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Pajeu zeiro Ano I - Número 4
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eXPEDIENTE PRODUÇÃO E PROD. EXECUTIVA
William Tenório REDATOR CHEFE
Alexandre Morais Jornalista DRT-PE 2707 ASSISTENTE DE REDAÇÃO
Bruna Tavares
CORREÇÃO ORTOGRÁFICA
Alexandre Morais Wivianne Fonseca FOTÓGRAFOS
Claudio Gomes Thiago Caldas William Tenório ARTE E DIAGRAMAÇÃO
William Tenório
TRATAMENTO FOTOGRÁFICO
Thiago Caldas FOTO CAPA
Thiago Caldas EQUIPE DE REDAÇÃO
Alexandre Morais Bruna Tavares Genildo Santana Uilma Queiroz William Tenório Wivianne Fonseca COLABORADOR CONVIDADO
Vinicius Gregorio
CONTEÚDO AUDIOVISUAL
Pajeú Filmes
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Editorial
desafio continua. O doce desafio da (in)formação cultural. Tão desafiante quanto contar histórias em forma de poesia. Quanto metrificar um verso. Quanto fazer um doce e versificado samba de coco. Quanto sustentar a trincheira do cangaço na eterna guerrilha cultural. Quanto conhecer, conhecerse e reinventar-se, adocicando os trituradores dentes da moenda viva da vida. Pois estamos prontos. Com lápis e máquinas em punho. Registrando em textos e imagens o instigante desafio de ser Pajeuzeirx. De ser Lando do Doce, herdeiro e mestre da arte de fazer de doce de barra. De tijolo. De batata de umbu. Que pode ser goiaba ou abacaxi sendo sempre tradição. De ser Arlindo Lopes, o Pirraia que não é pequeno. Um gigante que versa o que vê na gigante natureza. Versou na biologia e versa no cordel, indo sempre além das linhas articuladamente medidas e sonoramente encontradas. De ser Anildomá Willams, o Domá. Damo que doma o tema cangaço. Que arquiteto de uma trincheira muito atacada, mas nunca ultrapassada. Ao contrário, ele avança, reúne e renova forças com estratégia de guerreiro determinado e determinante histórico. De ser memória com a memória de Genildo Santana mostrando o que vale a pena conhecer. Desta vez com um Nordeste independente aos maus olhares. De ser Jéssica, que é tantas e é autenticamente ela. Instrumento, voz e consciência de Triunfo e de todxs. Eco da música, da poesia e do silêncio da alma que grita para dizer pra que veio. De ser Paulo Matricó, um ser refeito a cada instante. De história, de lutas, de canções. De ações e decepções, de encontros e desencontros. De linha. Linha de pensar, de trilhar, de cozer. Mas principalmente máquina. De moer e moer-se. De ser Vinicius Gregório, um poeta sem preconceitos. Tão livre quanto amarrado em versos e visões. Um cabra de palavra. Literalmente. Viu com cabe tudo isso aqui! Mesmo eles sendo enormes. Do tamanho do Pajeú cultural. É que aqui a gente, cata, debulha, passa na moenda, faz um mínimo beneficiamento do produto para um primeiro – ou pequeno – deleite do leitor. Com isto convida a aceitar ao mais: depois da leitura, semeie essas sementes, reparta esses frutos, saia por aí por nossos campos sentindo estes cheiros, ouvindo estes sons... seja, como nós e eles, Pajeuzeirx praticante.
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Doce em barra: cultura em nosso paladar Texto Wivianne Fonseca | Foto William Tenório
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om certeza, o que temos à mesa diariamente nos permite possibilidades de encontros ancestrais com a nossa própria formação cultural. Não restam dúvidas de que as relações culturais de cada localidade estabelecem um sentimento plural e complexo com sua gastronomia. Ser do Pajeú, ou mesmo do Sertão, e nunca ter provado do “doce de barra” (“doce tijolo”) de goiaba, de abacaxi ou de batata de umbu... hum!... Acho muito difícil!
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especiarias como essa provocam nosso paladar desde muito longe. O folclorista Luís da Câmara Cascudo teceu muito dessa história no livro “História da Alimentação no Brasil”, enfatizando essa relação histórica construída entre o que comemos (nossa gastronomia) e nossos traços culturais. E se falamos de doce, pronto! Temos uma identificação real e simbólica por meio da cana de açúcar. O mel de engenho, o alfenim, a rapadura e muitos
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outros “açúcares” vão mostrando como o entendimento do que é doce funciona em vários cenários, reunindo receitas em abundância, numa estreita relação com nossa história multicultural. Apenas sobre bolos, um “exemplo-mor” dessa seara adocicada, Gilberto Freyre escreveu “Açúcar” em 1939. O livro é uma verdadeira celebração aos bolos e ao açúcar: o autor apresenta mais de 50 tipos diferentes de bolos tradicionais de Pernambuco.
