Revista Pajeuzeiro - Edição 03

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Revista

Pajeu zeira Ano I - Número 3

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eXPEDIENTE PRODUÇÃO E PROD. EXECUTIVA

William Tenório REDATOR CHEFE

Alexandre Morais Jornalista DRT-PE 2707 ASSISTENTE DE REDAÇÃO

Flaviany Bruna Tavares CORREÇÃO ORTOGRÁFICA

Alexandre Morais Wivianne Fonseca FOTÓGRAFOS

Claudio Gomes Thiago Caldas ARTE E DIAGRAMAÇÃO

William Tenório

TRATAMENTO FOTOGRÁFICO

Thiago Caldas FOTO CAPA

Thiago Caldas EQUIPE DE REDAÇÃO

Alexandre Morais Flaviany Bruna Tavares Genildo Santana Uilma Queiroz William Tenório Wivianne Fonseca COLABORADORES CONVIDADOS

Amaral Neto e João Vinícius CONTEÚDO AUDIOVISUAL

Pajeú Filmes

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Editorial

uem disse que é fácil? E quem disse que se fosse fácil seria tão bom? É difícil colocar o Pajeú dentro de uma revista. As pautas se oferecem, os personagens saltam em nossa frente. As imagens falam, cantam, dançam, versam. E aí decidir o que fazer e o que fazer primeiro não é mole. Mas o bom é que essa difícil e prazerosa tarefa chegou à terceira edição. A Revista Pajeuzeiro já é esperada. E ao chegar, já comprovamos isso, é festejada. Porque mostra nossa gente pra nossa gente. Fazedores e apreciadores da nossa cultura se encontram e se descobrem nestas páginas. Nesta edição trazemos na capa uma das personagens que melhor simbolizam esse fazer/apreciar do nosso povo. Diana Rodrigues é a cara e a alma de Triunfo. Pesquisando e produzindo do alto da serra lança olhares sobre todo o vale e assim se faz a guardiã da memória, como ficou bem intitulada nossa matéria especial. Indo ao outro extremo do Pajeú, revelamos a transformação do barro em arte. E da vida através do barro. Vem lá de Brejinho o exemplo do Grupo de Mulheres Art’s Barro. Mulheres que refizeram suas vidas e moldaram novos caminhos com as próprias mãos. Assim como fez também Jonas Moreno, este trabalhando com madeira. O artesão de Iguaraci retrata a vida sertaneja e assim se vê retratado, refeito, repleto, um rei no ofício. O que nos remete ao Reisado dos Vieiras, composto por jovens e agricultores das zonas rurais de Afogados da Ingazeira e Carnaíba. A colorida e brincante tradição secular é mantida com passos e cantos que superam as dificuldades inerentes ao fazer popular. Viu quanto trabalho? Quantas passadas pra registrar isso tudo? Mas tem mais. A Pajeuzeiro ainda foi ao Sítio Minadouro, na Ingazeira, encontrar outra fonte de arte. Odília Nunes, a mulher feita de teatro. Ela é dali e tá ali ao mesmo tempo em que gira o mundo encantando plateias. Tá ali pra provar que é possível ser universal, sendo local. E pra fechar, ou melhor, pra dar uma parada e já partirmos para a próxima edição, o registro do centenário de um dos maiores nomes do genuíno repente, Zezé Lulu. Natural de São José do Egito faleceu em 1987. Mas como poeta mantem-se presente entre os pajeuzeiros e assim é sempre celebrado. Celebremos, pois, pajeuzeiros de todas as cores, idades, gêneros, estilos... de todas as artes... de todos os cantos e recantos. Dianas e Odílias, Jonas e Zezés. Dançantes, brincantes. Fazedores e apreciadores das nossas tradições. Tá aí mais uma revista de vocês. Pra vocês. Revista Pajeuzeira - Ano I - Número 3 |

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Moldando vidas

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Texto Wivianne Fonseca | Foto Claudio Gomes

assando no Sítio Tamboril, já na entrada da cidade de Brejinho, é possível observar, ao lado da BR 110, uma casa com janelas abertas expondo panelas, objetos de decoração, canecas e cumbucas feitas de barro.

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É uma Casa de Arte, ou como suas “donas-artesãs” a chamam, “uma casinha” de produção artesanal com barro. Chegando mais perto, cumprimentamos as quatro mulheres trabalhando, sentadas à porta, lixam grandes panelas com pedras molhadas em óleo vegetal. A

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casa é pequena. São apenas três cômodos que abrigam as peças prontas para a venda e aquelas ainda em suas diversas fases de fabricação: algumas secando cobertas com pano, outras aguardando a lixa ou a hora de ir ao forno. Há ainda uma grande mesa, destinada à modelagem das


peças e, em um espaço aberto lateral (que seria o quintal), está o forno à lenha, último destino do que é moldado. A casa, cedida pela senhora Alexandrina Lopes de Araújo, é a sede do Mulheres Art’s Barro. O grupo é formado por oito mulheres que há oito anos trabalham de segunda à sexta, alternando horários entre a manhã e a tarde. Seis delas conversam conosco: Aline Iolanda (25 anos), Jucileide Gomes (49), Jucineide Lopes (56), Maria Aparecida Gomes (44), Maria do Desterro Lopes (40) e Maria Madalena Lopes (48). Segundo as artesãs, o trabalho com mulheres na produção de peças com barro surgiu no município diante da necessidade de ativar a Associação de Moradores, na época, demanda destinada à Secretaria de Assistência Social. A partir de peças vistas no Pico do Jabre, na Paraíba, uma artesã da cidade de Matureia, veio dar um curso que durou três meses. “O curso era destinado a mulheres da associação de moradores. Iniciou com 16 mulheres, mas umas aprenderam e não vieram mais. Outras aprenderam, mas não quiseram entrar no grupo porque já tinham outro trabalho e outras ficaram vindo, mas depois desistiram. Sei que foi passando o tempo e só ficaram cinco mulheres. Com o passar do tempo, aumentou o grupo de novo”, resume Maria Aparecida sobre a origem do Art’s Barro. As atividades semanais na casa vão intercalando trabalhos de modelagem e de

