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SUMÁRIO
Poema Visual Omar Khouri 6 A humanidade de Zé Agrippino de Paula Elaine de Sousa 7 A representação pictórica das festas pelos pintores modernistas brasileiros Maria Cristina Caponero & Edson Leite 1 Arquitetura de castelos tropicais: quem quer ser nobre no Brasil de hoje? Dinah Papi Guimaraens 21 Contextualização sobre a defesa de um ponto de vista: Caravaggio de Derek Jarman Rogério Prestes de Prestes 39 As múltiplas facetas de Percival Tirapeli Oscar D'Ambrosio & Daniel Patire 51 Duda Penteado – Roots & Fragments, A Journey to a Mental Territory George Nelson Preston 53 Falsificadores, hoaxes, Han van Meegeren e Carlos Mirandópolis João Eduardo Hidalgo 55 Isto aqui, ô, ô, é um pouquinho de Brasil, Iaiá! Miguel Falabella e Arthur Bispo do Rosário Maria da Graça Berman Palmyra ou a cultura assaltada João Eduardo Hidalgo 69 2
SUMÁRIO
Antoni Gaudí, o arquiteto de deus e da luz mediterrânea João Eduardo Hidalgo & Nelyse Salzedas 73 Máxima Arte. Mínima Arte. As escalas da arte Maria Izabel Branco Ribeiro 77 O filho de Saul em Auschwitz João Eduardo Hidalgo 79 Revolvendo o passado Marirosaria Fabris 82 O filme Blow-up de Antonioni faz 50 anos João Eduardo Hidalgo 85 Mona Hatoum o La poética de lo terrible Lucía Viviana Rey Orrego 87 Uma lista que não é a de Schindler João Eduardo Hidalgo 89 Pinacoteca do Estado exibiu obra de José Spaniol: "Tiamm Schuoomm Cash" José Leonardo do Nascimento 92 Um novo olhar sobre a arte brasileira Nelyse A. Melro Salzedas & Rivaldo Alfredo Paccola 95 Especial: Vídeo Percival Tirapeli mostra seu "autorretrato" feito por Pedro Leão 97 3
EXPEDIENTE EDITORES-SENIORES João Eduardo Hidalgo
Fabia Giordano Kadayan Daniela Farias
Nelyse Salzedas (FAAC/UNESP)
José Leonardo do Nascimento EDITORES DE LITERATURA EDITORES-CHEFES Fabia Giordano Kadayan
Agnus Valente (IA/UNESP)
Fernandes Filho
Edson Leite (MAC/USP)
Thales Felipe Dantas Alves
João Eduardo Hidalgo (FAAC/UNESP)
CONSELHO EDITORIAL
Wagner Francisco Araújo Cintra (Vice-Diretor IA/UNESP)
Melissa Vassalli Donny Correia
REDATORES-CHEFES Barbara Passeau Teresa Midori Rosangela Canassa
EDITORES GRÁFICOS E DE DESIGN Daniela Farias
Mariarosaria Fabris (FFLCH/USP)
Marcelo Tápia (Diretor Casa das Rosas, São Paulo)
Emilio García Fernández José Spaniol (Universidad Complutense de Madrid) (IA/UNESP) George Preston (City University of New York) José Leonardo do Nascimento (IA/UNESP) Caroline Kraus Luvizotto (FAAC/UNESP
Lucas Gorzynski
Marcia Barbosa da Silva (UEPG/PR)
EDITORES ARTES/CULTURA
Urbano Nobre Nojosa (PUC/SP)
Fabíola Cristina Alves Lucas Gorzynski Marco Antonio Baena Luana do Amaral
EDITORES DE IDENTIDADE Luis Roberto Quesada
Elza Maria Ajzenberg (ECA/USP) Rosa Maria Araújo Simões (FAAC/UNESP) Paulo Roberto Monteiro de Araújo (Mackenzie/SP) Jorge Schwartz (Diretor Museu Lasar Segall/SP)
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Dinah Papi Guimaraens (UFF/MNBA/RJ) Milton Sogabe (IA/UNESP) Maria Izabel Branco Ribeiro (MAB /FAAP) Percival Tirapeli (IA/UNESP) Olívio Guedes (MuBE/SP) Mario Bolognesi (IA/UNESP) Sebastiana Freschi (IA/UNESP)
EDITORIAL
Este número da Revista Palau faz jus ao seu nome e traz Antoni Gaudí relembrado nos 90 anos de seu desaparecimento, e aguarda a conclusão de seu Temple de la Sagrada Familia, que deverá ficar pronto em 2022, para a comemoração de 160 anos de nascimento, do mais importante arquiteto catalão que o mundo já teve o privilégio de conhecer. Tratando de Artes, Literatura e Identidade a Palau tem uma ampla abertura e, neste número, para a nossa surpresa, a Arte Brasileira sobressaiu-se naturalmente. Aparecem desde temas como os pintores do modernismo brasileiro e suas escolhas estéticas; a originalidade surpreendente de Arthur Bispo do Rosário revisitada pelo prolífico Falabella; a arte fotográfica como registro da ditadura brasileira; o lançamento de uma coletânea de textos que examinam períodos e autores da Arte Brasileira sem a visão européia acachapante, em suas classificações excludentes, até uma surpreendente investigação dos Castelos Tropicais e ainda um tributo emocionado ao tão esquecido Zé Agrippino de Paula. Este Palau apesar de inspirado em obras dos últimos dois séculos é um Palau digital e gratamente imaginário, exploremos então este labirinto, acompanhando a leveza dos traços pretensamente simples, como os de Joan Miró, ou Bispo do Rosário e sigamos a pista destes autores, como se seguíssemos os personagens de Zafón pelo Barri Gòtic. Neste passeio pensemos nas escalas da arte, apreciar a Casa Vicens ou La Pedrera nos lembra que nada é pequeno ou excessivo em arte, e que grande é apenas a capacidade humana de criar.
João Eduardo Hidalgo, Editor Sênior.
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Palmyra ou a cultura assaltada Palmyra ou a cultura assaltada João Eduardo Hidalgo FAAC/UNESP João Eduardo Hidalgo FAAC/UNESP
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A humanidade de Zé Agrippino de Paula Elaine de Sousa - Casa Midiática (SP)
"O objetivo básico do artista é ser admirado no que ele faz” (José Agrippino de Paula, em entrevista concedida por escrito, Embu das Artes-SP, 1996).
O autor de obras lancinantes e inovadoras, considerado pelo físico Mario Schenberg como uma das personalidades mais poderosas e significativas daquela geração (SHIRASSU JR., 2011), incensado como gênio tropicalista por uma nata da intelectualidade paulistana (BRESSANE, 2007; MEIRELLES, 2009) e anunciado em alto e bom som pelo poptropicalista Caetano Veloso como “autor fatal e inspirador” (1), José Agrippino de Paula (19372007) deixou uma obra latente, marcada pela convicção de provocar mudanças interiores no homem e resistir a um regime militar cruel e sufocante. O desejo pelo natural – e pela natureza -, a liberdade extremada, a vontade de ganhar as ruas e fazer barulho são marcas de todas as suas obras. Agrippino foi, de fato, um lume para o pensamento da época: seu livro Panamérica não só inspirou Caetano Veloso a dali retirar versos para Sampa ("Panaméricas de Áfricas utópicas"), como também guiou Gilberto Gil a compor trechos como "eu e ela estávamos ali abraçados na parede", música presente no disco Doces Bárbaros (MEIRELLES, 2009, s.p.). No cinema, com uma câmera Super-8 (2), Agrippino somou-se a turma (como gostava de dizer), que tinha uma ideia na cabeça e uma câmera na mão. Com poucos recursos ele deixou sua marca e apresentou ao público (seleto) um olhar estranhamente peculiar. Mas muito provavelmente sem tais intenções. “Ele só queria se expressar. Nunca me pareceu egocêntrico como muitos outros cineastas” (PALUMBO, 2012). Sempre ligado às artes em geral, formado em Arquitetura, casado com uma reconhecida bailarina (Maria Esther Stockler) e amigo de atores, compositores, cantores e artistas plásticos, Agrippino deixa claro todas essas referências em suas obras.
Quinze anos haviam passado desde o dia que entrevistei José Agrippino de Paula e Silva. Como as tentativas de publicar a entrevista tinham sido infrutíferas, o artista que jamais quis se categorizar foi guardado numa afetiva caixinha verde, de minha memória afetiva, desde o início da graduação em Jornalismo. Vez ou outra lia um artigo sobre seu trabalho em revistas ou blogs que abordavam a contracultura brasileira. Desafiada a fazer uma resenha sobre alguma obra audiovisual como trabalho de conclusão da disciplina “Introdução à Linguagem Audiovisual”, do curso de Especialização em Linguagem, Cultura e Mídia da Unesp (2011), tive o insight de fazer algo diferente e, ao mesmo tempo, reabrir a minha caixinha verde. E lá estava vivo e vibrante José Agrippino de Paula e sua caligrafia, já desestruturada num papel amarelado. Foi um tiro no escuro. Em aula, nunca comentei com o professor sobre meu interesse quase patológico pelo trabalho daquele velho guru, chamado de bruxo por alguns moradores da pequena Embu das Artes (SP), onde vivi até os 18 anos de idade. Não tinha, portanto, nenhuma certeza de que o professor apreciaria o trabalho ou se ele engrossava o caldo dos que sequer reconhecem a obra agrippiniana, no que trata de sua produção em cinema. Tema escolhido, o segundo tiro no escuro tinha a ver com a pessoalidade do texto. Não era possível relatar uma experiência de contato sendo distante e "A Maria Esther era uma pessoa altamente seguindo normas rígidas de redação científica. Os informada porque viveu em Nova Iorque. Nós conhecemos também Jô Soares, ele de vez em dados foram lançados. quando ia pra Nova Iorque e trazia discos. 7
Caetano Veloso também tinha muitos discos. Quer dizer, aqui em São Paulo nós tínhamos uma quantidade de informação do mundo, assim moderno, de Nova Iorque, muito grande". O mix the media theater. (AGRIPPINO, apud MEIRELLES, 2009, s.p.) Em Hitler 3º mundo (1968), por exemplo, há certa teatralidade nos passos dos atores e muito improviso, tanto quanto possível nas ruas de São Paulo. Considerado um dos filmes mais inquietantes do cinema brasileiro - pelo menos dessa vertente considerada marginalizada -, o filme é gravado em Super-8, em preto e branco, com direção fotográfica de Jorge Bodanzky, no auge da repressão militar e rodado na clandestinidade. O preto e branco, aliás, representa muito bem o panorama sufocante daquele período. Com imagens capturadas nas ruas de São Paulo, o filme apresenta a mesma narrativa fragmentada que Agrippino usa em seus livros. Para Yann Beauvais (2008, p.254), “a escrita cinematográfica de Hitler 3º mundo, assim como aquela que norteia os diferentes happenings, contesta nossos hábitos de assistir a um filme, ver um espetáculo ou ler um livro”. Em enquadramentos distorcidos e ângulos aberrantes, o nazismo engole a cidade de São Paulo numa comédia experimental e extraordinária que situa personagens caóticos, como o Samurai – personagem interpretada por Jô Soares –, que tenta apagar as imagens reproduzidas na televisão e, indignado, acaba cometendo um haraquiri, uma técnica de suicídio oriental (BEAUVAIS, 2008). Se olharmos essa obra agrippiniana à luz da Filosofia da mente, em especial tópicos como corpo, cérebro e memória, podemos refletir, por exemplo, sobre o que o peso do corpo do Samurai revela de sua identidade? Para Merleau Ponty (1997), não dá para separar o que nós somos da nossa inserção corporal no mundo. O que era, então, aquela “coisa” que numa cena alimentava crianças da favela como se fossem animais e noutra buscava destruir as imagens da chamada Indústria Cultural da tela da tevê? Ainda para Merleau Ponty, a linguagem é uma ferramenta corporal importante. O que
dizer, então, dos indivíduos apresentados no filme por Agrippino? Todas as personagens de Hitler 3º mundo, bestializados, crus, robóticos e ridículos se parecem – e muito - com os indivíduos/personagens dos dias atuais. “No filme, o Coisa, um Jô Soares vestido de gueixa e PMs reais atuando como militares (!) caçam Hitler pelas ruas do centro de São Paulo” (BRESSANE, 2007, s.p.). Revolucionários, amantes, ingênuos e bárbaros circulam por cenas paranoicas, frustrantes e miseráveis que retratam um país subdesenvolvido e degradado. Ao mesmo tempo, é um filme que debocha e celebra o caos. Causa certa angustia incômoda e, por isso mesmo, faz um convite à transgressão. Em geral, as imagens que compõem Hitler chegam a ser perturbadoras e deixam evidente uma crítica cortante que visa antes de tudo contestar a ordem imposta. E, num olhar agudo, Agrippino parece se divertir usando armas num filme gravado em plenos anos de chumbo da ditadura militar. Pensando esteticamente, Hitler 3º mundo inserese no chamado Cinema Marginal, especialmente porque para fugir da acirrada censura da época, o autor subverteu linguagem e a narrativa linear para expressar opiniões e críticas políticas, para tentar não ser compreendido pelo regime militar. Ainda assim, o filme foi censurado e proibido. Uma das cenas mais emblemáticas mostra Cristo e os apóstolos em uma barca na areia, que não se move. Retrato bem duro da sociedade e do país da época. Experiência imagética No curta experimental Céu sobre Água (1978) – visualmente o mais belo filme de Agrippino - há registros em super-8, na praia de Arembepe (BA), de uma integração perfeita entre homem e natureza. Segundo o jornalista e blogueiro Ronaldo Bressane, o escritor Beto Hoisel relata no livro “Aquele Tempo” (2003, editora Século 22) um pouco do clima daquela praia: "Arembepe era uma Aldeia Hippie, que nos proporcionou um extraordinário ensaio sociológico onde se experimentou um modelo de sociedade alternativa. Experimento que bem 8
poderia ser uma semente de práticas e relacionamentos humanos mais lúcidos do que os vigentes neste mundo em que, bem ou mal, vivemos." (HOISEL, apud BRESSANE, 2007, s.p.)
Cemitério Municipal da charmosa Embu das Artes (a 32Km da capital paulista). De olhar fugidio, aquele homem estranho, barbudo, de roupas brancas ou azuis em malha de pijama chamava a atenção daquela estudante de jornalismo muito antes de ser descoberto como escritor, cineasta, teatrólogo (figura 1)... Um As cenas capturadas durante seis anos na multi-artista, por fim, de um período que para a praia baiana flagraram movimentos de sua então cultura e o cinema se desenhava rico em ideias, mulher Maria Esther Stockler, grávida, dentro da mas pobre em recursos (1960-1970). água, e depois, já com a filha, Manhã, em contato com a natureza fantástica. Num azul infinito, Foi Jairo Ferreira – em seu Cinema de Invenção água e céu se misturam e são embalados por (Editora Max Limonad, 1ª. edição, 1986) – quem movimentos sutis e envolventes, por exemplo, deu pistas da trajetória e suposta genialidade de das mãos de Esther, cujos dedos parecem emitir José Agrippino de Paula. No livro, Ferreira os sons da trilha pontuada por uma cítara indiana. questionava: “por onde andará aquele guru, de Neste filme de longos planos estáticos, a nudez barba longa e voz macia, visto pela última vez na (característica em outras obras do autor) vai além Bahia?” Pergunta prontamente respondida pela da ideia libertária de vida e é profundamente estudante em uma biblioteca paulistana: em imagética. O corpo nu integra-se perfeitamente à Embu! Ele mora em Embu! Pouco depois, em natureza e somado a elementos como a água e a 1998, era o jornalista e cronista Mario Prata quem luz vai ganhando contornos incríveis e luminosos. o procurava e seu Blog: “Mostra a sua cara, Zé. Desta forma, Agrippino apresenta a mulher, a Vamos reeditar o seu livro e vamos reeditar a sua filha e a natureza sob diversas óticas e planos vida.” (PRATA, 1998, s.p) (geral, primeiríssimo plano e plano de detalhe), eliminando totalmente a necessidade de um roteiro definido – mais uma marca do autor: a ausência de roteiros. Levados pelas imagens criadas, assistimos a um filme cru e ao mesmo tempo recheado de elementos sensoriais. E assim, inspirado e inspirador, autor e obra se misturam, confundem-se e trazem à tona um olhar tão esquizofrênico quanto fiel do homem e de suas experiências políticas e eróticas. Impressões confirmadas em depoimentos como o de Hoisel: Não era fácil acompanhar a lógica da sua narrativa oral, o fluxo da sua conversa era como a narrativa de PanAmérica: um jorro incessante de palavras, um fluir contínuo de imagens, diferentes assuntos embaralhados simultaneamente. (HOISEL, apud BRESSANE, 2007, s.p) O anônimo morador da avenida Elias Yasbek no Embu das Artes Cortante. Desconcertante. Extravagante. Eram essas as palavras que martelavam na minha mente toda vez que passava diante da casa número 1.640, da avenida Elias Yazbek, em frente ao
Fig. 1: Agrippino na frente da casa onde vive seus últimos anos de vida, em Embu das Artes (SP). Foto Acervo do SESC-SP.
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Antes de prosseguir, abro caminho para o blogueiro Rubens Shirassu Jr. (2011) desvendar um pouco da produção da personagem que vivia anonimamente em Embu: José Agrippino de Paula teve sua produção focada nas artes visuais, cinema, literatura e um pouco de música. Este paulistano eclético produziu dramaturgia (O Rito do Amor Selvagem), literatura (Lugar Público, prefaciado por Carlos Heitor Cony, e Madame Estereofônica) e cinema (Hitler 3º mundo), que tem no elenco Jô Soares, O Coisa, com Manoel Domingos no papel título, O Céu sobre Água, com sua esposa e bailarina Maria Ester Stockler e Candomblé no Togo). É o autor de “PanAmérica”, livro citado por Caetano Veloso na música “Sampa”, através do verso "Panamérica de Áfricas utópicas", em “Eu e Ela Encostados na Parede”, no CD Os Doces Bárbaros, além dos livros do próprio Caetano: “Alegria, Alegria” e “Verdade Tropical”. A obra foi lançada em 1967 e é cultuada até hoje. O texto mostra-se tropicalista, uma mistura de personagens - de Marilyn Monroe a Che Guevara, de Karl Marx a Harpo Marx - que vivem uma aventura bem surrealista que acaba com a destruição do mundo. (SHIRASSU, 2011, s.p) Caminho para idas ao banco e à biblioteca municipal de Embu das Artes, a avenida Elias Yazbek guardava segredos, que pareciam cada vez mais instigantes, para quem estava descobrindo a cena cultural paulistana em meados dos anos 90. Mas que também tinha muita atração pelos movimentos hippies que permearam a tal contracultura e coloriram os anos 1970, vividos pelos pais paulistanos que bem cedo habitaram Embu. É neste contexto que Hitler 3º mundo e Céu sobre mar foram encontrados, lidos e congelados. Perseguir aquele homem se tornou uma espécie de investigação literária e cultural. Frequentador do então supermercado Gigante, no bairro Cercado Grande, Agrippino comprava habitualmente arroz e pães integrais, frutas e verduras. Já naquela época, idos dos nos 1990, levava sua própria sacola de palha para carregar os alimentos comprados. Um homem coerente, que nas palavras de Vitor Angelo: “Zé Agrippino está além de seu tempo e de seu país. Ele é uma espécie de Leonardo da Vinci do
terceiro mundo” (2012). Mas, para os embuenses, ele era apenas um velho esquisito. Para a estudante, um misterioso guru. Algumas vezes, ela teve a impressão de que ele fugia de seu olhar – mas secretamente também a observava. É como se, de alguma forma, ele soubesse que ela sabia de sua relevância cultural, de suas ideias rebeldes, de suas atividades audiovisuais... E tivesse medo de ser incomodado. Por cerca de quatro anos (entre 1994 e 1997), travei com Agrippino uma espécie de relação muda de quem passa na frente de sua casa, olha e pensa algo como “eu sei quem você é”, seguindo numa curiosidade angustiante por um diálogo que não vinha. Ele, por sua vez, fitava-me num misto de curiosidade e repulsa. Até que um dia de julho de 1996, tomei coragem e bati palmas diante de seu portão para solicitar-lhe uma entrevista (jamais publicada). Ele saiu na janela e deu permissão para que eu entrasse no quintal e falasse com ele do lado de fora. A sensação foi das piores. Nada é mais constrangedor do que estar diante de alguém considerado importante e perder a voz. Por fim, balbuciei algumas poucas palavras, e ele concordou que eu enviasse as perguntas por escrito. O que vi foi um homem de peso, sentado passivamente, de semblante sereno, voz mansa e ideias confusas entre o passado e o presente. Ele estava ali, mas parecia estar mesmo flutuando. Uma cena similar a dublagens malfeitas, a voz saia daquela boca, mas parecia sair de caixas de som escondidas no cômodo sombrio. O encontro foi praticamente uma metáfora do que muito de sua arte é: angustiante, intermitente, latejante. As respostas da entrevista concedida por escrito vieram cerca de uma semana depois (figura 2). O conteúdo, meio frustrante (para a minha expectativa da época). Agrippino parecia viver de lembranças. Preso ao passado, o homem taciturno que eu via diariamente na varanda, de frente para o Cemitério Municipal, dizia que ainda frequentava vernissages e coquetéis paulistanos e que, portanto, tinha uma vida social bem movimentada (fig.3). Difícil acreditar. Cheguei a pensar que tinha perdido meu tempo e que talvez os embuenses estivessem certos sobre sua sanidade mental . Mesmo assim, decidi continuar 10
pesquisando vida e obra tão conturbadas, afinal ele deu sinais de produção ativa, inclusive previa escrever um romance realista de cidade grande, como descreveu em sua segunda resposta (figura 4).
Fig. 2: A caligrafia de Agrippino na resposta para minha primeira questão sobre Hitler 3º mundo.
Fig. 4: o autor comenta sobre desejo de produzir um novo romance de cidade grande.
Se para Pierre Lévy, a escrita tem consequência radical na construção do ser humano e é uma ferramenta de memória que constrói a identidade pessoal, talvez a escrita de Agrippino, monossilábica, pontuada e cortante, mostre mais dele, do que se falou até hoje. O que restam são mais perguntas. A esquizofrenia teria nascido com Agrippino ou foi desenvolvida após as perseguições vividas por ele e a mulher, Maria Esther, nos anos de chumbo, como descrevem Bressane, Meirelles, Prata e outros autores?
Fig. 3: Questionado sobre o fato de parecer arredio, Agrippino afirma ir a Vernissages.
“Depois de constantes surtos – o escritor Ronaldo Brassane escreveu em seu blog - que Agrippino era visto praticando ioga nu em Ipanema – em seguidas internações, o escritor foi diagnosticado com esquizofrenia, em 1981, época em que a Justiça o interditou e sua tutela foi 11
entregue ao irmão, Guilherme de Paula”, relata Paitomas no Blog Cabana do Pai (2009). “Ele foi ficando cada vez mais eremita, até que em 1980 recebeu um diagnóstico de esquizofrenia. E sumiu. Em 2002, resolvemos ir atrás do gênio” (BRESSANE, 2007). O autor do Blog Cabana do Pai descreve Agrippino como precursor do Tropicalismo e vai além: "Ele não figura entre as estrelas da Tropicália, nem é lembrado com frequência quando o assunto é esse movimento, que virou do avesso o cenário cultural brasileiro do fim dos anos de 1960. Mas José Agrippino de Paula estava lá. A bem dizer foi um dos primeiros a chegar. E, infelizmente, um dos primeiros a sair. O escritor viveu o que se poderia chamar de auge até a década seguinte e, então, a vida desviou o caminho, roubando-lhe, com um diagnóstico de esquizofrenia, a lucidez e o contato com o mundo real." (PAITOMAS, 2009, s.p.)
Fig. 5: Agrippino fala sobre seus gostos culturais.
Será mesmo que um dia Agrippino foi lúcido (como a sociedade chama)? Ou teria sido já a visão aguçada das mentes diferenciadas uma das responsáveis pela revolucionária obra deste autor? Mesmo que essa face da vida do autor jamais seja desvendada, nada mudará um fato: José Agrippino de Paula não cedeu aos encantos do sucesso, das bilheterias, do cinema comercial. Não vestiu terno, como fez o pop-tropicalista Caetano Veloso. Não gravou na super-8 as cenas finais que teve a chance de gravar, a convite de Miriam Chnaiderman, que produziu o documentário “Passeios no Recanto Silvestre” (disponível do YouTube). E certamente também não iria gostar de ser categorizado como membro deste ou daquele movimento. Pop-tropicalista? Experimentalista superoitista? Maldito? Não importa. Agrippino era avesso demais às padronizações e aos enquadramentos convencionais para ter seus passos, suas convicções e experiências artísticas classificadas, como bem pontua Vitor Angelo, no encarte que acompanha o DVD lançado em março de 2012, com as obras audiovisuais de Agrippino, numa série sobre Cinema Marginal Brasileiro: Talvez seja nosso artista mais arredio a esse tipo de classificação de que os bancos escolares, as enciclopédias e, por que não, os catálogos de mostras tanto necessitam. Sob meu olhar, arriscaria dizer que ele era um artista na experiência mais completa, talvez. Um revoltado e crítico do próprio ser humano, com certeza. Em quatro de julho de 2007, um infarto fulminante matou Agrippino. Pouco antes, em 2006, sua ex-mulher Maria Esther Stockler também faleceu, vítima de um câncer. E os dias finais de Agrippino foram dias de um homem anônimo, doente, mas firme na convicção de apartar-se de tudo o que já não suportava mais: as ruas, a violência, as repressoras relações sociais. Para o bem e para o mal, deixou uma obra tida como genial e também esquizofrênica, lembrada, cantada e contada por poucos, como observa Shirassu: “Agrippino de Paula, o guru pop e tropicalista, caiu no esquecimento da imprensa e do público do Brasil, como tantos artistas incompreendidos, dos anos 1980 em diante. Apenas uma revista dirigida e com forte influência do pop, e alguns 12
sites e blogs cults da internet, reviveram toda a Anchieta, em meados de 1967, para lembrar trajetória deste artista multifacetado. (SHIRASSU, quando foi avaliada por José Agrippino de Paula e Maria Esther Stockler num teste para a peça 2011, s.p.). teatral Tarzan III Mundo – O Mustang Hibernado (1968). Para Lucila Meirelles, curadora A ampliação das ideias e a beleza do improviso das obras audiovisuais de Agrippino, “a peça “O Agrippino teve sorte de te encontrar”. Tarzan era muito requintada, uma mistura de As palavras foram proferidas em sala de aula pelo expressões, tecnologia, teatro, dança, beleza Desde então, relata Danielle, eles professor Hidalgo, após leitura do trabalho sobre visual”. Agrippino (UNESP, 2011). E mais: Hidalgo me trabalharam juntos em alguns espetáculos e no informara de que um DVD zero bala, produzido filme. Havia uma intertextualidade entre o que e editado pela Lumi Filmes e a Heco Produções fazia o grupo Sonda, no teatro, e o que Agrippino (2012), estava saindo do forno numa série sobre gravava nas ruas de São Paulo, em Hitler 3º Cinema Marginal. E o DVD número 06 traria mundo. Tanto é que, em seus relatos, não raro a pela primeira vez para exibição comercial ao atriz confunde cenas da peça Rito do Amor público Hitler 3º mundo, Maria Esther: Danças Selvagem (1969) com outras do filme. A marca da na África e Céu sobre água. Era realmente a hora obra Agrippiniana, segundo Palumbo, eram o de falar mais sobre o Zé. Ou não, afinal, com o improviso e o movimento corporal (fig. 6, DVD, a mídia falaria mais dele e, provavelmente arquivo pessoal Danielle Palumbo). contrariando a postura arredia do Zé, ele poderia se tornar mais popular. De todo modo, o trabalho era atual e deveria, sim, ser ampliado. Uma frase dita em 1998, num blog de quem conviveu com o Agrippino nos nervosos anos 1960, veio à tona de novo: “Mostra a sua cara, Zé. Vamos reeditar o seu livro e vamos reeditar a sua vida”. (PRATA, 1998) Outra frase, parte da entrevista que me concedeu em 1996, confirma a decisão de ampliar este artigo: “O objetivo básico do artista é ser admirado no que ele faz”. E quem trabalhou com o Agrippino sabe bem o significado de admirar esse trabalho. Encontro, então, a atriz Danielle Palumbo 3, que, além de fazer parte do elenco de Hitler 3º mundo, aparece nos créditos do filme como diretora de produção, embora ela mesma não se lembre bem disso. É ela quem se chacoalha numa das primeiras cenas do filme dentro de um fusca, ao resmungar de um homem. Aos 72 anos, Danielle residia em Londrina (PR) até meados de fevereiro de 2012. Depois, Fig. 6: Ensaio do grupo Sonda, arquivo pessoal de mudou-se para Cotia (SP), município próximo a Danielle Palumbo. Embu das Artes, onde José Agrippino de Paula viveu seus últimos anos. Desde o primeiro contato via Internet, Danielle demonstrou “Tanto no teatro quanto no filme a gente tinha também ter voltado ao tempo, e por lá ficado. De que saber dançar e tinha que ser livre, leve e 2012, sem nem mesmo arrumar as malas, a atriz solto”, relata Danielle Palumbo. A marca da entregue e apaixonada aterrissou (viajou a meu improvisação é confirmada por Yann Beauvais ao pedido) diretamente para os tablados do Teatro descrever a rotina de gravação do filme: “A 13
filmagem, na clandestinidade, durou um ano, em função do dinheiro e a disponibilidade dos protagonistas e do operador de câmera. A improvisação dominava. ‘Todas as manhãs saíamos sem saber a que se chegaria até à noite’”. Para o cineasta Yann Beauvais, quando Agrippino começava não tinha ideia da forma que tomaria o filme; “só o desejo de fazer um filme o motivava” (BEAUVAIS, 2008, p. 257). A atriz Danielle Palumbo, corrobora essa afirmação. “Ninguém de nós sabia onde aquelas cenas iam dar. Ele só nos dizia coisas como ‘Dentro de você tem uma melodia. Ouça e expresse’. Era muito estimulante”. Nós éramos uma turma numerosa e o Zé nos dava total liberdade. O lance dele era movimento, corpo... Ele dizia mais ou menos o enredo e nos instigava a criar. E nós criávamos – e como criávamos. Não havia barreiras e a gente não se importava com nada além da arte que nascia ali. A influência dele era a Maria Esther, sua mulher... Com ela, ele parece ter se apaixonado pelos movimentos. Nem sempre a gente sabia o que estava fazendo. Às vezes era apenas uma sugestão e o Zé nos dava asas. Em Hitler, não havia roteiro com começo, meio e fim. A gente não sabia direito o que estava acontecendo. Um dia ele dizia: a gente vai gravar aqui perto dessa geladeira (Fig. 7)... No outro, mandava a gente entrar numa Kombi... Era muito improvisado e infinitamente divertido. (Danielle Palumbo, 2012)
pessoal da atriz. Os ensaios eram intensos. Trabalhavam das 14 as 22 horas. E, por incrível que pareça, até conceder entrevista a esta autora, Danielle Palumbo nunca tinha assistido ao filme nem sabia do lançamento do DVD. No SESC Belenzinho, entre os dias 12 e 15 de abril de 2012, Danielle, anônima, passou por Arnaldo Antunes, Jorge Bodanzky e outros intelectuais que celebraram e buscaram decifrar o pensamento, a vida e a obra de José Agrippino de Paula, abordando suas manifestações intermídia, seu cinema de transgressão, os happenings, o realismo fantástico e as vivências dos anos 1960 e 1970. Ninguém a entrevistou, nem tão pouco notou sua presença. Mas ela estava lá. Assim como a obra de Agrippino. Talvez sua presença anônima tenha sido justamente a marca contestadora de tudo o que o Agrippino representou. É como se dissessem, juntos, estamos aqui fazendo o nosso barulho, mas sem interesse nessas câmeras.