No Sertão do Pajeú, o doce em barra vem como referência desse açúcar que povoa nossa história, trazendo um personagem especial: Juracir Beserra da Silva ou, simplesmente, seu Lando do Doce. A fabricação dos doces em barra começou na família há cerca de 40 anos. “Começou com meus avós, no sítio Barra. Eles trabalharam com doce até o fim da vida.” Segundo seu Lando, os pais faziam os doces em casa e vendiam nas feiras de Afogados da Ingazeira, Boa Vista (Ibitiranga) e Tabira. Já adolescente, ajudava a fazer os doces com o irmão, Juarez Beserra, com quem até hoje ainda divide o ofício. Funcionando na Rua Quinze de Novembro, em um espaço anexado à casa que fora de sua mãe, Seu Lando mantém a fabricação de doce em barra através de uma rotina bem estabelecida: faz doces na terça, quinta e sexta; na segunda, quarta e sábado vende as guloseimas, pessoalmente, nas feiras de Tavares (Paraíba), de Tabira e de Afogados da Ingazeira, respectivamente. Sobre o processo de fabricação do doce, Seu Lando é bem objetivo, tentando resumir as etapas que geram essa iguaria sertaneja. “É misturar o açúcar com batata de umbu, goiaba, banana, abacaxi ou coco”. Mas, olhando detalhadamente, tem um passo-a-passo nessa história que envolve um processo artesanal e de natureza extremamente caseira. As frutas, vindas em sua maioria de Petrolina, são compradas na feira local. A batata de umbu vem de São Caetano, pequeno distrito da cidade de Betânia. Esse ingrediente, presente
em todos os doces em barra fabricados, carrega a polêmica questão sobre a resistência dos umbuzeiros após a retirada de sua batata. Sobre isso, Seu Lando é descrente. “Morre nada, é conversa do povo. O imbuzeiro tem outras batatas mais fundas e também cria outras”. Chegando, as frutas são lavadas e descascadas. “Do abacaxi tira a casca, da goiaba tira as sementes”. A polpa vai para o tacho com o açúcar, em um fogão à lenha bem grande. Acrescenta-se corante de picolé nos doces de goiaba e de abacaxi. O doce de umbu fica branquinho, conservando a cor da batata. O doce cozinha de 40 minutos a uma hora. Quando está no ponto (“é bem grossinho”), o doce esfria em uma bancada própria. Seu Lando explica que “o tempo para esfriar depende do ponto em que ele sai do fogo. Mais grosso, mais forte, demora mais a esfriar”. Frio, o doce vai para as prensas de madeira e fôrmas retangulares, secando em torno de duas horas. Depois é só embrulhar.
“A validade é de 60 dias. A gente já tem essa base, sabe o consumo e nunca se perde”. Seu Lando fabrica de sete a oito tachos por dia, mas, segundo ele, há dois movimentos (crescente e decrescente): “No inverno, diminui a venda e a produção dos doces. No verão, aumenta a venda, a produção e o número de abelhas aqui também!”. Contudo, apenas as abelhas marcam presença de feminino nesse ciclo de produção. Da compra das frutas ao corte dos doces, todas as mãos são masculinas. “Só tem homens porque desde o começo é assim”, explica seu Lando. No livro “Açúcar”, Gilberto Freire afirma que “um doce, o da preferência brasileira, como que barroco, e até rococó é a arte mais sensual da sobremesa”. Temos essa sensualidade (ou tentação ao paladar) no açúcar do nosso doce de barra. De goiaba, abacaxi ou batata de umbu, ele vem ocupando nossas feiras e nossos potes de guloseimas; vem produzindo um trajeto cultural e contribuindo no retrato regional da gastronomia sertaneja.
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Biólogo cordelista Texto Bruna Tavares | Fotos Thiago Caldas
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uma busca rápida sobre Literatura de Cordel na internet você pode encontrar: “um tipo de poema popular, oral e impresso em folhetos, geralmente expostos para venda ou pendurados em cordas. Surgiu em Portugal, chegou ao Brasil no século XIX e se popularizou pelo Nordeste. Escrito em rimas e ilustrado
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com xilogravuras”. E aqui no Pajeú nos encontramos com o egipciense Arlindo Lopes, um daqueles cordelistas “bom todo” para bater um papo sobre essa arte. Arlindo começa explicando o porquê do apelido que o tornou famoso na cidade: Pirraia, um amigo que gostava muito de botar apelido. Explica
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que até negou o Pirralha, mas o amigo fez questão de aperfeiçoar o feito. “Eu disse Pirralha não. E ele ‘vou lhe chamar de pirralha não, se não vou está lhe diminuindo, vou chamar de Pirraia, aí pegou’.” As primeiras lembranças de Arlindo com o cordel também são antigas. Quando ainda era criança acompanhava
o pai feirante e não perdia a oportunidade de espiar a barraquinha dos cordéis. “Me lembro até dos dizeres, das formas de ‘ludibriar’ as pessoas, quando eles davam uma pausa no cordel na parte mais importante. Aí dizia assim: o restante da história só quando comprar o cordel. Aí o povo era obrigado, já tava ali doido pelo cordel”. Arlindo é formado em Ciências Biológicas pela Autarquia de Arcoverde e ensinou por 32 anos na Rede Pública Estadual em São José do Egito, mas sempre esteve acompanhando obras da literatura de cordel e da esposa Socorro, com quem é casado há 25 anos. Até que um acontecimento pessoal o motivou a escrever o seu primeiro cordel “Joca Batista e o Caixa Eletrônico”. Depois deste, não parou mais. Hoje, contabiliza mais de 50 cordéis, entre os feitos de livre inspiração e os feitos sob encomenda. Quando perguntado sobre como um cara formado em biologia caiu no mundo da poesia, Arlindo dispara “quando você faz um curso como biologia você fica mais sensível com a natureza, fica conhecendo mais a flora, a fauna, o meio ambiente”. Ao ressaltar a importância do cordel na literatura popular, Arlindo destaca que “muitas pessoas aprenderam a ler com o cordel”, mas lembra também que existem barreiras, especialmente a discriminação de intelectuais e a desvalorização. “Existe ainda para muitos intelectuais muita descriminação, muito
