na roça, nas feiras, no comércio
e já sozinho em escritório das frentes de emergência. Como desportista, jogando futebol e vôlei – “embora muito ruim” – e atuando como assistente técnico e preparador físico. Como professor de contabilidade, inclusive de sua esposa Teté, de educação física a convite da então diretora do Ginásio Eduardo Coelho, hoje Escola Arnaldo Alves, professora Dulce Lima, e como técnico decacampeão dos jogos escolares regionais.
E o saudoso Dedé se derramou como nunca. Apesar de toda carga sentimental do poeta, foram as lembranças como técnico do Arnaldo Alves que molharam de lágrimas essa reportagem. “Foram momentos carregados de dificuldades. Chegávamos em Tabira muitas vezes meia noite ou mais e íamos comemorar pelas ruas. O povo entendia aquilo”, relembra. “Eu nunca fui de festejar e até era criticado por isso, enquanto Rosa
Coluna VALE A PENA CONHECER...
e Teté às vezes até brigavam,” chora. “Eu ficava naquela de abraçar os meninos e pedir pra eles abraçarem os adversários, confortar os derrotados. E na derrota também, porque não se deve dar as costas aos que lhe venceram”, reensina. “Eu não tinha me lembrado ainda desse tipo de saudade”, soluça. “O que mais me deixa bem comigo mesmo é levar a sério o trabalho e não querer conquistar os prêmios de qualquer jeito.” Pede pra parar. Pedido aceito.
| Genildo Santana
...o trabalho do Padre Frederico Bezerra Maciel, “LAMPIÃO, SEU TEMPO E SEU REINADO”, publicado pela Editora Vozes, a partir de 1979, em seis volumes. Frederico Bezerra Maciel nasceu em Porção, Pernambuco, em 1912. Foi um grande estudioso, principalmente de temas regionais. Sacerdote, com estudos especializados na Europa: Itália, França, Suíça, estudou sociologia, parapsicologia, psicoterapia, arte, estudos bíblicos e, por último, Técnico Agrícola em Pernambuco. Além disso, o padre era poeta, compositor musical, desenhista arquitetônico e homem de ação
e atuação social. Padre Frederico foi vigário em Carnaíba por 05 anos. Sobre Lampião consultou mais de 30.000 exemplares de jornais da época, publicados desde o Ceará até São Paulo. Esquadrinhou 78 cartas geográficas e 44 plantas de localidades, a fim de traçar mapas-roteiros dos assucedidos lampeônicos. Buscou novos depoimentos em entrevistas, volveu, por várias vezes, aos sertões do reinado de Lampião. Não há em sua obra propósito contra ninguém. É inteiramente baseada, com imparcialidade, em
depoimentos. Nada de imaginação, pressa ou caprichos. Escrito com absoluto critério de honestidade perante a verdade e com infinita paciência: pesquisa de 30 anos, 4.000 horas de redação, mais de 3.000 nomes de pessoas, mais de 2.000 nomes de localidades. É nesse trabalho que Padre Frederico levanta, pela primeira vez, a tese de envenenamento de Lampião e seus cangaceiros. Diz a história que, ao término do livro e com as negociações da Vozes para publicação já em andamento, um desafeto do cangaceiro procurou o padre e lhe ofertou vultosa soma financeira, além de imóveis na capital do estado de Pernambuco, em troca de seu livro, para queimá-lo, o que foi, óbvio, rejeitado pelo sacerdote. Padre Frederico Bezerra Maciel faleceu aos 22 de Dezembro de 1991.