acabamento. Com todas as mulheres mobilizadas entre esses trabalhos, o grupo já chegou a concluir 50 peças em um dia. “É fundamental que aqui todas saibam fazer tudo”, destaca Aline Iolanda, que há pouco mais de quatro meses trabalhava numa loja da cidade e pediu demissão para atuar no grupo. A atuação cooperativa exige que todas as mulheres conheçam cada etapa do processo que envolve o trabalho para, na ausência de qualquer uma, o serviço não parar. “A gente vai buscar o barro num sítio a 2km. Depois de seco, o barro é quebrado e passado numa peneira. A gente deixa bem fininho, como se fosse uma fuba, depois junta com uma medida de pedra-sabão, que é também triturada, e deixa essa mistura ficar três dias em sacolas plásticas concentrando pra ficar unido, bem unidinho”, relata Maria Aparecida sobre as etapas do processo de fabricação das peças. Entre os desafios do trabalho está convencer os familiares de que a arte vale à pena. Desafio maior entre as casadas. “O marido. Sempre o marido. O marido sempre se encaixa perfeitamente nisso, porque eles estão acostumados com a mulher em casa, cuidando, fazendo o prato e entregando a ele. Quando a gente começa a trabalhar, a gente num tem mais tempo pra isso, ai eles começam a estranhar. O meu se convenceu de tanto eu dizer a ele que ia continuar. Hoje ele diz ‘pense que vocês faz coisa

bonita. Vocês são inteligente mesmo’”, diz, entre uma risada e outra, Maria Aparecida. Sobre o significado do trabalho, Jucileide Gomes afirma não conseguir definir em palavras: “É até difícil falar porque significa muito. A gente se identifica, a gente gosta de fazer. Traz de bom a autoestima. Com esse trabalho, a gente se influencia e influencia outras pessoas para a mudança de vida”. Jucineide Lopes completa: “Já participamos de feira no Rio de Janeiro, participamos da Fenearte no Recife. Depois que comecei a trabalhar aqui, fui em canto que eu nem imaginava ir um dia”. Maria do Desterro ressalta a importância da Assessoria da Casa da Mulher do Nordeste e da Rede de Mulheres Produtoras do Pajeú no fortalecimento do grupo. “O conhecimento que a gente tinha antes era muito pouquinho... a gente não sabia nem o que era o grupo realmente. Nem como conversar, nem como atender o pessoal direito, a gente tinha vergonha de falar. A Casa e a Rede nos ajudaram a aprender sobre esses pontos”. Encerrando, fala sobre a contribuição do trabalho no Art’s Barro para a emancipação das mulheres do grupo. “Antes, ninguém trabalhava, só se fosse na agricultura e em casa de família. Agora a gente tem esse serviço. Se chamar pra outro, a gente responde: ‘já tenho meu trabalho, que é o artesanato, é minhas panelas’. A gente fez uma mudança geral, mudou pra mudar de vida mesmo”.

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Um retirante artesão

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Texto William Tenório | Fotos Thiago Caldas

á alguns meses ganhei de presente de Alexandre Morais uma escultura em madeira de uma mulher negra e esguia que caminha com uma lata d’água na cabeça apoiada com a mão direita e com uma foice na mão esquerda. Na base retangular que serve de apoio para a peça está entalhado o nome do artista que a produziu, Jonas, escrito em letras de forma com o S começando em baixo do J. Acho a peça linda e não fazia ideia de onde havia sido produzida, até que em uma das gravações do

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Cultura e Coisa e Tal descubro que Jonas mora em Iguaraci, ou seja, é um pajeuzeiro. Alguns dias depois ligo pra Thiago e partimos para Iguaraci. Com as informações que Alexandre havia nos passado não foi difícil localizar a oficina/ateliê de seu Jonas. Com as portas abertas ele conversava com um vizinho enquanto trabalhava. Ao ver o carro foi à porta para nos receber. Não havíamos ligado e não nos conhecíamos e mesmo assim de pronto ele topou conversar com a gente. Seu Jonas Moreno tem 66 anos, é Natural de Afogados

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da Ingazeira, ou melhor, é “registrado em Afogados”, como ele mesmo diz, isso porque em 1950, Iguaraci era um povoado subordinado à Afogados da Ingazeira e o cartório ficava na sede. O ofício começou como brincadeira ainda na infância. “Desde moleque que eu trabalho com madeira”, lembra. Produzindo seus próprios brinquedos como caminhões e carros de boi, isso quando sobrava tempo, pois a atividade principal da família era a agricultura. “Nós crescemos trabalhando na agricultura, ainda hoje trabalho


na agricultura, mas o trabalho principal que eu tenho agora é como artesão”. Mas não se engane, o pai dele, Severino Lau, também era artesão. “Meu pai fazia colher de pau e eu aprendi fazendo colher de pau”. Pergunto quando foi que ele percebeu que poderia ganhar dinheiro com o artesanato. Ele ri e, brincando, responde: “pra ganhar dinheiro eu não percebi ainda”, mas reconhece que foi no artesanato que criou os filhos. “O que eu tenho hoje, provavelmente, arrumei com o artesanato, agricultura não dá dinheiro a ninguém, só dá o feijão quando chove, o milho quando chove, então eu optei pelo artesanato”. A atividade tem posto o pão à mesa desde 1979, ano de seu casamento com dona Maria, com quem tem quatro filhos. Com a virada do século se aproximando seu Jonas resolve dar uma guinada na vida e se mudar para a capital do Estado. “Eu fui embora para Recife nos anos 2000. Passei sete anos lá”. E durante esse período ele e a família viveram do seu trabalho como artesão, conseguiram contatos e fizeram uma boa freguesia na cidade. “Ainda hoje eu vendo lá”. Mas o tempo passou e seu Jonas voltou para Iguaraci, onde se dedicou à produção das peças que geraram nosso encontro, os retirantes, figuras de homens e mulheres esguias caminhando e sempre carregando alguma coisa, seja uma foice, uma lata d’água ou um fecho de madeira, e por vezes com uma criança. Pergunto: de quem foi a ideia dos retirantes? E ele