preconceito quanto ao cordelista, porque eu vejo. Tem cordel que é poesia pura do começo ao fim.” Num papo tranquilo nos fala sobre as características que definem o cordel para ele. “É o tema principal, a desenvoltura do enredo, de como você vai desenvolver aquele enredo, você não pode contar uma história, como quem tá contando historinha pra criança. Você tem que incluir emoções e o desfecho dele. Tem que ter começo, meio e fim”. Quanto às regras para escrever o cordel, Arlindo avisa: “Veja bem, questão de tamanho, de quantidade, quem determinou o número de estrofes, essa questão de estrofes é poeta preguiçoso. Esse que tem preguiça de ler e de escrever. Agora eu acho o seguinte, cordel num deve ter número de estrofe não!”, aconselha, com disposição. Das tiragens e vendas dos cordéis, Arlindo explica que “varia muito, por exemplo: um cordel de Biu Doido já fiz uns 4 a 5 mil deles, por aí”. E essa demanda é fruto das vendas. Com preços acessíveis Arlindo diz que já vendeu 400 cordéis de Biu Doido numa noite, por ser um personagem marcante no Pajeú, as pessoas reconhecem e tem mais interesse em comprar. Além das lições sobre cordel, Arlindo também é colecionador de obras, diz ter mais de duzentos cordéis em casa e muitas já perdidas em empréstimos a conhecidos. Porém, fica nítido que para ele o importante é espalhar a arte do cordel, seja através de cordeltecas, a exemplo da que
existe em Recife, ou de feiras literárias como a que organizou na escola em que lecionava. “Nós fizemos cada grupinho da turma botou a banquinha só que não vendia, era pra doar para os visitantes”, descreve feliz pela participação dos alunos e curiosidade dos visitantes. Ele destaca também a importância de iniciativas públicas para a valorização da cultura regional, a exemplo da inclusão da disciplina de Poesia Popular na grade curricular das escolas de São José do Egito. “Acho impossível que alguém tenha a audácia de querer desmembrar uma disciplina tão importante da grade curricular. Aí isso é muito bom pra o cordelista, bom pra o poeta da cidade e tudo. E o alunado, porque o aluno dá muito valor”. Além disso, ele lembra que muitas vezes a plateia nas apresentações está ansiosa por ouvir aquela poesia, o público tem interesse na cultura. Incentivador de diversos poetas e poetisas na região, apreciador da arte do cordel, agora aposentado, Arlindo espera ter mais tempo para dedicar-se às artes. Entre elas o cordel, a xilogravura e a escultura estão nos planos do Pirraia que se diverte contando o enredo de sua obra A galinha dos ovos d’água. “É mais fácil uma galinha colocar ovo de água do que de ouro e até pelo provérbio né? E então, é a minha galinha, a galinha da gente é de água, sertanejo é de água. Fiz a galinha dos ovos d’água que na realidade é um sonho.” E como bom cordelista, deixa o ouvinte/ leitor curioso para saber o final... “só quando comprar o cordel!”.
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Capa
| Anildomรก Willans
Um cangaceiro da Cultura Texto William Tenório | Fotos Thiago Caldas
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omos à Serra Talhada encontrar um gigante em todos os sentidos. Anildomá Willans, carinhosamente chamado de Domá. Um homem de quase dois metros de altura e uma referência em Cangaço no Sertão do Pajeú. Nosso encontro aconteceu na antiga estação de trens, hoje Museu do Cangaço e sede dos Cabras de Lampião, entidade cultural que Domá ajudou a fundar. O grupo nasceu em 1994, com a ideia de criar no município algo que fosse “a identidade cultural de Serra Talhada”. E assim “surgiu o Grupo de Xaxado Cabras de Lampião, uma mistura de teatro e dança”, que tem como objetivo trabalhar os elementos culturais do cangaço. Segundo Domá “porque esse tema era pouco explorado na cidade”. Ele lembra que no início tiveram dificuldade em receber um cachê do Governo do Estado por não serem um grupo formal, “a gente não tinha CNPJ”. Esse momento foi determinante para a formalização do grupo em Fundação Cultural Cabras de Lampião e posteriormente a profissionalização. Hoje a
Fundação gera renda fixa para 22 pessoas. Na época Domá já contava com um acervo invejável de itens do cangaço e a casa funcionava como uma espécie de museu. “Minha casa era de visitação diária por causa do acervo que eu tinha”. Mas o espaço ficou pequeno, “um dia Cleonice [esposa] disse: Domá vamos criar um museu que vai servir de sede para a Fundação”. No primeiro momento o Salão Paroquial serviu para esse fim, mas em seguida o acervo foi transferido para a antiga estação ferroviária, que foi transformada em Museu do Cangaço. Nesse mesmo período o Grupo de Xaxado Cabras de Lampião começou a viajar Brasil a fora, “falando de um Lampião que se transformou em poesia” e isso ajudou a colocar Serra Talhada no mapa cultural do país. Mas como nem tudo são flores, “um jornal no sul publicou que existia uma entidade no Sertão de Pernambuco que estava ensinando técnicas de guerrilha inspiradas em Lampião”, para o que Domá esclarece: “nós estávamos
discutindo sobre Lampião, mostrando um resgate da nossa história e propondo um novo debate a respeito do cangaço”, transformando elementos presentes na memória da cidade em cultura, isso claro sem deixar de discutir o social. “Porque as feridas sociais que geraram o cangaço no final do século XIX e início do século XX são as mesmas feridas que continuam abertas ainda hoje”. Domá tem quatro filhos. Saulo e Simão Pedro de um primeiro casamento, “nessa época eu era ligado aos movimentos de igreja”. E com sua companheira atual, Cleonice Maria, com quem vive há 27 anos, Karl Marx e Sandino Lamarca “de uma fase de movimentos mais radicais da esquerda”. E como pai Domá é bem diferente do habitual, “eu acho que eu sou o único pai que aconselho os filhos a não fazerem concurso, a não arranjar nenhum outro tipo de emprego. Trabalho só com cultura” e acrescenta, “a gente tem que viver de coisas que dá prazer, a gente tem que viver de coisas que tem a ver com a alma da gente”.