_____________ 1 Durante o show de 50 anos do Banco Itaú, esquina da avenida Ipiranga com a São João, na capital paulista, 1997. 2 Super-8 (ou Super 8 milímetros) é um formato cinematográfico desenvolvido nos anos 1960 e lançado no mercado em 1965 pela Kodak, como um aperfeiçoamento do antigo formato 8 milímetros, mantendo a mesma bitola. 3 Atriz francesa, filha de pai judeu-polonês e mãe italiana, nascida em 02/12/1949, chegou ao Brasil em 1946 e conheceu Agrippino em 1968. Contatada pela Internet, concedeu entrevistas a autora em março de 2012, via webcam, MSN e email.
Fig. 7: Danielle Palumbo e José Agrippino de Paula em cena de Hitler 3º mundo, arquivo 14
Referências ANGELO, Vitor. Hitler 3º mundo. In: Coleção Cinema Marginal Brasileiro, v. 6. Produzido por Lume Filmes, 2012. BRESSANE, Ronaldo. Agrippino, o profeta da Tropicália. Impostor. Disponível em: <http://impostor.wordpress.com/2007/09/02/agrippino-o-profeta-da-tropicalia/>. Acesso em: 20 jan. 2012. CÉU sobre água. Direção: José Agrippino de Paula. Produção: José Agrippino de Paula. 1972-1978. (Coleção Cinema Marginal Brasileiro, v. 6). 1 DVD. HITLER 3º mundo. Direção: José Agrippino de Paula. Produção: José Agrippino de Paula. 1968. (Coleção Cinema Marginal Brasileiro, v. 6). 1 DVD. HOISEL, Beto. Naquele tempo, em Arembepe. Salvador: Século 22, 2003. HOISEL, Evelina. Supercaos - os estilhaços da cultura em Panamérica e Nações Unidas. Bahia: Civilização Brasileira, 1980. MEIRELLES, Lucila. José Agrippino de Paula: artista POP tropicalista. ARS, vol.7, no.14, São Paulo, 2009 (Print version ISSN 1678-5320). OS PASSEIOS NO RECANTO SILVESTRE. Direção: Miriam Chneiderman. 2006. Filme em Super8 (16 min). PAULA, José Agripino de. Lugar Público. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1965. ______. Panamérica. 1. ed. Rio de Janeiro: Tridente, 1967. Shirassu Jr, Rubens. A arte pop de Zé Agrippino em Paris. Disponível: http://www.portalprudentino.com.br/noticia/noticias.php?id=21136&titulo=a-arte-pop-de-zeagrippino-em-paris. Acesso em: 10 fev. 2012. SINFONIA PANAMÉRICA. Direção: Lucila Meirelles, Walter Silveira e Grima Grimaldi. 1988. Ópera de sons e imagens (15 min).
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A representação pictórica das festas pelos pintores modernistas brasileiros Maria Cristina Caponero Pós-doutoranda em Estética e História da Arte pelo Programa de Pós-Graduação Interunidades da Universidade de São Paulo & Edson Leite Professor Titular da Universidade de São Paulo
Introdução Em 1917, a exposição de Anita Malfatti, marcou a chegada do Modernismo no Brasil, a partir de tendências europeias, dando início a modificações no estilo artístico brasileiro. A este movimento, Anita Malfatti incorporou questões psicológicas e sociais pois, para ela, “o conteúdo é [era] mais importante do que a forma” (ROSSETTI, 2012, p. 129), como fica claro em suas obras: A boba, As duas Igrejas, O homem amarelo e Festa de São João (Figura 1), entre outras. Figura 1: Anita Malfatti. Festa de São João com guirlanda, década de 1940.
Disponível em: <http://obviousmag.org/pintores-brasileiros/anita_malfatti/as-influencias-nas-obras-de-anitamalfatti.html>.
Na década de 1920, os modernistas desenvolveram uma linguagem visual de acordo com seu tempo e buscaram temas nacionais e uma forma de expressão genuinamente nacional, o que justifica o fato de as festas públicas terem ganho espaço como temática de suas obras. Aracy Amaral explica 16
que “foi, porém, precisamente o sentimento do nacional que os levou (...) a cantar aquilo que é nosso, a analisar e estudar as nossas fontes mais tradicionais de inspiração, em movimento que se antecipa à Semana” (AMARAL, 1972, p. 103). A Semana de Arte Moderna A Semana de Arte Moderna, realizada em fevereiro de 1922, no Teatro Municipal de São Paulo, teve grande importância do ponto de vista da história e da cultura brasileira. Esta semana foi um marco divisor entre a oposição do velho com o novo e, “com todas as suas inconsistências e improvisações, abriu, definitivamente, o século XX para a criação artística e o pensamento nacionais” (AMARAL, 1972, p. 18), levando a uma progressiva formação de uma consciência nacional. A Semana de Arte de 22 “(...) constituiu um avanço cultural da cidade de São Paulo, foi ganhando importância histórica e passou a representar a confluência de tendências de renovação e afirmação da arte nacional” (LEITE, 2012, p. 69). Não podemos deixar de contextualizar outros fatores que ajudaram a alavancar a radical modernização das artes, dentre eles o fato de, em 1922, a cidade de São Paulo estar se enfeitando para a Festa Cívica em Comemoração ao Centenário da Independência, exacerbando o Nacionalismo, e evidenciando uma ambiguidade entre o desejo de ruptura dos jovens artistas da Semana com os valores vigentes. O teor nacionalista acabou influenciando a obra de diversos artistas modernistas, sobretudo os da segunda geração de pintores, que desejavam que o Brasil se libertasse da Europa e encontrasse o caminho de sua própria cultura, buscando traços definidores da identidade nacional brasileira (SOUZA, [1980] 2009). Eles geraram obras que valorizaram os temas brasileiros e regionalistas, fazendo referência a acontecimentos domésticos, às representações da vida cotidiana, ao mundo do trabalho, aos costumes urbanos e rurais. Nesse contexto, inserem-se as festas, sobretudo as que haviam sido menosprezadas pela elite em detrimento de novas práticas trazidas do continente europeu, como o carnaval e as festas juninas, que passaram então a ganhar
destaque, sendo valorizadas pela sua representação pictórica. Ressaltamos que “havia grande diferenças de um pintor ao outro e de uma obra à outra, mesmo entre as produções de um único artista, evidenciando buscas entre os estilos modernos” (CATTANI, 2012, p. 23), mas que mantinham presente a temática das festas. Alberto da Veiga Guignard, assim como os pintores modernistas da primeira geração, esteve na Europa e foi influenciado pela arte que se fazia lá. Mas, depois de uma longa estadia na Europa, encantou-se com sua terra e pintou uma série de obras tendo as Festas de São João como tema recorrente (Figura 2).
Figura 2: Alberto Guignard. Festa de São João, 1939.
Disponível em: <http://portucalia.blogs.sapo.pt/21722.html>.
Candido Portinari também esteve na Europa, mas se firmou como pintor de arte moderna brasileira, conseguindo desalojar a arte do reduto em que se mantivera abrigada até então: o das encomendas oficiais (SOUZA, [1980] 2009). Sua pintura tradicional foi se modificando uma vez que suas obras foram perdendo o traço de fidelidade à realidade para adquirirem maior expressividade e comunicação imediata com a sensibilidade. Algumas de suas obras retratam as festas brasileiras tais como Baile na roça (1924), Noite de São João (1957), Festa de São João (1958), Carnaval (1960) (Figura 3) entre outras. 17
Figura 3: Cândido Portinari. Carnaval, 1960.
Disponível em: <http://4.bp.blogspot.com/l_OC_5PhdHs/URV3XvOLV7I/AAAAAAAAHNk/nkpcTguICGU/s1600/Carnaval_Portinari.jpg>.
Emiliano Di Cavalcanti, por sua vez, deu ao movimento “um tom festivo irreconciliável talvez com o sentido de transformação social que deveria estar no fundo de nossa revolução artística e literária” (AMARAL, 1972, p. 118). Com ele, a pintura brasileira empreendeu uma revisão de temas, dentre eles as grandes festividades públicas e os divertimentos de rua (SOUZA, [1980] 2009). Destacam-se dentre suas obras: Pierrot (1924), Samba (1925), Samba (1928), Festa de São João (1936), O Grande Carnaval (1953) (Figura 4).
Tarsila do Amaral valorizou o primitivo e o popular, sintetizando e estilizando os costumes e as crendices populares (ROSSETTI, 2012). Sua pintura passou por diversas fases, numa delas, ela retomou os temas rurais, as festas e as tradições populares, executando: Carnaval em Madureira (1924), Procissão (1941) (Figura 5) e Procissão do Santíssimo em São Paulo no Século XVIII (1954). Figura 5: Tarsila do Amaral. Procissão, 1941.
Figura 4: Di Cavalcanti. O grande Carnaval , 1953.
Fonte: Reprodução fotográfica Caio Kauffmann/Itaú Cultural.
Fonte: Acervo da Pinacoteca da Associação Paulista de Medicina.
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A década de 1930
festas como temas principais de suas obras. Destaca-se, dentre eles Alfredo Volpi (18961988), com sua série de bandeirinhas e mastros (Figura 6), e Antônio Gomide, com suas obras de composição cubista, mas que tiveram as festas religiosas como tema, como é o caso de Procissão (1958) (Figura 7).
Embora Mário de Andrade tenha afirmado que o fim do movimento modernista tenha sido oficialmente decretado em 1942, com a celebração oficial dos vintes anos da Semana de Arte de 22, o movimento se estendeu até o final da década de 1940, compondo diferentes gerações com diferentes propósitos. Assim, a partir da década de 1930, teve início a terceira fase do Modernismo, quando as agitações das manifestações culturais anteciparam a insatisfação Figura 6: Alfredo Volpi. Bandeirinhas e Mastros, s/d. que tomaria forma política contra o “tradicionalismo-aristocratismo” (AMARAL, 1972). Não havia mais o “verdadeiro modernismo” (ANDRADE, 1974), pois o Modernismo passou a se impor à realidade nacional. Sob o impacto do Movimento Modernista, sobretudo com Mário de Andrade, surgiram as primeiras gerações de cientistas sociais, intelectuais, literatos e historiadores que buscavam a construção de uma identidade nacional. Todos eles demonstraram um interesse Disponível em: etnográfico e tiveram uma grande preocupação <http://deniseludwig.blogspot.com.br/2013/06/arte-emcom a diversidade cultural e salvaguarda dos pinturas-de-festas-juninas-e.html>. elementos intangíveis da cultura brasileira, dentre eles, as festas, que passaram a ser tratadas pelo viés da cultura, o que refletiu até mesmo na forma como foram representadas. Mário de Andrade relaciona a arte com a vida, para ele: Figura 7: Antonio Gomide. Procissão, 1958.
(...) a especificidade da arte está nas formas, criadoras de beleza, mas isso não esgota o fenômeno artístico, que se configura como função social interessada e participante, criadora também de uma humanidade melhor. Para além da estética, a arte implica o imperativo ético de amilhoramento [sic] político-social do homem (ANDRADE, 1974, p. 255). Disponível em: <http://brasilartesenciclopedias.com.br/tablet/nacional/ gomide_antonio06.php>.
A partir de então, os artistas que trabalhavam solitariamente começaram a se reunir por afinidades estéticas em grupos e associações, dentre eles o Grupo Santa Helena, cujos artistas eram oriundos da classe operária, mas que tiveram a paisagem, as quermesses e as 19
Considerações Finais Os artistas modernistas, cada qual a seu tempo, a seu modo e com suas próprias técnicas e estilos, tiveram uma produção voltada para a interpretação e retratação do Brasil em seus múltiplos aspectos e práticas. O que visaram foi, sobretudo, a construção e a afirmação de uma certa identidade local em meio a uma identidade nacional. Eles tiveram as festas públicas, sobretudo as Festas Juninas, o
Carnaval e as Procissões como temática de suas obras, por serem consideradas “festas verdadeiramente brasileiras”, inerentes à formação da identidade cultural brasileira. Neste processo, fica claro que a obra de arte é fruto de um contexto histórico e social que demonstra uma interlocução direta ou velada entre as práticas socioculturais e a Arte e que comprova o seu valor social, malgrado diferentes interesses e funções. As festas públicas, enquanto práticas
socioculturais, foram inerentes à formação da identidade cultural brasileira levando muitos artistas a delas de apropriarem como temática de suas obras, descortinando uma interlocução direta ou velada entre a realidade e a Arte. Na estética modernista, as festas se constituíram num “lugar comum”, dado ao grande número de pinturas de diversos artistas do período. Estas obras dizem algo sobre a realidade representada e também dialogam com a própria história da Arte.
Referências Bibliográficas AMARAL, Aracy. As artes plásticas na semana de 22. São Paulo: Perspectiva, 1972. ANDRADE, Mário de. O movimento modernista. In: Aspectos da Literatura Brasileira. São Paulo: Martins, 1974. CATTANI, Icleia Borsa. As máscaras e os mitos: tensões entre modernidade e intemporalidade na pintura modernista em São Paulo. In: Revista USP nº 94: Semana de Arte Moderna. São Paulo: Universidade de São Paulo; Superintendência de Comunicação Social, junho/julho/agosto 2012, p. 19-28. LEITE, Edson. Música na Semana de 22: tradição e ruptura na cidade de São Paulo. In: Revista USP nº 94: Semana de Arte Moderna. São Paulo: Universidade de São Paulo; Superintendência de Comunicação Social, junho/julho/agosto 2012, p. 59-70. ROSSETTI, Marta. Modernismo. In: Revista USP nº 94: Semana de Arte Moderna. São Paulo: Universidade de São Paulo; Superintendência de Comunicação Social, junho/julho/agosto 2012, p. 123-140. SOUZA, Gilda de Mello. Exercícios de Leitura. São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, [1980] 2009.
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Arquitetura de castelos tropicais: quem quer ser nobre no Brasil de hoje? Dinah Papi Guimaraens Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo-PPGAU, Universidade Federal Fluminense UFF.
NOBREZA, HERÁLDICA E CASTELOS “MEDIEVAIS” (Foto 1) O artigo aborda a arquitetura de castelos ecléticos construídos nas primeiras décadas do século XX no Brasil, destacando aquelas fortalezas medievais erigidas nas regiões serranas do Rio de Janeiro. A pesquisa sobre castelos tropicais foi sempre cercada de surpresas, desde o seu início. A primeira delas, por parte mesmo daqueles com quem comentei sobre sua realização, e que indagaram com espanto: “Mas será que existem castelos no Rio de Janeiro?”. Tal perplexidade justifica-se em um país que não viveu historicamente a Idade Média, mas que mantém em seu repertório cultural elementos clássicos e ecléticos, convivendo pacificamente com o estilo moderno aqui disseminado entre as décadas de 1920 e 1940 e até com o pós-modernismo dos anos 1980 e 1990. Sobre quais castelos estaremos então discorrendo a partir de agora? Exatamente sobre aquelas obras de arquitetura eclética existentes nas regiões serranas próximas ao Rio – como Petrópolis, Correias, Itaipava e Teresópolis – nas décadas de 1920 a 1940. Nesses castelos ocorre uma preponderância medieval, em que se destaca 21
o estilo normando das fortalezas de pedra, ao lado de um neogótico pleno de abóbodas, vitrais, torres e arcos ogivais, que os aproximam bem mais das fortalezas da Disneylândia do que dos modelos originais de castelos europeus. Como afirma Eco (1989, p.78)
Não se sonha com a Idade Média porque seja o passado, porque a cultura ocidental tem uma infinidade de passados. (...) Mas acontece que, e já foi dito, a Idade Média representa o crisol da Europa e da civilização moderna. A Idade Média inventa todas as coisas com as quais ainda estamos ajustando as contas, (...) a universidade, até mesmo a organização turística (...).
de se inserir dentro de um modelo nobre, no qual ocorreu uma identificação com um ideal europeu, branco e civilizado. A elite brasileira, construtora de casas-grandes nos séculos XVIII e XIX nas áreas rurais, ergueu também sobrados e palácios nos centros urbanos, deixando sua marca característica nos castelos medievais erigidos desde o início do século XX até a atualidade, tanto na cidade quanto nas serras próximas ao Rio de Janeiro. A simbologia da nobreza neles impressa nos remete finalmente, para o funcionamento de um sistema marcado por hierarquias sociais, no qual não há mesmo necessidade de segregar o negro, o mulato, o mestiço e o índio, já que o branco surge como grupo dominante, dentro de uma ordem social na qual a igualdade raramente predomina (cf. Da Matta: 1981).
Em um país terceiro-mundista como o Brasil, a Idade Média que não foi vivida no tempo histórico permeia nosso cotidiano através dos símbolos da comunicação de massa, derivados das culturas europeias e norte-americanas. Uma época medieval romântica idealizada nos folhetins do século XIX e aqui largamente difundida na primeira metade do século XX acabou sendo disseminada, a partir dos anos 1950, através de filmes de Hollywood como, Robin Hood e Os Cavaleiros da Távola Redonda. Constituindo um medievo oitocentista, passou a fazer parte de nosso dia-a-dia, cheio de torres e de castelos assombrados por fantasmas, em que a escuridão da noite foi cortada por relâmpagos e em que o torreão substituiu a astronave (cf. Eco, 1989, p.80).
O aparecimento de moradias e de casas de campo sob a forma de castelos medievais parece falar da nostalgia de uma nobreza perdida, representada pelo status superior de seus proprietários. Essas réplicas de construções típicas da Idade Média, ao lado de brasões familiares na decoração de interiores e de fachadas das residências, marcam um lugar de destaque de seus donos na hierarquia social, com ancestrais aristocráticos e/ou com grande poder aquisitivo. O mundo da família determinado pelos laços de sangue, pelo nome e pelo título nobiliárquico de um ancestral foi, então, acionado por nossos informantes como forma de podernas relações pessoais cotidianas, constituindo uma mistura de nostalgia, monarquia e dominação.Tal concepção da realidade é representativa de forças políticas tradicionais, vigentes desde a época colonial e identificadas com o patrimonialismo.
E é essa Idade Média composta pelo imaginário do século XIX que aparece representada na arquitetura constituída por uma bricolage (cf. Lévi-Strauss: 1989) de estilos normando, Tudor, Windsor e neogótico de influência inglesa, aos quais se juntaram ainda réplicas de estilos medievais portugueses, significando uma mentira de informação estética (cf. Eco: 1970) por representar a tentativa de alguns nouveaux-riches
Uma postura anti-igualitária, dominada pela ética do familismo, da patronagem e das relações pessoais – inerente à vertente hierárquica existente no bojo da sociedade brasileira (cf. Da Matta: 1979) – é correspondente, em termos ideológicos, ao comportamento da elite política do patrimonialismo. A própria constituição do estamento- estrato político com efetivo poder 22
de comando, identificado com uma postura tradicionalista, - pode ser, assim, atribuída ao fato de termos constituído, até o final do século XIX, uma sociedade de nobres. A sociedade aristocrática brasileira, ao adotar a escravidão como forma normal de trabalho, se aproxima, em algum nível, desse pensamento racista, supondo a superioridade da raça branca para justificar a dominação sobre as raças consideradas inferiores (não brancas). A sociedade reproduzida no Brasil, a partir do modelo lusitano, veio marcada pela ordem racial. As teorias racistas – difundidas no século XIX por pensadores como Joseph Arthur, Conde de Gobineau, que serviu aqui como embaixador em 1869 –chegaram a profetizar uma degeneração genética para os brasileiros em menos de duzentos anos devido à disseminação da raça negra, considerada como inferior, tanto nas classes baixas quanto nas classes superiores da população (cf. Chiavenato: 1987). Ao se deparar com a realidade brasileira da mestiçagem, a ciência das raças europeia e norteamericana teve por bem erigir um discurso ideológico que invertesse o argumento da pureza das raças: os autores nacionais do final do século XIX e início do século XX deduziram que se poderia chegar à raça pura (branca) através da miscigenação seletiva. Decorreu daí o mito do branqueamento da raça e a outra face da mesma moeda: o mito da democracia racial (cf. Seyferth: 1986). Partindo da investigação do espaço construtivo, procuramos desvendar a ideologia do Barão Smith de Vasconcellos, construtor do Castelo de Itaipava, a qual foi estruturada por ideais nobiliárquicos, monarquistas e arianistas vigentes nas primeiras décadas do século passado entre componentes da elite carioca e fluminense, da qual faz ele parte integrante. Destacamos a genealogia dos Smith de Vasconcellos e a descrição de seus brasões nobiliárquicos, ao lado da análise da heráldica como forma de classificação social na época feudal e no Brasil Império.
descende de três raças degeneradas ou inferiores: o índio indolente, o negro lascivo e o português degredado. Ou, como expressa vulgarmente uma piada sobre a Criação do Mundo: Ao criar o Brasil, Deus nos premiou com uma natureza generosa, porém, em compensação, “olha só o povinho que colocou morando aqui...”. Constatamos, dessa forma, como nossa própria identidade cultural se encontra permeada por valorações negativas de toda ordem. Contraditoriamente a essa visão do povo brasileiro como inferior, no entanto, o senso comum acredita que o Brasil é um dos únicos países onde existe uma verdadeira democracia racial, onde a mestiçagem é a tônica e o negro (como também o índio) não sofre qualquer tipo de discriminação. O encontro harmonioso das três raças em território brasileiro dá, então, origem ao homem cordial apontado por Holanda (1989), com o qual nos identificamos positivamente. Aquele mesmo brasileiro simpático, algo despreocupado e meio malandro, que resolve qualquer problema com o famoso jeitinho. Nosso preconceito de não ter preconceito não explica, no entanto, o porquê da localização da maioria quase absoluta dos negros e dos índios nas camadas mais baixas da população.A questão estrutural da desigualdade ráciossocial brasileira é simbolizada nas representações dos proprietários de castelos medievais pela contraposição entre nobres e africanos referindo-se, dessa maneira, aos estratos superiores e inferiores da sociedade e trazendo à tona uma estética racista da elite carioca e fluminense.Tal ideal de nobreza tomou forma mais concreta no caso do Barão Smith de Vasconcellos, embora tendo sido igualmente detectado em outros construtores de castelos tropicais. A corporificação dos três elementos que estruturam o modelo de como ser nobre idealizado pelos construtores de castelos pode ser assim resumido: . A arquitetura, representada pela construção de castelos, torres e fortalezas, de acordo com um estilo arquitetônico preponderante inglês ou anglo-normando.
É ainda hoje senso comum que o povo brasileiro . A memória genealógica, indicada na criação de 23
brasões próprios pelos construtores de castelos, mestiço do brasileiro do início do século ao seu bem como no levantamento das árvores ideal superior e nobre de cavaleiro medieval genealógicas de seus ancestrais. romantizado no século XIX. É exatamente esse modelo de nobreza, que mescla ficção e realidade . O ideal de vida da , simbolizada pela obtenção vivida, que foi então atualizado pelos de um título de nobreza pelo 3º Barão de construtores de castelos tropicais. Vasconcellos. O projeto e a construção do Castelo de Itaipava Tanto a fortaleza anglo-normanda e neogótica enfocam a questão do neogótico e do gosto erigida pelo Barão Smith de Vasconcellos, quanto eclético, contrapondo-o à visão modernista que a obtenção de seu título de nobreza via uma bula se afirmou na arquitetura brasileira dos anos1920. papal e o levantamento da heroica árvore A etnografia espacial do castelo percorre a Sala genealógica que ilustra a Galeria dos Ancestrais de Armas, a Galeria dos Ancestrais e a Biblioteca por ele realizada em seu castelo tropical, nos como Templo do Saber, revelando aspectos falam da eficaz atualização desse modelo de defensivos de uma réplica anglo-normanda do nobreza. Enquanto outros construtores de século XIII. A nobreza do Império brasileiro castelos somente traçam esboços de um modo baseou-se em um sistema de privilégios, inspirado ideal medieval de morar, de viver e de se reportar no conceito jurídico português que pressupunha aos seus ascendentes, Jayme Luiz conseguiu uma distinção entre nobres e plebeus. Os ultrapassar o mero sonho de ser nobre, acabando Vasconcellos ilustram bem aqueles nobres de por atualizar um modelo de nobreza em sua vida Portugal descendentes de comerciantes muito do dia-a-dia. ricos, cujo acesso à nobreza representou uma forma de pagamento por serviços remunerados à Contribuiu para isso, certamente, o livro Arquivo coroa, os quais se encontravam previstos desde o Nobiliárquico Brasileiro, publicado em 1918, século XIV no Regimento do Mordomo-Mor da tendo sido por ele escrito em parceria com seu Casa Imperial. pai, Rodolpho Smith de Vasconcellos, representando tal estudo o primeiro De acordo com tal regimento, a prestação de levantamento sistemático dos integrantes da serviços sociais através de obras de caridade, da nobreza brasileira do 1º e 2º Impérios.No caso do construção de igrejas e de hospícios e de Barão, o acesso aos livros que compõem a libertação de escravos, na época de D. Pedro II, biblioteca do Castelo de Itaipava, bem como a era reconhecida pelo imperador através de títulos parte do material por ele recolhido para a redação de nobreza atribuídos só por uma vida, não tendo do Arquivo Nobiliárquico, que escreveu sido tais títulos passíveis de renovação nem de juntamente com seu pai, simbolizou uma extensão aos descendentes dos titulados. A contribuição valiosa ao nosso trabalho de campo. indicação para uma titulação nobiliárquica por serviços prestados previstos em tal regimento fez Ao modelo anglo-normando da arquitetura do com que não fossem somente os filhos Castelo de Itaipava, o 3º Barão acrescentou ainda primogênitos que herdaram o direito de uma a valorização do sangue de seus ancestrais segunda vida dos títulos dados aos seus pais. Ao ingleses e portugueses, procurando demonstrar contrário do que ocorreu no caso do 2º Barão de concretamente que sua família não sofria de Vasconcellos, que era filho primogênito do 1º qualquer mácula de sangue negro ou mestiço em Barão, não foram sempre os filhos primeiros que sua gloriosa Galeria dos Ancestrais. Com a herdaram os títulos de seus pais, mas sim, aqueles construção do Castelo de Itaipava, a obtenção de indivíduos que se destacavam socialmente dentro um título de nobreza papal e o seu acesso às de uma família de origem nobre. Após ser camadas abastadas da sociedade através do publicado o decreto régio que atribuía um título casamento com rica herdeira paulista do Conde de nobreza, caberia ao titulado pagar um alto Siciliano, o proprietário desse castelo contrapôs, imposto, que lhe dava, por sua vez, o direito de simbólica e concretamente, o modelo inferior e poder fazer uso de tal titulação. 24
A carta régia definitiva dependia, portanto, do poder aquisitivo do nobre titulado, o qual deveria remunerar a coroa com uma vasta contribuição pelo título obtido. A nobreza da terra era composta principalmente pelos poderosos fazendeiros que dominavam as câmaras de vereadores de suas regiões, sendo constituída por grandes fortunas. Poucos nobres conseguiam obter do Imperador uma dispensa oficial para o pagamento de tal imposto, como foi o caso de Lord Cochrane, conhecido usurário. Com a atribuição de títulos por serviços de guerra a partir da metade do Império, ocorreu a dispensa desse imposto no caso dos militares, cujos baixos soldos impossibilitavam mesmo seu pagamento à coroa.A substituição progressiva dos valores tradicionais da nobreza das velhas linhagens portuguesas pelo poder aquisitivo elevado dos nobres de uma classe inferior poderia ser representada no caso dos Vasconcellos. Inseriamse eles entre aqueles parvenus que, sendo de origem burguesa e tendo exercido a profissão de comerciantes de alto trato por gerações sucessivas, acabaram por ser aceitos entre a elite brasileira pelos seus serviços prestados ao Império. O Barão Smith de Vasconcellos recebeu um título nobiliárquico como mercê de S. Benedito XV, por breve apostólica de 1917. Não podendo contar mais com a titulação real após a extinção da monarquia no Brasil, Jayme Luiz lançou mão da aquisição de um título papal de nobreza como estratégia de nobilitação, fato que lhe permitiu a recriação de um mito de origem a partir de seus ancestrais nobres. Tal mito de origem nobiliárquica apareceu representado, exemplarmente, na eleição do estilo arquitetônico do Castelo de Itaipava, baseado em um modelo neogótico e anglo-saxão. A interpretação da arquitetura eclética das primeiras décadas do século XX – representada pelos castelos medievais de inspiração anglo-normanda – pode ser interpretada como tendo a função de distinguir seus idealizadores, no sentido de distinção empregado por Bourdieu (1979), em que a arquitetura neogótica, como forma de expressão artística, indicava o anseio de pertinência de seus donos ao universo cultural de segmentos da elite brasileira da época.