responde: “quem criou foi um sobrinho meu que mora em Sertânia”. O sobrinho é Marcos Paulo, artesão sertaniense reconhecido dentro e fora do Estado e que recentemente teve algumas de suas peças como objeto de cena em uma das novelas da TV Globo. Hoje com 66 anos, seu Jonas trabalha só e mais uma vez rindo afirma: “eu trabalho toda hora”. Ele diz que “a arte é uma terapia. Eu não deixo de fazer nunca”, e assim, mesmo sem encomenda ele está sempre produzindo porque há procura. Pergunto: qual a produção mensal? “Rapaz quando eu não me ‘impaio’ em outras coisas eu faço umas vinte peças no mês”. A madeira, matéria prima para o trabalho é umburana, extraída pelo próprio artesão. “Umburana é coisa que aqui no Pajeú tem, eu tirei muito aqui e no Moxotó, tinha muita lá em Sertânia quando comecei a trabalhar”. Após a extração a madeira é serrada em tábuas de aproximadamente três

centímetros de espessura onde serão desenhados os moldes e cortados na serra tico-tico, única parte do processo que utiliza equipamentos elétricos. O entalhamento é todo feito à mão com a ajuda de uma faca. Em seguida a peça é lixada e por fim recebe uma cera que além de impermeabilizar dá um ar de envelhecida à madeira. Antigamente as peças eram pintadas à mão, hoje segundo seu Jonas, os clientes preferem elas mais rústicas. Após o fim da conversa, já com o gravador desligado, vejo no canto da mesa um cavalo de madeira entalhado de forma realista, pergunto se foi ele quem fez. A resposta é afirmativa, e isso me leva imediatamente a uma lembrança da minha infância. Aquele homem a minha frente era o mesmo que vendia réplicas de carros de bois em madeira nas festas de final de ano na praça de Afogados da Ingazeira e que por muita insistência meu pai me comprou um. O mundo é realmente muito pequeno.

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Capa

| Diana Rodrigues


A guardiã da memória

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Texto Bruna Tavares | Fotos Thiago Caldas

nome dela já descreve muito. Diana significa “ d i v i n a ”, “c e l e st i a l ”, descreve uma personalidade sonhadora, intuitiva, sensível e por isso frágil e independente, muito ligada a recordações da infância. Eis a nossa personagem da vez, Diana Rodrigues Lopes, sorridente, amante de Triunfo e entusiasta da memória, que faz história no Sertão do Pajeú. Lembro-me bem do meu primeiro encontro com Diana, há pouco mais de um ano, numa das oficinas do Festival de Cinema de Triunfo. Baixinha, vestia um blazer com cachecol naquela manhã de sol e ventos frios e, claro, seu chapeuzinho completava o modelo. No último dia da oficina eu e William a convidamos para uma sessão de fotos. O “sim” foi imediato. E depois de algumas frutas comidas na rua e bons conselhos, as poses e os sorrisos não faltaram, na calçada em frente a Fábrica de Criação Popular. Desde aquele momento, eu sabia: queria escrever sobre aquela mulher inspiradora. E aqui estamos. Dessa vez fomos recebidos em sua casa com vista para o Cineteatro Guarani e o Lago João Barbosa, no centro

da cidade. A casa cor de rosa, com um jardim florido e bem cuidado, que tem o nome de Diana em azulejos na fachada, já avisa que ali é um lugar de vida e história. A disposição da nossa anfitriã impressiona. Um café da manhã posto à mesa, boas histórias e algumas de suas obras já prontas para nos apresentar. Diana Rodrigues é uma incentivadora e pesquisadora da cultura e história local. Patrimônio vivo de Triunfo. Aos 72 anos ela lembra de histórias da sua juventude e do apoio constante dos pais. “A noite a gente se reunia na mesa, pra ouvir histórias, pra ouvir os fatos que aconteciam durante o dia através da rádio, que papai ouvia rádio, e também pra aprender a dançar, ele ensinava a gente a dançar. E era muito bom, meus irmãos tocavam e a gente dançava.” Ela conta que sua alegria constante é herança desses momentos em família, a exemplo dos pais que como ela mesma diz “papai nos levava para as festas, pro baile no clube, minhas amigas todas pulavam a janela, corriam pra rua, fugiam, a gente nunca teve necessidade, porque papai era um homem que entendia o que era a juventude”. Além do pai, ela lembra dos biscuits que sua mãe colecionava e da tia Suely que organizava

peças de teatro e ensaiava com os jovens as apresentações no Cine Teatro Guarani. “Eu fui criada assim, dentro do teatro, fui criada com minha tia dirigindo a gente, a gente fazendo aqueles papéis e adorando. Então hoje eu gosto muito, eu faço teatro porque eu fui acostumada. Foi a minha infância e adolescência”. E assim, ela ressalva a importância de uma vida artística para a sua formação naquela época e para a formação dos jovens ainda hoje. Ela busca ser influência para os jovens que a conhecem, em todos os sentidos. Não só na presença entre familiares e na vida artística, mas também na preservação dessas histórias de qualquer forma possível. Seu orgulho é perceber que a história da cidade, das pessoas e da cultura resiste através do seu acervo, com centenas de fotos, máquinas de costura, peças de porcelana, utensílios domésticos e muito mais. Guardados, comprados ou ganhados ao longo do tempo de familiares ou amigos, ela já construiu a casa pensando em preservar histórias e que desafiou muita gente para isso. “Minha casa é um museu, porque aqui eu desafiei que ninguém fazia isso em Triunfo. E eu fiz. Desafiei logo construindo, que mulher não construía casa e eu construí,