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Produção de vida no Sertão Texto Wivianne Fonseca | Foto Claudio Gomes
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ajeuzeiros busca falar da diversidade de Artes e das Artes diversas que possuem em comum ser linguagem do Pajeú. Que cultura popular é essa que nos identifica? Dança, pintura, cordel, poesia, bordado, artesanato... artesanato em couro, que tal?! Nessa “categoria de arte” a gente tem no Pajeú uma figura ímpar para conhecer: Reinaldo Ferreira de Lino ou, simplesmente, seu Reinaldo. Vamos para Riacho Verde, localidade da área rural do município de Itapetim, pouco depois do Distrito de São Vicente. Trajeto conhecido nosso: estrada de chão, mandacarus e algarobas, “porteiras-cancela” e cachorros acuando os carros que passam. Chegamos a casa simples, de porta meiada (aquelas de madeira, divididas em duas partes, com trinco em cada uma), de tijolos aparentes, não aqueles de fábrica, de fazenda ou de chácara usada só em fim de semana, mas de parede que não foi rebocada, que deixa à mostra o cimento antigo do qual é feita, cimento que entre os tijolos, numa paráfrase a Baccarin, são veias gastas, mas sempre com sangue novo a correr. A casa é cercada de pés de milho que breve estarão
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embonecados. “bora espiá meu roçado”, chama o nosso personagem. Do alto dos seus 95 anos, – “96 eu vou fazer em 26 de outubro, se num morrer daqui pra lá!”- seu Reinaldo trabalha numa pequena oficina que construiu ao lado da casa onde mora. “A casa, a oficina... tudo isso aqui era eu mermo que fazia, não pagava nada a ninguém. Sou pedreiro também. Só pelos metro, eu sei até quanto leva de materiá”. Com passo firme, seu Reinaldo vai andando pelo terreiro, nos guiando até sua oficina. Com mãos seguras, vai gesticulando, argumentando que trabalha desde cedo e que se orgulha disso. “Comecei a trabalhar no roçado com 13 anos. Toda vida trabalhei e nunca tive preguiça de trabalhar. Trabalhar num mata ninguém não”. Já trabalhou em Patos, em Sergipe. “Bati o mundo todim”. Nosso artesão não usa óculos e diz que só toma remédio uma vez no mês por causa da gastrite. “Eu como que só um animá”. Viúvo, sem filhos, assistido por uma afilhada que “vem barrer a casa”, seu Reinaldo afirma que a esposa paraibana (era natural de Monteiro), morreu louca. Com esse assunto, traz à tona sua religiosidade. “Deus dê um bom lugar a ela, rezo pra ela todo dia”. E também seu bom humor. “Era
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uma boa mulher, dona de casa, mas, sinceramente, só vim ter sossego na vida depois que ela morreu”. O trabalho com couro entrou em sua vida há 40 anos e não tem perspectiva de saída. “Eu vou trabalhar enquanto tiver vivo e puder trabalhar, pode ser eu caducando que eu me astrevo a trabalhar”. Analfabeto, seu Reinaldo afirma que o olhar do artista está além do domínio convencional das letras. “Eu num assino nem o nome, mas pendeu pra arte, eu sou todo por dentro! Nasci com sonho de trabalhar em arte. Desde esse tamanhinho, eu já fazia carro de boi com caco de cuia”, disse marcando com a mão uma altura de não mais que 80 cm. Hoje, as peças produzidas no seu trabalho com couro são chinelos e bolas de futebol, mas já trabalhou muito com acessórios para vaqueiros. “Já fiz arreio, rabixola, freio... foi de couro, essas coisas assim grôssera, eu faço tudo”. Seu Reinaldo compra o material entre Monteiro e Tabira