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Filho de João Alexandre de Souza e Maria Ramalho Ângelo, Anildomá Willans de Souza nasceu em 8 de abril de 1962, como ele mesmo disse: “sou o segundo filho do último casamento do meu pai”. Isso porque seu João se estabeleceu em Serra Talhada 1954, vindo da Paraíba, viúvo e “com um monte de filhos”. Na cidade se casa com uma sobrinha, Dona Maria Ângelo, mãe de Domá. Ele lembra com carinho do incentivo familiar. “Eu fazia teatro em Serra Talhada e minha família apoiava, meus pais apoiavam, eu nunca tive problema como muita gente tem quando tá fazendo algum tipo de arte”. O teatro tem importância fundamental em sua formação. “Foi no teatro que eu comecei a me manifestar artística e culturalmente. Foi no teatro que eu descobri o cangaço e a poesia”. Um momento marcante na vida foi quando ainda menino foi convidado pelo prefeito a acompanhar um grupo que visitava Serra Talhada para pesquisar o cangaço. Primeiro pelo reconhecimento, “o filho de seu Alexandre que faz teatro”, e segundo porque foi neste encontro que ele foi provocado a escrever seu primeiro livro, “por conhecer as histórias do cangaço”. E em 1995 Domá lança “Lampião, o comandante das caatingas”, seu primeiro livro. Nos anos seguintes publicou “Nas pegadas de Lampião”, “Lampião, nem herói nem bandido. A História” e “Xaxado a dança de guerra
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dos cangaceiros de Lampião”, este último “uma contribuição para Serra Talhada, já que nós estávamos fazendo projeção da cidade como Capital do Xaxado”. Há ainda um livro inédito “Lampião e o Sertão do Pajeú” com recorte entre 1922 e 1928, sem previsão para ser lançado. Há também uma exposição que ele pensa em produzir. “Eu separei todos os bilhetes de Lampião, as duas entrevistas que ele deu, as músicas e as poesias, o que ele disse. Quero fazer um exposição chamada Lampião por ele mesmo”. Domá destaca que sua pesquisa começou antes de pensar em publicar seu primeiro livro, na verdade esse trabalho era para uma peça de teatro que ficou guardada por mais de vinte anos, O Massacre de Angicos. A peça nasceu em 1987 enquanto esperava um ônibus no Cais de Santa Rita em Recife, e por mais de uma vez ele tentou produzi-la, sem êxito. Somente em 2011 com apoio de um edital do Ministério da Cultura o projeto saiu do papel. E desde 2012 O Massacre de Angicos é encenado a céu aberto em Serra Talhada, transformando o espetáculo no maior evento do tipo no Sertão e em um dos maiores do estado de Pernambuco. O espetáculo conta com um detalhe importante: a utilização de equipe local. “Eu só vou buscar fora se não tivermos em Serra Talhada”, reforçando a cadeia criativa da cidade e da própria região. O espetáculo conta a
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história do confronto entre o bando de Lampião e um grupo da volante na grota de Angicos no estado de Sergipe, que resultou na morte de 11 cangaceiros, entre eles Lampião e a companheira Maria Bonita. Em 2015 Domá inicia uma nova atividade em sua vida profissional, diretor de cinema. “Nunca foi minha intenção trabalhar com audiovisual. Um dia o edital aberto, Marx, Camilo e Álvaro disseram: bicho faz um roteiro”. Aí nascia o curta “Papo amarelo, o primeiro tiro”, filme que traz a transformação de Virgulino Ferreira da Silva em Lampião. E ele lembra que um segundo filme vem por ai: “Fogo na Serra Grande, é a história do maior combate de Lampião”. Depois de tudo isso fica claro que o caminho é a profissionalização, que viver de cultura é possível, mas para isso a qualificação é fundamental. “Nós aprendemos com os editais. Nos editais nós começamos a entender que você precisa profissionalizar o seu trabalho”. Hoje a Fundação Cultural Cabras de Lampião é sem sombra de dúvidas a maior captadora de recursos do Sertão e talvez do Estado, e isso não é por acaso. São anos de trabalho, aprendendo com os erros, mas sempre acreditando. Não é coincidência encontrar Domá com caixas de projetos a serem entregues na Fundarpe durante o Edital do Funcultura. Eu, particularmente, acho que os editais são hoje a forma mais democrática de acesso a recursos públicos e
das vezes que pude conversar com Domá senti que ele compartilha da mesma ideia. Também não é de hoje que nós que fazemos cultura no interior do Estado lutamos por uma política de descentralização dos recursos e “quanto mais gente disputando edital e ganhando, mas nós vamos
ter condições de ter uma intervenção política. Se vai daqui somente um projeto teu para o Funcultura, você não vai ter nenhuma moral pra exigir um Funcultura regionalizado”, afirma Domá. Além de integrante da Fundação Cultural Cabras de Lampião, Domá hoje é
Coluna VALE A PENA CONHECER...