Tal arquitetura eclética traduz um modelo romantizado da Idade Média feudal, típico da Europa do século XIX, que traz em seu bojo a monarquia como forma de governo decorrente de uma aristocracia natural inerente às classes dominantes. Esses castelos medievais foram construídos no Brasil, na maior parte das vezes, por comerciantes enriquecidos do comércio com a República, como forma de ostentação estética que visava a superação de sua origem humilde e não inserida nas velhas linhagens da nobreza portuguesa e brasileira. O ecletismo representa um estilo arquitetônico de origem europeia que se caracteriza pelo emprego das mais diversas arquiteturas do passado ou pela combinação de mais uma delas numa construção. A arquitetura do século XIX foi, assim, preponderantemente eclética e os edifícios obedeceram a precedentes estilísticos como o romântico-medieval ou clássico-renascença. A arquitetura eclética neogótica desenvolveu-se principalmente na Inglaterra e na França, além de ter ocorrido com menor destaque em outros países da Europa, quando foi adotado pela rica burguesia industrial que surgiu com o capitalismo. A associação desse estilo, de características exuberantes, com uma classe social afamada pela pouca cultura manteve, até há pouco tempo, uma imagem negativa sobre o ecletismo, considerado como inerente aos nouveaux-riches ou parvenus. O estilo de arquitetura escolhido para a construção do Castelo de Itaipava consistiu exatamente em um medievalismo normando, expresso pelo neogótico de suas fachadas principais e de seus espaços inferiores. Esse gótico tropical, eleito como estilo predileto por segmentos da elite fluminense e carioca do início do século XX, parece falar do ideal de aristocracia natural da família Smith de Vasconcellos que o Barão buscou divulgar com a construção de sua Galeria dos Ancestrais, acionando para isso o princípio de superioridade inata e hereditária de seus ascendentes brancos e europeus. Como um verdadeiro Lord inglês de época do Império transplantado para a colônia, Jayme Luiz empregou como estilo arquitetônico aquele neogótico que o alto capitalismo do início do século passado permitiu à capital do país e aos 25
seus arredores erigir. Tal modelo do gótico tropical é assim ilustrado por Anderson (1989, p. 164), no que se refere à sua implantação nas colônias britânicas:
milhares de rótulas, balcões, gelosias e muxarabis dos sobrados da cidade. Freyre (1948, p. XXIV) sugere que essa retirada violenta dos muxarabis – elementos de influência mourisca absorvidos pela arquitetura portuguesa e para aqui transplantados – decorreu de uma pressão dos ingleses interessados na venda de ferro e vidro decorrente da disseminação do estilo eclético. A Missão Francesa no Brasil reprimiu o desenvolvimento desse estilo, sufocado pelo ensino rigorosamente clássico da Academia de Belas-Artes.
Em toda colônia se encontrava esse tableau vivant tristemente divertido: o bourgeois gentilhomme declamando poesia contra o cenário de amplas mansões e jardins cheios de mimosas e buganvílias, e com um enorme elenco de apoio de lacaios, cavalariços, jardineiros, cozinheiros, amas, criados, lavadeiras e, acima de A arquitetura eclética voltou com força total no tudo, de cavalos. início do século XX, impulsionada pelo clima renovador após a Proclamação da República. O ecletismo reflete o gosto estético das primeiras Regidas pelo então prefeito, o engenheiro civil décadas do século XX, nas quais se destacou a Pereira Passos, as obras de remodelação do Rio, influência das culturas anglo-saxônico e francesa realizadas nas duas primeiras décadas do século junto aos estratos superiores da sociedade passado, transformaram seu centro urbano, nesse carioca. Freyre (1948, p. 11 e 12) demonstra curto espaço de tempo, em uma perfeita réplica como a predominância britânica no Brasil de uma cidade de belle époque. O visual luxuoso assumiu aspectos francamente imperialistas entre das principais fachadas do Rio, com suas grandes 1835 e 1912, sobrepujando economicamente a colunas, cúpulas em metal, iniciais e monogramas própria influência francesa: nas cimalhas, se inspiraram em umabricolage de estilos arquitetônicos baseado no ecletismo, assim Os ingleses, quase tanto quanto os franceses, definido por Patteta (1975, p. 7): madrugaram, sob a forma de piratas, aventureiros e negociantes, nas praias da América tropical descobertas por portugueses e espanhóis. E distanciando-se dos franceses, por Arquitetura do Ecletismo se entenda a por largos anos seus rivais, os ingleses acabaram produção poli-estilística que caracteriza a alcançando entre nós, segunda metade dos oitocentos, derivada sob a forma de negociantes e técnicos, uma da disponibilidade preponderância econômica que, ostensiva nos do arquitetura de adotar indiferentemente dias de D. João VI regente e depois rei (...) estilos diversos (...). É considerado acentuou-se de 1835 Ecletismo o complexo da experiência a 1912, para só então começar a declinar arquitetônica que vai de 1750 ao final lentamente, vencida pela expansão nortedos oitocentos, da crise do Classicismo à americana e minada pela alemã. origem do Movimento Moderno. (...) A influência inglesa no Brasil manifestou-se na arquitetura do século XIXpela substituição das rótulas ou gelosias de urupema (denominada de muxarabis), existentes no Rio de Janeiro durante o reinado de D. João VI, pelas esquadrias das janelas de ferro e vidro. A pretexto de motivos estéticos e de saúde pública, o Intendente Geral da Polícia, Paulo Fernandes Viana, fez publicar um edital em 11 de julho de 1809, que pregava a retirada, dentro do termo de oito dias, de
(Inclui) revivals (o Neogrego, o Neogótico, o Neorrenascimento) e exotismo (o Chinesismo, o Neomourisco e o Neoindiano), (...) que denotam (...) um novo clima cultural: a passagem de uma problemática arquitetônico da elite para aquela da nova classe empreendedora.
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A partir da geração do Barão Smith de Vasconcellos, passou a ser valorizado como símbolo de status possuir uma casa-de-campo em Petrópolis, Teresópolis ou em outra região serrana localizada próximo ao Rio de Janeiro, inspirando-se para isso nos bangalows ingleses. A difusão do estilo pitoresco entre nós – disseminado na Europa desde a segunda metade dos setecentos e por todo o oitocentos – tendo eleito a romântica casa-de-campo como modelo estilístico, pareceu ter sido o responsável direto por essa adesão formalista à casa unifamiliar extra urbana ou cottage (cf. Patteta 1975). Esse estilo pitoresco deriva da tradição romântica e conservadora do século XIX, que disseminou a tese familiar de que, quando o aristocrata vivia no campo entre seus camponeses, haveria menos possibilidades de revoltas camponesas graves do que quando ele passava a amar o luxo e a habitar na capital (cf. Moore Jr.: 1983, p.448).
PROJETO E CONSTRUÇÃO DO CASTELO DE ITAIPAVA (Foto 2) O dono do Castelo de Itaipava nasceu em uma chácara idealizada segundo moldes ingleses pelo Visconde de Guaratiba, possuidor de uma vasta propriedade de terras em um local denominado de Águas Férreas, onde hoje se encontra situado o bairro do Cosme Velho. A casa onde nasceu o Barão Smith Vasconcellos foi construída de acordo com um estilo eclético neomourisco, vigente na segunda metade do século XIX e começo do século XX. O exemplo mais célebre no Rio de Janeiro de uma edificação nesse estilo é o pavilhão mourisco ou Castelo de Manguinhos, erigido a partir de 1905 e cujas obras só terminaram definitivamente em 1918. Contrapondo-se ao modo eminentemente urbano de habitar de seu pai, Rodolfo Smith de Vasconcellos, Jayme Luiz optou por um estilo-devida diferente. A consolidação de um poderio econômico por parte da burguesia do final do século XIX permitiu aos proprietários expandirem seus bens imobiliários da cidade para o campo.
Tal linha de pensamento conservador parece ter efetivamente influenciado a elite e a burguesia abastada do começo do século passado, incentivando a classe superior, na qual se inseria o nosso Barão, a construir casas-de-campo. Essa valorização do ambiente rural representa um elemento típico da cultura de revivals do ecletismo do século dezenove e começo do século XX. O culto à vida no campo aparece assim conjugado à difusão do medievalismo como estilo estético, já que na Idade Média “a vida rural é então infinitamente mais ativa que a vida urbana, e, tanto numa como noutra, é a família, não o indivíduo, quem prevalece como unidade social”.(Pernoud: 1981, p.201). A fraqueza das cidades constituiu mesmo uma característica marcante da Idade Média, época em que preponderava uma sociedade rural que formou a base da organização política feudal. Na época medieval – em que depois do ano 1000 os novos centros urbanos da Europa ocidente se estruturaram, muitas vezes, sobre o traçado das antigas cidades do Império Romano – as cidades ocupavam um espaço social marginal, não funcionando mais como centros administrativos e minimamente como centros de produção e troca (cf. Benelovo: 1983, p. 251/253). Para os iluministas do século XVI, a Idade Média foi o 27
período intelectual de maior obscurantismo jamais vivido pela humanidade. O romantismo do século XIX, ao redescobrir a importância dessa desprezada Idade Média, trouxe à baila conceitos conservadores como o culto do passado ou da tradição.
romantismo, esse estilo de arquitetura – em comparação com a cultura estrangeira de países como a França e Itália – representa um estilo adequado para um povo livre, para uma democracia burguesa de pura criação britânica e, enfim, um estilo popular no sentido romântico do termo, isto é, um estilo no qual o povo pode O culto a um passado romântico e medieval, no encontrar, por confronto explícito, o valor da caso do Barão Smith de Vasconcellos, própria história e da própria tradição. manifestou-se em sua escolha por um estilo gótico inglês para a arquitetura de seu castelo. O De acordo com Ruskin (1819-1900), teórico gótico tardio ou gótico inglês representa o estágio inglês do neogótico e do ecletismo, o revival do final desse estilo artístico da Idade Média, gótico nórdico do século XIII constituiu uma apresentando tendências tipicamente bem sucedida tentativa de restaurar o valor conservadoras (cf. Hauser: 1973, p. 210). A fase religioso e moral do passado medieval. A mais expressiva da arquitetura medieval foi identificação entre o gótico e a religião apareceu exatamente aquela chamada de gótica, nome dado claramente expressa na construção das catedrais, pelos humanistas do renascimento italiano à arte que indicavam, através da verticalidade de suas dos lombardos, e dos godos (daí o nome gótico), coberturas e da luz de seus vitrais, o desejo de considerada por eles como germânica e bárbara. ascensão espiritual do homem medieval (cf. A diferença fundamental entre a arquitetura Patteta: 1975, p.154 e 168). Já a arquitetura civil românica e a gótica reside no emprego de arcos da Idade Média, com o castelo principalmente, de abóboda de ponto médio, no primeiro caso, representou uma expressão do puro enquanto a arquitetura gótica apresenta arcos funcionalismo da engenharia militar, adaptada pontudos, janelas com vitrais e abóbodas pelo século XIX com a introdução do ferro nervuradas como suas características principais. batido na construção. A estrutura construtiva gótica era então interpretada pelo neogótico – O estilo gótico indica a influência de um novo segundo a visão de Viollet-le-Duc (1814-1979) – espírito que não era aquele de Roma, mas sim como simbolizando o elemento essencial da nórdico (cf. Lethaby, apud Kidson: 1979). Não arquitetura, na qual se destacavam três princípios nos parece gratuito o fato dessa escolha do estilo de edificação: o arco de corte agudo, o pilar gótico inglês para a construção do castelo tropical autoportante e o teto ramificado. do Barãohaver assim se somado ao ideal ariano de seu dono. Levando em conta a tão decantada Seguindo o exemplo de D. Pedro II, o Barão superioridade racial dos anglo-saxões de sangue Smith Vasconcellos era igualmente fã germânico pelos autores racistas do final do incondicional de Walter Scott, em cujos romances século XIX, os quais acabaram levando o nosso se baseou para conceber o projeto arquitetônico Barão a valorizar os ancestrais britânicos em sua do Castelo de Itaipava. Inspirando-se em um árvore genealógica e em seus brasões estilo baronal escocês difundido por esse nobiliárquicos, não seria despropositado romancista, seu castelo segue ainda o modelo da afirmarmos que a essa superioridade racial fortaleza medieval de Neuschwanstein, o Castelo teutônica veio se aliar uma superioridade estética do Cisne sonhado pelo rei Luís II da Baviera em ou artística, representada pela arquitetura nórdica 1869, o qual representa a mais conhecida ou gótica. expressão megalomaníaca da arquitetura romântica neogótica do século XIX. A O neogótico do século XIX, inspirando-se no arquitetura do Castelo de Itaipava recebeu ainda a gótico medieval do século XIII, parece realmente influência, ao lado do estilo gótico inglês, da representar o estilo nacional inglês por excelência. arquitetura normanda francesa do início da Idade Simbolizando Média. Em 1066, data do começo da guerra entre um patrimônio da alta cultura arquitetônica do França e Inglaterra, o Duque de Normandia teve 28
um poder de caráter absoluto ao aplicar a lei germânica, exercendo a justiça das contendas de sangue e do direito de vingança, enquanto os barones ou nobres presidiam reuniões judiciais em que se infligia a mortee a mutilação. Até o século XII, as afinidades políticas, sociais e intelectuais entre Normandia e Inglaterra eram imensas, e a monarquia anglo-saxônica, nascida da guerra, foi profundamente germânica e carolíngia (cf. Petit-Dutaillis: 1961). Foi essa monarquia absolutista anglonormandaque inspirou o construtor do Castelo de Itaipava no modelo de arquitetura romântica e conservadora. Considerando-se descendente de uma legitimidade dinástica vigente entre normandos e ingleses no início da Idade Média, a ela vieram se juntar seus ascendentes portugueses e aqueles da antiga nobreza da terra caracterizada, de acordo com Vianna (1987, p. 110/111), por traços culturais das sociedades do tipo senhorial, como no caso da sociedade feudal. Procurando legitimar-se como nobre nos moldes da nossa sociedade imperial, seguindo a conceituação expressa por Oliveira Vianna, para isso caberia ao Barão Smith de Vasconcellos adquirir uma grande propriedade de terras, na Fazenda Itaipava, já que na época do Império somente a posse de um latifúndio dignificava o nobre, considerando-se as atividades de comércio ou da indústria incompatíveis com um homem de nobreza. A aquisição destavasta extensão de terras, ao lado da construção de uma fortaleza medieval nos moldes daquela pertencente a um cavaleiro feudal, expressou para Jayme Luiz seu desejo conservador de voltar ao passado, a uma tradição monárquica escravista que desmoronara, segundo ele, pela modernização compulsória do país introduzida pela República. Opondo-se aos positivistas, que eram republicanos convictos, colocou-se ele ao lado dos patrianovistas e dos integralistas, tendo eleito estes últimos a figura de Gustavo Barroso como um de seus ideólogos mais ferrenhos. Para o Barão, todo o arcabouço da ordem social nacional começara a ruir após a abolição da escravatura, já que, inspirando-se em Vianna (1922, p. 328, grifos nossos), achava mesmo que:
o homem branco cultiva, com efeito, certas aspirações, move-se segundo certas predileções e visa certos objetivos superiores (...). Esses objetivos, que são a cauda íntima da incomparável aptidão ascensional das sociedades arianas, deixam indiferentes os homens de raça negra (...) O poder ascensional dos negros em nosso povo e em nossa história, (...) é, pois, muito reduzido (...). Quando sujeitos à disciplina das senzalas, os senhores os mantém dentro de certos costumes de moralidade e sociabilidade, que os assimilam, tanto quanto possível, à raça superior; desde o momento, porém, em que, abolida a escravidão, são entregues, em massa, à sua própria direção, decaem e chegam progressivamente à situação abastardada, em que os vemos hoje. Tal preconceito racial manifestado pelo Barão Smith Vasconcellos atribuía à abolição da escravatura a inferioridade natural dos negros e mestiços após a Proclamação da República, invertendo, em sua lógica conservadora, os princípios ideológicos coloniais, que fizeram da escravidão a maior fonte de desqualificação social dos africanos para aqui deportados, situando-os irremediavelmente nos estratos mais baixos da população. A única forma de vencer tal inferioridade racial, segundo ele, consistia em uma arianização desses descendentes dos africanos, através de seu cruzamento com o sangue germânico ou de um processo lento de branqueamento da raça mestiça brasileira. Os mestiços arianizados, no seu entender, eram aqueles que, como o escritor Machado de Assis – de quem o Barão era médico e amigo pessoal, e por quem manifestava enorme apreço – podiam ser mesmo considerados como mulatos ingleses, representando aqueles tipos raciais anglicizados, nos quais preponderava um eugenismo branco e europeu, através de influências hereditárias positivas arianas.Ao lado do culto do passado, a valorização de Idade Média pelo romantismo do século XIX trouxe à baila novas ideologias como aquela difundida pelo historicismo, doutrina que colocou em destaque o caráter único e irrepetível de todos os acontecimentos históricos, afirmando,no entanto, que tudo o que era histórico decorria da manifestação de um princípio sobre-humano e eterno. 29
neocolonial no Brasil. Tendo construído uma luxuosa mansão neocolonial no Jardim Botânico denominada de Solar Monjope, realizou para isso uma verdadeira arqueologia arquitetônica, com a importação de peças autênticas da Europa e de azulejos italianos do século XVIII em estilo colonial. O conceito de neocolonialismo pode ser definido como “o domínio que um país exerce sobre o outro menos desenvolvido, não por sistema ou orientação política, mas pela influência econômica e/ou cultural”(Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa, p. 1188). A arquitetura colonial brasileira de influência portuguesa que assumiu maior expressividade estética foi aquela das cidades históricas mineiras, entre as quais se destaca Ouro Preto. A ação colonizadora lusitana procurou ali reproduzir sua tradição nacional através da sensibilidade artística É que, em meio ao ostensivo mau gosto da da arquitetura, de acordo com a seguinte arquitetura corrente dos mestres-de-obras, cuja orientação ultramarina: despreocupação no entanto soube casar tão bem (...) Se na Arquitetura portuguesa se a bela tradição encontram muitas sugestões de países dos enquadramentos de pedra com soluções de distantes, também os lugares onde os acentuado sentido moderno, (...) avultam dois portugueses se fixaram ou por onde movimentos distintos, ambos de feição erudita: passaram, estão colonizados com as de uma parte, numerosos exemplos do mais formas arquitetônicas que o seu espírito sóbrio e apurado ‘art-nouveau’ (...); e, de outra modelou (...). E essas relíquias, na sua parte, toda uma sequência de edificações mudez das coisas inanimadas falam uma proficientemente compostas nos mais variados linguagem vernácula que a nossa alma estilos históricos, do gótico às várias modalidades do renascimento italiano ou francês. (...) Por entende porque exprime essa alma coletiva outro lado, a tendência anglo-saxã também se que se transmite de geração para geração. (Batalha: 1950, p. 8 e 17). fazia valer a sua feição ortodoxa, acadêmica. (...) E, como se já não bastasse, prosseguia ainda, como anteriormente, a escola francesa, diga-se Para Marianno Filho (1943, p. 121/122), o século áureo da arte nacional foi exatamente o século assim, do pseudo Luís XVI (...), bem como dos pseudos XVIII, no qual Ouro Preto pontifica como representando a cidade brasileira mais expressiva, bascos e normandos de preferência de certas firmas construtoras “não só pela opulência de sua arquitetura como idôneas. (...) Foi contra essa feira de cenários pela unidade de sentimento artístico dominante”. arquitetônicos improvisados que se pretendeu Para esse teórico da arquitetura colonial, o século invocar o artificioso revivescimento formal do XIX constituiu “o século da negação artística à obra do passado, (em que) Ouro Preto foi nosso próprio passado, donde resultou mais aviltada com sucessivos ataques ao seu um ‘pseudo’ estilo, o neocolonial (...). patrimônio de arte”. Defendendo a arte do Um dos disseminadores do estilo neocolonial, passado – já que, para ele, “a nação deveria representando um dos estilos históricos no Rio cumprir a tarefa de resguardar carinhosamente os de Janeiro foi o arquiteto José Marianno Filho, remanescentes da grande arte legada pelos nossos antigo diretor da Escola Nacional de Belas-Artes avós, representativa das condições sociais do país, e um dos defensores mais ativos da arquitetura em épocas anteriores” – colocou-se frontalmente Voltando assim uma vez mais à questão do ecletismo empregado na construção do Castelo de Itaipava, é importante destacar a ocorrência histórica do que – enquanto já se afirmava e se disseminava o Modernismo arquitetônico no Rio de Janeiro, durante as décadas de 1920 a 1940, como resultado da revolução industrial do século XIX – ocorreu no mesmo período um revival concomitante de castelos medievais cariocas e fluminenses, disseminados igualmente por outros estados do país. Lucio Costa (1952, p.19/23, grifos nossos) – um dos mais representativos teóricos da moderna arquitetura brasileira – é quem nos fala sobre essa coexistência, nem sempre pacífica, do espírito modernista da época com o formalismo dos estilos históricos:
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contra os arranha-céus preconizados pela arquitetura modernista, afirmando que “qualquer movimento colonial representa um esforço muito maior, do que as arapucas de cimento armado, diante das quais, nos extasiamos”. A arquitetura colonial, para Marianno Filho (1943, p. 59/60 e 103), representava um fator de nacionalização, devido ao seu caráter clássico ou tradicional. A essa forma de construir se opunha o estilo modernista, denominado por ele de estilo caixa d’água, que tinha “a função de investir contra o passado, destruindo-lhe as pegadas luminosas”. Segundo esse autor, “o homem moderno não mora, transita. É por isso que o tal estilo arquitetônico futurista é absolutamente intransitável”. O ataque à arte colonial, levado a cabo pela Escola Nacional de Belas-Artes, sob a direção do arquiteto modernista Lúcio Costa em 1931, foi assim comentado por Marianno Filho (1943, p. 59/60):
neogótico/normando clássico, foi realizado em 1920 pelo arquiteto Fernando Valentim (19001969) – filho do construtor do célebre Castelo Valentim de Santa Tereza, no Rio de Janeiro – contando com a estreita colaboração de Lúcio Costa em sua concepção arquitetônica, o qual havia recentemente concluído o curso de graduação em arquitetura pela Escola Nacional de Belas-Artes. Essa incursão de Lúcio Costa pela arquitetura gótica romântica do século XIII foi anterior, portanto, à sua adesão ao estilo neocolonial, precedendo cerca de uma década sua inserção no movimento modernista das décadas de 1930-1940. Para Marianno Filho (1943, p. 48 e 122), a arquitetura modernista consistia em caixas brevetadas pelos judeus franceses ou em pijamas de cimento preconizados pelos judeus sem pátria, refletindo uma ideologia política conservadora vigente nas primeiras décadas do século passado, que acusava a arte moderna de se haver inspirado em tendências judaicas e comunistas. O arquiteto francês Le Corbusier, responsável pelo esboço original do prédio do MES (Ministério da Educação e Saúde) -, o qual foi posteriormente desenvolvido nas décadas de 1930 e 1940 por uma equipe brasileira na qual se destacaram Lúcio Costa e Oscar Niemeyer -, foi assim acusado por Marianno Filho (1943, p. 60/70 e 153/154, grifos nossos) de ser judeu e comunista:
(...) Derrubem-se sem demora os velhos templos, e os velhos edifícios solarengos que recordam o português nefando. (...). De sorte que nós, brasileiros que durante quatro séculos e meio trabalhamos insensivelmente nos velhos moldes arquitetônicos peninsulares (...) devemos sem mais aquela (...) abandonar as praxes tradicionais que a experiência do povo sagrou, para adotar a arquitetura celebrina. (...). Definida de modo inesperado a simpatia do As acusações de Marianno Filho contra Lúcio Costa se fundamentavam no fato deste último ter sido um antigo paladino da coluna tradicionalista, que mudou subitamente de orientação artística, aderindo ao modernismo. Para Marianno Filho (1943, p. 145), “O estilo colonial foi para Lúcio Costa o elemento pictórico próprio a seus devaneios. Esgotada a sua faculdade criadora em torno dos pobres temas coloniais, o decorador passou a explorar as linhas geométricas do cimento armado com a mesma habilidade insincera com que tratara os miseráveis motivos brasileiros de Diamantina”.
Ministro Capanema pela arquitetura ‘funcional’ (...) não foi difícil ao arquiteto Lucio Costa(...) convencê-lo de que o prédio do Ministério deveria expressar-se de acordo às ideias do judeu Le Corbusier (...), que é derrotista universal, por conseguinte, comunista do melhor estofo, realizando o seu plano demolidor, tentou arrasar a tradição dos povos. Ideou uma arquitetura berrante de todo e qualquer sentimento de nacionalidade (...).)