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justamente deixando muitas salas pra que eu pudesse fazer e botar o que eu quisesse. Hoje tá aí. Hoje eu acho bom porque muitos jovens de Triunfo já me imitam.” Entre as centenas de fotos espalhadas pelas paredes da casa estão registros da família, da juventude, da cidade de Triunfo e uma preocupação também em guardar a história de pessoas da comunidade, pessoas comuns que fazem parte da história da cidade e que foram fotografadas pela própria Diana que nos conta que a paixão pelas fotos vem de berço. O pai e a mãe gostavam muito de fotos, hoje um dos oito irmãos é fotógrafo. Quando pergunto sobre sua paixão por Triunfo, responde fazendo graça: “Eu sou! Eu me casei com Triunfo. A sina que a gente tem, né? Aí eu digo ao pessoal: eu trabalhei, trabalhei e quando eu pensei em me casar já tava velha. Aí foi tarde.” Sorridente, Diana diz que o apoio da família foi fundamental para ela. “Por ser mulher eu nunca tive dificuldade de nada. Vou lhe dizer por quê: meu pai dizia, ‘quer fazer? Tem meu apoio.

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Oh, a família quando eu comecei a dirigir, na década de 1960, você não via mulher dirigindo em Triunfo. Aí, meu pai dizia ‘quer dirigir? Toma a chave.” E assim, embora tenha vivido toda a sua vida em Triunfo, ela não desistiu dos seus desejos, sempre aconselhada e incentivada pelos pais. “Eu tive muita influência da família, a família foi uma grande norteadora na minha vida, sempre. Mostrou que a gente não devia ter medo.” E desse jeito até a missão proposta pelo bispo Dom Francisco para assumir a direção de uma escola à beira da falência pela indisciplina e pela desorganização, Diana não teve como recusar. E fez sucesso durante oito anos com apoio da mãe. Diana lembra das conquistas que alcançou na vida, das paixões e de como desbravou mentes no sertão do Pajeú. Hoje, Diana distribui suas experiências e disposição pelas ruas da cidade, visitando amigos, recebendo escolas em sua casa, fazendo palestras e participando dos eventos da cidade. Participa

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de todos como voluntária e já é figura registrada na cidade. Ela e os caretas. “Sou apaixonada pelos caretas. Meu pai gostava muito de sair de careta. E eu fui crescendo e gostando dos caretas. Só que uma época os caretas desapareceram de Triunfo. Então foi quando eu assumi a Secretaria de Turismo. Aí eu comecei a dar vida aos caretas. Eu levei um careta só para o Recife. Nós fomos de caminhão fazer uma apresentação no Centro de Convenções. Fizemos. Ali tinha uns jornalistas e isso desencadeou essa procura pelo nosso careta. Depois eu viajei muito com outros caretas.” Pelo feito, ganhou o título de mãe dos caretas e se orgulha de ter incentivado mulheres e crianças a também participarem da brincadeira antes exclusivamente masculina. “Se precisar, eu me visto.” Ela é uma mulher atenta e antenada. Divide o seu tempo entre visitar os conhecidos na cidade e atualizar-se nas redes sociais. Mantém um perfil no Facebook cheio de fotos suas, da cidade e dos eventos que acontecem por lá. E avisa logo: “me chamando ou não eu sempre vou. Sempre ajudo. Porque é importante a gente participar, valorizar o que é nosso.” E leva a sua animação pra todos os lugares. Misturar o passado e o presente é sua marca maior. “Eu tenho um pé no passado, sou de uma geração completamente diferente de agora. Meu nome não é Diana. Eu sou a Diana. Olho o passado, o que tem de bom eu trago. Então eu faço essa junção e passo pros jovens, meus sobrinhos, pra todos. Por que tem muita coisa boa no passado e tem muita coisa boa hoje.”


Sobre o futuro, Diana é clara: “quero que a família preserve tudo” e já esta trabalhando para convencer os mais jovens, nas constantes e calorosas reuniões de família. Seu acervo, sua casa, suas histórias, tudo está devidamente organizado para que os jovens continuem o seu legado e permitam às próximas gerações conhecer sobre as histórias da família, Triunfo e seus personagens. “Pra ter uma prova, meu enterro, eu já pedi ao padre.” E ela não quer nada de tristeza,

ela quer ser lembrada assim: “bem alegre.” Como aprendeu desde a infância entre a família. E não para de contribuir para aumentar o acervo, que já tem quatro livros, mais uma antologia, mais gibis literários, um programa na rádio e mais dois livros a caminho. Diana é assim, como a deusa romana da lua e da caça, forte e poderosa. Amante da cultura e incentivadora das mais variadas artes. Presente em vários festejos, viajante e com várias histórias pra contar.

Coluna VALE A PENA CONHECER...