Secretário de Cultura de Serra Talhada, “porque é necessário ocupar espaços”, acreditando que fazer cultura é sim um ato político, que não pode ser desvinculado. E desde 2015 é membro titular do Conselho Estadual de Preservação do Patrimônio Cultural de Pernambuco.
| Genildo Santana
...o disco, hoje remasterizado em CD, “Nordeste independente”, dos repentistas pernambucanos, Ivanildo Vila Nova, de Caruaru, e Severino Feitosa, de Santa Terezinha. Esse trabalho, feito em 1985, foi um divisor de águas no mundo da cantoria. Contou com palavras elogiosas do poeta Ronaldo da Cunha Lima, à época, governador da Paraíba. Esse CD é tido por apologistas, poetas, pela crítica, como um dos melhores CD’s já produzidos pelos cantadores. O CD possui sete faixas, bem distribuídas. Inicia com a canção “Voltando à Minha
Terra”, uma das mais belas e mais tocadas no Nordeste. Termina com a canção “Um Bilhete ao Meu Amor”, de igual medida. Elogia o vaqueiro nordestino no mote “Todo Curral do Sertão/ Prende a Alma do Vaqueiro. É subjetivo e investiga a alma humana na faixa em sete linhas “O Rosto é Máscara Perfeita”. Mas duas faixas garantem o perfil do CD e dos poetas: uma crítica-apologética à Igreja Católica, na faixa em sextilha “A Igreja, o tempo e o povo” e uma faixa que havia sido censurada pela ditadura, o mote “Imagine o Brasil ser dividido/ E o Nordeste Ficar Independente”, popularmente conhecida como “Nordeste Independente”.
Essa faixa, que dá título ao CD, se constitui numa resposta à velha questão debatida desde o tempo do império. Exalta os valores do Nordeste, sua produção, seu artesanato, seu potencial turístico, sua gente batalhadora, capaz de guiar os próprios destinos. Inicia afirmando que as ideias separatistas são alheias ao nordestino, que é discriminado, pré-conceituado. E denuncia quem quer a separação: Já que existe no Sul esse conceito / Que o Nordeste é ruim, seco e ingrato / Se existe a separação de fato / É preciso torná-la de direito. Essa faixa havia sido censurada pela ditadura, já em 1975, só podendo ser gravada dez anos depois, dentro do clima da redemocratização brasileira, quando a pátria respirava novos ares políticos. A bênção, Ivanildo Vila Nova e Severino Feitosa. E viva o Nordeste!!!
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Inventando seu lugar no mundo Texto Uilma Queiroz | Foto Claudio Gomes
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éssica Caitano é neta de Vovó Pastora e Vó Preta, filha de Francisca Caitano. É mulher, negra, lésbica, do Bairro Alto, em Triunfo, no sertão do Pajeú e, por isso tudo, é artista. A primeira lembrança que tenho de Jéssica só me ocorreu na construção dessa matéria. Lembro-me de passar em frente à Fabrica de Criação Popular, numa das muitas vezes que fui a
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Triunfo para cursos no Stella Maris, e ver uma mulher declamar, tocar pandeiro, cantar. Fiquei atraída por aquela manifestação, mas logo passei. Estava em grupo e segui minhas companhias para uma noite na cachaçaria. Isso faz muitos anos, embora não saiba ao certo quantos, mas sei que quando reencontrei Jéssica pelas impressões do meu companheiro Alberto, num
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circuito de cultura do SESC nas escolas em Afogados da Ingazeira. A artista me parecia outra. Acho que pelo fato dela ser outra. Alguém que, agora percebo, vive de inventar seu lugar no mundo e que aprendeu bem cedo. Como conta: “Quando menina eu voltava da escola e sempre lia numa parede do Alto da Boa Vista: A cultura popular nasce de pessoas simples e
humildes que procuram um lugar na sociedade. Naquele momento eu não sabia o que queria dizer, mas hoje me vejo nessa eterna busca”, fala em conversa descontraída e cheia de sororidade testemunhadas por Claudio Gomes, à câmera e à luz das janelas do Centro de Cultura Padre Ibiapina. Jéssica não sabe até hoje a autoria, nem quem escreveu tal frase na parede do antigo matadouro do seu bairro, mas sabe que o Alto é um berço das manifestações populares de Triunfo. Sejam as Cambidas ou os Caretas, lá foram criadas e desceram para o centro da cidade. Ela nos conta ainda que a arte sempre foi presente em sua vida, desde as influências de seu pai na música, das histórias das avós e da mãe. Na escola sempre se expressava através de poesia, mesmo sem ser apresentada ao Pajeú como terra fértil de poesia. Nas festas de São João, em Arcoverde, e nos LP’s de Lindalva do Pandeiro foi onde o coco tocou seu coração e se pegou criando o ritmo sem perceber. A arte, como um todo, lhe atraiu e começou no teatro, depois em bandas de covers, maracatu, coco, cambindas, rap de eletro coco matuto, poesia. O contato com a poesia do Pajeú foi um momento de reconhecimento de si e da possibilidade de ser também artista. Apesar de atualmente perceber que sua arte tem espaço em Triunfo, por ser uma cidade turística, ela nos contou que nessa trajetória teve muitas dificuldades,
recebeu muitos “nãos”, sofreu muitos preconceitos por não se enquadrar em padrões impostos pela sociedade e ainda por morar no Alto, bairro da periferia da cidade estigmatizado pela violência, mas esquecido em suas manifestações culturais. Com o primeiro cachê artístico ela comprou um pandeiro, que desde então é a maior companhia para esquecer a dor. Testemunha essa expressão na composição de estreia “Coco de nosso senhor”, no trecho “Eu vim pra ver você dançar/ Menina (des)arruma o cabelo que o coco vai começar/ Na casa que eu vi minha mãe chorar/ Por não ter o meu comer e uma cama pra eu deitar/ No coco eu esqueço a minha dor/ Lá vem o povo dançando cantando nosso senhor”. A letra traz à tona as memórias da mãe e a busca por si própria. “Esse coco
sou saindo de mim para ver a minha mãe, ou vendo minha mãe para me ver”, diz. Embora seja envolvida com várias manifestações artísticas, para Jéssica a batida do coco é a sua maior expressão. Sempre compõe no ritmo da embolada, mesmo que suas músicas ganhem outros ritmos depois. Segundo ela “tudo cabe num coco”. Ela parece tratar o coco como a avó cuidava da cristaleira, como o lugar das coisas mais valiosas e que não podem quebrar. Os temas das composições versam sempre em diálogos com as memórias da infância, os lugares que esteve (sítio da avó e Alto), as histórias que ouviu, as as avós e a mãe. Estas três mulheres sempre lhe inspiraram pela força, bem como Olindina, do quilombo das Águas Claras de Triunfo. Por isto suas músicas sempre me soam feministas e pajeuzeiras.