Pode-se indagar, então, se o estilo neogótico escolhido para edificar o Castelo de Itaipava na década de 1920, não expressou igualmente, de forma simbólica, aqueles valores ideológicos É interessante observar que o projeto original do conservadores acima defendidos por Marianno Castelo de Itaipava, com estilo Filho. Enquanto o modernismo tomava forma e 31
se afirmava como estilo arquitetônico oficial nas décadas de 1930 a 1940, o ecletismo parecia querer com ele competir em pé de igualdade, contando para isso com vários ideólogos. No caso do estilo gótico-normando do Castelo de Itaipava, ao ideal futurista, judaico e comunista da arquitetura moderna se contrapunha, então, um estilo tradicional, ariano e cristão representado pelo neogótico, expressando os valores arquitetônicos, dessa forma, a tensão social existente entre forças conservadoras (ou mesmo de extrema direita, do ponto de vista político), e forças modernizadoras (identificadas, no caso dos arquitetos modernos brasileiros, com um ideal social-democrático ou mesmo socialista e comunista). Anteriormente à construção do seu Castelo de Itaipava, seu dono mandara erigir, em 1915, um castelo situado na Avenida Atlântica, no número 2.788. Tal palacete externamente se parecia com um castelo, devido à sua alta torre com 35 metros de altura, igual à de um edifício de dez andares, sendo que nessa torre se encontravam várias reproduções esculpidas da cara de um leão. Na época de sua construção, o palacete custou 75 contos de réis, tendo sido sua porta principal e as laterais revestidas de cristal bisotado e contando com três pavimentos, que abrigavam, respectivamente: no primeiro pavimento situavam-se as partes social e de serviço da casa (composta por um salão, biblioteca, duas salas e cozinhas); no segundo andar ficava a parte íntima ou os dormitórios e o andar de baixo contava com dependências de empregados e um grande porão. Tal castelo eclético, com influências do estilo mourisco, abrigava a família Smith de Vasconcellos durante uma parte do ano, enquanto em outros períodos o Barão e seus familiares se deslocavam para o Castelo de Itaipava, principalmente na época do verão carioca. Esse palacete refletia o hábito chique da elite da época da República de morar em Copacabana, significando, ainda de acordo com Marianno Filho (1943, p. 26, 89 e 110), um exemplo dos “teatrinhos (com janelinhas góticas) onde residem os nouveaux-riches e fidalgos de papelão da Avenida Atlântica, (...), que compram brasões ao
Papa, por intermediário do vigário da zona”. No caso do estilo neogótico e normando-saxãodo Castelo de Itaipava, tal tipo de edificação expressava tanto o ideal branco e europeu de seu dono, – representado por uma arquitetura de inspiração nórdica ou germânica –, quanto à ideologia britânica da modernização conservadora partilhada por certos estratos da elite do início do século passado. O fascínio exercido pela cultura inglesa sobre o Barão Smith Vasconcellos, bem como sobre outros intelectuais e letrados de segmentos da elite carioca e fluminense da época, poderia ser justificado pela coexistência pacífica, em terras anglo-saxônicas, de um verdadeiro avanço tecnológico representado pela revolução industrial, ao lado de um governo conservador forte ali existente. As construções em pedras cortadas, com estruturas de concreto com fossos, pontes levadiças e seteiras para impedir a aproximação de indivíduos indesejados, com torres, coberturas de ardósia e mármore de Carrara nos pisos e com fachadas em estilo normando, Tudor e Windsor expressam, assim, a escolha de um modelo inglês para a construção de nossos castelos tropicais. O porquê da eleição de uma arquitetura de fortalezas medievais inglesas como modelo construtivo para os castelos tropicais, justifica-se, na medida em que ocorreu uma real influência do imaginário inglês no Brasil, desde o começo do século XIX. Nosso modelo de modernização tecnológica foi primordialmente o produto da revolução industrial britânica. Um dos ancestrais do próprio construtor do Castelo de Itaipava, o 1º Barão de Vasconcellos, chegou a estabelecer em 1852, em Liverpool, Inglaterra, a Casa Matriz de seus negócios de importação e exportação para o Brasil, sob a razão social de Vasconcellos, Ridgway & Co. A fortaleza anglo-saxônica de Itaipava, com seu orgulho gótico e germânico, ergue-se assim, impávida, como um estandarte simbólico de ordem hierárquica e aristocrática de segmentos da elite das primeiras décadas do século XX, marcando, – com sua arquitetura medieval e romântica –, a ideologia política conservadora, os privilégios de classe e o poderio econômico da família Smith de Vasconcellos. 32
estéticos, muitos deles vigentes até a atualidade em nível do senso comum. O ethos e a visão de mundo de segmentos da elite das primeiras décadas do século XX foram, portanto, por nós investigados tendo exatamente como ponto de partida a simbologia arquitetônica detectada no Castelo de Itaipava, tema de nossa dissertação de mestrado. Sob essa ótica, procuramos perceber a arquitetura de época como sendo representativa de uma parcela da aristocracia brasileira, principalmente no que se refere a uma ideologia de classe inerente a uma nobreza com poucas tradições culturais, herdeira daqueles nobres lusitanos representados pelos burgueses enriquecidos, nobreza essa que se contrapõe assim à velha aristocracia responsável pela formação da nacionalidade portuguesa. O acesso ao poder e ao prestígio desse novo grupo aristocrático, representado principalmente por comerciantes de origem sociocultural humilde, que logram penetrar na nobreza de Portugal através de seu poder econômico elevado, pode ser exemplificado pelo 1º Barão, José Smith de Vasconcellos, português que se dedica à carreira comercial como importador e exportador de produtos para a Inglaterra. Tendo instalado Casas Matrizes de seus negócios tanto em Fortaleza quanto em Liverpool, esse Barão ilustra bem um caso típico da obtenção de um título nobiliárquico, em 1869, como forma de pagamento à prestação de seus serviços sociais à Casa Real lusitana. Ainda por decreto real de 1874 de D. Luiz I, é concedida a Rodolpho Smith de Vasconcellos uma segunda vida no título dado CONCLUSÃO: QUEM QUER SER NOBRE anteriormente dado a seu pai, o qual se torna então o 2º Barão de Vasconcellos. DO BRASIL DE HOJE (Foto 3) Indaga-se aqui “Quem Quer Ser Nobre no Brasil de Hoje?”.Partindo da análise do ecletismo estético para desembocar na hierarquização racial europeia e na negação do sangue negro e mestiço por segmentos de nossa elite, a análise da arquitetura eclética da década de 1920, responsável pelo projeto da dupla Valentim-Costa e pela edificação do Castelo de Itaipava, revela valiosos aspectos ideológicos de segmentos da elite carioca e fluminense desse período. Ideologia essa que é caracterizada por conceitos (e preconceitos) raciais, de classe, políticos e
O próprio dono do Castelo de Itaipava descende de uma dinastia comercial, tendo seus ancestrais obtido títulos de nobreza por obras de benemerência devidas à Casa Imperial lusitana desde a segunda metade do século XIX. Uma segunda hipótese da presente pesquisa gira em torno, portanto, do modelo de nobreza e de restauração monárquica valorizado por elementos da elite carioca e fluminense da época da República Velha. Nos anos 1920, como demonstra Silva (1986), os monarquistas ou saudosistas platônicos se alinharam aos 33
republicanos desiludidos com a República oligárquica e com os republicanos preteridos pelo poder no governo de Artur Bernardes, para organizar as comemorações do centenário do nascimento de D. Pedro II, revelando a crise por que passava então a instituição republicana. O grupo partidário da restauração monárquica do início do século passado pode ser indicado pelo 2º e 3º Barões de Vasconcellos, representantes de uma linhagem nobiliárquica em moldes brasileiros, cuja ascendência nobre se dá via seus ancestrais femininos.O movimento de restauração monárquica das primeiras décadas do século XX pode ser aproximado historicamente da situação política brasileira gerada pela discussão suscitada em torno do plebiscito de 1993 que pretendeu decidir entre República e Monarquia Constitucional, bem como entre presidencialismo e parlamentarismo. Nossa segunda hipótese reside, assim, na indagação sobre se o ideal aristocrático e monárquico de certos estratos da elite das primeiras décadas do século vinte subsiste até a pós-modernidade, procurando perceber sua permanência no tempo e revelando quem, e por que motivo, ainda quer ser nobre no Brasil de hoje.Uma terceira e última hipótese deste artigo se baseia na possível articulação entre o modelo aristocrático e monárquico da elite do início do século passado e o arianismo difundido no Brasil a partir do século XIX. A difusão desse arianismo aplicado, no caso da realidade racial brasileira, juntamente com teorias pseudocientíficas como o darwinismo-social, é o atual responsável pela ideologia do branqueamento do nosso sangue negro e mestiço, através do cruzamento do brasileiro com o branco europeu. Através da difusão da ideologia da seleção social sugerida por Vacher de Lapourge – que pensa o negro como sendo inferior cultural e racialmente, não tendo, portanto, condições de competir economicamente dentro de uma sociedade civilizada – a injeção de sangue europeu dos imigrantes tem a função principal de aumentar o percentual de brancos no país.
A aplicação em nosso país desse conceito de seleção social deriva do fato de se acreditar que o negro do sexo masculino apresenta uma inclinação natural para se casar com mulheres mais claras o que, ao longo do tempo faria com que a raça negra fosse desaparecendo ao dar lugar a mulatos mais claros, que por sua vez se uniriam a cônjuges de origem europeia. Dessa forma, foi idealizada no Brasil do início do século passado a teoria da seleção sexual, que previu que o sangue negro iria sumindo gradativamente, por ser inferior, ao entrar em contato com o sangue branco dos colonos europeus, vistos como “efervescentes em matéria de trabalho, progresso e civilização” (Azevedo: 1987, p.63). Comungando com essa crença de eugenia do sangue do branco europeu, o construtor do Castelo de Itaipava acabou se identificando com a ideologia do branqueamento do sangue negro que preponderava no país nas primeiras décadas do século XX, tendo atualizado uma postura racista partilhada por segmentos da elite daquela época. Esta última hipótese nos sugere uma apreciação crítica sobre a sociedade brasileira atual, no que se refere às relações raciais e à existência de uma vertente hierárquica presente no bojo da sociedade mais ampla. Através do estudo de caso do Barão Smith de Vasconcellos, podemos perceber vários nuances de nossa verdadeira face como país, no qual o mito das três raças e o racismo à brasileira (cf. Da Matta:1981) continuam a ser cotidianamente atualizados pelo senso comum, e no qual uma postura aristocrática prepondera entre segmentos significativos das classes superiores da população. Tal postura de cunho de hierarquizante leva-nos, finalmente, a interpretar o enclausuramento estético e arquitetônico dos construtores de fortalezas medievais neogóticas como uma resposta tradicionalista às revoluções de cunho popular que proliferam no decorrer do século XX em nível mundial, bem como às mudanças culturais e políticas ocorridas no Brasil desde os anos 1990 até a atualidade, desaguando na era Dilma-Temer de protestos e manifestações de massa insuflados por redes sociais. 34
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O ecletismo na arquitetura deriva do método filosófico”que consiste em reunir teses de sistemas diversos, ora simplesmente
círculo impermeável de comando. (...) O conteúdo do Estado molda a fisionomia do Chefe de Governo. O rei, o imperador, o
justapondo-os, ora chegando a uni-los em uma unidade superior, nova e criadora” (Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa, p.616). O estilo eclético admite uma justaposição de tendências arquitetônicas de caráter histórico, afirmadas no século XIX na Europa pelos precedentes estilísticos do romântico-medieval e do clássico-renascença. Tal influência do gosto europeu foi aqui disseminada a partir das
presidente não desempenham apenas o papel do primeiro magistrado, comandante do estado-maior de domínio. O chefe governa o estamento e a máquina que regula as relações sociais, a ela vinculadas” (p.736 a 739 – 2º volume, grifos nossos).
primeiras décadas do século passado, com a proliferação de construções neoclássicas e neogóticas na arquitetura fluminense.
constituíram marcos históricos em relação às hierarquias sociais do Império. Tais hierarquias, de cunho aristocrático, foram abaladas nesse período, ocasionando uma revisão das doutrinas raciais existentes (cf. Skidmore: 1976). Na crise nacional que se seguiu, o racismo emergiu como uma ideologia que resolveu, em dois níveis, a ameaça imposta à estrutura social e econômica do país com a libertação dos escravos. Em um desses níveis, o racismo cumpriu o papel de mantenedor da ordem vigente, libertando juridicamente o escravo, porém sem libertá-lo social e culturalmente. No segundo nível, o racismo deu conta de um projeto nacional cultural para o Brasil, permitindo-nos visualizar nosso país como algo singular. (cf. Da Matta: 1981).
De acordo com a conceituação de Lévi-Strauss, a bricolage exemplifica o modus operandi da reflexão mito poética. O bricoleur é aquele que pode operar com materiais fragmentários já elaborados, afastando-se das normas adotadas pela técnica.
A preservação da ordem senhorial imperial no Brasil se encontra relacionada ao preconceito de cor (Bastide e Fernandes: 1975, p. 369), derivando de um princípio de integridade social do Império Português que vincula o grau de nobreza ao fato de se possuir limpo sangue isento de toda a raça de mácula de Judeu ou qualquer mácula (cf. Frei Gaspar in Genealogia Paulista de Silva Leme: 1903-1905 apud Bastide e Fernandes, in op. cit.).
6A Proclamação da República e a Abolição da Escravatura
A este respeito, ver Da Matta (1981) e Ortiz (1985) sobre a “fábula ou mito das três raças”. No dizer de Fernandes (1978).
O poder não é um objeto natural ou uma coisa, mas constitui uma prática social construída historicamente. A questão do poder é vista como instrumento de análise capaz de explicar a produção de saberes, interpretados como elementos de um dispositivo de natureza estratégica ou peças de relações de poder, incluindo-os em um dispositivo político que, em terminologia nietzschiana, Foucault chama de genealogia. Foucault entende por microfísica do poder tanto um deslocamento do espaço de análise quanto do nível em que esta é exercida, sendo que os procedimentos técnicos de poder realizam um controle detalhado do corpo através de gestos, atitudes, comportamentos, hábitos e discursos (apud Machado: 1979, p. XII-XIV).
Na concepção de Faoro (1984), “O domínio tradicional se configura no patrimonialismo, quando aparece o estado-maior de comando do Chefe, junto à casa real. (...) O caminho burocrático do estamento, não desfigura a realidade fundamental, impenetrável ás mudanças. (...) Sobre a sociedade, acima das classes, o aparelhamento político – uma camada social, comunitária embora nem sempre articulada, amorfa muitas vezes – impera, rege e governa, em nome próprio, num
Tal denominação do escritor Machado de Assis é assim feira por Freyre (1948, p. XVI): “O que não significa, de minha parte, adesão absurda a um caboclismo intelectual ou artístico de tal modo sectário que nos impedisse, aos brasileiros, de receber, assimilar, adotar, desenvolver, recriar, abrasileirar, estrangeirices. (...) O que é certo dos, dentre eles, acusados de terem se anglicizado como Machado – por alguns chamado‘mulato inglês’;(...); ou um simples imitador do americano Cooper, no seu indianismo: acusação feita ao tão brasileiro José de Alencar, glorificador, quer de Iracema de pés selvagemente nus quer de sinhazinhas morenas da Corte de D. Pedro II”. O construtor do Castelo de Itaipava chegou a ser amigo íntimo de Machado, a quem alugou uma casa de sua propriedade nas Águas Férreas por preço simbólico, devido à sua grande admiração por esse mulato inglês referido por Freyre.
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Contextualização sobre a defesa de um ponto de vista: Caravaggio de Derek Jarman Rogério Prestes de Prestes Doutorando IA/UNESP
Os comentários iniciais dos próximos parágrafos nada têm de acadêmico, mas contextualizam minha relação com a obra do precursor do Barroco pictural histórico - conhecida e admirada por mim desde a infância, por meio de livros de arte em minha própria casa e nas bibliotecas do Instituto de Educação “Assis Brasil” e da Universidade Federal de Pelotas - e a obra do cineasta neobarroco contemporâneo. Em agosto de 1993, sete anos após haver assistido ao filme “Caravaggio”, de Derek Jarman, em Porto Alegre, quando de seu lançamento, e recém-chegado a São Paulo para cursar mestrado em Comunicação e Semiótica, na PUC, voltei a assistir ao filme, a convite do amigo e também apreciador das obras de ambos os artistas, que retornava ao Brasil para viver nesta cidade, o escritor Caio Fernando Abreu, companheiro de vernissages, lançamento de livros, teatro e cinema, numa época de trânsito menos intenso e filas menores nas salas de exibição e exposições de arte. Saímos do Belas Artes, ou do então Espaço Unibanco de Cinema (hoje Itaú), não me recordo, em direção ao Viena do Conjunto Nacional, onde jantamos e conversamos longamente sobre a obra dos artistas citados. Caio seduzido pela tensão dramática entre as personagens, pela estrutura narrativa em flashbacks e pelos elementos temporalmente exóginos a ela e eu, pelo intenso contraste de cores e valores tonais da pintura, que o cineasta tão bem soube interpretar, e sobretudo pela recriação, com os atores/modelos do pintor,
em terceira dimensão, da dinâmica espacial única das obras de Caravaggio, à qual, nos vários livros e textos críticos que li sobre elas, jamais vi referência. Sobre estes últimos elementos tratarei aqui brevemente. Em 2004, apresentei-o para alunos da Faculdade de Letras, Artes, Arquitetura e Ciências da Comunicação e Educação, de que era professor, na Universidade São Judas Tadeu, como parte de um ciclo de cinema, seguido de debate a partir das idéias do filósofo Friederich Nitzsche (18441900), em “O nascimento da tragédia”, obra em que defende ser a história da arte uma sucessão alternada de estilos “apolíneos” e “dionisíacos” (o Barroco nesta polaridade). Analogamente, propus que vida e obra de Caravaggio alternavam pulsões (no sentido freudiano) eróticas e tanáticas. Este modesto trabalho não pretende a inclusão de dados biográficos ou historiográficos que não sejam essenciais para a compreensão das análises nele apresentadas. As principais obras de Caravaggio – todas em óleo sobre tela -- foram por mim agrupadas segundo critérios específicos para as referidas análises e as mesmas, em cada grupo, foram citadas em ordem cronológica, com dimensões e data de execução, salvo quando houve necessidade em contrário. O filme foi analisado do ponto de vista de sua estrutura fabular e sintática e do modo peculiar como interpreta vida e obra do pintor. 39
de 203 cm, 1602-1603) e “As sete obras de misericórdia” (390 x 260 cm, 1606) -- a primeira e a última destas obras pretendendo mais a Um dos cinco filhos de Fermo Merisi, arquiteto teatralidade simbólica do que a verossimilhança decorador do Duque de Milão, marquês de enquanto cena. Caravaggio, vila onde passa a infância, nasceu em 1571 e passou dificuldades após a morte precoce Ainda apresentam a mesma expressão peculiar de do pai. Precocemente também manifestou suas luminosidade as de estrutura fortemente habilidades artísticas, tornando-se protegido do escultóricas (assim as classifico porque nelas Príncipe de Colonna, por intermédio de quem se destacam-se as figuras sobre fundos quase fixa em Roma, onde obtém notoriedade. amorfos, a ponto de neutralizar a sugestão de Entretanto, envolve-se em escândalos e, acusado movimento que as cenas, em si, comportam), pela morte de um adversário no jogo de péla como “Judite e Holoferne” (145 x 195 cm, 1599), (baralho), refugia-se sucessivamente em Nápoles, “São Jerônimo escritor” (112 x 157 cm, cerca de Malta, Messina e Palermo, retorna a Nápoles, 1606), “A morte da virgem” (369 x 245, cerca de onde, envelhecido e doente, aguarda indulto 1606), “A Nossa Senhora do rosário” (364,5 x papal para retornar a Roma, mas é encontrado 249,5, 1607), “A flagelação de Cristo (286 x 213 morto, aos 39 anos, em 1610, na praia de Porto cm, 1607) e “A degolação de São João Batista” Ercole, próxima da Cidade Eterna, antes de (361 x 520 cm, 1608). recebê-lo. Foi considerado por muitos “o pintor mais misterioso e revolucionário da história da Menos movimento narrativo existe ainda nas arte” (LAMBERT, 2001:07) e influenciou artistas cenas religiosas com alto grau de realismo, a como Delacroix, La Tour, Rubens, Rembrandt, ponto de se tornarem comezinhas, como “Nossa Velázquez, Géricault, Courbet, Manet, apenas Senhora dos peregrinos” (260 x 150 cm, 1604para citar alguns dos mais importantes 1605) e “Nossa Senhora dos palanfreneiros” (292 x 211 cm, 1605-1606). Para esta segunda (SPROCCATTI: 1997). característica contribuem os tipos físicos dos Apesar disto, seu nome foi banido por quase três modelos retratados, sempre pessoas do povo, nos ambientes “pouco séculos da história da arte, fato atribuído à “vida recrutadas recomendáveis” frequentados pelo artista, algo dissoluta” que levara. que é sabido, desagradava os religiosos que as Muito se fala do chiaroscuro caravaggiano, dos encomendavam, malgrado tais escolhas, por múltiplos focos de luz a iluminar pontualmente as admirar-lhe a técnica, o domínio da anatomia e da personagens históricas - representadas tendo representação realista dos mais diversos materiais como modelos figuras populares - que interagem e superfícies. Algumas considerações sobre Michelangelo Merisi da Caravaggio
a
obra
em suas pinturas, frequentemente em momentos cruciais de cenas que pressupõem um antes e um depois, fatos em sequência narrativa, portanto, para as quais corroboram uma infinidade de detalhes. Óleos como “Os batoteiros” (91,5 x 128,2 cm, 1594-1595), “A vocação de São Mateus” (322 x 340 cm, 1599-1600), “A conversão de Madalena” (100 x 143,5 cm, cerca de 1598), “A ceia em Emaús” (141 x 196,2 cm, 1601), “A crucificação de São Pedro” (232 x 201 cm, cerca de 1600) exemplificam à maravilha tal percepção. Menos um pouco, os alegóricos “O martírio de São Mateus” (323 x 343 cm, 15991600), “A conversão de São Paulo” (237 x 198 cm, 1600-1601), “A deposição ao túmulo” 300 x
Os inúmeros retratos – aqueles com uma só personagem - de figuras mitológicas, bíblicas, ou de personalidades proeminentes e também tipos humanos da própria época do pintor não apresentam narratividade eloquente, são bem mais descritivos. Mesmo a “Medusa” (rotonda de diâmetro irregular, 60 x 55 cm, 1598-1599) parece ela própria petrificada no interior de seu simbolismo intrínseco. Quanto a este último grupo de obras, é importante registrar alguns auto-retratos: os propriamente tais, ou “clássicos” - “O pequeno Baco doente” (67 x 53 cm, 15931594) e “Vaidade”, ou “Auto-retrato ao espelho”, obra perdida que se vislumbra em calcogravura 40
anônima de sua mesma época (a julgar pela aparência do pintor, dos anos finais de sua vida) -- e os inclusos em pinturas com outras personagens: no “Concerto de jovens”, também chamado “Os músicos” (92 x 118,5 cm, 15951596), na já citada “O martírio de São Mateus”, e em “David segurando a cabeça de Golias” (125 x 100 cm, 1605- 1606), o autor como a segunda personagem. Uma exceção à estaticidade proposital dos retratos é “Rapaz mordido por um lagarto”, (65,8 x 52,3 cm, cerca de 1595), obra com uma só personagem, mas que apresenta o movimento e a expressão de dor da mesma, causada por um agente não humano – portanto isenta de drama. Esta obra é uma espécie de “instantâneo em Polaroid” (ou foto digital instantânea, embora não seja esta puramente uma transformação tecnológica, pois seus efeitos são diferentes) e talvez a mais citada para exemplificar a característica inovadora de um enquadramento pré-fotográfico da obra caravaggiana, tão decantado pelos analistas de suas obras, o qual tanto contribuiu e continua contribuindo para o intenso “realismo” de sua obra pictórica. Outras obras muito conhecidas não foram aqui citadas porque não as considero típicas de nenhum destes grupos nas quais as reuni, sob o ponto de vista do movimento representado, narrativo, portanto, segundo minha própria observação (por reproduções em livros impressos e internet, além de pessoalmente aquelas que estiveram no MASP em 2013). Algumas, embora insinuem narrativas, sugerem pouco movimento desta natureza e, por terem os últimos planos matizados e com pouco contraste relativamente às figuras centrais, não se configuram como escultóricas, por exemplo, tampouco são retratos. Cumpre ainda dizer que a paisagem dificilmente aparece na obra de Caravaggio, exceções à “O repouso durante a fuga para o Egito” (135,5 x 136,5 cm, cerca de 1596-1597) e “O sacrifício de Isaac” (segunda versão,104 x 135 cm, 1603). Creio que esta escolha estética pelo primeiro plano, ao contrário do que poderiam pensar críticos distraídos ou mal-intencionados, não se configura num desprezo pela perspectiva, que ele
domina com maestria, nem pelo detalhe – suas figuras os exibem abundantemente em panejamentos, rendas, tecidos com texturas diversas, pele (musculatura e veias sob ela!), cabelos, manchas em flores e frutas, nas “orgânicas”, e brilhos, suavidade, dureza, transparências nas de objetos. A proximidade da figura humana em relação ao espectador contribui para o já referido e tão falado “enquadramento fotográfico” - anterior à invenção da primeira forma não artesanal de produção de imagens -, acentua a dramaticidade e põe o homem como núcleo dos conteúdos plástico-visuais, como também (e diversamente) da própria cultura barroca que se iniciava, a qual, contrariamente, enfatizou a miséria humana em contraste com a plenitude divina. Para Caravaggio, o homem é senhor das próprias escolhas e, portanto, do próprio destino, mesmo quando impotente diante das circunstâncias da vida, provocadas por suas próprias ações ou pelas de outros homens e o modo como reage a elas, conforme atestam seus dados biográficos. Mesmo seus anjos são tremendamente humanos, como o que ampara a personagem título de “São Francisco em êxtase”, ou “São Francisco recebendo os estigmas” (92,5 x 127,8 cm, 1595), obra que inaugura período de grande êxito na carreira de Michelangelo Merisi e que, segundo o escritor Dominique Fernandez, marca o nascimento da arte plástica Barroca, conforme relata Gilles Lambert em “Caravaggio – 15711610”, (2001:47); o do primeiro “O sacrifício de Isaac” (116 x 173 cm, 1596), menino corado cujas asas são quase que apenas sugeridas e em cujo rosto iluminado sobre um dos quatro pontos áureos do plano de representação está o principal elemento compositivo, pois a pouca tensão da cena está no olhar que troca com Abraão e não na faca segurada por este ou na plácida expressão de seu filho que seria imolado, diferentemente daquela apresentada na pintura homônima de 1603 (104 x 135 cm), a da paisagem ao fundo, anteriormente citada, na qual poderosas diagonais descendentes conduzem o olhar do espectador para seu rosto apavorado. Temos também o de “São Mateus e o anjo”, primeira versão, (223 x 183 cm, 1602), obra destruída na queda de 41
Berlim, no final da Segunda Grande Guerra, a qual provocara escândalo e fora recusada para a igreja de S. Luigi dei Francesi, justamente por aquele motivo; e ainda o “anjo profano”, Eros ou Cupido, em “O Amor triunfante” (156 x 113 cm, 1601-1602), personagem não tão bela como os citados, mas carregada de uma “sensualidade” adolescente (embora na origem mitológica Eros fosse eternamente criança e “inocente”). Este causou escândalo por ter sido considerado paródia da escultura “Vitória”, de Michelangelo Buonarotti (1475-1564), ou do São Bartolomeu de “O juízo final” da Capela Sistina, do mesmo autor, e teria a intenção de revelar a homossexualidade deste, (apud LAMBERT,op. cit.:69). Tem a cabeça inclinada, mas encarando o espectador e, nu, a carnação em luz e sombra e as asas de longas plumas cinzentas, isto é, sem a pureza simbólica do branco, características que certamente contribuíram para o efeito logrado. Outros anjos, que também nada têm de sobrenaturais, são menos interessantes do que os citados, embora nada lhes devam quanto à qualidade pictórica. Modalidades de intersemiótico
diálogo
intertextual
e
As relações que se podem estabelecer entre duas obras de diferentes linguagens podem ser consideradas por diversos aspectos, histórica e conceitualmente configurados por diferentes teorias, de épocas e autores também diversos. A mais frequente, mais antiga e muito encontradiça entre obras literárias de diferentes épocas, mas não apenas entre elas, é, indubitavelmente, a paródia, definida por Linda Hutcheon como “uma forma de imitação caracterizada por uma inversão irônica, nem sempre às custas do texto parodiado” (1989:17), também como “repetição com distância crítica, que marca a diferença em vez da semelhança” (idem), especificando que esta “não se destina a assinalar unicamente a similaridade”. [pois] Não se trata de uma questão de imitação nostálgica de modelos passados. É uma confrontação estilística, uma recodificação moderna que estabelece a diferença no coração da semelhança” (idem:19), acrescentando que a paródia tanto pode confrontar-se tanto com o conteúdo semântico de uma obra artística,
quanto com sua estrutura, ou ainda com os modelos estruturais e estilísticos de uma determinada época ou gênero aos quais aquela pertença. Note-se que Hutcheon admite como paródia também a obra que dialogue com obras de outras séries artísticas e gêneros diversos. HIDALGO (2010: 82) resume o modus operandi e as técnicas mais freqüentes da paródia, segundo a autora citada:
“Elementos que aparecem em obras que retomam, modificam, acrescentam significados, constroem, segundo Linda Hutcheon, o hipertexto, que abrange as técnicas da citação, citação em abismo (mise-en-abyme), referência. O hipertexto paródico incorpora os sentidos do referencial e os transforma em outro elemento cognitivo.” Outro tipo de relação entre obras, muito frequente desde o teatro romântico, do século XIX, e mais ainda após o nascimento da narrativa cinematográfica, mormente o cinema falado, nas primeiras décadas do século XX, manifesta-se como técnica e conceito: “adaptação”, geralmente de obra literária para teatro ou cinema, após a escritura de um “roteiro adaptado”, aquele produzido por meio de um processo criativo tradicionalmente definido como “(A) transformação [que] é a manipulação de ideias, dos temas e dos tópicos, a variação dos mitos, [a qual] é o sistema mais especificamente clássico da criação literária” (COMPARATO, 2009:47). Também foi apresentada como “‘A habilidade de fazer corresponder ou adequar por mudança ou ajuste’ - modificando alguma coisa para criar uma mudança de estrutura, função e forma que produz uma melhor adequação.” (FIELD, 2001:174). Parece-me que a diferença mais marcante entre a paródia e a adaptação é que a segunda, necessariamente, pressupõe a mudança de uma linguagem para outra, considerando obrigatoriamente as especificidades de meios expressivos, instrumentos e técnicas de 42