e, sozinho, realiza todas as etapas comuns na produção de arte com couro: deixa o couro de molho por um tempo, depois o glosa, limpando “aquela baba que fica por dentro”. Após secar ao sol, o couro é cortado e, com costura, prego ou cola, ele monta o que quiser. “Eu num peço modelo a ninguém, eu sonho na cabeça, faço com o compasso e depois corto”, diz ele mostrando um grande compasso de ferro, a faca para corte do couro e a tábua de madeira que apoia o uso dessas ferramentas. “Tem peça que dispensa a costura como as corrêa trançada das chinela pra mulher. As bola também, eu só
encho depois que seca bem no sol”. A confecção das bolas chama a atenção. Depois de riscados caprichosamente no couro, os gomos de cada uma são cortados e costurados totalmente à mão, evocando lembranças e o respaldo do artista para confeccioná-las. “Já joguei muita bola! Fui artilheiro. Era chamado pra jogar em Brejinho, pelo mato, por todo canto! Já fui convocado até pra jogar no Treze, em Campina Grande!”. A venda de seus artigos acontece nas feiras livres. “Vendo pelas feira e faço de encomenda. Vou pra feira de Santa Cruz, mas minha feira mesmo é a de Itapetim. No sábado, eu tô em São José do Egito, vou pra Tabira também... mexo o mundo todinho!”. Nesse ponto, seu Reinaldo entrelaça sua trajetória ao processo de industrialização que fez o couro ir sumindo da lista de matériasprimas mais usadas, dando lugar ao plástico e a outros materiais sintéticos. “Depois do plástico caiu muito o trabalho com sola. Tem muito artista pelo mundo, nessa outra arte japonesa”, disse numa referência aos chinelos de borracha populares atualmente. Mas nesse eterno embate, entre modernidade e tradição, seu Reinaldo, artesão original e tradicionalmente sertanejo, segue tranquilo. Ele não duvida que a relação com as pessoas, construída a partir da produção e da venda de seus artigos de couro, é uma forma de reconhecer as próprias raízes e de seguir adiante: “Meu negócio é fazer amizade. Nunca teimei mais ninguém, nunca briguei. Eu gosto de viver aqui. Aqui é meu lugar e quero morrer aqui”.
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um papo no boteco | Assisão
O homem de ferro do forró
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urante todo o encontro ele manteve-se com óculos. Uma composição a mais em seu conhecido biotipo magro, de braços longos, caminhar lento, rosto afilado, barba espassa e cabelos compridos de cor amarelo-fogo. Por trás dos óculos, as marcas de uma recente conjuntivite. No corpo, as marcas de uma história de 75 anos. 54
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deles nos palcos. Noites mal ou nada dormidas. Incontáveis viagens. Todas sempre com um destino final: Serra Talhada, de onde nunca achou necessário sair. Estávamos diante do homem de ferro do forró. No registro, Francisco de Assis Nogueira. Na escola, Assis. Mas por haver um colega de igual nome e este ser de baixa estatura, a turma logo batizou este de Assisinho e aquele de Assisão. O local escolhido
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para o nosso papo foi a estação ferroviária, um lugar que tem a ver com ele. Não a estação de antes, mas a de agora, cultural e abrigo do Museu do Cangaço. Assisão é sobrinho de Zé Saturnino, o primeiro inimigo de Lampião. Mas nem se aperrei, “os dois doidos de pedra” estão é amigos. A Revista Pajeuzeiro conta essa história com produção de Alexandre Morais e William Tenório e fotos de Thiago Caldas.