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um papo de boteco | Paulo Matricó
A moenda viva de Matricó D
om Hélder Câmara definiu que há criaturas que são como a cana. Que mesmo postas na moenda, esmagadas de todo, reduzidas a bagaço, só sabem dar doçura. Coincidência ou não, Paulinho vivenciou a doutrina de Dom Hélder. Coincidência ou não, Paulo foi sempre prensado pelos esmagadores dentes da roda viva da vida. Sem coincidência nenhuma, Matricó é uma moenda viva. Que mói e remóise. Que renova em si e oferta sempre a doce garapa da arte da vida. Eles são um só: Paulo
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Roberto Pereira dos Santos, neto de Higino, filho de Albino. Um magrelinho nascido em janeiro de 50 no Sítio Fazenda Nova, em Tabira, que ganhou o mundo com o nome de Paulo Matricó. Ganhando o mundo, se encontrou com o seu lugar. Está sempre refazendo-se. O primeiro lar virou a eterna (Re) Fazenda Nova. Lá é o primeiro e eterno engenho. Onde remói memórias e planta planos para novas moagens. Tudo revelado para a Revista Pajeuzeiro e captado por Alexandre Morais e William Tenório.
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Cedo no batente Eu sou o segundo filho de uma família de nove, mas sou o primeiro porque meu irmão mais velho foi morar com meu avô. E só surgiu uma filha mulher entre os últimos. Então eu tive que fazer de tudo em casa e na roça. Com sete anos eu já carregava água de galão pra os animais e pra gente, moía milho, peneirava e ia pra roça. E ainda tinha que achar um jeito de ir pra escola e outro jeito pra brincar. Mas sem reclamações. Eu era muito inquieto. Eu tinha asma, umas crises muito fortes desde os dois
anos, mas quando melhorava queria fazer tudo o que tinha deixado de fazer durante as crises. Pegando a estrada Com 18 anos eu sai de casa, sozinho, e fui pra o Cabo de Santo Agostinho, morar na casa de um tio. Nem imaginava trabalhar com arte. Fui trabalhar na Companhia Pernambucana de Borracha. Trabalhei no refeitório, depois na produção, mexendo com produção de vapor, ar comprimido, nitrogênio líquido e tratamento de água. Gostava muito daquilo, mas um dia cansei. Já tava casado, com três filhas, fui viver de artesanato com corda e madeira. Tinha saído de Tabira só com o primário, lá fiz um curso industrial equivalente ao segundo grau e fui ser caixa do Banorte.
a coordenação de Dom Hélder e, aqui no Pajeú, de Dom Francisco. Acabei me tornando um militante político e sindical. No banco, me aliei à oposição do sindicato, porque naquela época só os metalúrgicos eram combatentes, os outros eram chamados pelegos, eram sindicalistas aliados aos patrões. Quando estourou a primeira grande greve dos bancários, em 85, eu era tesoureiro da minha agência, fazia parte da chapa de oposição, e o movimento foi pra frente do banco e começou a gritar meu nome. O gerente não me demitiu porque não podia, mas me tirou da função e quando tudo aquilo passou eu fui demitido.
Volta às bases Voltei pra Tabira cheio de planos, mas encontrei outra realidade. Tinha um padre italiano aqui que Na igreja, como na arte me detonou. Tentei um trabalho Minha namorada engravidou, com os jovens e ele proibiu meus pais foram pra lá e que os jovens tivessem contato disseram que eu tinha que casar. comigo. Só que teve um que não Só que o padre disse que não nos aceitou, que foi Aristides Santos. casaria. Aquela negação acabou Então começamos a organizar a sendo uma atração para a igreja. oposição sindical em Tabira e no Participamos de um grupo jovem Pajeú, ampliamos a militância de canto e liturgia e aquilo me e fundamos o PT. Fui membro deu um despertar para a música. do diretório estadual do partido Acabamos formando o grupo e fiquei com essa missão de Nossas Raízes. Participamos de organizar tudo por aqui. Esse festivais e produzimos muito. período eu fiquei sem fazer arte. Eu cantava e tocava percussão, Só nessa missão sindical, política mas não compunha nem tocava e partidária. violão ainda. Abrindo passagens Na igreja, como na luta Com todo aquele enfrentamento, Nossa atividade era na paróquia eu precisava criar um espaço que de São José Operário e lá eu pudesse executar a missão também havia um grupo de com maior liberdade, sem a cara estudos e resistência operária. política partidária. Aluguei uma Eram núcleos ligados à Ação casa na Rua 27 de Maio, onde Pastoral Operária, que tinham funcionou a Rosa Amarela, que
era um ambiente meio rejeitado pela sociedade. Montei um bar com uma proposta cultural, botei o nome de Rosa Cor, só que de noite era bar e de dia era um ponto de reuniões e encontros de formação política. Eu recebia um recurso e tinha que desenvolver essas atividades. Então a gente cuidava do sindicato, do partido, da CUT, era uma espécie de sede da militância. Novas barricadas As eleições de 88 foram o ápice desse movimento. Montamos todo um plano, mas na noite da eleição prevaleceu o dinheiro e a gente foi trucidado pela estratégia dos opositores. Não tínhamos grandes expectativas, mas acabamos não fazendo nem um pouco do que a gente imaginava. A gente acabou sentindo os efeitos daquele trabalho um ano depois, nas eleições presidenciais. Tabira foi o único município na região onde Lula ganhou nos dois turnos. Fim da picada Ali eu já tava totalmente desestimulado, a estrutura tinha sido desmontada, o modelo que era de educação e formação política já era ali contaminado pela semente da corrupção. Eu percebi ali, naquela época, o que tá estourando hoje no Brasil. Porquê? Eu recebia um recurso pra desenvolver esse trabalho, pra realizar encontros, pagar estrutura, alimentação, transporte, as pessoas que trabalhavam, mas nada oficial. Eu tentei legalizar esse meu trabalho e disseram que não podia. Os agricultores perguntavam como era aquilo, de onde vinha o dinheiro e eu não tinha resposta.