construção da “obra adaptada”, ao passo que quarto com índices de violência: na primeira, pode existir paródia entre duas obras da mesma escravos, mulheres e cavalos do rei oriental da linguagem: literária, musical, teatral etc. Antiguidade, Sardanapalo, massacrados por ordem dele mesmo, que a tudo assiste de sua Aqui considero oportuno referenciar o conceito cama luxuosa no alto centro-esquerdo da processual, corrente nas artes plásticas composição; na segunda, o quarto simples de contemporâneas, denominado “releitura”, o qual uma prostituta, vazio e vandalizado, conforme compreende a existência de uma “obra nos relata Gompertz. Note-se que há entre a motivadora” - aquela que se pretende reler, ou pintura e a fotografia elos de ordem temática e seja, sobre a qual se quer apresentar um novo também visual, portanto, elementos narrativos e ponto de vista, destaque ou atualização - e uma estruturais, como se espera de uma releitura “obra motivada” - aquela que realiza tais propriamente dita. No caso, o canadense intenções de um artista que se coloca em diálogo “atualizou” a cena, do ponto de vista de uma com o autor da primeira a partir da obra “atemporalidade” ou permanência da violência da “original” deste. Caracteriza a releitura um alto Antiguidade aos nossos dias. grau de independência da “obra motivada” relativamente à “obra motivadora”. Note-se, Processo análogo aos citados acima, embora entretanto, que, justamente por esse motivo, é certamente muitos não o considerem como tal, comum apresentá-las simultaneamente aos são as formas de tradução de obras artísticas, espectadores, ou quando isso não é possível, textuais ou de quaisquer outras linguagens. expor a “obra motivadora” reproduzida fotograficamente ou em vídeo, se for mais Evidentemente que não a tradução de textos adequado. Também é mais comum a releitura acadêmicos, científicos, comerciais, jurídicos, entre obras de mesmo gênero, ou de gêneros técnicos ou de outra tipologia não artística, pois semelhantes. estão construídos com base na função referencial da linguagem, definida pelo linguista Roman Creio que podemos classificar como releitura a Jakobson como prevalente naqueles (textos) obra do artista canadense nascido em 1946, Jeff centrados no “contexto”, informacional da Wall, “O quarto destruído”, fotografia de 1978, a comunicação, isto é, no referente mesmo da qual, segundo Will Gompertz (2013:373), mensagem, a “realidade” - existencial, constitui “sua versão pós-moderna da pintura de experiencial, factual, mental - apreensível por Delacroix, ‘A morte de Sardanapalo’ [1827] em remetente e destinatário da mensagem meticuloso detalhe”. O raciocínio de Gompertz (1977:123), cuja tradução não carece de recriação ratifica minha visão: artística. “Obviamente, ter conhecimento das alusões permite uma melhor apreciação da fotografia de Wall. Mas e se você não souber nada disso? Que acontece se você tiver entrado numa galeria e tiver topado com a obra por acaso, sem saber de sua relação com A morte de Sardanapalo? Bem, ela continua sendo uma imagem da vida moderna e um comentário poderoso sobre ela, com uma composição e um uso da cor intrigante. Mas a verdade é que a arte pós-modernista recompensa o conhecimento mais ou menos como palavras cruzadas cifradas, em que a compreensão decorre da solução do enigma.” (375)
Por outro lado, os textos artísticos, aqueles com predominância da função poética da linguagem, isto é, centrados na sua própria estrutura singular - manifesta em elementos como figuras de linguagem (paronomásia, metáfora, hipérbole, personificação, dentre outras), efeitos sonoros (aliteração, assonância, rimas, por exemplo) e rítmicos (ictos, versos e estrofes) -, transmitem informações estéticas únicas, cuja tradução requer que se os recrie com mínima perda das mesmas para que sejam traduzidos de um para outro idioma, por exemplo. Segundo Albert Fabri, citado por Haroldo de Campos no celebérrimo ensaio “Da tradução como criação e como Em comum entre as duas obras, a visão de um crítica” (1992:31-63), a informação estética tem 43
alto grau de “fragilidade”, pois “transcende a meio de sistemas de signos não-verbais. (65) informação semântica”, pela sua grande complexidade e originalidade única. Manifesta-se Anos mais tarde, Julio Plaza publicou “Tradução Campos: intersemiótica” (1987), obra na qual estabelece uma tipologia trina para este tipo de tradução - a “Então, para nós, tradução de textos criativos partir dos três tipos de signos descritos pela será sempre recriação, ou tradução paralela, Teoria Geral dos Signos, do matemático, filósofo autônoma porém recíproca. Quanto mais inçado e lógico americano, Charles Sanders Peirce (1839de dificuldades esse texto, mais recriável, mais 1914), criador da mais abrangente das teorias sedutor enquanto possibilidade aberta de semióticas, uma vez que não se constrói sobre recriação. Numa tradução dessa natureza, não se base estritamente lingüística e, por isso, não traduz apenas o significado, traduz-se o próprio considera como signo apenas o do tipo signo, ou seja, sua fisicalidade, sua materialidade convencional, mas também os motivados por mesma (propriedades sonoras, de imagética semelhança e contiguidade. Plaza denominou-as visual, enfim, tudo aquilo que forma, segundo “tradução icônica, tradução indicial e tradução Charles Morris, a iconicidade do signo estético, simbólica”, classificação que julgo desnecessário entendido como signo icônico aquele ‘que é de especificar aqui. Mas convém explicitar que a certa maneira similar àquilo que ele denota’). O obra citada alarga o conceito de “tradução significado, o parâmetro semântico, será apenas e intersemiótica”, de Jakobson, ao admitir que esta tão-somente a baliza demarcatória do lugar da pode incidir sobre obras de arte de tipos vários, empresa recriadora. Está-se pois no avesso da não apenas verbais, isto é, pode-se traduzir de chamada tradução literal.”(35) uma música instrumental a desenhos, pinturas, gravuras, esculturas, e todos os gêneros Aqui Campos cria o conceito de “transcriação”, tradicionais das artes plásticas, além dos aplicável à tradução criativa de textos estéticos, modernos e contemporâneos, como instalações, sobretudo de poesia, de um idioma para outro. happenings, performances e outros; construções arquitetônicas; balés e coreografias tradicionais Convém lembrar que o já citado Jakobson ou contemporâneos; como também produtos de estabelecera no texto “Aspectos lingüísticos da todas as manifestações artísticas que incluem a tradução” (op. cit: 63-72) seus três tipos básicos e palavra, como canções, HQs, óperas, peças incontestáveis: teatrais, filmes etc. “Distinguimos três maneiras de interpretar um signo verbal: ele pode ser traduzido em outros signos da mesma língua, em outra língua, ou em outro sistema de símbolos não-verbais. Essas três espécies de tradução devem ser diferentemente classificadas:
Aqui acrescento que o conceito contemporâneo de “texto” extrapola o verbal e estende-se a outras mensagens organicamente construídas, sejam visuais, sonoras ou híbridas, entendidas como “texto semiótico”, ou seja: mensagens articuladas compostas de informações artísticas por meio de signos de qualquer natureza ou A tradução intralingual ou reformulação tipologia. (rewording) consiste na interpretação dos signos verbais por meio de outros signos da mesma Ouso afirmar que o filme “Caravaggio”, de língua; Jarman, constitui efetivamente uma tradução intersemiótica e não uma paródia moderna da A tradução interlingual ou tradução propriamente obra do pintor italiano. Para que assim seja, não é dita consiste na interpretação dos signos verbais preciso que o cineasta conhecesse a teoria por meio de alguma outra língua; estabelecida por Plaza, sequer que conhecesse a definição jakobsoniana. Analisemos alguns A tradução intersemiótica ou transmutação elementos pontuais, alicerces da estrutura das consiste na interpretação dos signos verbais por obras de ambos os artistas. 44
“Caravaggio”, o filme: singularidades da recepção
motocicleta, caminhão, figurinos do século XX e outros), quebrando a verossimilhança das narrativas fílmicas mais tradicionais. O filme como construção ficcional de uma personagem histórica
Jarman conseguiu, tal qual Caravaggio, escandalizar muitos espectadores, desde o lançamento do filme em 1986. Alguns porque desconheciam a vida contrastante do pintorpersonagem, que freqüentava os bordéis e estalagens mais sórdidos de Roma, alternadamente com o palácio de um cardeal (Francesco Maria Del Monte, ligado aos Médici e com bom trânsito no Vaticano) e outros da alta nobreza italiana; que se interessava por prostitutas e homens simples, dos rústicos aos muito jovens e delicados; que talvez se tenha prostituído na adolescência e na maturidade e também pago prostitutas e michês (conforme sugerido pelo cineasta); que jogava a dinheiro e duelou mais de uma vez por se julgar enganado, ferindo e até matando um oponente. Outros ainda chocaram-se com a relação amorosa triangular entre Caravaggio e Ranuccio e a amante dele, a prostituta Lena, marcada pelo jogo sensual e de poder e ciúme entre os dois homens, apresentado no filme nas cenas em que o casal servia de modelo para obras de caráter religioso. Ela representou “Santa Catarina de Alexandria” (173 x 133 cm, cerca de 1598), Judite (obra citada) e mesmo, depois de morta, a Virgem de Nazaré (idem). Ele posou para um dos São João Batistas (Caravaggio pintou o santo por três vezes), para a figura central de “O martírio de São Mateus” (ibidem) e outras personagens. Houve também aqueles espectadores, talvez não em menor número, que se chocaram com a linguagem underground do cinema de Jarman, a qual nesta obra específica inclui sons ambientais e objetos de séculos posteriores (máquina de escrever, calculadora eletrônica, telefone,
Uma das virtudes da obra de Derek Jarman é, sem dúvida, estruturar a narrativa a partir de momentos cruciais da vida de Caravaggio (interpretado por Nigel Terry e também por Dexter Fletcher – adolescente – e Noam Almaz – menino -), mas principalmente, mostrá-lo no atelier, desenhando sem quadrícula sobre telas imensas e pintando vigorosamente algumas de suas obras mais importantes, pois é na concretude de seu fazer artístico que alcança expressão como artista e como homem. Seus sentimentos e pensamento crítico sobre a religiosidade, os costumes e a cultura de sua época manifestam-se inequivocamente no tratamento que dá à matéria pictórica e aos temas das encomendas que obtém, a ponto de algumas vezes vê-las rejeitadas pelos que as solicitaram, mas sempre adquiridas por outros compradores. A película inicia-se com o artista pintando e, em seguida, desloca-se para o momento em que o pintor leva da casa de uma família de camponeses, mediante uma quantia em dinheiro, um menino mudo, que não conseguiria aprender o ofício de pastor de seus familiares, para ser seu valete e ajudante de atelier. Ainda criança, Jerusaleme (o menino Emile Nicolaou), começa a aprender com o artista tarefas domésticas e o preparo de telas e tintas a óleo para pintura. Michelangelo parece afeiçoar-se verdadeiramente a ele que, em momentos difíceis da vida do artista, como serviçal, é seu único apoio, movido por gratidão. Entretanto, não há registros de sua existência real. Jarman recria, em sequência cronológica, sempre a partir de lembranças narradas em primeira pessoa, que em alguns momentos parecem sonhos do pintor moribundo em seu leito derradeiro – licença poética, pois sabe que foi encontrado morto na praia, por assassinato, afogamento ou doença, os biógrafos não o relatam, talvez à época não o se tenha sabido -, cuidado por Jerusaleme adulto (Spencer Leigh),
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alguns dos principais momentos da vida do pintor, tendo sempre como referência suas obras mais importantes desde a chegada a Roma, ainda muito jovem. Alguns dos principais episódios da vida de Caravaggio são, mediante este recurso mnemônico da personagem principal, mostrados em ordem cronológica. Destacam-se recorrentemente em tais lembranças, mormente no delírio final, a menina Ceccilia (atriz: ?) e o jovem Pasqualonne (ator: ?), que o filme dá a entender serem seus irmãos - o segundo bem mais velho, que o teria acompanhado a Roma e com quem teria tido, ao menos na ficção, suas primeiras experiências sexuais. Assim, Jarman contribui, porém sem o peso da censura dos críticos contemporâneos ao artista e de alguns historiadores de séculos seguintes, para a manutenção da personagem mítica “gênio de vida dissoluta” solitário que vive simultânea e paradoxalmente a transcendência da criação artística e a concretude das paixões carnais, consciente delas, mas sem conflito interior flagrante. Encontrado pelo Cardeal Del Monte (Michel Gough), doente em hospital de caridade, o jovem pintor tornase seu protegido após curado, época em que pinta “O jovem Baco convalescente” (citado) e diversas outras obras, e por intermédio de quem conhece Scipione Borghese (Robbie Coltrane), para quem pinta algumas encomendas em período posterior. Já maduro, aparecem algumas contendas em que o pintor se envolve, no espaço cênico da estalagem, onde conhece o lutador Ranuccio (Sean Bean), por quem se interessa vivamente, e de quem presencia uma luta vencida e a quem oferece uma moeda de ouro por prêmio, comemorada pelo presenteado com Lena (Tilda Swinton). Ambos tornam-se então modelos do pintor e, enquanto posava para “O martírio de São Mateus”, Ranuccio é cortejado pelo artista que lhe dá, uma a uma, várias moedas de ouro, que este guarda na boca. Até que o pintor coloca uma moeda na própria boca para que o modelo pegue-a com a dele, o que ele não exita em fazer, despertando o ciúme de Lena. Enquanto isso, Jerusaleme cumpre seu papel de assistente dedicado, preparando as tintas que Michele utilizava.
Algum tempo depois, surge a contorcionista Pepa (Archibald), garota andrógina que posa para “O amor triunfante”, (Eros alado, obra já citada), revelando entre os objetos de atelier, um par de asas de armação que contribuíam para que o pintor visualizasse a cena de que a modelo fazia parte, podendo estruturar luz e sombra com veracidade. Esta é uma das características interessantes do filme do ponto de vista de quem faz pintura hoje: mostrar a construção cênica das pinturas caravaggianas, conforme acontecia de fato no ateliê dele e, provavelmente, nos de outros pintores. Realismo não se obtém apenas de imaginação, mas com observação factiva do real: modelos-vivos, luz e sombra reais etc. Inclusive, o cavalo que teria sido usado para a execução de “A conversão de São Paulo” (citada) aparece em uma das cenas seguintes.
Lena ganha um belo vestido, um par de brincos e é convidada pelo artista para acompanhá-lo à exibição da pintura de Eros, em salão com iluminação bruxuleante, contíguo às catacumbas do Vaticano, num espaço misterioso em que várias personagens aparecem fantasiadas, dentre elas, (supostamente) o Papa, vestido de sátiro. Na ocasião, Lena conhece o cardeal Borghese e deixa o salão em sua companhia, tornando-se amante do mesmo. Meses depois, aparece no atelier de Caravaggio, escoltada por três homens com vestimenta atual, e declara estar grávida, desagradando Ranuccio, que se supõe o pai da criança, mas Lena declara que esta seria “filha da riqueza”. Dias depois, ela é encontrada afogada no rio Tibre. Ranunccio é preso, mas convencera Caravaggio de sua inocência argumentando que o cardeal, sobrinho do Papa, deveria tê-la feito assassinar para evitar escândalo. Michelângelo encontra-se pessoalmente com Scipione Borghese e o Papa, pedindo-lhe a soltura do amante preso, por crê-lo de fato inocente. Obtém-na, mediante a promessa de realizar um retrato do pontífice em tempo reduzido, e recebe seu amante no atelier no dia seguinte, quando ele comemora terem “enganado” a todos, declarando ao pintor haver matado Lena, “para que ela não mais estivesse entre eles, que poderiam viver livremente seu amor”. Caravaggio, sorrindo, aproxima-se para beijá-lo, mas, com o velho e inseparável punhal, corta-lhe a jugular e deixa que ele escorregue entre seus braços até cair morto no chão.
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Retorno ao quarto do pintor moribundo, quando ele delira, vendo-se menino, trajado como anjo, com Pasqualonne e Ciccilia, observando uma “procissão de Cristos” de túnicas negras carregando suas cruzes. Lembra-se, repetindo apenas a própria fala, de quando tocou o pênis do irmão e masturbou-o pela primeira vez. Momento importante este flashback, porque traz à cena o estigma da homossexualidade, conotando, talvez, culpa por razões religiosas, uma das contradições da personalidade do artista, segundo o cineasta. Desperto violentamente, momentos antes de morrer, luta com um sacerdote que tentava fazê-lo segurar um crucifixo para receber a extrema-unção. Joga-o longe e sussura ao ouvido de Jerusaleme para que lhe dê o punhal que possuía desde a adolescência, quando fora “confiscado” por Del Monte e trocado pela pintura “O tocador de alaúde” (100 x 126,4 cm, 1596-97), em cuja lâmina mandara gravar, ainda àquela época, “sem esperança, sem medo”. Com ele nas mãos, morre. Jerusaleme chora copiosamente e, mais tarde, três carpideiras e dois homens portando velas participam dos ritos finais. Jerusaleme sopra o apito que a mãe lhe dera, mas nele não há mais som. Jerusaleme sorri. Resumido assim o núcleo central da fábula, posso
dedicar-me ao exame de algumas características sintáticas, além dos citados foco narrativo em primeira pessoa, pelo protagonista da ação, e dos recorrentes flashbacks, dos quais apresentei apenas aqueles estritamente necessários para a compreensão do fluxo acional, ou ritmo do relato, quase todo lento, compassado. Estruturalmente, temos como preâmbulo a chegada do jovem Michelângelo a Roma e sua “proteção” pelo Cardeal Del Monte, período em que realiza as primeiras obras e obtém os primeiros êxitos, tornando-se conhecido; o início da ação quando, maduro, “compra” o menino Jerusaleme; e a instauração do conflito no momento em que, anos mais tarde, conhece Ranuccio e Lena, e entre eles desencadeia-se um relacionamento aparentemente harmônico, com manifestações de ciúme dela e, posteriormente, dele (quando é presenteada com o vestido e as jóias com que acompanharia o pintor à festa no Vaticano, embora Ranuccio também tenha ido, como Pepa - a modelo da obra exposta - e Jerusaleme). O crescimento da tensão narrativa dá-se com o assassinato de Lena, o qual não é mostrado, a execução da obra “A morte da Virgem” (citada), em que seu corpo é usado como modelo; o choro copioso do protagonista com o mesmo nos braços; a
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prisão de Ranuccio e a intercessão de Caravaggio. O clímax ocorre com o reencontro dos dois homens, a confissão do primeiro e seu assassinato, como vingança por Lena, pelo segundo. O desfecho ou desenlace ocorre no retorno ao quarto de Caravaggio moribundo, quando recusa o último sacramento e morre segurando, em vez de o crucifixo, símbolo da religião, o punhal, símbolo de sua vida de paixões desregradas, com a legenda que ele escolhera para ela, gravada na lâmina. O que há de mais revolucionário no filme de Jarman não é, evidentemente, o uso dos inúmeros flashbacks, técnica cinematográfica herdada da literatura antiga. A poesia épica, da qual provém o gênero narrativo, é cheia deles, desde a “Ilíada” e a “Odisseia”, de Homero, passando, em Língua Portuguesa, pelos “Lusíadas”, de Camões (em que se destaca a narrativa de Vasco da Gama ao rei de Melindre), e, no Brasil, pelos conhecidos “Caramuru”, do mineiro, frei José de Santa Rita Durão, ainda no período Barroco, e “A confederação dos Tamoios”, do carioca Domingos José Gonçalves Dias, representante da Primeira Geração do Romantismo. Auerbach (2015: 1-20), exemplifica de maneira não muito favorável tal estratégia narrativa na citada “Odisseia”, no tópico “Mimesis”, no episódio intitulado “A cicatriz de Ulisses”, e discorre longamente sobre os efeitos expressivos obtidos pelo poeta referido, além de compará-los, principalmente
sob o ponto de vista da descrição verbal apresentada no poema, (cheia de detalhes, adjetivada, abundante) com o episódio “O sacrifício de Isaac”, texto bíblico atribuído pela tradição a Moisés. Compara, portanto, textos de tipos diversos: o primeiro, literário ficcional, estruturado como flashback, produzido para a fruição estética, com o segundo, não exatamente literário, porque a tradição judaico-cristã qualifica-o como “histórico” e simultaneamente “inspirado” sobrenaturalmente, estruturado em cronologia linear, produzido com finalidade moralizadora, isto é, para promover obediência irrestrita a Deus. O último episódio, bem ao gosto da dramaticidade barroca, recebeu de Caravaggio, fundador e expoente do Barroco nas artes visuais, duas versões em pintura, ambas acima citadas. Outros são os elementos que aproximam Jarman de Caravaggio. A capacidade de inovar, sobretudo. No primeiro pela iluminação contrastiva, com mais de um foco de luz iluminando a cena, pela escolha de tipos populares como modelos, pela infinidade de detalhes apresentados sem prejuízo da unidade do conjunto dos elementos da obra. Também pelo enquadramento próximo, muitas vezes na maneira que o cinema, séculos depois denominou “plano americano” (não falo dos retratos, em que ele é obvio, mas de “cenas”, como “A adivinha” – 99 x 131 cm, cerca de 1596-1597 - e os citados “Os batoteiros” e “A conversão de Madalena”. Além deles, a
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originalidade dos temas populares, em obras leigas. No segundo, também pela iluminação contrastiva, com também vários focos de luz nas cenas, e pela capacidade de compô-las sinteticamente. Quanto ao enquadramento, interpreta a proximidade do olhar caravaggiano com a escolha de realizar todas as cenas em estúdio, como cenas de interior, causando efeito análogo ao obtido pelo pintor. Interpreta-lhe também os matizes colorísticos, não apenas o contraste de valores tonais. O calor dos vermelhos, como os profundos, dos panejamentos suspensos como cenário que o pintor escolhera, como os intensos escarlates de “São Jerônimo escritor” (112 x 157 cm, cerca de 1606), já exposto no MASP, e os vermelhosterra. Principalmente “Terra de Siena Queimada”, nome que os artistas deram ao pigmento de argila cozida, como aparece em cena em que Jerusaleme moi a terra no almofariz de mármore. Também os ocres, em roupas como as túnicas de Abraão e São Mateus, na segunda versão de “São Mateus e o Anjo” (295 x 195 cm, 1602); os alaranjados, em madeiras envernizadas de tonalidades claras, como nos instrumentos musicais presentes em várias obras do pintor e cenas do filme, e ainda marrons profundos e graves a contrastar com carnações pálidas, coradas ou queimadas de sol. Verdes esbatidos e azuis da Prússia , bem como os brancos acinzentados, matizados por uma destas duas cores, fazem contaponto numa escala de complementaridades divídicas e triádicas às cores quentes destacadas. Assim, Jarman preenche a grande tela cinematográfica com as imagens “picturais” com o movimento real, desenvolvido no tempo e na ação factual das personagens vividas pelos atores que lhas dão corpo, matéria e expressão corporal, gestual, fisionômica, detalhadamente. Também de sons ambientais esdrúxulos, como a narrativa de uma partida de futebol e o som de grande aglomeração humana, em cena na taverna, e de outros coerentes com as cenas, como sinos, vozes, além de músicas, barrocas ou não, e o indefectível apito de Jerusaleme. Muitas outras relações entre o filme e as obras pictóricas ainda poderiam ser detalhadas aqui, mas, para finalizar, quero concentrar-me no aspecto da hipótese de o filme constituir uma tradução intersemiótica do conjunto das mais conhecidas produções plásticas caravaggianas. Justifico tal idéia
pelo fato de o cineasta tê-las escolhido conforme se relacionam com situações narrativas ficcionais alicerçadas em situações biográficas da vida do pintor e não aleatoriamente. Todas enquadram-se perfeitamente na estrutura narrativa, criando um todo coerente de forma, ritmo e verossimilhança inequívoca. Assim, posso qualificar o filme de Jarman como um texto semiótico produzido a partir de uma lei geradora análoga a (o conjunto) da(s) lei(s) geradora(s) da obra de Caravaggio, com as quais estabelece relações isomórficas, isto é, de “mesma forma”, em sentido lato, pelo modo de organização estrutural, o qual estabelece com as mesmas relações bastante abrangentes e compreensivas. Não é descabido afirmar, e o faço aqui, que constitui uma “tradução intersemiótica” complexa das obras também complexas do pintor italiano.
BIBLIOGRAFIA: ARNHEIM, Rudolf. Arte e percepção visual. São Paulo: Cengage Learning, 2011 (trad.: Ivonne Terezinha de Faria) AUERBACH, Erich. Mimesis: a representação da realidade na literatura ocidental. São Paulo: Perspectiva, 2015 (trad.: J. Guinsburg) CAMPOS, Haroldo Browne. Metalinguagem e outras metas. São Paulo: Perspectiva, 1992 COMPARATO, Doc. Da criação ao reoteiro: teoria e prática. São Paulo: Summus, 2009 CUNHA, Celso. Nova gramática do Português contemporâneo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001 FIELD, Syd. Manual do roteiro: os fundamentos do texto cinematográfico. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001 (trad.: Screenplay) GOMPERTZ, Will. Isso é arte? 150 anos de arte moderna do impressionismo até hoje. Rio de Janeiro: Zahar, 2013 (trad.: Maria Luiza X. de A. Borges) HIDALGO, João Eduardo. Autocitação paródica em Pedro Almodóvar: uma Poética da modernidade.
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Revista Poéticas Visuais, UNESP, no. 1, 2010, pp.81-95 ____________________ . Docudramas de La movida madrilena: “Pepi, Luci, Bom Y otras chicas del Montón” e “Labirinto de Passiones”, do cineasta espanhol Pedro Almodóvar, Revista Conexão, UCS, no. 15, 2009, pp. 165- 184 HUTCHEON, Linda. Uma teoria da paródia. Lisboa, Edições 70, 1985. (trad.: Tereza Louro Pérez) JAKOBSON, Roman. Linguística e comunicação. São Paulo: Cultrix, 1977 (trad.: Izidoro Blikstein e José Paulo Paes)
Escolho o adjetivo ‘caravaggiano’ para significar “próprio de Caravaggio” e não ‘caravaggesco’, que significa “à moda de Caravaggio”, frequentemente empregado, de maneira errônea, no primeiro sentido.
Expressão preconceituosa, talvez, mas de uso comum entre seus biógrafos mais conhecidos.
Elemento útil para a análise comparada com a
LAMBERT, Gilles. Caravaggio: 1571-1610. Colônia: narrativa cinematográfica, à qual será procedida Taschen, 2001 (trad.: Zita Moraes)
adiante.
MOISÉS, Massaud. A literatura brasileira através dos textos. São Paulo: Cultrix, 1995
Não do ponto de vista meramente biológico, mas
_______________ . A literatura portuguesa através estrutural da forma. dos textos. São Paulo: Cultrix 1997
NIETZSCH, Friederich. O nascimento da tragédia, ou helenismo e pessimismo. São Paulo: Cia das Termo estrito da teoria literária, significando Letras, 1992 (trad.: J. Guinsburg) PLAZA, Júlio. Tradução intersemiótica. São Paulo: Perspectiva, 1987
“resumo do relato” e não no significado corrente de estória fantasiosa moralizante.
PRESTES, Rogério. Um poeta de vanguarda dialoga com as artes visuais: a transcriação interpoética de Haroldo de Campos. Dissertação de Mestrado. São Paulo: PUC-SP, 1997 SPROCCATI, Sandro. Guia de história da arte. Lisboa: Editorial Presença, 1997 (trad.: Maria Jorgew Vilar de Figueiredo) WELLEK, René ET WARREN, Austin. Teoria da literatura. Mira-Sintra: Ed. Francisco Lion de Castro (trad.: José Palla e Carmo)
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As múltiplas facetas de Percival Tirapeli Oscar D'Ambrosio UNESP/ACI & Daniel Patire UNESP/ACI
A exposição foi uma excelente oportunidade de conhecer um apaixonado por arte sacra que, desde seus 15 anos, cuidava de um museu, em Aparecida, no Seminário de Santo Afonso. Em meados dos anos 1960, junto com padres da região, Tirapeli foi recolhendo imagens que estavam nas capelas das antigas fazendas do Vale do Paraíba, reunindo um material hoje guardado e preservado no museu que fica na Torre da O material foi montado na ordem cronológica, Basílica de Aparecida. desde obras da primeira exposição do artista em 1968, em Aparecida (SP), experimentos com xerox, em 1973, e exposições no MAC (Museu da Arte Contemporânea) da USP. Merecem destaque peças de instalação feita para uma sala na Bienal de Artes de São Paulo, de 1977, e criações com forte presença da figuração, com temas da mitologia grega, nos anos 1980. De 20 de junho a 15 de julho de 2015, o Instituto de Artes (IA), Câmpus de São Paulo, recebeu a retrospectiva 'Arte sobre Arte', que celebrou os 40 anos de atividades plásticas e didáticas do professor do IA, pesquisador e artista Percival Tirapeli. Mais de 80 de suas obras foram distribuídas na Galeria de Arte e por outros espaços do Instituto.
O conjunto reuniu também obras abstratas, esculturas, gravuras, heliografias e livros de Tirapeli. Foi possível assim verificar como Pesquisa, Ensino e Publicação caminham juntos em uma carreira marcada pela busca constante de novos dados sobre a arte barroca, pela procura de inovações em sala de aula e por uma intensa produção bibliográfica sobre os patrimônios culturais brasileiros. 51
A capacidade de gerar livros e de orientar dissertações e teses acadêmicas esteve sempre ao lado da criação artística. Isso pode ser verificado, por exemplo, em pinturas feitas para uma exposição sobre os 500 anos do Brasil em Roma. São trabalhos com um forte viés antropofágico, onde figuras de indígenas aparecem amalgamadas a símbolos da cultura ocidental.
Mesclando as suas raízes, fincadas no Vêneto, região do nordeste da Itália, de onde são seus antepassados e que visitou várias vezes, o seu tronco de desenvolvimento, a infância passada no universo sacro do Vale do Paraíba, com Aparecida como centro motriz, e as suas folhas que se multiplicaram espalharam numa ampla carreira na docência universitária e como autor de livros de artes, a exposição de Percival Tirapeli no IA não deve ser reduzida a uma jornada formal ou estética. Trata-se da apresentação de uma vivência em que a busca pela simplicidade libertadora convive em harmonia com a intelectualidade e as referências obtidas ao longo do tempo.
Em boa parte dos trabalhos é possível ver um diálogo do artista Percival com o pesquisador do barroco Tirapeli. As suas obras são em geral repletas de movimento e de cor, o que as faz conversar com a expressão pictórica de Peter Paul Rubens, um dos maiores representantes do barroco na Europa do século XVII. Porém, a dramaticidade e a figuração de Caravaggio um dos mais notados pintores italianos, atuante em Roma, Nápoles, Malta e Sicília, entre 1593 e 1610, também se fazem presentes, assim como a alegria Oscar D'Ambrosio, Doutor em Educação, Artes e História da Cultura pela Universidade rococó de Tiepolo (1696-1770). Mackenzie e Mestre em Artes Visuais pelo O IA recebeu ainda uma instalação que discute o Instituto de Artes da Unesp. É assessor-chefe da processo de correção e edição dos textos Assessoria de Comunicação e Imprensa da praticado por Percival inúmeras vezes ao longo Unesp. de sua trajetória. Foram reunidos, uma carteira do grupo escolar de máquina de datilografia e todos professor/artista/pesquisador ao anos de publicações.
por exemplo, Tirapeli, uma os livros do longo de 15 Daniel Patire, jornalista, atua na Assessoria de Comunicação e Imprensa da Unesp.