As origens Eu nasci na Fazenda Escadinha e com dois meses fui levado pra Fazenda São Miguel, que é vizinha. Foi uma tia que pediu a minha mãe pra me criar. Essa é a fazenda onde viveram Lampião e Zé Saturnino, que era meu tio. Mas minha infância foi só de brincar, aquela história do cangaço não mexeu em nada comigo, não. Eu vivia era brincando e cuidando dos animais. Agora, os outros aboiavam, eu já tangia o gado cantando. Cantava Jackson do Pandeiro, Luiz Gonzaga, até Nelson Gonçalves. Influências Minha família era muito grande e a fazenda era ponto de parada pros viajantes que viam ou iam entre Floresta e Serra Talhada. Então a casa vivia cheia e com isso muita conversa, muitos causos. Muitos parentes também eram músicos, sanfoneiros, violeiros, cantavam. Eu cresci observando aquilo. Tinha um rádio grande Philips holandês e mais tarde um ABC à pilha, que viviam ligados, tocando música. Na escola, com cinco, seis anos eu já fazia uns versinhos cantados e com 15 anos eu já tava nos forrós cantando pra chamar atenção das meninas. Daí então começaram os convites pra cantar e eu comecei a compor. Primeiras músicas Minha primeira composição foi Forró em são Francisco (canta): quem quiser vá, eu é que não vou lá / Que forró na cidade não tem nada pra me dá. Eu já tava protestando com as coisas da cidade. Mas essa eu nunca gravei. O primeiro
sucesso mesmo foi Bota fogo na fogueira / Santo Antonio mandou / São Pedro disse João foi dormir e ainda não acordou. Essa já foi sucesso. Estourou mesmo. Foi quando eu comecei a aparecer já com minhas coisas. Eu sempre gostei de Gonzaga e de outros, mas nunca gostei de imitar. Eu não pensava em ser igual a eles. Eu fazia uma coisa pra mim. Que fosse minha. Até quando pediam pra cantar os sucessos do momento, eu dizia não, eu vou cantar as minhas. Destino Eu mesmo já cantando nas farras, nos forrós, nas latadas, não pensava em ser cantor. Mas também não procurava outro serviço, não. Meu pai é que queria que eu fosse médico. Fui pra Recife estudar, mas não gostei. Um dia eu tava na Avenida Conde da Boa Vista, um carro de Serra Talhada passou, eu “moceguei” e vim embora. Aquilo não era pra mim, não, embora eu ache que eu seria um bom médico. Eu gosto dessas coisas. Sobre remédio mesmo eu sei um bocado. Sou eu mesmo que me receito e até indico remédios pra outras pessoas. Primeiro disco Quando eu cheguei em Serra, de surpresa, papai se lamentou e tal, aí disse: pelo jeito você quer é cantar, né?. Eu disse: é. Ele disse: então faça alguma coisa que você apareça. Quando eu tava com uns 21 anos, juntei três primos e gravei o primeiro disco, um compacto com quatro músicas. Gravei em Recife, na gravadora Rozenblit, que era uma das maiores do Brasil. O
disco era pago, mas mesmo assim tinha que fazer um teste. Quem me julgou foram Nelson Ferreira e Capiba. Fui aprovado e tavam lá as músicas Bota fogo na fogueira, Forró na pistola, Chorar por alguém não é defeito e outra. Ave Maria, sucesso demais. O estouro Agora o estouro mesmo pra valer foi com Peixe piaba. O nome da música mesmo é O forró está presente, mas todo mundo só chamava Peixe piaba. Aí já foi um LP e peixe piaba virou nome de casa comercial, de roupa, de calçado. Foi um protesto, no tempo em que o pessoal do interior e da zona rural tava muito envolvido com a música da jovem guarda. Aí eu comparei o estilo deles com uma piaba, que na terra não nada, que tava fora de seu habitat. Que aqui quem tinha que aparecer era o forró mesmo. Disco de ouro Depois veio Pau nas coisas, que foi um sucesso no Brasil todo. Vendi 300 mil discos só no lançamento. Rodei pelo Fantástico, Chacrinha, Bolinha, Sílvio Santos. Todo mundo perguntava como um cantor estoura uma música daquele jeito morando no interior do Nordeste. Ganhei quatro discos de ouro, outros de platina. Foi o auge mesmo. E nunca quis sair de Serra. Me chamavam pra morar no sul, me ofereciam as coisas, eu dizia: vocês tem preá aqui? Tem mocó pra eu comer com nata? Tem não. Então deixe eu no meu canto que é de lá que eu gosto.