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Não era uma coisa clara. Fiquei incomodado e me afastei. Novas águas Mas na proposta cultural daquele espaço eu conheci muita gente boa, como Edierck José e Nem, ambos de Afogados. Nem era muito bom violonista e tocava umas músicas que eu não conhecia, tipo Elomar, Vital Farias... aquilo me despertou. Passei a conversar, estudar, me encantei. Minha formação musical de infância era Luiz Gonzaga, Jackson do Pandeiro, Ari lobo, Nelson Gonçalves, na juventude era Chiclete com Banana, a febre da música baiana, foi a época dos embalos de sábado à noite, discoteca e muita MPB, que era o que tocava no rádio. Mas aquele bar foi um divisor de águas. Novos sons Com o desencantamento eu fui pra Olinda e passei um tempo muito pra baixo. Aí conheci um percussionista que me levou pra uma oficina de composição com Erasto Vasconcelos. Conheci o maracatu e ganhei uma nova transformação. Surgiu algo novo. Tinha uns irmãos que moravam em Santa Cruz do Capibaribe e eu fui pra lá trabalhar com sulanca. Mas já tava tocado pelo vírus da arte. Comprei um curso de violão, que vinha com um caderno e uma fita cassete e passei a me dedicar. Trabalhava e reservava um tempo e uma energia pra o violão e pra pesquisa musical.
um comício com Lula lá em Santa Cruz do Capibaribe. Eu fui. Cheguei no local cedo e vi um rapaz magrinho com um violão nas costas. Me aproximei e era quem viria a ser Anchieta Dali. Perguntei o que ele tocava, vi que era as mesmas coisas que eu tava investindo, e perguntei: tu topas tocar Saga da Amazônia pra eu cantar aí no comício? Ele topou, a gente cantou e começamos ali uma parceria que dura até hoje. Matricó Anchieta tinha um bar em Caruaru. Comecei a frequentar e acabei me mudando pra lá e junto com ele, Sevi Nascimento, que era minha mulher, e outros dois, formamos o grupo Matricó. Eu tava pesquisando a obra de Genival Lacerda e conheci uma música de Zé Marcolino chamada Corrupio. A letra faz toda uma referência ao Matricó, que um recipiente feito com a ponta de um chifre de boi, cheio de algodão, uma tampa de cuia, uma tira de couro que segura a tampa e outra que segura uma pedra de fogo, ou o fuzil. Aquilo é usado pra acender um cigarro ou fazer um fogo mesmo. Sugeri o nome e a turma aceitou logo. Fico Grupo Matricó.
causa dos Vates e Violas. Depois veio Canção da Lua e a coisa deslanchou. Fizemos muito rádio, televisão, conhecemos Xangai e fizemos uma temporada muito boa em Salvador. Ficamos por lá até que o dinheiro acabou e a gente foi convidado pra o interior da Bahia. Acabamos indo pra mais uma cruzada. (Re)começo Fomos pra uma região perto da Chapada Diamantina e tocamos bem por lá. Ficamos numa cidade chamada Rio do Antonio e de lá fomos pra Vitória da Conquista, tocar num bar de uma irmã de Xangai. Ali o grupo acabou, acabou também meu casamento, todo mundo tomou destino e eu fiquei sozinho. Como me chamavam Paulinho da Banda Matricó ou Paulo da Matricó, sem o grupo eu fiquei sendo Paulo Matricó.
(Re)recomeço Eu tocava um pouco violão e montei um repertório em cima daquele pouco que eu sabia. Veio a Festa de Reis, que é tradicional por lá, e eu conheci Elomar, João, filho dele e reencontrei Edigar Mão Branca. Acabamos cantando no palco e tudo. Depois voltei pra Salvador, fui tocar numa pizzaria, Tocando fogo briguei com o dono, fiquei Foi uma época bem produtiva sem lugar certo pra tocar e fui e Anchieta me ensinou muito. morar numa casa de estudantes. Ganhamos festivais, como o Um dia eu escutei alguém me FEMP de São José do Egito, chamando aos gritos. Quando conhecemos muita gente do fui ver era Dércio Marques, um meio artístico e ali surgiram cara que eu tinha como a voz de também minhas primeiras Deus na minha vida. Ele foi me (Re)Encontro composições. Conheci Luiz chamar pra tocar em um grande Naquele momento os militantes Homero e Miguel Marcondes encontro estudantil de cultura do PT me descobriram e e de uma viagem, de moto, da e ali conheci mais um monte de voltaram a me cercar. Neguei casa deles voltando pra Caruaru, gente boa que virou parceira várias vezes, mas aí marcaram eu fiz a música Vaticínio, por depois.