A exposição contou com o acervo pessoal de Tirapeli, já que ele conseguiu guardar dois ou três trabalhos de cada exposição feita, e obras de colecionadores cedidas especialmente para a ocasião. Assim, o conjunto reuniu 40 anos de carreira de artista plástico e 28 anos de atuação como professor da Unesp, numa trajetória também cristalizada no lançamento do livro 'Arte sobre a Arte na obra de Percival Tirapeli', em que artistas e críticos de arte falam sobre a sua produção.
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Duda Penteado – Roots & Fragments, A Journey to a Mental Territory George Nelson Preston, Ph. D. Art Critic & Emeritus Professor, Art History, City College of CUNY Co-Founding Director, Museum of Art and Origins, NYC.
“Working for the recovery of the voluntary unconscious, I rebuild history, the “lost memory “, brimming with references, symbols and signs. Through this journey , I recover my identity, first as a Brazilian citizen and next, as a global citizen.” Duda Penteado
Brazil and USA. We talked about the possibilities of a new turn in his work, in a new direction away from WTC tragedy. We talked about what it means to be a Brazilian living between the United States and Brazil; the meaning of being a Brazilian with a perspective on Brazil from a Northern place --and of course as a Brazilian. It occurred to me that in spite of the country's troubles Brazil was moving forward, especially in terms of social culture. I had first arrived in Brazil in 1987 so I was aware of how its social culture was changing. The social history of Brazil, especially the conflict ridden confrontations with its indigenous populations and the legacy of slavery was being discussed increasingly more open. I asked aren't systemic erosions of human dignity as tragic as a single cataclysmic event? We felt that Brazil was in a greater state of introspection than ever before. Why not make more art works about Brasil?
I first et Duda Penteado at Monique Goldstrom Gallery in Soho, New York where he was exhibiting his art installation called ; Follow My Voice, on February, 2002. At that time almost all of his work was in response to WTC attacks in New York City. The universal implications of the events of September 11, 2001 had become something of an obsession with Duda Penteado, and led him to produce several interpretations of the massacre, while quoting parts of Picasso's Guernica in order to assemble compositional structures for several versions of The Way of Seeing one of the most significant tragedies of the turn A spiritual sensibility and mystical sentiment are of the millennium . part of the subject matter of Penteado's work. Few years ago, probably around 2012, Duda and This evokes that 'Tropicalismo' attendant in the I were having a conversation about the nature of work of predecessors such as Rufiño Tamayo and his on-going projects --mostly public art works in Wifredo Lam, Emilio and Lito Cavalcanti. These are 'engagé' paintings because of their social 53
implications but the feeling of extra-worldliness is always prescient. This intangibility, however, is part of the expressive content and supported by the tangible/tactile/visible form. One senses, but can never physically touch the mystical/spiritual aura of these works. There is reference in these works of art which acknowledges social concerns of Brazil. But the representation of the local contexts and personae of these paintings share a universality. Technique Penteado’s application of paint is direct and spontaneous. The approach has an affinity to the way paint was applied to the canvas during the glory days of Abstract Expressionism. But here the spontaneity is guided by prepared sketches on drawing pads and the arrangement of sand and cement on the canvas.
ILLUSTRATION
ILLUSTRATION Serra da Capivara / Cliffs of Capivara ( 2015 ) pays hommage to the indigenous rupestral paintings left by pre-industrial Brazilians on cliffs in Piaui. Similar works of ancient Amerindian artists also exist in northern Argentina and other parts of the south American and north American continents. But to pay hommage to the rock murals of the cliffs of Piaui must make us reflect on the knowledge that long before the arrival of the Europeans the region was more sustainable than it is now. The scenes of full of the hunt of grass feeding quadrupeds. This is the Piaiu of constant human drift. The Piaiu of Jose Olinto's emancipated slaves who leave this depressed area seeking a better life in Nigeria at the turn of the 20th century. Duda's essentialist style blends well with the forms of the rupestral artists; basic, primary, essentialist.
In Certão Iluminado /Badlands by Moonlight (2013 ) two iconic images of the unforgiving terrain of northeast Brazil are fused. These are surely the desiccated tree and the wanderer in search of a less severe place in this vast and perpetually impoverished arid zone. ILLUSTRATION In Clube Privado / Private Club (2014 ) wry wit is at play. The artist succeeds within a single painting to evoke the sense of a smoke filled room of an 'ol boys' club while simultaneously evoking the loneliness of exclusion of an individual beyond the confines of four walls. The exclusion in the macrocosm of society represents the condition of the microcosm.
George Nelson Preston, Ph. D. Art Critic & Emeritus Professor, Art History, City College of CUNY Co-Founding Director, Museum of Art and Origins, NYC. 54
Falsificadores, hoaxes, Han van Meegeren e Carlos Mirandópolis João Eduardo Hidalgo FAAC/UNESP
Falsificações sempre fizeram parte da sociedade chamada humana, pois ela pressupõe produção de sentido, e nesta semana fomos surpreendidos (mais ou menos) com a notícia da existência (e permanência) de um perfil falso sobre um grande jurista e filósofo, na quase nunca confiável Wikipédia, a autoproclamada enciclopédia da internet. O perfil com data de nascimento e de falecimento, trajetória, principais obras e atuação foi criada por dois advogados paulistas, em 2010, com o intuito de escarnecer de estagiários que usavam muito (e acredito que somente) da fácil e sedutora rede mundial. Não sei qual será a conseqüência para os advogados, mas fica difícil acreditar em boa intenção quando a página ficou mais de cinco anos disponível, foi usada como fonte em documentos judiciais, acadêmicos e num documentário, sem que eles revelassem o engodo. Os usuários desta informação merecem um puxão de orelha, pois uma única fonte não é fundamento plausível para trabalhos de maior seriedade, eles deveriam ter ampliado a pesquisa. Ilustrando o tema proponho lembrarmos outros dois embusteiros, de áreas diferentes: Stephen Glass, jornalista do The New Republic de Washington e o falsificador de pinturas do norte da Europa Han van Meegeren (1889-1947). Stephen Glass, jovem jornalista americano, nascido em 1972, era editor-associado da prestigiada revista The New Republic, a única que estava sempre presente no avião presidencial. Em 1998 ele teria coberto em Washington uma convenção de hackers, onde um imberbe expert
em burlar sistemas de segurança de empresas, Ian Restil, de quinze anos, teria sido contratado por uma grande empresa para protegê-la de ataques, como os que ele teria supostamente perpetrado. Entre as frases transcritas por Glass estariam ‘Show me the Money’ (Mostre-me o dinheiro), I want a Miata (Eu quero um conversível) e ‘I want a trip to Disneyworld’ (eu quero uma viajem para a Disney). O artigo ‘Hacker haven’, publicado em maio de 1998, chamou a atenção do jornalista Adam Penenberg da Forbes digital, que sendo do ramo foi procurar alguns dos dados citados no seu buscador da internet e teve como resultado um redondo zero. Penenberg fez um contato direto com a The New Republic e com Glass e só conseguiu informações esparsas, e-mails que voltavam e telefones que caiam em caixas postais. Devemos lembrar que Stephen Glass era também colaborador de conceituadas publicações como Rolling Stone, Harper’s e George (a revista do falecido John Kennedy Jr). Glass foi demitido e toda a equipe do The New Republic, agora acordada, verificou a sua produção e chegou a inacreditável conclusão que, de 41 artigos publicados no veículo, 27 eram falsificações, parciais ou totais. Logo depois do escândalo Glass escreveu um livro sobre o caso The Fabulist, sem nenhum sucesso, já que seu forte era mentir, e não criar personagens e histórias a partir da imaginação, para ele era fácil distorcer a realidade e apresentá-la do seu ponto de vista esquizóide. O caso está debilmente apresentado no filme Shattered glass (2003), equivocadamente traduzido para o português como O preço de uma verdade, não se trata da verdade no filme; e o protagonista, o inexpressivo Hayden 55
Christensen, não consegue construir o personagem Glass com uma credibilidade mínima. Adam Penenberg, o eficiente jornalista da Forbes, apurou devidamente o falso artigo e publicou o seu arrazoado com o título de Lies, damn lies and fiction (Mentiras, tremendas mentiras e ficção), que ele inicia assim: ‘É difícil desvendar uma mentira. E é mais difícil ainda provar que algo ou alguém não existe’. Este desabafo/aviso foi feito quando a internet comercialmente tinha meros três anos de existência. Já o pintor holandês Henricus Antonius van Meegeren depois de formar-se na Academia Real de Haia obteve algum sucesso com suas pinturas, mas foi classificado por críticos como um copista do renascimento, que tinha um talento faltando, a originalidade. Cansado de tentar fazer o que já havia sido feito em arte, ele encontrou na falsificação seu objetivo de vida e especializou-se em fabricar ‘originais’ da idade de ouro da Holanda, especialmente Johannes Vermeer. Um exemplo, a suposta pintura original de Vermeer The supper at Emmaus foi vendida para um grande colecionador de Mônaco e acabou sendo exibida num museu em Rotterdam. A infelicidade de Meegeren foi ter vendido um Vermeer (falso) para o líder nazista Hermann Goring, que orgulhoso passou a exibi-lo na sua mansão Carinhall, perto de Berlim. Quando Goring percebeu que a Alemanha havia perdido a guerra, explodiu Carinhall e levou suas pinturas e objetos de arte para minas de sal na Áustria, onde elas foram descobertas pelos aliados. Meegeren foi identificado como o vendedor do desconhecido quadro de Vermeer e foi preso como colaborador. Para fugir da forca teve que revelar todas as suas falsificações e pintar um quadro inspirado na renascença na frente do júri, e foi absolvido. Para conhecer o caso de Meegeren vale a pena ler a excelente pesquisa feita por Frank Wynne que resultou no prazeroso livro Eu fui Vermeer. De qualquer maneira Glass e Meegeren são estafadores e merecem estar em uma malta rasteira; sem originalidade e sem força poética de criação, escolheram copiar e distorcer a realidade e as obras alheias. Tenho a mesma opinião de
Umberto Eco (1932-2016), o mau profissional presta um desserviço as categorias onde estão inseridos. Em seu último romance Número Zero, Eco cria a trama de um grupo de jornalistas, sem escrúpulos, que se põe a fabricar o número zero de um jornal que não tem nada de informativo ou investigativo é pura intenção de difamar, inventar, distorcer para chantagear políticos, empresários e inclusive o Vaticano. Este jornal levava a denominação de zero, pois não havia sequer a intenção de publicação, a sua existência nas profundezas de uma redação já bastava para alcançar o seu objetivo. Número zero apresenta conspirações verdadeiras e uma falsa, despertando no leitor uma desconfiança na tão apregoada isenção jornalística. E Eco vai além, traçando um paralelo diz que a internet deu oportunidade para que todos os que não têm nada a dizer, opinem sobre tudo o que não conhecem e realizem uma diatribe em tempo real. Fomos surpreendidos com a revelação deste perfil falso, que se tornou referência e por isto ficou cada vez mais ‘real’, pensemos em nossas ações frente à enxurrada de informação que a internet, principalmente as redes sociais, nos brindam diariamente. A Wikipédia tenta se defender colocando um alerta de hoax (farsa) na página, depois de manter a mesma por anos; não convence e nem parece uma atitude séria. As pinturas falsas de Meegeren foram referendadas por colecionadores e por museus; os artigos chulos de Stephen Glass pelo próprio veículo onde ele trabalhava. Na esteira da perda de Umberto Eco, um dos grandes eruditos que a humanidade já teve, devemos desenvolver, como ele, uma postura crítica em relação às produções culturais que nos são apresentadas e procurar recebê-las com racionalidade e com um mínimo de desconfiança até que se comprove sua autenticidade, que pode ser realizada com pesquisa, contextualização, fruição e com parcimônia.
Publicado link: Assunto: boa notícia!http://www.estadao.com.br/noticias/gera l,os-destaques-do-estadao-noite-desta-sexta-feira-26,10000018500 56
Isto aqui, ô, ô, é um pouquinho de Brasil, Iaiá! Miguel Falabella e Arthur Bispo do Rosário Maria da Graça Berman Atriz é Pós-Graduanda pelo Instituto de Artes UNESP
O musical norte-americano O HOMEM DE LA MANCHA pertence à história do teatro paulista, com duas montagens de sucesso, diferentes entre si. A primeira foi feita em 1972 e dirigida por Flávio Rangel; a segunda estreou em 2014, com direção de Miguel Fallabela. Fiel ao texto original, Flávio ambientou sua montagem em um calabouço espanhol do século XVI, enquanto que Falabella a colocou em um hospício carioca dos anos 30. Haveria uma traição estética na montagem de 2014? Cremos que não, pois ela nos permite a busca de novos significados, fiéis ao princípio de que o sentido das obras de arte, assim como o da própria história, é sempre produto de uma construção.
O homem cria objetos estéticos não apenas pela sua função prática, mas, principalmente, pela possibilidade de exercer seu potencial criativo ao optar pela ordem de disposição dos elementos constituintes, pelo acréscimo ou eliminação de peças integrantes e pela combinação especial dada ao conjunto. Vivemos bombardeados por informações e obras de arte, contemporâneas ou do passado, que questionam a originalidade das criações artísticas, promovendo a intertextualidade como processo integrante dos atos de produção e de recepção estéticas. Uma montagem teatral deve ser pensada a partir do diálogo proposto com a sua época e com as demais criações artísticas. É o que tentaremos esboçar neste artigo sobre O HOMEM DE LA MANCHA. 57
Ô, Ô, BROADWAY!
sentido desta peça que explicita seu ponto de partida, tornando o público consciente e cúmplice da intertextualidade paródica posta em cena. Partindo da análise de Linda Hutcheon, entendemos a paródia como um processo que vai muito além da imitação ridicularizadora a qual é constantemente associada em dicionários e que se diferencia do pastiche, da citação e da alusão. A autora se propõe a analisar a paródia como um processo integrado de modelação estrutural, de nova execução, de inversão e de uma contextualização mais abrangente de obras artísticas anteriores. Há, portanto, continuidade e mudança, há uma imitação que inclui diferença crítica. A paródia ocorre entre os limites do ridículo e da homenagem reverencial.
Capa do texto original da peça
Dale Wasserman certamente faz uma homenagem a DOM QUIXOTE DE LA MANCHA e ao seu autor, Miguel de Cervantes. Porém, seu texto teatral vai além. Sua canção mais genial, O Sonho Impossível, transcendeu os limites da peça, sendo gravada e cantada por artistas dos mais diversos estilos, como Elvis Presley, Plácido Domingos e Maria Bethania, entre outros. Acreditamos que esta música pode nos dar uma pista de leitura de O HOMEM DE LA MANCHA e, consequentemente, das duas montagens brasileiras.
Com texto de Dale Wasserman, músicas de Mitch Leigh e letras de Joe Darion, o musical foi encenado pela primeira vez na Broadway em 1965 e ganhou 5 prêmios Tony. A peça se passa no período da inquisição espanhola, quando Miguel de Cervantes é aprisionado e jogado num calabouço em companhia de ladrões e assassinos. Em um julgamento realizado pelos seus companheiros de cela, ele se defende, contando a AI, AI, IAIÁ! 1972-2014 história de Dom Quixote. Inicialmente, as montagens ocorreram em Temos uma obra original criada a partir da momentos históricos que diferenciaram seus referência direta a outra que lhe é anterior, que, processos criativos e receptivos. Ou seja, artistas neste novo contexto, ganha uma nova função: e públicos sonhavam de maneiras bem diferentes deixa de ser literatura para se tornar teatro e nos dois períodos. reforça um aspecto que tornou universal o personagem de Cervantes: ele tenta com todas as suas forças viver uma utopia. Criando uma peça dentro da peça, o autor deu liberdade a várias possibilidades de leitura e de montagem de seu texto, que, se são sempre inerentes ao processo artístico, no seu caso poderia se dizer que já estavam previstas pela estrutura discursiva original. Tais associações criativas são componentes indispensáveis à construção do
Em 1972, sob a presidência do General Médici, a ditadura estava em seu período mais repressivo: censura aos meios de comunicação, proibição de manifestações públicas, milhares de mortos e desaparecidos, tortura física e psicológica de presos políticos e violação sistemática dos direitos humanos. O Brasil vivia o milagre econômico, facilitando o crédito, desvalorizando o câmbio, incentivando as exportações e 58
contando com um cenário externo favorável. De acordo com dados do IBGE, o PIB crescia a uma taxa anual de 11,1%; a inflação era de 15,7% ao ano; o desemprego rondava os 3,1% e o salário mínimo era de Cr$ 268,80, cerca de 70 dólares, em valores atuais. A renda brasileira crescia, mas não era distribuída para todos: os lucros concentravam-se nas mãos de poucos e a desigualdade social acentuava-se abertamente: 10% dos mais ricos detinham 48,35 % dos recursos. Em 2014, o país viveu um período de protestos dos mais variados setores sociais, exigindo a ética na política, o fim da corrupção e da impunidade e a melhoria dos serviços públicos. A partir de março, a Operação Lava-Jato passou a investigar um grande esquema de lavagem e desvio de dinheiro envolvendo a Petrobras, levando à prisão de políticos, empreiteiros e administradores da estatal. Em meio a críticas contra o governo, à FIFA e aos milhões de dólares gastos para a sua realização, o Brasil sediou a Copa do Mundo de Futebol e viu a sua seleção ser goleada por 7x1 pela Alemanha. No segundo turno das eleições presidenciais, Aécio Neves do PSDB e Dilma Roussef do PT fizeram uma das mais apertadas eleições da história, vencidas pela petista por apenas 3,28 % dos votos. Dividido, o país passou a viver repetidas manifestações de confrontos e de intolerância. O salário mínimo valia R$ 724,00 (cerca de 180 dólares, em valores atuais), a taxa de desemprego era de 4,8% e o crescimento foi de somente 0,1% do PIB. Embora melhores, os índices de concentração de renda no Brasil continuaram absurdos: 10% dos mais ricos detinham 41,7% dos recursos. Ô, Ô, DOM QUIXOTE!!
DOM QUIXOTE, Pablo Picasso, 1955
Nos seus 69 anos de vida, Miguel de Cervantes conheceu a prisão em dois momentos de sua vida. De 1575 a 1580, ficou preso na Argélia, detido pelos turcos que enfrentavam as tropas pontifícias nas quais ele havia se alistado. O resgate exigido era muito alto e seu pai, sem posses, teve de arrecadar dinheiro entre familiares, fidalgos e padres compadecidos. Após outras missões militares, Cervantes passou a se dedicar mais intensamente à literatura. Para sobreviver, tornou-se Comissário Real e Coletor de Impostos, a partir de 1585. Injustamente, foi acusado de desviar verbas e levado à prisão de Sevilha, onde parece ter iniciado a criação de DOM QUIXOTE DE LA MANCHA, obra prima que inaugurou o romance moderno, influenciou dezenas de artistas e legou à humanidade personagens emblemáticos e inesquecíveis. A obra foi editada em duas partes, em 1605 e 1615, um ano antes da morte de seu autor. Fazendo de seu personagem central um leitor enlouquecido pelas novelas de cavalaria, Cervantes realizou, segundo Linda Hutcheon, uma paródia literária, criando uma obra em diálogo com outras preexistentes, promovendo uma revisão crítica e estrutural, e dando uma nova função aos textos anteriores em um novo contexto estético. A inversão irônica característica da paródia já pode ser notada na apresentação de Quijana feita no primeiro capítulo: “... este fidalgo, nos intervalos que tinha de ócio (que eram os mais do ano), se dava a ler livros de cavalarias, com tanta afeição e gosto, que se esqueceu quase de todo do exercício da caça e até da administração dos seus bens; e a tanto chegou a sua curiosidade e desatino nesse ponto, que vendeu muitos trechos de terra de semeadura para comprar livros de cavalaria que ler, com o que juntou em casa quantos pôde apanhar daquele gênero; ...”. Entretanto, a intensão paródica original foi suplantada pela força arquetípica do personagem criado: um sonhador, incansável e imbatível na luta pelos seus ideais, valores e crenças. Superando a forma estética das novelas de cavalaria, DOM QUIXOTE DE LA MANCHA 59
é uma obra singular: “Talvez os artistas paródicos não façam mais do que apressar um processo natural: a alteração das formas estéticas através dos tempos. Da união do romance de cavalaria com um novo interesse literário pelo realismo cotidiano surgiu Don Quixote e o romance, tal como o conhecemos hoje. Obras paródicas como esta (obras que conseguem, efetivamente, libertar-se do texto de fundo o suficiente para criarem uma forma autônoma) sugerem que a paródia como síntese dialética poderia ser um protótipo do estado de transição neste processo gradual de desenvolvimento das formas literárias”
resta. Fazendo seu testamento, deixa grande parte a Sancho, com quem mantém o diálogo: “- Perdoa-me, amigo, o haver dado ocasião de pareceres doido como eu, fazendo-te cair no erro, em que eu caí, de pensar que houve e há cavaleiros andantes no mundo. - Ai!!, respondeu Sancho Pança chorando, não morra Vossa Mercê, senhor meu amo, mas tome o meu conselho e viva muitos anos, porque a maior loucura que pode fazer um homem nessa vida é deixar-se morrer sem mais nem mais, sem ninguém nos matar, nem darem cabo de nós outras mãos que não sejam as da melancolia”.
Dom Quixote luta para desfazer as ofensas imerecidas, para pagar as dívidas e sanar os prejuízos dos mais fracos e injustiçados, para banir as formas de repressão à liberdade e afirmação humanas. E, principalmente, para que a realidade seja vista e modificada pelo homem, de acordo com seus sonhos de paz e felicidade coletiva. O arquétipo quixotesco representa a aventura do homem na Terra, debatendo-se entre o sonho e a realidade. Certamente, são bem diferentes os sonhos pelos quais se debatiam os brasileiros nos anos de 1972 e de 2014.
Fiel à ironia até o fim de sua narrativa, Cervantes fez com que Quijana vivesse por mais três dias, enquanto sua sobrinha comia, a ama bebia e Sancho folgava. Tudo voltava a se passar como se a morte não estivesse ao alcance de todos. E não é assim que a humanidade tem vivido o tempo que lhe é dado permanecer sobre a Terra? Embora rude e iletrado, Sancho pode estar nos dando a chave para a compreensão da maior loucura de todas: o deixar-se morrer de melancolia.
Na época de Cervantes, a Igreja e a Inquisição espanholas reprimiam toda forma de crítica e de oposição, considerando pecaminosos os romances de cavalaria. Cervantes conseguiu driblar o controle religioso, escrevendo, produzindo e editando a sua obra-prima. Valendo-se da paródia irônica e bem-humorada, a obra conseguiu escapar das garras da Inquisição, atravessar os séculos e estimular todos aqueles que têm ousadia e loucura suficientes para tentar transformar o mundo. Dom Quixote é um cavaleiro medieval em pleno século XVI, seus valores e ideais estão em completo descompasso com sua época. Ao seu lado, segue seu fiel escudeiro, Sancho, cuja única pretensão na vida é encher a pança e enriquecer-se de bens materiais. O romance se estrutura entre o idealismo de Quixote e o realismo popular de Sancho Pança. Triste, melancólico e renegando os livros de cavalaria, Dom Quixote desaparece e Alonso Quijana retoma as rédeas da pouca vida que lhe
AI! NUNCA MAIS!! Sabemos que a melancolia não era uma das características de Flávio Rangel. Pelo contrário, ele era um trabalhador de teatro, apaixonado e incansável. Em suas criações, buscava o equilíbrio entre emoção e pensamento, sendo lembrado como um grande encenador, que sabia comover o público com inteligência, que atraía milhares de pessoas para ver suas peças e que conseguia viver de teatro, atualmente um sonho quase impossível. Ele não fazia um teatro comercial, mas também não aderia ao experimentalismo e ao irracionalismo que estavam entrando em cena. Para seu biógrafo, José Rubens Siqueira, suas posições políticas e estéticas não o alinhavam diretamente aos blocos antagônicos de sua época, tornando muito caro o: “... preço que ele ia ter que pagar por se colocar abertamente contra a corrente da experimentação 60
de novas linguagens teatrais. Como não fechava também do lado dos encenadores meramente comerciais, ficava impossível enquadrar a sua posição individual nos contextos vigentes. Flávio tornou-se uma pessoa difícil para o preto-ebranco das opiniões exigidas pelo clima dominante no país” Em 1970, Flávio se viu desempregado, após 12 anos de carreira, 22 direções teatrais e os memoráveis sucessos de GIMBA (1959), LIBERDADE, LIBERDADE (1965) e ESPERANDO GODOT (1969). Passou a escrever artigos para o PASQUIM. O humor político do semanário carioca irritava os militares, que, em 1º de novembro de 1970, mandaram prender toda a redação e os funcionários do jornal. Após o período da incomunicabilidade e das trocas de cárceres, Flávio foi solto em 31 de dezembro. Dias depois, perdeu seu amigo, o exdeputado Rubens Paiva, preso e assassinado pela ditadura.
peça foi para o Teatro Anchieta, onde fez uma temporada de sucesso até 14 de novembro. As sessões lotadas e as longas filas de espera por ingressos extras motivaram os produtores a transferirem a peça para o Teatro Aquarius, onde permaneceu em cartaz até 30 de dezembro. Em 15 de janeiro de 1973, a peça inaugurou o luxuoso Teatro Adolpho Bloch, no Rio de Janeiro, com Grande Otelo fazendo o papel de Sancho Pança. A peça ficou em cartaz por 8 meses e, em 1974, fez uma temporada popular de janeiro a março, no Teatro João Caetano.
Flávio estava cansado do Brasil: de ser preso arbitrariamente, de ver seus amigos serem Revista Manchete anuncia a estreia da peça assassinados e de não conseguir fazer teatro. no Rio de Janeiro Estava até pensando em ir embora, quando foi convidado por Paulo Autran, para dirigir uma peça de Pirandello, que não teve muito êxito. Mas os deuses do teatro voltariam a sorrir para Flávio com o grande sucesso de ABELARDO E HELÓÍSA, estreado em 22 de setembro de 1971, no Teatro Paiol, em São Paulo. No início de 1972, veio A CAPITAL FEDERAL, musical feito por 30 atores que estreou no Teatro Anchieta, em São Paulo. Com estas peças, Flávio era o diretor de dois dos maiores sucessos de São Paulo. Ao Flávio Rangel, Bibi Ferreira, Murilo Alvarenga e Paulo mesmo tempo, já estava envolvido com a Autran nos ensaios da peça. produção de O HOMEM DE LA MANCHA, musical que voltaria a juntar no palco Paulo Autran e Bibi Ferreira. Partindo dos vários encarceramentos vividos por Cervantes, a peça se passava numa prisão. Ao A montagem estreou em 12 de agosto de 1972, longo dos séculos, muitos artistas e intelectuais no Teatro Municipal de Santo André, em São haviam sofrido a violência da repressão e, mesmo Paulo. Ao lado de Paulo Pontes, Flávio também assim, continuavam lutando pela liberdade. E isto era responsável pela tradução do texto. A Flávio conhecia bem de perto. Por ser muito montagem teve Paulo Autran, Bibi Ferreira e melhor ator do que cantor, Paulo Autran desistiu Dante Ruy nos papéis principais e mais 24 atores. de cantar SONHO IMPOSSÍVEL e passou a As letras das músicas foram traduzidas por Chico falar a seguinte letra de Chico Buarque e Ruy Buarque e Ruy Guerra. Em 1º de setembro, a Guerra, ao som da música original: 61
Sonhar mais um sonho impossível Lutar quando é fácil ceder Vencer o inimigo invencível Negar quando a regra é ceder. Sofrer a tortura implacável
social. No período mais duro da ditadura militar, o Dom Quixote de Paulo nos mandava sonhar pelo fim da infinita aflição e com uma flor que conseguiria brotar no impossível chão. Ainda que o maniqueísmo nunca seja adequado a uma análise crítica, a época favorecia o preto no branco: o inimigo estava claro e bem identificado. O sonho tinha um endereço certo. Bem diferente é o contexto de criação e de recepção da montagem de Miguel Falabella.