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Padrão Do jeito que eu comecei eu continuo. Canto em circo, em salão, em palhoça, em festa grande. Sempre cantei no São João em Caruaru e Campina Grande. O São João de Campina Grande foi eu que abri e me mantenho lá até hoje. São 36 anos seguidos. Caruaru, não. Apesar de ser pernambucano, mas não me chamam todo ano, não. Intérpretes Muita gente grava música minha e nunca fiz questão. As músicas são sempre minhas, mas as vezes um intérprete pedia pra botar o nome pra ganhar direito autoral também, eu deixava. Mas só quando a música era inédita. Depois de gravada, não. Um dos primeiros foi o Trio Nordestino. Vieram fazer um show aqui em Serra e eu fui no hotel conhecê-los. Perguntaram se eu não conhecia quem tinha uma música que falasse em peso. Eu disse: eu tenho uma pronta. Cantei: Toda festa de embalo / Eu quero ver forró / Eu vou dançar forró / Eu vou me balançar... e o refrão: Forró pesado, forró pesado / A moçada se assanha / E ninguém quer ficar parado. Levaram a música na hora e depois pediram outras. Produção em série Até agora, enquanto a gente tiver fazendo essa matéria, eu tenho 734 músicas. Tem DVD e 49 discos. Mas amanhã eu não sei, posso fazer uma música a qualquer hora. Eu não faço o improviso dos poetas, mas música eu faço na hora. A maioria dos discos eu entrava na gravadora sem o repertório tá pronto. Aí diziam: faltam uma, faltam duas. Eu fazia. Do mesmo jeito é nos shows. Uma vez em São Paulo me botaram num baile country. Aí perguntaram: o que é que tu vai fazer pra esse
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povo? Eu disse: se incomode não. Entrei, daqui a pouco disse: puxa uma marcha aí. Quando os meninos puxaram eu entrei com Bob Nelson, pulando, jogando as pernas pro lado e dando aqueles gritos. Pronto, ganhei o povo e a festa foi uma beleza. Sanfoneiro de boca Eu tentei tocar oito baixos, mas parei logo. Não sei música, mas conheço de ouvido se o cabra tocar errado. Dominguinhos disse que eu era o melhor sanfoneiro de boca que existe. Porque eu faço as músicas de cabeça também, as introduções. Faço o arranjo na boca e o músico encontra no instrumento do jeito que eu digo. Eu fiz assim com Peixe piaba pra Dominguinhos, ele foi tocar, errou. Eu corrigi ele. Disse: não é assim, não. Tá errado. Cantarolei de novo, ele pegou aí tocou certo. Eu disse: tá vendo a diferença? Aí ele riu e saiu com essa que era um sanfoneiro de boca. Forró elétrico Eu achava pouco só a zabumba, o triângulo e a sanfona. Achava muito vazio. Aí botei a bateria eletrônica, que foi o que chamou atenção, botei cuíca, guitarra, contra-baixo. Ficou dum jeito que quando eu ia gravar no Recife, tinha gente que ia só pra ver qual era a novidade que eu ia levar. Fui criticado por isso, diziam que eu tava descaracterizando o forró, mas os jovens tavam comigo. Uma vez eu cheguei num restaurante no Crato e Luiz Gonzaga tava lá. Me chamou e perguntou: o que é aquilo que tem no seu disco que parece um cachorrinho latindo? Eu disse: é uma bateria eletrônica. Ele disse: rapaz, bote uma zabumba. Eu disse: não, deixa assim mesmo. Eu nunca toquei com zabumba, sempre foi com bateria.