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Mais vindas e voltas Isso já tava com três sem dar notícias em casa. Um dia eu tava em Irecê e encontrei um pau de arara vindo pra cá pra Tabira. Nem pensei, subi no caminhão. Foram dois dias de viagem, adoeci, cheguei em casa muito debilitado. Quando minha mãe me viu se desesperou. Só que eu tava em casa, melhorei rápido e ali eu já era artista, já era Paulo Matricó. Isso era 1992, fui fazer barzinho, ganhei o Fercan em Afogados da Ingazeira e já em 93 eu fui pra Brasília. Aí deu certo, lancei o livro “Dois versos”, depois o disco “Outro verso” e fiquei na ponte com Recife. Até que surgiu a Alemanha, pra onde eu transitei entre 95 e 2000.
a estação que eu iria descer. Ele tratou aos gritos: sem perguntas, sem perguntas... aquilo me doeu, eu cheguei em casa deprimido demais e surgiu a música “Apreço ao meu lugar”. Surgiu de forma despretensiosa. Chegando em Recife, cantei ela numa roda de amigos, todos artistas, músicos e bateu aquela concentração, quando terminei alguns deles estavam chorando. Ali foi que eu percebi o tamanho da música: Eu viajei pra muito longe, atrás de um mundo novo e me realizar. Mas quanto mais distante eu fui, mais perto me encontrei aqui do meu lugar... já gravei essa música quatro vezes e muita gente tem gravado também.
Apreço Viver na Alemanha foi bom, mas trouxe a terrível experiência de ser estrangeiro. Eu era olhado diferente nos lugares e aquilo me tocava muito. Uma vez eu entrei num trem e fui pedir uma informação a um senhor sobre
Fantasmas Nessas minhas andanças, eu acabei me perdendo e me encontrando muito. E surgiram muitos contatos, gente que se perde na vida. Abre mão de tudo, por diversos motivos e optam por caminhos bem
difíceis. Isso me impressionou muito e eu tinha medo daquilo acontecer comigo. Até hoje eu carrego esse fantasma. Por um tempo eu andei perto disso. Por alguns anos eu não tinha nada. Toda minha bagagem era o chapéu, a viola e uma mochila. Moenda Nada na minha vida foi planejado. Sempre foi acontecendo, sempre alguém ou alguma coisa moldava meu destino. Em tudo, a música acabou sendo o meu norte. Quando comecei, pensei em fazer um trabalho voltado praqueles ideais libertários que eu vivi. Me enganei. Senti e deixei as músicas surgirem. Fui criticado até por ser um revolucionário e compor musiquinhas românticas, regionais e tal... mas tudo são experiências e reencontros. Minha primeira vivência com a música tá aqui na Fazenda Nova, no engenho. Onde eu for, onde eu estiver, estarei aqui. Na moenda.
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A importância da métrica e da rima (E o aprisionamento da inspiração) Texto Vinícius Gregório
A
poesia não está presente apenas em uma estrutura ou em estilos poéticos predeterminados, mas em qualquer coisa que haja sentimento. Pode haver poesia em uma pintura, em uma fotografia... Porém é mais comum associar essa palavra àquilo que é escrito ou declamado. Aí entra a pergunta: Para ser poesia, tem que ser metrificada e rimada? É óbvio que não. Mas não é isso que me proponho a dizer. Quero, sim, falar a respeito da importância da métrica na poesia como forma de preservação de tradições no Pajeú, no Sertão, no Nordeste. É que vejo e já senti na pele muita gente criticar o fato de “escrevermos” de forma metrificada e rimada, sob o mesmo argumento de sempre: a métrica e a rima aprisionam a inspiração. Acho tal pensamento um tanto quanto desprovido de responsabilidade. Ora, se a pessoa não gosta ou não consegue escrever dessa forma, é uma opção e uma liberdade poética dela, que deve ser respeitada e admirada, mas daí a usar tal
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argumento, demonstra total desconhecimento e afronta com as tradições poéticas nordestinas. Sem adentrar na origem da métrica e da rima, pois aí teria que fazer explanações sobre a poesia na idade média, é necessário ressaltar que muito da poesia produzida no Nordeste tem origem e inspiração na cantoria dos cantadores de repente. E sabemos o quanto a métrica e a rima são importantes nessa manifestação cultural, já que são indispensáveis para a manutenção do ritmo e da musicalidade. Além disso são critérios de avaliação rigorosos nos festivais de cantadores. Pois o cantador que não obedece à rima na sua grafia, ou aquele que não obedece à métrica na contagem das sílabas e na sua tonicidade correta, não é visto como bom cantador. Falando assim até posso levar o leitor a se convencer de que esse rigor leva, de fato, ao aprisionamento da inspiração. Seria assim se tudo isso que acabei de falar não saísse de forma automática de dentro dos cantadores, ou seja, eles rimam e metrificam, mas nem
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se dão conta de que estão fazendo assim, tão natural que sai a poesia. Então, a partir do momento que resolvo escrever somente sobre esses “moldes”, estou apenas preservando tradições e não devo, jamais, ser criticado por isso. Além disso, a métrica e a rima libertam os vates que as usam de tal forma que, muitas vezes, até mesmo os títulos de suas obras saem, naturalmente, metrificados. E, por incrível que pareça, por admirar qualquer forma de manifestação poética, já tentei fazer poemas sem regras, mas, por não conseguir, terminei fazendo rimado e metrificado, tamanha é a naturalidade com que a métrica e a rima saem da minha mente. Mas é óbvio que essa é minha opção e filosofia de escrita, o que não quer dizer que seja minha única opção de leitura, pois leio a poesia livre ou branca com a mesma empolgação com que leio a outra. Portanto, poesia é poesia, seja dentro de regras ou não. O poeta quem escolhe a(s) forma(s) de escrever. E, no fim das contas, o que aprisiona mesmo é o preconceito.
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