Afinal, pra ela cultura é vida e está em toda parte. “Cultura é o meu mundo, isso aqui tudo. Eu respiro, eu me alimento, tudo de cultura. Tudo eu adoro. Cultura é tudo na vida da gente.” Sem dúvida um orgulho para as inspirações passadas e inspiração para as gerações presentes e futuras. Uma alegria pura. “Eu fui criada assim, numa casa muito festiva, muito colorida, e ainda hoje sou assim. Eu gosto de transmitir a todo mundo que a gente tem que ser alegre.”

| Genildo Santana

...A Regionalidade Universal do florense Moacir Santos. Nascido em 1926 em Serra Talhada, Sertão do Pajeú, ele foi criado sem a presença do pai, que abandonou a família para juntar-se à força volante que caçava o bando de Lampião. Pouco depois, a mãe morreu. Foi criado, então, por uma madrinha, em Flores, onde foi radicado. 80 anos de vida e boa parte desses anos dedicados à música. De início, em Flores mesmo, depois Rio de janeiro e da “cidade maravilhosa” para Nova Iorque, onde compôs para o cinema. E lá ficou, sem daqui sair. Em Pasadena, Califórnia, o instrumentalista brasileiro foi, além de compositor do cinema, professor de música.

Moacir Santos iniciou sua carreira musical aos 11 anos de idade, tocando clarinete. Mas, sua genialidade e dedicação o fizeram expert em saxofone, piano, clarineta, trompete, banjo, violão e bateria. Quanta versatilidade, não? Não pense o leitor que viver longe o afastou. Pelo contrário: compôs com “o poetinha” Vinícius de Morais, Nara Leão, Roberto Menescal, Sérgio Mendes e outros importantes nomes da música brasileira. No seu repertório, contam composições tão belas quanto desconhecidas de nós pajeuzeiros. E trilhas para filmes como “Seara Vermelha”, “Ganga Zumba”, “Os Fuzis” e “O Beijo”. Moacir Santos é um ícone da música brasileira. Tanto que foi

homenageado por Baden Powel e Vinícius na música “Samba da Bênção”, que tem um trecho que diz: “Moacir Santos / tu que não és um só, és tantos / como este meu Brasil de todos os santos”. Ainda em vida, seu álbum “Ouro Negro” foi lançado. Nesse belo trabalho se viu abençoado e louvado por Milton Nascimento, Djavan, Ed Motta, Gilberto Gil, João Bosco, João Donato e tantos outros nomes da MPB. Nós, pajeuzeiros, tão poéticos, mas também musicais, ainda não demos a Moacir Santos o que ele merece. O cineasta pernambucano Daniel Aragão dedicou-lhe um filme, The Brazilian, um longa ficcional sobre a imigração do maestro para os Estados Unidos nos anos 1960, durante o período da Bossa Nova. Um destaque para o livro “Moacir Santos ou Os Caminhos de um Músico Brasileiro”, de Andrea Ernest Dias. Mas esse reconhecimento da sua Regionalidade Universal, nós ainda estamos lhe devendo.

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Um reino na comunidade

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Texto Uilma Queiroz | Foto Claudio Gomes

anto Antônio II, comunidade rural, onde o grupo de jovens Juventude Encontro com Cristo (JEC) convidou pessoas mais experientes para juntos salvaguardarem elementos de sua identidade e um patrimônio cultural do Pajeú e do Brasil, o Reisado. Chegamos à Associação de Agricultores e Agricultoras do Santo Antônio II. Na manhã de um domingo de outubro para

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um evento que reuniu contação de estórias, capoeira e reisado. Era a reinauguração da Arca das Letras, biblioteca pública, de pequeno porte, também sob a coordenação do grupo de jovens. Evento feito pela comunidade para a comunidade. Aliás, ‘comunidade’ é uma palavra que se repetirá muitas vezes ao longo do texto, pois é esse sentido que vimos no grupo, no reisado, na associação, na Arca das Letras. Não é apenas um sítio,

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uma família, um povoado, nos pareceu de fato uma comunidade, no sentido de pessoas que se unem por causas comuns. Uma dessas causas é o reisado, essa arte que liga não só essa comunidade do município de Afogados da Ingazeira a si mesma, como também a outra comunidade vizinha, Pedra D’água de Carnaíba. Conectadas pelo propósito de manter viva essa cultura, juntando mestres e cantigas. Esta fusão reuniu


a vontade da juventude em resgatar a cultura raiz com a tradição de mais de 70 anos do Reisado dos Vieiras, o qual foi inspiração para outros grupos de reisado, a exemplo do próprio grupo de Santo Antônio II. Quando perguntados se o reisado ajuda na união da comunidade, de pronto respondem coletivamente: “Sim, contribui muito para a união do pessoal, pois a gente junta a comunidade para assistir, serve de graça, principalmente para os mais idosos”. Tanto que a comunidade participa não apenas nas performances e na plateia, mas alfaiates da família costuram o figurino que faz referência aos trajes de guerra romana, composta por saiotes, camisas, e meiões, que o grupo enfeita com espelhos, fitas e gliter, junto com as coroas. A composição mescla diversas faixas etárias e o interesse do Grupo de Jovens da Comunidade, que há mais de um ano incorporou o reisado a suas atividades artísticas e culturais, o que enche nosso peito pajeuzeiro com a esperança de que essa manifestação continue estampando nossos olhos de cores, nossos ouvidos de cantigas e nossas mentes de estórias e histórias. O reisado é uma mistura de várias manifestações artísticas, como dança, música, canto, poesia e teatro, que veio de Portugal. Lá era uma encenação típica dos festejos natalinos, que fazia referências às guerras romanas, aqui, durante o processo de colonização foi sendo modificada, adaptada a cada contexto. No Pajeú os versos falam também de seca: “Tô vendo a hora o planeta anunciar / Que no sertão vai faltar