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São João Tocar no São João foi ficando difícil. Vieram as bandas que, inclusive muitas me seguiram, mas a coisa misturou demais, a música não é mais só forró. Daqui a pouco a gente vai tá vendo no São João do Nordeste Lady Gaga, Madonna. O problema é que as cidades, os políticos, estão disputando público. Querem ver gente na praça e o forró autêntico não tá lotando praça mais. Infelizmente, não. Eu ainda junto gente porque tem muita gente que começou gostar de mim quando era jovem, quando era menino, e me acompanha até hoje. Tenho meu espaço. Comunista... Cheguei a ser detido, mas foi ligeiro. Foi com a música Ponto de vista. A música diz: Queima a paia, paia da cana / Toque a guitarra, toque a sanfona / More na ponte ou num lindo palácio / Durma na cama ou na esteira / Mas que mate o cansaço / Tira toda essa máscara / Mostra tudo quem tu és / Diga a todas essas abelhas / Que o povo é quem faz o mel... aí não gostaram. A outra era: Minha manteiga dá pra todo pão / Mostra a bandeira do povo guerreiro / Pegue um bom dinheiro / Faça tudo na vida, tudo que for capaz / Só não faça maldade, somos todos iguais / Filhos da mesma massa, filhos de um só pai. Me tacharam de comunista. Eu tava na gravadora, a Polícia Federal chegou, me chamou, o agente disse: sente aí, você tá detido. Você é um novo Vandré que tá surgindo. Eu fiz que num tava entendendo, aí Pedro Sertanejo, pai de Osvaldinho, disse: hôme, isso num sabe o que é isso, não. Isso é lá do sertão de Pernambuco, daquelas terras de Lampião, num sabe de nada, não. Aí outro agente disse: é, deixa o rapaz,
vamo embora (risos)... Daquela vez eu fui salvo pelo cangaço. ...não militante Eu nunca fui de me envolver em movimento nem partido, não. Vez por outra é que eu colocava umas coisas na música, porque achava que tinha que dá o recado também, mas só isso. A censura me perseguiu mais pelas músicas de duplo sentido. Esquenta Moreninha foi um caso, por comparação com uma relação sexual. Só passou porque o dono da gravadora gostou muito, viu que ia estourar, deu um jeito lá e liberaram. Mas o meu duplo sentido é aproveitando as coisas que a própria língua portuguesa permite. Por exemplo, jequi é uma armadilha de pegar peixe. Minhoca é a isca. Quando eu botei na música que eu ia pescar com uma menina e colocar a minhoca no jequi dela, aí já caíram em cima. Mas é o próprio português que permite isso.
Absurdo Outra coisa diferente foi eu ganhar o troféu Compositor do Absurdo. Isso foi lá em Olinda por causa da música Chuva miúda. É onde eu digo: Nessa vida de vaqueiro, todo mundo é carnaval... e mais na frente: Caju novo é maturí, o mar anda sem correnteza / Da mulher quero a beleza, flor de banana é mangará... Aí ganhei esse troféu, mas vida de vaqueiro, todo mundo é carnaval é essa correria do dia a dia, todo mundo feito um formigueiro. Dois doidos Agora Domá (Anildomá, pesquisador do cangaço) pediu pra eu fazer uma música sobre Lampião. Eu disse: eu faço, mas é falando de Zé Saturnino também, que era meu tio. Aí fiz Dois doidos de pedra, que diz: Zé Saturnino da pedreira e Virgolino / Desde menino começaram a brincadeira / Eles brincavam de brigar o dia
inteiro / De pedra, de funda, de badoque e baleeira / Mas o destino só queria ter um pé / Desculpouse do chocalho e começou logo o trupé / E a cobra fumou e o xaxado no pé / A poeira subindo e o xaxado no pé / Era a bala cortando e o xaxado no pé... Aí deu certo. Daqui pra frente Eu nunca fui de pensar no futuro, não. Deixo as coisas acontecerem, nunca liguei pra nada. Já cheguei em casa muitas vez com a mala do carro cheia de dinheiro, mandava o povo pegar, comprar feira. Daqui a pouco chegava um e dizia: se acabou. Eu dizia: se acabou? Então pronto, depois ganha mais. Sempre fui assim. Graças a Deus nunca me apeguei a nada e também nunca me faltou. E é esse o conselho que eu dou pra quem quiser ouvir: faça tudo com honestidade, mas tudo com força, com garra, porque acreditando tudo dá certo.