Romper a incabível prisão Voar num limite improvável Tocar o inacessível chão. É minha lei, é minha questão, Virar este mundo, cravar este chão. Não me importa saber Se é terrível demais, Quantas guerras terei que perder Por um pouco de paz. E amanhã se este chão que eu beijei Por meu leito e perdão Vou saber que valeu delirar e morrer de paixão. E assim, seja lá como for, Vai ter fim a infinita aflição. E o mundo vai ver uma flor Brotar do impossível chão! O público ia ao delírio e Paulo era aplaudido em cena aberta durante vários minutos. Provavelmente, a maioria dos espectadores transportava-se daquele calabouço espanhol para as prisões lotadas de brasileiros idealistas, que haviam sonhado o sonho impossível de viver em um país democrático, com liberdade e justiça
Ô, Ô, MUITO ALÉM!! A intertextualidade da montagem de Falabella se dá, principalmente, com a presença da obra de Arthur Bispo do Rosário. A peça é ambientada em um hospício onde ele viveu e sua poética está presente tanto nos figurinos, quanto no cenário da peça. Além disso, ele está personificado no personagem Governador, interpretado brilhantemente por Guilherme Santana. A trajetória de Bispo do Rosário concretiza a realização de um sonho impossível, ainda que, talvez, ele não tenha sido experimentado plenamente pelo seu criador. Como sua figura é fundamental na montagem do SESI, é importante observar alguns aspectos da sua vida e obra. Bispo do Rosário nasceu em Japaratuba, Sergipe, no dia 14 de maio de 1909 e morreu internado no Rio de Janeiro, em 5 de julho de 1989. Nos seus 80 anos de vida, foi marinheiro, biscateiro, boxeador e empregado doméstico. Na noite de 22 de dezembro de 1938, despertou com alucinações. Perambulou por ruas e igrejas do Rio, até subir ao Mosteiro de São Bento, onde anunciou a um grupo de monges que era um enviado de Deus, encarregado de julgar os vivos e os mortos. Dois dias depois, foi detido e fichado pela polícia como negro, sem documentos e indigente. Inicialmente conduzido ao Hospício Pedro II, na Praia Vermelha, foi diagnosticado como esquizofrênico- paranóico e transferido para a Colônia Juliano Moreira, em Jacarepaguá. Após alguns anos, trancou-se em um quarto e passou a produzir objetos a partir de materiais a que conseguia ter acesso, como botões, recortes de revistas e de jornais, linhas dos uniformes, 62
canecas, vassouras, garrafas plásticas, etc. O lixo e a sucata da Colônia começaram a se transformar em peças que lhe permitiriam relatar a Deus os acontecimentos e os sofrimentos vividos na Terra. A sua obra mais conhecida é o Manto da Apresentação que ele deveria vestir no dia do Juízo Final.
Face interna do Manto de Apresentação
Manto de Apresentação
A produção de Bispo do Rosário ficou conhecida a partir de uma matéria sobre a Colônia Juliano Moreira feita para o Fantástico, da TV Globo, em 1980. Procurando denunciar o depósito humano em que viviam os doentes mentais, o jornalista Samuel Wainer Filho foi surpreendido pela descoberta do seu trabalho. Em 1982, o crítico Frederico Morais incluiu suas peças em À MARGEM DA VIDA, exposição feita no MAMRJ. Em 1989, foi fundada a Associação dos Artistas da Colônia Juliano Moreira, para a preservação de suas criações, tombadas em 1992 pelo Instituto Estadual do Patrimônio Artístico e Cultural. Desde então, a obra de Bispo tem sido exposta nos mais importantes eventos culturais do Brasil e do exterior, como na mostra VIVA BRASIL em Estocolmo e na 46ª Bienal de Veneza. Atualmente, a Colônia Juliano Moreira foi transformada em um conjunto habitacional e abriga o Museu Bispo do Rosário, com mais de 800 peças do artista. Do interior de um pequeno quarto hospitalar, Bispo conquistou o mundo, recriando o seu universo com diversos materiais. Ele bordava painéis, escrevendo com agulha e linha nomes de pessoas, países e acontecimentos que não poderiam ser esquecidos diante de Deus. Por isso, cada palavra lhe era especialmente importante.
Movimentos como o Dadaísmo e o Surrealismo tentaram abolir as fronteiras entre arte e vida cotidiana, mostrando que os objetos mais banais da cultura de massa, podem ser estetizados, introduzidos como tema de outras obras ou incorporados em sua estrutura formal. Isso foi feito por Bispo do Rosário que, sem o saber, adotou procedimentos das vanguardas artísticas do início do século XX, recontextualizando objetos, pluralizando o seu significado e articulando um discurso crítico e estético. Como uma vez produzida, a obra de arte pertence ao mundo e não mais ao seu autor, entendemos que Bispo e tantos artistas contemporâneos promovem um deslocamento espacial de objetos corriqueiros, experimentando combinações inesperadas e possibilitando a existência de novas leituras simbólicas do cotidiano. Ainda que suas trajetórias não se cruzem objetivamente, é impossível não lembrarmos do trabalho de Nise da Silveira. Fugindo dos procedimentos de choque adotados nos tratamentos psiquiátricos de sua época, ela se dirigiu para a terapia ocupacional e fez do afeto o caminho para penetrar o mundo dos esquizofrênicos. Em 1946, no Centro Psiquiátrico Nacional, no Engenho de Dentro, Nise criou oficinas de artesanato e de atividades artísticas, lutando contra os espancamentos e os encarceramentos que caracterizavam as instituições psiquiátricas. Começaram a surgir as imagens que, manifestando as forças do inconsciente, procuram compensar a dissociação esquizofrênica, vencendo a desordem interior e reatando os vínculos com a realidade. Assim se formou o acervo do Museu de Imagens do Inconsciente, inaugurado em 1952. 63
A palavra ‘esquizofrenia’ foi cunhada pelo psiquiatra suíço Eugen Bleuler, em 1906. Ela resultou da união de dois radicais gregos: skhizein que significa fender, dividir, rasgar, separar; e phrênos que significa pensamento. Para Bleuler, todos os doentes mentais seriam esquizofrênicos, exceto os maníaco-depressivos, os neuróticos, os epiléticos e os orgânicos. Com Freud, a psicanálise trouxe um novo tratamento para os doentes mentais: “Quando Freud se dispôs a ouvir seus pacientes, ele restituiu à loucura seu poder de fala. (...) Freud reincorporou a loucura à ordem da subjetividade humana e tornou mais tênue a linha que, até então, separava o normal do patológico. Seus estudos sobre os sonhos, os lapsos, os sintomas e os chistes nos mostraram algumas das expressões da loucura que existem em todos nós” Embora discípula e tradutora de Carl Jung, a Dra. Nise repetiu o procedimento freudiano de restituir à loucura o seu poder de fala, fazendo da criação artística de seus pacientes a ponte de comunicação com os mais próximos e também com o público das exposições e dos museus brasileiros. Para os pacientes da Dra. Nise e para Bispo do Rosário, o processo de criação de obras de arte foi uma ponte para o reatamento de vínculos com a realidade interior e o contexto exterior, superando-se as condições brutais dos hospícios, verdadeiros calabouços humanos. Portanto, em termos objetivos, as ambientações das montagens de Flávio e Falabella não se distanciam tanto como podem sugerir à primeira vista. A questão da loucura se coloca para Bispo do Rosário e para O HOMEM DE LA MANCHA, já que além dos sintomas patológicos, é considerado louco todo aquele que se afasta dos padrões normais, que questiona o cotidiano massificado, que opta por pensar e por agir de uma forma diferente da maioria das pessoas. Em geral, artistas, cientistas e revolucionários se comportam dessa maneira, levando-nos a concluir que precisamos mais dos loucos do que dos seres humanos ditos normais. Precisamos de Bispo do Rosário e de Dom Quixote. Certamente, não pode ser considerado ‘normal’ alguém que se conforma e se enquadra
muito bem em um mundo marcado pela desigualdade, pela intolerância e pela ignorância. Precisamos de loucos que queiram mudar o mundo, seja intercedendo por nós junto a Deus ou combatendo as injustiças e conquistando a plenitude da existência humana. Sonhar não só mais um sonho, mas sempre um sonho impossível. AI!?!?... AI!?!? Na versão montada por Falabella, Dom Quixote e Sancho Pança são apresentados musicalmente, pelos seguintes versos: Eu sou eu, Dom Quixote, senhor de La Mancha, e o meu destino é lutar. Pois quem não se aventura, com fé e ternura, O mundo não pode mudar! Como a música original não fala exatamente em mudança do mundo, podemos perceber na versão de Falabella que os processos intertextuais acionados promovem a aproximação das loucuras de Bispo do Rosário e de Dom Quixote, pois a fé e a ternura são colocadas como instrumentos de transformação do mundo. O sentimento religioso de Bispo guiava a sua produção artística, encarada como uma missão divina para salvar a humanidade. Fiel aos valores cavalheirescos, Dom Quixote é terno com os fracos e oprimidos, enxergando-os como seres nobres e valorosos, vendo-os diferente do que são e lembrando-lhes a sua dignidade humana. O HOMEM DE LA MANCHA estreou em 3 de setembro de 2014, no Teatro do SESI, em São Paulo. Miguel Falabella foi responsável pela direção e pela tradução do texto da peça e das músicas. A montagem teve Cleto Baccic, Sara Sarres e Jorge Maya nos papéis principais. Com 35 atores e 17 músicos, as apresentações ocorreram de 4ª a Domingo, até 21/12/2014. Em 2015, a peça foi apresentada de 14 de janeiro a 28 de junho. Em 10 meses de temporada, foram feitas 276 apresentações para um público de 121.135 espectadores. A peça ganhou dois 64
Cena da montagem de Miguel Falabella
prêmios APCA (Melhor Ator e Melhor Espetáculo) e sete prêmios Bibi Ferreira, incluindo os de Melhor Figurino para Claudio Tovar, Melhor Direção, Melhor Musical e Melhor Musical pelo Voto Popular.
estão presentes em vários elementos cenográficos. Como podemos comparar nas fotos seguintes, o espaço de Aldonza praticamente reproduz a obra de Bispo do Rosário:
Mais uma vez, tivemos um ator negro fazendo o papel de Sancho Pança. A presença de Jorge Maya, um admirável cantor e intérprete, fazia alusão a Grande Otelo e à montagem de Flávio Rangel, funcionando como uma homenagem de Falabella aos artistas predecessores e estabelecendo uma linha de continuidade entre as duas montagens. Na prática, cada obra artística dialoga de alguma maneira com suas antecessoras, seja através da paródia, da citação, da alusão e assim por diante. A alusão é uma ativação simultânea de duas obras, através da correspondência e não da diferença, como é o caso da paródia.
Sara Sarres no papel de Aldonza
Ao mesmo tempo, a presença de Bispo do Rosário na montagem de Falabella não manifesta uma intenção paródica, na medida em que não é tomada como ponto de partida para a criação de outra obra, que dê uma nova função à sua forma e ao seu conteúdo. Pelo contrário, a obra de Bispo é posta literalmente em cena, em várias citações. Destacamos o personagem Governador vestindo o Manto de Apresentação e com uma atuação e caracterização física marcantes que remetem ao artista. Também as inscrições verbais em letras maiúsculas circundam o espaço cênico e
84 talheres de metais diversos; madeira, papelão, plástico, pregos, fita de tecido e fórmica- Arthur Bispo do Rosário
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De certa maneira, estamos tendo uma vida esquizofrênica. Nossos valores e comportamentos estão divididos. Tudo parece confuso e nada mais pode ser explicado em termos definitivos. O tempo maniqueísta do preto no branco está sepultado, ainda que o seu enterro tenha sido acompanhado por muitas pessoas, sem coragem de prestar-lhe as devidas Para muitos autores, a paródia e a homenagens. intertextualidade dependem do reconhecimento do público, que teria liberdade para associar obras artísticas, de acordo com seu repertório cultural e Por outro lado, uma série de questões ausentes características individuais. Ambos os processos das prioridades de 1972, ampliaram a nossa exigem um compartilhamento de códigos e de sensibilidade, crenças e inteligência. Pensamos na repertórios entre artistas-criadores e públicos diversidade cultural, na pluralidade sexual e na receptores. Talvez, nem todo o público que lotou universalização contraditória das redes de as sessões do SESI tenha identificado informação. Ainda é possível sonhar, pois cada prontamente a intertextualidade posta em cena vez mais são condenadas globalmente as questões por Falabella. Ao ler o programa da peça, do racismo, do aquecimento global, do certamente se informou do processo. Porém, consumismo predatório e das perseguições mesmo que isto não tenha ocorrido, a maioria das religiosas e políticas. Ainda que no Brasil os pessoas ao experimentar a singularidade da sonhos nos tenham sido roubados por aqueles montagem, deve ter sentido atraídos para o palco em quem depositávamos as nossas esperanças, os seus olhos, ouvidos e emoções. Nas duas talvez tenhamos que tentar continuar cumprindo sessões em que estive presente, pude comprovar o nosso papel de lutar e de alcançar a utopia das o encantamento do público com o talento dos estrelas do céu. Mesmo que essa constelação atores, a beleza das músicas e a plasticidade da more na nossa casa, na nossa escola, no nosso encenação. Lançando mão da intertextualidade, trabalho. As estrelas não são as mesmas e seu Falabella conseguiu criar uma montagem de brilho é sempre diferente. qualidade estética e comunicação popular, provando que estas características não são antagônicas e que a sua coexistência não é um Finalizamos com a tradução de Falabella para o mais recente SONHO IMPOSSÍVEL: sonho impossível. A obra de Bispo do Rosário foi incorporada à montagem teatral sem operar inversões ou ironias, mas situando imagética e significativamente o ambiente onde se desenvolve a ação: o manicômio e o questionamento da loucura.
Sonhar, mais um sonho impossível.
Ao contrário de Paulo Autran, Cleto Baccic é um notável cantor e, aproximando-se de seu predecessor, um ator de muito carisma e recursos. Sua interpretação de SONHO IMPOSSÍVEL era um dos pontos altos da peça, sendo também aplaudida em cena aberta. Porém, o sonho agora é outro e as diferenças na versão de Falabella ajudam a elucidar o sentido da montagem de 2014. A loucura está pautada por alguma lucidez: há uma balança cujo fiel deve ser mantido na luta pela justiça; as asas para voar estão cortadas, um mundo melhor é uma ilusão e os sonhos estão distantes e não voltam mais. Porém, devemos continuar cumprindo o nosso papel de lutar e de alcançar as estrelas do céu.
Vencer o inimigo cruel. Clamar com a voz da justiça. Manter da balança o fiel. Saber conceder o perdão. Amar e exibir seu troféu. Voar com as asas cortadas. Chegar às estrelas do céu. 66
Minha missão é correr atrás Dos sonhos distantes que não voltam mais. Viver na ilusão de um mundo melhor E disposto a sacrificar-se com fé e amor. E eu sei quando enfim eu me for Já cumprida a missão, Vai calar-se sereno e fiel esse meu coração. E o mundo então vai saber
50 mil anos de existência do homem sobre a Terra representariam apenas dois segundos em um dia de 24 horas de toda a vida orgânica do planeta. Sendo assim, há milésimos de segundos, Giordano Bruno foi queimado em praça pública pela Inquisição por defender que a Terra não era o centro de um universo infinito, em eterno movimento e que trazia a presença de Deus em todos os seus seres. Frações de segundo depois, Galileu abjurava as mesmas teses, salvava sua vida e garantia a publicação de suas obras fora da Itália; Molière mudava o final de sua peça Tartufo, atendendo a censura da aristocracia francesa, mas liberando a sua peça para que a hipocrisia pudesse ser corporificada em cena para todo o sempre.
Que um homem cumpriu seu papel
A última prisão de Cervantes sob a acusação de desvio de verbas, ainda que falsa, revela a Lutou com bravura e coragem permanência do problema de apropriação indevida e particular de recursos públicos, Chegou às estrelas do céu! confirmando a tese de que milésimos de segundos nos separam de todos os antepassados da história conhecida da humanidade. Porém, no seu caso, além da falsidade da acusação, houve uma recompensa cultural e artística para toda a UM POUCO DE UMA RAÇA, QUE NÃO humanidade: a criação de Dom Quixote. No caso TEM MEDO DE FUMAÇA, E NÃO SE da ditadura militar, houve a criação de uma utopia democrática e socialista de transformação da ENTREGA NÃO! realidade brasileira. É de se pensar o que nos legarão empreiteiros, publicitários e políticos Quando o homem aponta sua luneta para o reincidentemente corruptos. sonho, são escancaradas possibilidades infinitas: os hospícios e os calabouços podem se tornar vazios; as verdades eternas podem se romper em Espero que os atuais presos nos leguem a grãos de areia espalhados pelo vento; as necessidade de não fazer da política uma religião; desigualdades sociais e culturais podem se tornar de não ler a sociedade através de dicotomias terríveis lembranças de um passado distante; os falsamente excludentes, como nós contra eles; de ódios, os dogmatismos e as intolerâncias podem ler os discursos buscando-se concretizar os se esfumaçar e o reino da plenitude do homem substantivos abstratos em práticas que, sobre a Terra pode se afirmar. Por que não? Eu efetivamente, contribuam para a diminuição dos vou sonhar, mas um sonho impossível e que aberrantes índices de desigualdade social no Brasil e de buscar uma transformação radical nos valha a pena ser sonhado. serviços públicos oferecidos à população. E, principalmente, que a democracia plena seja um Crê-se que o sistema solar teria se formado há 4,5 fim que permaneça imune aos meios que a bilhões de anos. Muito tempo depois disso, os corrompem e que possamos continuar planetas. Na sua última tese sobre a história, identificados aos que sonham sonhos Walter Benjamin cita um biólogo, para quem os impossíveis. 67
Referências: HUTCHEON, Linda. UMA TEORIA DA PARÓDIA, Edições 70, Lisboa, 1985. “Comparados com a história da vida orgânica na CERVANTES, Miguel. DOM QUIXOTE, Terra (...) os míseros 50.000 anos do Homo Editora Abril Cultural, São Paulo, 1981, p.29. Sapiens representam algo como dois segundos ao fim de um dia de 24 horas”- SOBRE O SIQUEIRA, José Rubens. VIVER DE TEATRO, CONCEITO DE HISTÓRIA, Walter Nova Alexandria, São Paulo, 1995, p.205. BENJAMIN, in MAGIA E TÉCNICA, ARTE E POLÍTICA. Editora Brasiliense, São Paulo, 1987. STERIAN, Alexandra. ESQUIZOFRENIA, Casa do Psicólogo, São Paulo, 2001, p.43.
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Palmyra ou a cultura assaltada João Eduardo Hidalgo FAAC/UNESP
Na última semana de março de 2016 fomos informados que as forças do Exército Sírio retomaram a histórica cidade de Palmyra, que tinha sido dominada e seus templos e museu de sítio atacados pelo Grupo Terrorista Estado Islâmico. A imagem que se propagou pelo mundo foi a explosão do Templo de Baal, Bel ou Hadad, uma divindade semita dos Arameus, antigos ocupantes da cidade que se
chamava então Tadmor, na língua aramaica (língua semita provavelmente falada por Jesus de Nazareth). O templo que fora reestruturado no século III da era cristã, voou pelos ares por ter sido feito pelos romanos e por retratar uma divindade de um infiel e inimigo,ou seja, os próprios sírios (?) que descendem na sua maioria deste grupo étnico (Arameus). Do templo parece que só sobrou algumas colunas e um portal 69
externo, as fontes são claras, será difícil recuperá-lo ao antigo estado. Mas para mim a imagem (mesmo que seja só mental) que fica foi a decapitação do arqueólogo conservador de Palmyra Khaled Al-Assad de 82 anos, que durante 50 anos, a partir de 1963 cuidou e estudou as ruínas ancestrais. Respeitado internacionalmente como autoridade nos monumentos funerários que ai abundam, Khaled estudou história na
Universidade de Damasco, fundada em 1923 a partir da Faculdade de Medicina que já existia desde 1903; faculdade onde estudou o ditadorpresidente Bashar Al-Assad. Khaled, que foi torturado para revelar onde estariam algumas estatuas e objetos retirados do Museu de Sitio de Palmyra, teve sua cabeça cortada e seu corpo pendurado em uma coluna romana da cidade. Dois colegas de universidade, Bashar e Khaled, que tem o mesmo sobrenome, por serem do grupo minoritário dos alauitas, que são 15 por cento da população da Síria (que é na sua maioria sunita), tiveram atitudes tão opostas com a cultura e a história síria. Em janeiro de 2012 estive em Damasco onde cheguei através de uma ponte aérea de Istambul, um trajeto de duas horas. Desembarquei no Aeroporto Internacional de Damasco, que é minúsculo e fica longe da cidade. Lembro de chegar diretamente andando do avião a um balcão, onde um funcionário que não falava nenhuma língua além do árabe pegou meu passaporte e o girava em vários sentidos sem conseguir ler absolutamente nada. A minha surpresa foi que ele não conseguia sequer ler o visto do Consulado Sírio, tirado uma semana antes na avenida paulista em São Paulo; que estava escrito em português, francês e árabe. Ele começou a digitar algo no seu monitor, que movia o cursor da direita para a esquerda e balbuciava: Brrrrasil? Fui salvo por uma passageira africana que falou comigo em
francês e com ele em árabe e depois de algum tempo olhando minhas malas ali mesmo, entenderam que eu era professor e que aquelas máquinas fotográficas e computador eram materiais de um viajante e não de um jornalista (quanta ingenuidade). O aeroporto é todo térreo e na frente tem belos painéis com motivos geométricos árabes (não textos) e já se sai na calçada onde taxis velhos, dos quais não se adivinha a cor, já estavam esperando pelos pouquíssimos passageiros. Escolhi o que falava um rudimentar francês e dei o endereço do hotel no centro de Damasco, me lembro que o vidro do pára-brisa estava todo trincado e acho que um dos faróis deveria estar queimado, pois se via pouco da escura estrada de pista dupla, que estava, além disto, oculta pela neblina, que levava até Madinatul Yasmin, a Cidade do Jasmim, significado do nome Damasco. A primeira impressão que tenho de Damasco é a de uma cidade na escuridão e que está em construção, a maioria dos prédios do centro não tem tinta na parede, ficaram somente no reboque e as construções aparentemente ilegais (puxadinhos) abundam. Em contraste as avenidas são amplas, passei por muitos viadutos e alças rodoviárias, inclusive já dentro da cidade. O hotel, numa viela que dá na imensa avenida Shoukry Al Qouwatly, era o que aparecia na internet, com um pátio interno com videiras e mesas agradáveis e para a minha surpresa tinha rede de wi-fi, recebi minha 70
senha logo depois de me registrar, e tinha uma televisão (somente ai no pátio), que eu percebi depois que exibia uma gravação ou DVD. A maioria da população não fala nenhum idioma além do árabe, mas a simpatia e a vontade de ajudar é imensa e com gestos acabam resolvendo os problemas mais imediatos. O francês é a melhor opção, pois ela ainda sobrevive ai já que o país foi durante muito tempo um protetorado francês. Na mesma noite fui caminhar perto do hotel e encontrei a avenida 29 de maio e um grande cinema, Al-Dounia Cinema, com cartazes em árabe e nenhuma possibilidade de leitura para um ocidental. Na parede do cinema acima dos cartazes dos filmes vi duas fotografias, uma de Bashar AlAssad de terno e outra de um militar com óculos escuros. A duas quadras do cinema deparei-me com uma praça com uma linda fonte iluminada e um edifício de mármore branco com colunas retas, lembrando uma construção Art-Nouveau, com uma imensa foto de Bashar, talvez uns doze metros, com o mesmo terno do cinema, e que fica a noite toda iluminada. A rua não estava iluminada e vários prédios também não, descobri que os que estavam, como o meu hotel, era porque tinham gerador próprio, pois a luz na capital era intermitente, isto em janeiro de 2012. No dia seguinte visitei o grande mercado - o Souq AlHamiduyan, que é bonito e imita as galerias de compras de Paris, com seu teto alto e
corredor central que abriga as várias lojas. A maioria delas vende tapetes, tecidos, jóias (não preciosas), artesanato e alguma comida. Na saída do Souq está a praça da Mesquita Umayyad, com sua bela muralha e afrescos na fachada interna e pátio com o solo calçado com um mármore branco e brilhante, onde as famílias e casais ficam sentados em tapetes públicos, conversando depois de visitarem o interior do edifício. Nesta mesquita está, supostamente, a cabeça de João Batista, para os sírios o Profeta Yahya; há um recinto pequeno de mármore fechado com uma janela de treliça e dentro vemos um túmulo com tampa triangular onde estaria a relíquia. Umayyad fica ao lado da Cidadela de Damasco, outro ponto forte de visita. Visitei algumas partes de Damasco e estava pensando em ir até Palmyra, mas fui desaconselhado pelos poucos informantes que consegui entender. Fui alertado para não ir para o norte do país, pois depois da Primavera Árabe, no ano anterior, os movimentos contrários a Bashar Al-Assad, que são a Al-Qaeda, a Frente Nusra e os Muhsin estavam atuantes na região, principalmente em Aleppo. Não se falava em Estado Islâmico na época já que ele supostamente se revelou somente (a partir da Al-Qaeda) em 2014. O apoio de Bashar Al-Assad vem (vergonhosamente) do Hezbollah e do Hamas, lembremos que o Hezbollah libanês tem participação no
parlamento do mesmo país e o Hamas na organização política da Faixa de Gaza. A União Soviética é o grande pilar de apoio de Bashar. Nas lojas do Souq e no restaurante onde almocei vi novamente a foto de Bashar em local de destaque, muitas vezes acompanhada do militar de óculos escuro, que identifiquei depois como sendo seu irmão Maher Al-Assad, Chefe da Guarda Republicana e General de carreira. Conversando com um professor da Universidade de Damasco descobri que Bashar não era o herdeiro preferido de Hafez Al-Assad (1930-2000), o filho que estava sendo preparado para assumir o país era Bassel Al-Assad (19621994), que era famoso por freqüentar o Folies Bergère e similares em Paris e dirigir conversíveis em alta velocidade. Numa manha em 1994 a pressa era tanta em chegar ao aeroporto de Damasco, e seguir para a esbórnia européia, que ele se estraçalhou numa rotatória da escura estrada e morreu, para tristeza do pai e indiferença do povo sírio. Hafez Al-Assad o patriarca da família tornou-se presidente (ditador na verdade) depois de um golpe de estado em que colocou na prisão o seu antecessor e colega de partido, do Baath – Partido Socialista (único), Neruddin AlAtassi (1929-1992) que foi jogado na prisão sem julgamento e ficou nela 22 anos, até ser ‘libertado’ para tratar-se em Paris de câncer terminal; foi libertado em novembro e morreu em dezembro de 1992, na época nenhum parente foi localizado para falar da 71
memória do mesmo. Hafez Al-Assad era correligionário e amigo do Shah Reza Pahlavi (1919-1980) da Pérsia ou Irã, que foi colocado no poder por uma coalizão da Inglaterra e (nenhuma surpresa) da União Soviética. O pai de Reza Pahlavi, de mesmo nome, foi obrigado a abdicar em favor do filho em 1941,morreu no exílio e está enterrado no Cairo na Mesquita Al-Rafai. Ela também é chamada de Mesquita Real, e nela estão enterrados um profeta Ahmad Al-Rifai, do século XII, e Reza Pahlavi pai e filho; Reza Pahlavi, o filho, foi expulso de seu país (depois de assumir o lugar do par sem remordimentos) por uma ‘Revolução’, parecida com a Primavera Árabe, em 1979, mas que teve um desdobramento lamentável trazendo os aiatolás para o poder. A família e a descendência é um fator sempre muito nomeado neste ambiente que se autoconsidera real, mas basta investigar um pouco e vemos que é um discurso vazio de grupos que querem manter-se no poder. Bashar Al-Assad não tem nenhuma ligação emocional com o povo sírio, ele estava estudando na Inglaterra e foi o que sobrou para ocupar o posto de dono do país, colocado ali pelo seu pai que aniquilou metodicamente todos os opositores. A sua mulher Asma Al-Assad, ex-executiva do Deutsch Bank é tão superficial como a mítica Farah Diba (Imperatriz Consorte de Reza Pahlavi Filho) que era conhecida como a mulher com
as jóias mais valiosas do mundo (em 1979). Logo depois de sair de Damasco li num jornal em Jerusalém, que alguns e-mails trazidos a público de Asma AlAssad mostravam que ela estava preocupada com a troca das cortinas de seu palácio, enquanto o país estava mergulhado em uma sangrenta Guerra Civil. Palmyra com seus templos e sarcófagos estava sendo destruída e saqueada sem que o Presidente sequer se lamentasse por isto, o desfecho trágico de 2015 foi um elo numa corrente. A violência de 2015 em Palmyra lembra o atentado no Egito, dentro da era Muhammad Hosni Said Mubarak (que se considerava herdeiro dos Faraós), ao Templo de Hatshepsut, rainha faraó da XVIII dinastia, em Luxor em 1997, quando 58 turistas foram metralhados e esfaqueados e algumas estátuas atacadas a marteladas. Este atentado mostrou também a misoginia presente entre estes grupos e células terroristas, eles escolheram o lugar com intenção de fechar o templo, muitas colunas com o rosto da rainha foram quebradas e ainda estavam em restauro em 2012. Não podemos esquecer também do ataque sofrido pelo Museu Nacional Iraquiano de Bagdá, depois da queda de Saddam Hussein (outro patriarca que dizia valorizar muito a
descendência), que perdeu mais de 40 por cento de seu acervo em 2003 e só foi reaberto 12 anos depois, com o que restou e com algumas obras recuperadas, sem mais detalhes, já que o comércio de arte saqueada no oriente é muito poderoso na Europa e na América do Norte. Desejo que Palmyra volte a exibir para o mundo os seus templos e que seu museu seja recuperado, da melhor maneira possível, mas a insegurança e a falta de organização mínima que presenciei em 2012, no aeroporto e nos postos governamentais de fronteira com o Líbano, para onde fui depois de desistir da visita a Tadmor/Palmyra, me fazem temer pelo destino deste poderoso local e de seus protetores. Um país com mais de seis mil anos de história merecia mais ajuda internacional, para remover do poder um fantoche russo que só tem feito mal para esta grande memória ancestral e para o povo que a criou.