água / Nós vamos beber do mar / O homem é mal / Só bota a culpa no machado / A floresta tá pedindo / Pra ninguém lhe assassinar” “Uma das novas canções fizemos com a seca”, disse seu Geraldo Higino, introduzindo a cantigaacima.Eleéumdosmestres há mais de 30 anos. Essa cantiga está relacionada diretamente com os impactos da estiagem na vida da comunidade rural, pois é formada majoritariamente por agricultoras e agricultores, como enfatizam: “agricultura e reisado são os entendimentos da gente. Sai da agricultura pro reisado. Do reisado pra agricultura.” A viola de seu Heleno entoa as canções em suas dez cordas. É o único instrumento que acompanha os versos cantados, que são anunciados pelo mestre Zezito e repetidos pelos demais integrantes. O mestre diz que quando ele começou o instrumento usado era a sanfona de oito baixos. “Era meu avô quem tocava oito baixos na Itã. Depois tinha um tio meu que tocava viola, era Saturnino, ai ficou eu, comecei também e estou até hoje”, diz Heleno, com sua viola dependurada no pescoço. Segundo Geraldo, o instrumento é a maior dificuldade de perpetuação dessa manifestação, pois apenas seu Heleno o desempenha. E quando ele não mais puder tocar não terá quem substitua. Ele se coloca a disposição para ensinar, mas denuncia pouco interesse da juventude para essa função. “Tô pelejando para ensinar a alguém”, diz o músico. Antes do início do evento conversamos um pouco na calçada da igreja da comunidade. A fala dos jovens quase não foi ouvida, os mais velhos nos explicaram a

formação do grupo e tudo mais, no entanto, na apresentação, a força e empolgação do desempenho das moças e rapazes nos impressionaram, pois não estavam apenas interpretando batalhas, mas pareciam guerrear defendendo sua comunidade. Atualmente encenam o reisado mais resumido, devido ao tempo que são disponibilizados para as apresentações, isso faz com que a maioria dos integrantes não saiba encenar todas as partes. Apenas o mestre Zezito diz que sabe interpretar cada papel. “Se for para brincar completo apenas um sabe, eu, porque eu já brinquei de tudo (animal, figura e coice) que são as classes de personagem, de burrinha, jaraguá, boi, velha, gentim, mateu, rei, mestre, embaixador, filas, pois eu comecei a brincar tinha 12 anos.” No reisado, que tem a embaixadora Edvânia, as mulheres só passaram a participar nos anos 2000, devido ao conservadorismo patriarcal. Vânia, como é conhecida, é elogiada pelo Rei Geraldo e afirma: “Participo desde antes do resgate do grupo jovem, e continuo porque gosto.”. Outras moças participam também da encenação nas filas, sendo atualmente um grupo misto. O grupo se apresenta em qualquer época do ano, não se limitando às festividades natalinas. Aliás, o período mais importante para as apresentações são as festividades de Santo Antônio II, no início do mês de junho, na comunidade. Na encenação, duas fileiras se formam, uma azul outra vermelha, adversárias, para encenar as batalhas, as cortes. Mas, na realidade, o grupo está unido pela sobrevivência de sua identidade.

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um papo de boteco | Odília Nunes

Odília, uma mulher feita de teatro

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la escolheu o Vale das Juremas para o nosso Papo de Boteco. No Vale, escolheu a sombra de um juazeiro para estender sua esteira. No percurso, apresentou árvores que tem nomes (o juazeiro chama-se Felicidade) e um labirinto de pedras que a faz viajar e se encontrar cada vez que se perde no mesmo lugar. O cenário e os

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detalhes descobertos e quase vistos só por ela ficam no Sítio Minadouro de Ingazeira, um ambiente antes encarado como servente só para extração vegetal e, à mercê de invernos, para a agricultura e pecuária. Mas desde sempre ela foi assim, diferente. O próprio nome traz uma história curiosa que parece ter definido seu modo de vida. Ela é Odília Nunes, a mulher teatro, ou ‘tearte’ tanto que precisou tear a vida com estilo

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próprio. De volta para casa, aos 34 anos, se mostra uma mestra. Une experiência à carência do constante aprendizado. E independência à dependência do ambiente natural. E de tudo se faz palhaça, atriz, produtora, figurinista, cordelista... uma viajante em corpo e sonhos. Um só papo com ela é pouco, mas a Revista Pajeuzeiro foi lá pra trazer esse pouco pra cá. Com fotos de Claudio Gomes e entrevista de Alexandre Morais.


Nome Minha bisavó estava grávida, prestes a dar à luz, e chegou um grupo de ciganos na casa dela. Entre eles tinha uma cigana muito bonita, muito atraente, que chamou a atenção de meu bisavô. Essa cigana chegou pra minha bisavó e disse: “me dá essa menina pra eu criar”. Naquele tempo não se sabia o sexo do bebê com antecedência, minha bisavó ficou assustada com aquilo, mas disse: “não, quem vai cuidar de minha filha sou eu.” E a cigana: “você não vai ter tempo de criá-la.” Incrivelmente, minha bisavó morre daquele parto, nasce uma menina e meu bisavô batiza de Odília, que era o nome da cigana. Mais tarde minha mãe coloca meu nome de Odília em homenagem a minha avó.

ser juíza”, eu dizia “vou ser qualquer outra coisa. Aí foi uma palhaça.” época interessante.