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Datargnam, a força do Pastoril
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PE-275 corta a cidade de Tuparetama na direçãodeSertânia a Brejinho. Um passageiro mais atento, ao atravessar o trecho urbano, de carro ou a pé, verá na calçada de uma casa simples, em frente ao morro do cruzeiro da cidade, uma senhora em sua cadeira de rodas, observando o movimento de veículos e pessoas. Não se engane com sua aparente fragilidade, sem capa, espada ou armadura, é nossa Datargnam, nome de batismo e de arte, pronunciado por nós, tal como se escreve (no feminino), pois aqui quase todos desconhecem a origem e pronúncia francesa do nome dado ao personagem do romance Os Três Mosqueteiros de Alexandre Dumas. Nossa Datargnam, mestre do folguedo do Pastoril, é uma dessas figuras singulares que condensam em si os significados da cultura local, reforçam a identidade comunitária em seus variados aspectos e cuja participação cotidiana, diria talvez “modo de vida”, reflete uma tradição e tradução das formas de vivência e sapiência do povo. É como citei acima, o que chamamos de mestre, aquele/a que ensina, elemento fundamental para a representação da diversidade. Patrimônio cultural imaterial, tesouro vivo. Para quem não conhece nossa Datargnam, seria necessário
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Texto Tarcio Oliveira um texto muito mais extenso de apresentação, considerando-se a valiosa contribuição do seu trabalho, daquilo que faz dela uma figura admirável, dos imensos desafios que a vida lhe apresentou. Tem superado todos os percalços, revelando sua veia resistente. Como todo mestre da cultura popular, em sua trajetória de arte e de vida, Datargnam mais perdeu, em posses e bens, que ganhou até agora. Não conquistou riquezas materiais e decerto bem poucos lhe dão o devido respeito e valor. Já a contabilidade de perdas é alta, inclui entes queridos como filhos e até uma perna para a diabetes (o que limita bastante sua mobilidade e seu trabalho cultural), mas essas agruras expõem a sua verdadeira natureza, essa característica valente e persistente, positivamente otimista, do artista popular sertanejo, pajeuzeiro. É essa faceta de nossa Datargnam que ressaltamos como estandarte do artista popular de Pernambuco, do Sertão, de Tuparetama. Tuparetama tem um longo histórico de tradição no Pastoril, graças ao protagonismo cultural de Datargnam e seu grupo, pelo qual já passaram centenas de meninas e meninos da cidade. Isto desde o ano de 48, quando se montaram os primeiros folguedos trazidos por Dona Giselda, uma senhora de Olinda que veio pra cá
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acompanhando o esposo Cipriano, nomeado delegado da localidade. Foi com ela que Datargnam aprendeu as músicas, coreografias e enredo do pastoril, ainda muito criança, e de lá pra cá nunca mais parou. Seu pastoril é uma variante do pastoril religioso, que estudiosos do folclore classificam como pastoril de passagem. Como o objetivo principal do pastoril nessa localidade ainda é a arrecadação de dinheiro nas festas religiosas da cidade e comunidades rurais, a disputa entre os cordões azul e encarnado sempre foi muito estimulada. Datargnan desenvolve esse relevante trabalho cultural até hoje, com poucos recursos e sem apoio financeiro. Ainda assim, desde 1997, seu pastoril é objeto de estudo da Comissão Pernambucana de Folclore e resiste, fazendo parte da memória da cidade no decorrer desses 70 anos: patrimônio imaterial de cores, sons e cortejos da princezinha do Pajeú. Se nossa mestre-mosqueteira não aposentou ainda suas “capa e espada” é porque tão bem traduz em sua existência os versos do também mestre egipciense: Luto por transformação/ Por educação e arte/ Enquanto houver lucidez/ Erguerei meu estandarte/ Posso não mudar o mundo / Mas eu faço a minha parte. (Chárliton Patriota, no livro Casebres, Castelos e Catedrais, 2011).
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