Teatro Quando eu tinha dez anos, Tuparetama começou a realizar um festival de teatro que era um dos mais expressivos de Pernambuco. Foi quando eu fiz minha primeira oficina de teatro, me apaixonei e já comecei a definir que era aquilo que eu queria. Fiquei encantada demais, só que o festival acontecia uma vez por ano e depois não tinha mais nada. Lembro que na biblioteca tinha um livro de Maria Clara Machado, com as peças dela, mas que eu não conseguia ir muito além. Foi quando chegou o Romualdo Freitas, que foi meu primeiro mestre, a gente montou uma peça e, dos 11 aos 14 anos, eu trabalhei com ele. Ele foi embora e dali até os 17 Circo eu tive o meu próprio grupo de Eu nasci em São José do Egito, teatro. Aí nós participávamos mas meus pais moravam em e ganhávamos quase todos os Tuparetama, onde minha mãe prêmios do festival da cidade. era professora. Então me criei em Tuparetama e minha melhor Estrada... amiga de infância era filha do Com 17 anos eu já tinha prefeito. Quando chegava um uma paixão muito grande circo na cidade, ele ganhava pelo teatro. Eu montava o ingressos e passava pra gente. grupo, rasgava roupas pra Minha amiga ia uma vez ou fazer figurino, fazia cenário, outra, mas eu ia todas as noites dirigia..., só que era tudo muito e todas as matinês. Isso eu tinha trabalhoso e meus amigos uns oito anos de idade, mas já estavam todos saindo da cidade fiquei fascinada pelo circo. E em busca das faculdades. Eu o que mais me impressionava não podia ir, mas também já era o palhaço. Só que todo via que Tuparetama não dava mundo prestava atenção nas mais pra fazer o que eu queria. piadas, nas brincadeiras, e eu Foi quando uma tia que morava ficava observando tudo, as em Juazeiro da Bahia me expressões, o modo de vida chamou pra ir passar as férias dos artistas, as reações da na casa dela. Pra me convencer plateia. Me encantei de um a ficar, ela me inscreveu em um jeito que, enquanto as colegas curso de teatro, mas a intenção diziam “vou ser médica”, “vou era que eu fosse trabalhar em

...a fora O curso era em Petrolina e lá eu conheci meu grande mestre, que foi o Sebastião Simão. Fiquei na companhia dele por quatro anos, treinando oito horas por dia. Aí vieram dois reencontros: Sebastião montou uma peça da Maria Clara Machado e convidou Romualdo Freitas pra dirigir. Recebi um personagem que só entrava no finzinho, quase imperceptível, mas quando Romualdo viu, mudou logo e me colocou como o antagonista da história. Com aquele papel eu conquistei Sebastião, o espetáculo deu muito certo e eu fui me fortalecendo. Só que, contraditoriamente, minha tia me arrumou um emprego de cobradora de ônibus e eu não quis. Ela me tirou de um cursinho que tinha me matriculado, deixou de me dar o dinheiro da passagem e depois me expulsou de casa porque não aceitava que eu fizesse teatro. Foco Quando ainda morava com minha tia, rolou um teste para um filme das produções Globo. Antes de sair o resultado, minha tia foi assistir a uma peça em que eu dava um selinho em outro ator. Ela ficou desesperada, disse que era um absurdo, que eu ia engravidar e que eu tinha que voltar pra Tuparetama. O resultado do teste sai e a produção telefona pra casa dela e avisa que eu tinha sido aprovada. Ela deu o aviso toda empolgada e eu disse que não iria porque tava indo fazer

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uma pesquisa em Canudos. Ela se desesperou e eu tive que inventar uma justificativa. Disse: “tia, eu não vou porque o papel é de uma prostituta. Vai ter cena de sexo.” Aí ela surpreendeu. Disse: “besteira, o artista que vai tá com você é um global” (risos).

fui morar com um amigo, que tinha saído do grupo ainda em Petrolina e montei meu primeiro espetáculo solo, que é o que eu venho fazendo até hoje.

fazia oficinas, ia nas escolas, nos terreiros... já vivenciava muito forte esse retorno.

Cordelina Já depois desse reencontro Decripolou... com minhas raízes, nasceu Esse trabalho foi um divisor de meu segundo trabalho solo, águas. Eu peguei a força do teatro que é Cordelina, um espetáculo Determinação que eu aprendi, o teatro pré- totalmente inspirado no sertão. Por eu escolher o teatro tive que expressivo, pesquisado a fundo Cordelina é uma boneca com sair de casa sem ter pra onde mesmo, e comecei a pesquisar cabeça de cabaça que conta ir. De repente, o grupo todo a cultura popular. Com isso, eu história de um pé de angico, decidiu que tinha que ousar, comecei a trilhar um caminho real, que tem toda uma relação alugou uma sede, eu fui morar próprio, a fazer o teatro que eu com minha infância. Com ela nessa sede, que era um galpão, quero. Foi quando eu descobri eu conto a história de Lampião e depois nós fomos, 13 pessoas, que meu avô era um contador e Maria Bonita, recito cordéis e sem dinheiro, morar em Recife. de histórias, fui descobrindo outras coisas sertanejas. Com Alugamos uma quitinete, a força das brincadeiras Cordelina foi que eu decidi, ensaiávamos no Parque 13 de populares, vendo que o meu definitivamente, voltar pra cá. Maio, não conseguimos espaço palhaço não era aquele europeu Eu me questionava por não pra encenar e fomos expulsos que eu vinha estudando, mas saber recitar, não saber aboiar, da quitinete. Alugamos um o Mateus do reizado e aí tomei não conhecer gente como Dedé sobrado antigo, conseguimos o caminho oposto do teatro Monteiro, enfim, é essa fonte uma pauta num teatro e as coisas que eu vinha fazendo. Então de pesquisa que passou a me começaram a melhorar até que montei o espetáculo Decripolou interessar. eu levo uma queda na rua e fico Totepou, que é uma abreviação sem encenar. O grupo para e de ‘De Crianças, Poetas e Vaca a gente chega a não ter nem o Loucos Todos Temos um Pouco’. Durante as dificuldades, eu não que comer. Nós entrávamos nas E a personagem é a palhaça contava nada pra minha família. filas dos moradores de rua pra Bandeira. Eles nunca entenderam muito pegar sopa nas igrejas. bem o que era teatro, nem ...Totepou porque essa minha decisão. Novos rumos Com esse espetáculo eu me Depois eu fui contando, meu Na dificuldade, o grupo foi encontrei de verdade. Eu escolhi pai foi entendendo, mas dissolvendo, as pessoas foram o teatro que eu queria e isso acreditando que eu continuava procurando seus rumos, suas abriu as portas do mundo pra passando necessidades. Como formas de sobreviver. Só mim. Eu fui fazer temporada na ele é agricultor, mora no sítio, continuamos no teatro eu e Europa, quando voltei, já tinha pra eu convencê-lo que dava Sebastião. Um virou pedreiro, pauta no teatro que eu quisesse pra viver de teatro, eu tive outra militar, outra professora, em Recife. Decidi ir morar no que comprar uma vaca. Era a outro chef de cozinha... Mas na Rio de Janeiro, fui pro Chile, linguagem que ele entendia. época éramos muito radicais, passei um ano lá e resolvi olhar Eu perguntei: “quanto é uma só aceitávamos as coisas do novamente pra cá, pra meu vaca boa?” Ele disse: “uns R$ jeito que a gente queria e não é interior. Pouco tempo depois 1.500,00.” Eu fiz uma temporada assim que as coisas funcionam. que eu sai de casa, minha mãe se do Decripolou e quando voltei Um dia, eu resolvi sair também aposentou e veio morar no sítio pra casa, eu trouxe R$ 1.800,00. da companhia e, de novo, eu com meu pai, aqui na Ingazeira, Aí disse: “tome, pai. Compre não tinha pra onde ir. Eu não que passou a ser minha base, uma vaca pra mim. E eu quero me identificava com o teatro toda vez que eu vinha visitá-los. uma melhor do que aquela que que era feito em Recife. Então E a cada momento que vinha o senhor falou.” (gargalhadas)

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Vida Hoje eu olho pra quem tá começando e digo que dá pra fazer qualquer coisa. Mas que o principal é descobrir qual o teatro que lhe identifica. Alcançando isso, tudo vai dá certo e cada um vai conseguir viver bem, fazendo o que gosta. Claro que agora é mais fácil pra mim dizer isso, mas eu tô aqui, vivendo, encontrada comigo mesma, com minhas raízes, e me redescobrindo também. Eu pesquiso muito o sagrado feminino, faço uma ligação disso com a natureza e me sinto totalmente protegida, envolvida e motivada. Claro que tudo vem com o tempo e com a maturidade, não dá pra querer que uma pessoa jovem alcance isso. Mas hoje, eu tenho consciência de que eu posso estar em qualquer lugar e fazer um teatro universal.

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Um poeta preservado na memória de um povo Texto Amaral Neto e João Vinícius

P

oeta e cantador de viola, Zezé Lulu nasceu em 04 de dezembro de 1916, no Sítio Serrinha, no município de São José do Egito - PE. Nos trinados da viola, sagrou-se na tradição do repente com a sabedoria de quem foi puramente poeta. Foi o sétimo filho, de uma prole de oito, de Luiz Ferreira Gomes (Lulu) e Maria José de Santana (Sinhá). Teve seu nome de pia, José Gomes do Amaral, substituído pela alcunha de Zezé, filho de Lulu. Daí, para Zezé de Lulu, até chegar a Zezé Lulu, como, enfim, se popularizou. A Serrinha, seu berço de nascimento e fonte de inspiração, é um recanto que ainda hoje preserva o bucolismo e a pureza da poesia de improviso. Isto desde a época que era habitada pelos pais de Zezé e por Antônio Marinho, o Águia do Sertão, um dos grandes precursores da cantoria de viola. Zezé, como várias crianças de sua época, não frequentou escola, não aprendeu a ler nem a escrever, mas cantava de peito aberto, com rigor invejável de métrica, de rimas e de ritmo. Ora humilde, ora orgulhosamente, apresentava essa identidade e vivência,

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como se pode aferir a partir destes dois improvisos, ambos em embates de sextilhas com o parceiro João Severo de Lima:

Dando ração à borrega E perguntando: - Oh mamãe, Quando é que papai chega?”

Zezé realizou exatamente “Essa palavra: ciência, o que um verdadeiro poeta deve Deus, a mim, não concedeu. fazer em vida, imprimir sua alma A minha mão não escreve, em sua arte. Foi um dos grandes Minha boca nunca leu, protagonistas dos espetáculos Mas vivo estudando os livros sertanejos: as cantorias de Que a natureza me deu.” pé de parede, nos alpendres, nas salas, nas bodegas. “Eu nunca aprendi a ler, Despediu-se da terra aos Mas canto sem embaraço 70 anos, em 27 de outubro Descrevo o Céu e a Terra de 1987 e ilustrou sua partida O Sol, a Lua, o Espaço... com mais uma sextilha: E um juiz de Direito Não faz um verso que eu faço!” “Quando botarem uma vela Na palma da minha mão, A pé ou no lombo Uns vão cortando a mortalha, da burra Castanhola, Zezé Uns vão pregando o caixão desbravou recantos ermos E outros dizendo: acabou-se deste tão poético Sertão. Um cantador do Sertão!” Junto a diversos parceiros como Manoel Xudu e Olívio do Embora suscetível aos Livramento travou incansáveis caprichos do tempo, toda a duelos, que iniciavam à obra de Zezé Lulu está guardada tardinha e, se findassem cedo, na memória de pessoas que, perduravam até a manhã do como arcanos, conservam na dia seguinte. Numa dessas oralidade os feitos do improviso. ocasiões, distante há dias de Essas pessoas presenciaram casa, da esposa Laura Gomes cantorias, viram os versos do dos Anjos (Lalu) e das filhas, poeta surdirem e, tocados pelo improvisou sobre uma delas: sentir, reservaram um espaço na mente para repeti-los de “Já está chegada a hora geração para geração. Até que De minha linda galega esses poemas se perpetuaram Estar lá, pelo terreiro, nos anais do imaginário popular.

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