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Antoni Gaudí, o arquiteto de deus e da luz mediterrânea João Eduardo Hidalgo FAAC/UNESP & Nelyse Salzedas FAAC/UNESP
La Sagrada Família. Barcelona, 2011. Foto: J.E.H
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O arquiteto catalão Antoni Gaudi (Réus 1856Barcelona 1926) registrou e viveu a Catalunha, sua natureza, sua história e cultura. A Espanha tem uma realidade bastante singular, com aproximadamente 40 milhões de habitantes, a nação possui quatro línguas oficiais: o Espanhol (ou Castellano), o Galego, o Vasco e o Catalão. Diferentemente do que se pensa o Catalão, o Vasco e o Gallego são línguas, com gramáticas e culturas próprias.
estaria preparada para resolver, através de métodos tradicionais, Gaudi cria um neogótico dentro do chamado Modernisme catalão, que é fruto de uma junção/oposição do Romantismo, da Art Decó e de estéticas contemporâneas barcelonetas do final do século XIX.
Barcelona, La ciudad Condal, por ser a capital do Condado de Catalunya, é uma região habitada desde o ano 1.000 antes de cristo. Os povos ocupantes foram os sorotaptos, os celtas, os fenícios, os gregos, os iberos e em 200 A. C., os romanos. A língua catalã vem do latim vulgar, mas é resultado do substrato de todas as anteriores que ocuparam a região chamada de Barcino, Ampuria e finalmente Barcelona. A Cataluña ou Catalunya (em catalão) abarca toda a costa nordeste da Espanha, de Valencia a Casa Batlló, Barcelona. Foto: J.E.H. Barcelona, esta região tem a cultura catalã arraigada em sua etnia. Enquanto o Espanhol tem joias como Don Quixote, publicado entre 1605 e 1615 por Miguel de Cervantes, a cultura catalã tem Tirant lo blanc, publicado em Valencia A Cripta Guell é a obra prima de Gaudi, nela está em 1490 (e que aparece citado no Quixote). toda a sua experiência e pesquisa de projetos, materiais e, sobretudo, sua característica mais Gaudí é um nativo catalão, sempre teve orgulho marcante, a integração do homem com a de sua língua e cultura, escreve e esculpe palavras natureza. A começar pela sua localização, em um e frases em catalão em suas obras, lutou por esta aclive, a Cripta se ajusta, insere-se, e amolda-se à cultura, chegou a ser preso e principalmente, sua vegetação nativa e à topografia do terreno formação e atuação como arquiteto se faz neste mediterrâneo e os mimetiza em suas colunas, ambiente. A primeira vista notamos Gaudí tetos e vitrais, que desafiam as leis da gravidade. passeando pelo espaço gótico, pelas suas colunas, O balancear dos pinheiros incorporados nas abóbodas, cruzetas, vitrais, ogivas, que estão colunas do átrio e da cripta, as janelas, os vãos, ontologicamente ligadas entre si. Em uma que são substituídos por vitrais coloridos, são segunda aproximação, através de suas realizações: símbolos do cristianismo, com cores Bellesguard (1902), a Casa Batlló (1906), La determinadas para as suas divindades. Amarelo a Pedrera (1912) Park Guell (1914), pode-se dizer luz do Pai Eterno, o laranja o Espírito Santo e o que Gaudí é um arquiteto híbrido: neogótico, vermelho o filho Jesus Cristo. Os vitrais formam simbolista, Art-Nouveau. É um arquiteto do seu flores, formas geométricas através das quais a luz tempo, um período de mudanças, de rupturas, divina (vinda da própria natureza) invade o que consegue criar um estilo próprio a partir de templo da Colônia Guell. Devemos lembrar que um projeto coletivo nacional catalão, gerando as estruturas de uma construção reagem à luz, obras onde estrutura e ornamentações se seja ela o Paternon em Atenas ou as colunas conjugam a fim de criar harmonia, beleza e gregas da sala hipostila do Park Güell, as colunas transcendência. Através de soluções construtivas do Paternon em Atenas são ligeiramente curvas para problemas que a engenharia da época não para dentro, para corrigir um defeito ótico que as 74
faria parecer tortas, da mesma forma as colunas do Park Güell que parecem retas não o são. O Paternon foi construído segundo um ideal matemático de perfeição, que leva em conta o comprimento a largura e a distância das colunas.
Parque Güell, Barcelona. Foto: J.E.H.
Esta luz catalã-mediterrânea é um elemento de preenchimento de espaços, de construção e destaque de contornos, relevos e ornamentos fundamental em Gaudi; e todo este emprego cromático típico do Gótico conduz ao divino, Deus como luz, forma e estrutura do mundo. As catedrais góticas e renascentistas do século XVI na Espanha começaram a utilizar os vitrais como suporte de símbolos e artifício de criação de uma realidade não material. Os vitrais de Gaudí não mostram nunca imagens sacras, mas sim as formas da natureza, flores, asas de borboletas. Os vitrais da Esglesia de Santa Coloma de Cervellò, chamada Cripta Güell, constroem um esquema de iluminação, que está de acordo com as estruturas, que são irregulares como uma caverna, com nichos onde seres celestes se manifestam, levando-nos para uma experiência metafísica. Lembremos que em 1858 Bernadette Soubirous teve várias visões da Virgem Maria em Lourdes, nos Pirineus franceses. A gruta, chamada também de cripta, onde a aparição se deu está imediatamente abaixo da Basílica (Gótica) erguida em 1878. Gaudí fervoroso católico certamente foi influenciado por este acontecimento de sua
infância, poucas vezes lembrado pelos seus biógrafos e estudiosos. As primeiras pesquisas de terreno e desenho para a pequena igreja obreira foram feitos em 1898, mas Gaudí levou dez anos construindo uma maquete funicular, que utilizava fios e pequenas bolsas de areia para construir um modelo físico do projeto e as obras só foram iniciadas em 1908; sendo interrompidas definitivamente em 1914 quando Gaudí decidiu dedicar-se exclusivamente a construção da Sagrada Família. Conjuntamente com a construção da Cripta Güell Gaudí realizou: La Casa Calvet (1899), o Park Güell (1900-1914), Bellesguard (1909), La Casa Batlló (1906), La Pedrera (Casa Milà, 1912) e claro La Sagrada Família (1883-1926), esta última também declarada Bien Cultural de Interés Nacional em 1969, 43 anos depois da morte do arquiteto. La Sagrada Família é celebrada mundialmente como obra prima, que sintetiza toda a obra de Antoni Gaudi, ledo engano, o templo tem interferências inclassificáveis na sua continuidade, pois ao morrer atropelado por um bonde em 1926, somente uma das torres da fachada do nascimento estava terminada e muitas de suas esculturas ainda estavam sendo realizadas. A Cripta Güell é o manifesto arquitetônico Gaudiniano por excelência e foi, e ainda continua, envolvido numa bruma de esquecimento, que está sendo dissipada (sem muito sucesso) pelos estudiosos da Universitat de Barcelona, atuais proprietários e herdeiros culturais.
La Araña (lustre), Casa Batlló, Barcelona. Foto: J.E.H.
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Toda a obra de Gaudí foi intencionalmente esquecida durante a Guerra Civil Espanhola (1936-1939) e colocada de lado durante a ditadura do limitado monolíngue Francisco Franco, que durou de 1939 até sua morte em 1975. Em 1936 a maioria das igrejas espanholas foram atacadas, incendiadas, muitas vezes com os padres e freiras dentro. O ateliê de Gaudi, que ficava dentro da Sagrada Família foi incendiado, as maquetes e modelos em gesso destruídos e o túmulo de Gaudí, que está localizado na cripta desta mesma igreja sofreu uma tentativa de abertura. A Cripta da Colonia Güell foi invadida, muitos de seus bancos foram queimados, os vitrais totalmente destruídos e o altar incendiado. As primeiras ações de lembrar e recuperar a memória e principalmente a obra de Gaudí foram realizados a partir da década de trinta. Em 1929 o arquiteto e professor de história da arte Josep Francesc Ràfols publicou a primeira biografia sobre Gaudí, Rafòls trabalhou nas obras da Sagrada Família até a morte do mestre. O segundo e mais importante arquiteto e teórico a recuperar e principalmente registrar a obra de Gaudí foi Cesar Martinell Brunet (1888-1973), que como jovem arquiteto conviveu com Gaudí dos anos 1910 até sua morte em 1926. Martinell foi o grande compilador das opiniões e ensinamentos de Gaudí, que teve que esperar o ano de 1951 para lançar seu primeiro livro sobre Gaudí. Lembrar que a
partir de 1950 a Espanha franquista começa um movimento de “abertura” e relações exteriores, aproximando-se dos Estados Unidos e seguindo as regras de ajuste para entrar no que seria a União Europeia. A Colònia Güell, onde foi construída a Cripta Güell a pedido do grande mecenas de Gaudi, Eusebi Güell, ficou na família até 1943, funcionou como fábrica têxtil até 1973 e foi comprada pela Universitat de Barcelona e pelo Ajuntament da cidade em 1980. Em 1960 os bancos originais serviram de modelo para reprodução dos que tinham sido destruídos; em 1965 o altar foi reformado e em 1980 os vitrais foram restaurados. Revisitar a Cripta da Colônia Guell de Santa Coloma de Cervalló é tomar contato com a história da arte, que Gaudi atualiza, em uma síntese estilística que transforma elementos imateriais como a língua catalã, sua cultura e seu cromatismo, em bases de uma arquitetura sem precedentes na história da humanidade. Sua obra merece ser celebrada depois dos 90 anos de seu desaparecimento físico, das largas e arborizadas ruas de sua amada Barcelona, que promete para 2022 a conclusão de sua última obra, a Sagrada Família, em contínua construção desde 1883, aguardemos.
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Máxima Arte. Mínima Arte. As escalas da arte Maria Izabel Branco Ribeiro FAAP/SP
Definido como a relação entre a parte com o todo, o conceito de proporção pode ter como referência as partes de um único corpo ou as desse corpo com seu entorno. Refletir sobre a proporção,fundamenta questões sobre a percepção da harmonia das formas ou do impacto causado pelo que é entendido como seu desequilíbrio. Dois recursos utilizados pelos artistas, desde longa data para motivar seu público.
Na obra em questão, Manco alude ao fato de que nas últimas décadas, as mudanças trazidas pela tecnologia e pelo mundo digital e se refletem no uso do espaço e nas atividades culturais. Uma delas é a competição entre instituições. Como parte dessa inevitável disputa por visibilidade aponta para o surgimento de espaços culturais de tamanho “colossal” destinados à ampliação de coleções permanentes de obras de arte e para a execução de projetos temporários, ambos de grandes dimensões.
Tristan Manco em Máxima Arte. Mínima Arte. As escalas da arte reúne obras que têm em comum a discussão da escala. Ou seja: trabalhos cujas diversas partes em sua maioria mantêm internamente um mesmo sistema de proporções e estabelecem com o seu entorno, padrão diverso daqueles a que seus referenciais pertencem – denúncia evidente de constituírem simulação. Discute aspectos desse confronto nos dois extremos da escala – obras de grande tamanho e diminutas -, seu impacto no processo perceptivo e nas reações do observador.
Muito dessa abordagem está relacionado com sua experiência com a street art.Associa as obras em grande escala com a arte pública, destacando serem compartilhadas por vasto número de pessoas, seu caráter espetacular e seu potencial de interferirem na paisagem. Atribui que a atração que exercem, está relacionada a permitirem que o público as percorra e tenha atitude de imersão, consequentemente, postura participativa e experiências em maior grau, sejam elas sensoriais, de impacto, estranhamento ou lúdicas. Instrumentos que podem ser de valia, para 77
propostas artísticas, que também trabalhem que além do apelo emocional despertado pelo caráter lúdico da miniatura, nessas obras a questões filosóficas e sociais. atenção do observador é capturada pelo: verismo Considera o tamanho como aspecto distintivo das situações em pequeno formato; virtuosismo nessa categoria de obras, porém enfatiza que elas do trabalho manual; emprego de materiais têm em comum também a potência de expandir o insólitos, uso de objetos cotidianos e ícones em associações inesperadas; a olhar do público sobre a realidade.Não só pela familiares intervenção óbvia que fazem, mas pela variedade de procedimentos e materiais; a desconexão entre representação e o representado. diversidade de materiais,procedimentos, equipes. Apresenta 24 artistas contemporâneos, alguns com projetos já clássicos, outros ainda pouco conhecidos. Entre eles destaco:Jaume Plensa, autor da Crown Fontain , 2004, em Chicago, em que dois telões de vídeo gigantescos apresentam consecutivamente rostos de 1000 habitantes da cidade cuspindo continuamente jatos d´água. O artista-engenheiro holandês Theo Jansen, autor de animais de grande porte, construídos com tubos plásticos, braçadeiras e fios de nylon, capazes de se deslocarem movidos pela energia eólica. A japonesa Fujiko Nakaya, idealizadora de instalações com efeitos meteorológicos, em colaboração com o físico de nuvens Thomas Mee. O cubano radicado nos EUA, Jorge Rodriguez-Gerada, interessado na criação de retratos de grande porte como meio de discussão de questões sociais, alguns vistos com plenitude apenas em fotografias aéreas. O coletivo espanhol Boa Mistura, com trabalho social, aqui exemplificado pela intervenção feita com cores e palavras na Vila Brasilândia, zona norte da cidade de São Paulo.O argentino Leandro Erlich e o francês Jean-François Fourtou,autores de estruturas arquitetônicas, em que o uso do trompel´oeil e espelhos sugerem a anulação de leis da física. Tristan Manco apresenta como contraponto dessas propostas, a ideia de sermos apenas parte diminuta, se comparados ao restante do mundo. Denomina esse outro extremo de Mínima Arte e afirma que embora os pequenos detalhes, não tenham o impacto da magnitude, propõem desafios para a percepção e se prestam para o desenvolvimento de conceitos, que são acentuados pela diferença de escala. Nelas o visitante não mais mergulha ou participa da obra, mas é um voyeur, que observa a situação “miniaturizada, congelada no tempo”. Distingue
São vinte e dois os artistas selecionados por Manco. Entre eles:O vietnamita radicado nos EUA Diem Chau, autor de narrativas esculpidas em pontas de lápis e crayons; o espanhol Lorenzo Manoel Durán criador de cenas recortadas com bisturi em folhas de árvores pelo; a fotógrafa americana Nancy Fouts interessada em registrar de objetos híbridos, à maneira de pequenas esculturas surrealistas;O canadense Guy Laramée, interessado em discutir a erosão do conhecimento e a obsolescência do livro em esculturas de paisagens a partir de livros usados. Tristan Manco nessa publicação traz um conjunto de produções recentes. Discorre sobre obras de arte nos dois extremos da escala, suas relações com o público e suas possibilidades de ampliação da percepção. Desenha em traços largos o panorama da cena contemporânea, em texto de linguagem dinâmica, porém carente de tradução cuidadosa. É composta por cadernos identificados por cores intensas, contendo dois ensaios concisos definindo as categorias, perfis esclarecedores de artista e farto material fotográfico sobre suas obras.Sua ênfase está nos desafios para o olhar existentes nos dois extremos da escala,as razões que as tornam atraentes e seu potencial para ampliarem a percepção da realidade. Acende em seu leitor o interesse em investigações mais detalhadas sobre custeio, mecenato e conservação dessas obras e maiores detalhes sobre suas relações com o público.
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O filho de Saul em Auschwitz João Eduardo Hidalgo FAAC/UNESP
Crítica do professor doutor em cinema João Eduardo Hidalgo sobre o filme que levou o Oscar de melhor filme estrangeiro.
O filme húngaro Saul fia (O filho de Saul, 2015) por uma avó fraca e por um tio que é a foi eleito o melhor filme estrangeiro pela personificação do machismo. Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood neste domingo, ele era de longe o Na resolução dos conflitos que afligem as jovens somos apresentados ao destino delas, que melhor dos cinco indicados. representa a condição da mulher na Turquia Theeb (O lobo do deserto), da Jordânia, parece contemporânea, segundo a diretora elas tem três uma propaganda de viagem do Discovery, só tem saídas: casar-se com quem mandarem, suicidar-se uma coisa boa, o ator mirim protagonista Jacir ou fugir. Eid Al-Hwietat, os outros atores são primários e a história que não define os conflitos, não leva a El abrazo da serpiente (O abraço da serpente) tem tudo o que Hollywood gosta Rain Forest, lugar nenhum. nativos falando em língua exótica e paisagem Mustang (As cinco graças) é um filme fraco, mal deslumbrante; apesar da boa história perde-se no dirigido, que não enfrenta os preconceitos que final e termina de maneira amadora, em nome de mostra. Para fugir de complicações maiores o ser uma obra aberta, ficamos sem saber o destino roteiro foge da estrutura familiar clássica, os pais de todos os personagens. Krigen é o de sempre, morreram e as cinco protagonistas são criadas heróis metendo-se em uma guerra que não é 79
deles e sofrendo muito, já tivemos o bastante executados, chamado de Kanada, onde podiam ser encontrados ouro, jóias, diamantes, moeda de disto. vários países e comida. Saul fia foi escrito e dirigido pelo jovem diretor húngaro Laszlo Neves com inspiração e com Na cena inicial vemos um grupo de pessoas maestria. A imagem é retangular, proporção 1.33, andando na floresta com imagem desfocada, que formato do cinema clássico que perdurou de só recupera o balanço quando o rosto de Saul 1895 até meados dos anos 1950, quando a aproxima-se da câmera e por ai fica em longos imagem entrou na era do cinemascope e saltou planos. É a chamada câmera subjetiva que mostra para 2.55, praticamente dobrando de tamanho. o ponto de vista de Saul, ou na maioria dos As imagens são coloridas, mas tem saturação planos conta a história dele da maneira mais baixa e em alguns momentos chegam perto do próxima possível. preto e branco. Esta câmera nos transforma em prisioneiros do Lembremos que a cor chegou aos filmes campo, somos sugados para dentro do filme até fotográficos comerciais em 1935 e nos anos 1940 seu desfecho. Vemos todas as feridas que Saul elas ainda estavam se desenvolvendo. A ação do tem no rosto, no couro cabeludo, sua cor doentia filme localiza-se no final de 1944, natural que a de quem se alimenta mal, não dorme e que imagem seja levemente retangular e com uma cor principalmente, está com a alma dilacerada. Nesta esmaecida, perfeitamente ligada a época que Auschwitz Saul tem, historicamente, a companhia de dois dos mais contundentes companheiros representa. possíveis, Anne Frank (1929-1945) e Primo Levi A história de Saul, o talentoso ator Geza Rohring, (1919-1987). acontece no pior dos 20.000 lugares de tortura e extermínio criados pela SS nazista, Auschwitz. O Anne Frank foi enviada com a família campo foi criado por ordem direta do chefe da diretamente da Holanda para Auschwitz, o SS, o limitado e virulento ex-criador de galinhas número de Holandeses exterminados no campo Heinrich Himmler, em abril de 1940 e foi foi de 60 mil, Primo Levi foi escolhido pela mão do destino dentro meros 650 judeus italianos liberado pelos aliados em 27 de janeiro de 1945. enviados para lá. Anne Frank foi mandada junto Somos informados no início do filme que com a irmã, no final de outubro de 1944, para estamos em outubro de 1944, três meses antes do Bergen-Belsen, onde ambas morreram de tifo em final do campo, um olhar mais atento nota um março seguinte (vale a pena conhecer a problema óbvio na caracterização dos atores, meticulosa biografia escrita por Melissa Müller, muito peso e muito cabelo, este foi o pior Anne Frank - The biography). período de Auschwitz, faltavam suprimentos inclusive para os oficiais nazistas que Primo Levi foi libertado, voltou para Turim, foi administravam o lugar, a Alemanha já estava de uma voz importante na divulgação das atrocidades nazistas, mas nunca se recuperou, joelhos. suicidando-se em 1987. Anne Frank é autora de Os prisioneiros deste período eram conhecidos um diário que até hoje é campeão de vendas e de como ‘muçulmanos’ pela aparência esquálida e sensibilização, Primo Levi escreveu entre outros por já estarem num torpor que os fazia murmurar livro É isto um homem, que dispensa comentários já pelo título. Segundo o amigo e frases sem sentido e quase inaudíveis. também escritor Elie Wiesel ‘Primo Levi morreu Saul faz parte do Sonderkommando, um grupo em Auschwitz, quarenta anos depois de de judeus escolhidos para conduzirem outros libertado’. judeus para as câmaras de gás e para as valas de execução, em contrapartida tem acesso ao Da estimativa de mortos em Auschwitz, que gira barracão onde são guardados os pertences dos em torno de um milhão, 460 mil, ou seja, metade 80
eram húngaros, como o personagem Saul. Quando o diretor agradece o apoio da Hungria na realização do filme entendemos que ele é um tributo para quase meio milhão de almas, que nunca voltaram para casa; e o monumento cinematográfico que ele criou é uma obra merecida para a memória de uma nação aviltada. Enfatizo, a principal qualidade do filme é o uso de um procedimento técnico, um close quase permanente e planos longos que aprisionam o espectador dentro da rotina desumana de Saul. Não temos escolha, temos que passar por toda a brutalidade a que ele está a mercê, que vai de encaminhar velhos, crianças e doentes para a morte sem esboçar pena, e esperar pelo fim dos mesmos dentro das câmaras de gás enquanto as vitimas emitem sons de congelar o coração dos mais duros. Num destes duros dias Saul vê um garoto que sobrevive a câmara de gás, mas que é sufocado pelo comandante que não suporta ver uma exceção dentro máquina nazista de extermínio. Sem nenhuma razão racional a estraçalhada alma de Saul escolhe o menino como filho e passa o dia todo procurando por um rabino para realizar o enterro, que é proibido pelo código do campo, os corpos devem ser incinerados e as cinzas jogadas no rio.
ao perceber a chegada de soldados e nós o acompanhamos até que ele desapareça dentro da floresta, enquanto ouvimos sons de tiros e imaginamos o destino dos fugitivos, mas nós também estamos redimidos, Saul morreu com a alma e a esperança renovadas. Em 2015 a humanidade celebrou 70 anos do final de uma guerra que mudou o seu destino, em janeiro Auschwitz recebeu a visita de mais de 300 sobreviventes e as imagens foram divulgadas no mundo todo. Neste contexto O filho de Saul foi criado e vale lembrar que o representante da Alemanha, para concorrer ao Oscar de Filme Estrangeiro Im Labyrinth des Schweigens (Laberinto de mentiras), trata dos primeiros processos alemães contra oficiais nazistas que atuaram em Auschwitz, e fala do despistamento/ocultação com o qual o ‘inocente’ povo alemão tratou o tema depois do final do conflito. Em tempo, o filme Labirinto de mentiras é escrito e dirigido por um italiano, Giulio Ricciarelli, a Alemanha ainda tem muitos fantasmas para enfrentar, mas a Hungria pode respirar aliviada, Saul e seu filho estão salvos e por uma ação de seu próprio povo.
Os amigos não entendem a obstinação de Saul, sabem que ele não tem filho, alguns reagem com raiva e outros com compaixão. Saul consegue um suposto rabino, mas uma parte do sonderkommando planejou uma fuga e não há tempo para enterros, Saul foge carregando o corpo do menino nas costas, ao aproximar-se do rio são descobertos e mesmo sob fogo ele não solta o corpo, quase se afoga e é salvo por um companheiro, enquanto o suposto filho flutua rio abaixo. Dentro da floresta o grupo encontra uma cabana e refugia-se, na porta aparece um menino, parecido com o filho de Saul, que está molhado e o encara fixamente, neste momento percebemos Publicado originalmente em: que a alma de Saul encontrou a redenção, agora a http://www.estadao.com.br/noticias/geral,os-destaquescâmera aproxima-se do rosto do menino que foge do-estadao-noite-desta-segunda-feira--29,10000018891 81
Revolvendo o passado Marirosaria Fabris FFLCH/ECA/USP
Uma volta ao passado obscuro da ditadura através de fotografias e histórias contadas por quem viveu o pesadelo da tortura.
A promulgação da Lei de Acesso à Informação, obrigou órgãos públicos a colocarem dados sobre suas atividades à disposição dos interessados, desde 16 de maio de 2012. Com a abertura dos arquivos públicos foi possível ter acesso a milhares de documentos e a um vasto material iconográfico.
aparente “normalidade” do presente e o clima ameaçador do passado. Dois trabalhos que se posicionam contra a negação da memória que paira sobre o Chile. Antes deles, na Argentina Marcelo Brodsky, Lucila Quieto e Gustavo Germano, parentes de desaparecidos, assim como Paula Luttringer e Helen Zout, vítimas da repressão, tiveram como O material encontrado em arquivos da ditadura propósito resgatar uma época graças a imagens deu origem a Retratos de identificação (2014), fotográficas. documentário de Anita Leandro (confira trailer abaixo), mas, apesar do que as imagens poderiam revelar, não motivou fotógrafos a retrabalhá-lo, a exemplo do que aconteceu em outros países, principalmente do Cone Sul, como no caso de Cristian Kirby em 119, em que os rostos de pessoas desaparecidas durante a ditadura chilena integram as intervenções concebidas a partir de suas fotos. Realizada no Memorial da Resistência de São Paulo (2014-2015), a exposição relembrou o caso da Operação Colombo, articulada entre o governo local e a Operação Condor. Cada retrato – impresso, mediante emulsão fotossensível, sobre folhas do mapa de Santiago e do índice de suas ruas – é acompanhado de uma etiqueta com nome completo, data de nascimento e de sequestro, ocupação, dados familiares, militância e local da detenção. Uma forma de reafirmar a presença desses seres na História do país, por meio das marcas de seu pertencimento a uma malha urbana e social. Santiago foi ainda a protagonista da série de fotomontagens La persistencia de la memoria (2014), em que Andrés Cruzat interveio sobre fotos tiradas durante o golpe militar, para oferecer um inquietante contraste entre a
Em Buena memoria (1996), partindo do retrato de sua classe em 1967 no Colégio Nacional de Buenos Aires, Brodsky, desejoso de conhecer o paradeiro de seus colegas, tirou uma foto de quem havia respondido a seu convite, completando-a com informações sobre a vida atual de cada sobrevivente. Os companheiros mortos ou desaparecidos não foram esquecidos: além de evidenciá-los com círculos no retrato coletivo ampliado, o artista os evocou em fotos que os flagravam em situações cotidianas, buscando preencher a lacuna deixada por esses seres aniquilados. A exposição foi 82
apresentada no Memorial da Resistência de São avião utilizado nos chamados voos da morte, em Paulo em 2010-2011. imagens sempre a meio caminho entre o real e o ficcional pela manipulacão dos recursos Quieto, para preencher o vazio deixado pela não fotográficos. presença do pai em sua existência e conseguir a foto que faltava ao álbum de família – a dela com Outro artista que se debruçou sobre esse período Carlos Alberto –, deu vida a Arqueología de la foi João Pina, fotógrafo português radicado em ausencia, procurando construir a memória afetiva Buenos Aires, com o projeto Sombra do Condor, do que não foi vivido no plano concreto. integrado pelo livro Condor (2014) e pela exposição Operação Condor (2014), apresentada Primeiramente, ela projetou numa parede no Paço das Artes. imagens do pai convertidas em slides para poder intervir fisicamente na projeção e bater um Na série “Salas de tortura”, ele não clicou retrato dos dois juntos. Em seguida, a artista pessoas, mas os locais do suplício, registrados estendeu a experiência, convidando filhos de frequentemente com uma luz dramática ou outros desaparecidos a participarem do projeto, apenas por um detalhe, num gesto análogo ao de desenvolvido entre 1999 e 2011. Luttringer, evidenciando as ausências causadas pelo desaparecimento, como Germano. Em El lamento de los muros (2000-2006), Luttringer retornou aos lugares onde ela e outras mulheres foram encarceradas, violentadas e torturadas, para fotografar, em preto e branco, detalhes desses interiores, em planos fechados que impedem a visualização do lugar, como havia acontecido com elas, por estarem encapuzadas. Já em Cosas desenterradas (desde 2012), seu olhar se detém sobre objetos encontrados em escavações num dos antigos centros clandestinos de detenção. Em Ausencias (2001-2006), de Germano, as poses de uma série de fotos familiares tiradas nos anos de ditadura argentina são emuladas pelos membros sobreviventes de cada família, sendo deixado vazio o espaço antes ocupado pelos integrantes desaparecidos. Em alguns casos, só existe o espaço vazio e não apenas quando se trata de fotos individuais. Entre 2012 e 2013, o fotógrafo repetiu a experiência com fotos de vítimas da ditadura civil-militar no Brasil na exposição Ausências Brasil: fotografias de Gustavo Germano, apresentada no Arquivo Público do Estado de São Paulo. Zout, na série Huellas de desapariciones durante la última dictadura militar argentina 1976-1983 (2002), dedicou-se a recolher depoimentos e a registrar sobreviventes da repressão, o desenho de uma sessão de torturas e o interior de um
Foto de João Pina
Enterrar um membro da família representa o encerramento de um ciclo: é um ato simbólico muito significativo na esfera pessoal. De certa forma, foi esse também o objetivo de uma vídeoinstalação que integrou a exposição Resistir é preciso..., apresentada pelo CCBB, em 2013-2014, na qual os nomes de pessoas mortas pela ditadura iam se acumulando, feito ossos, numa espécie de vala comum, provocando, porém, um efeito contrário ao pretendido pelas autoridades com esse tipo de sepultamento: o de devolver a 83
memória dos que se queriam destinados ao do fim dos anos 1970, passaram a publicar esquecimento. cartazes com fotos de militantes mortos e desaparecidos. Outra obra realizada com o mesmo intuito foi Penetrável Genet/Experiência Araçá, um Essa, sem dúvida, é uma forma de revolver um labirinto em mármore branco sobre o qual eram passado que alguns gostariam de apagar, mas, ao projetadas imagens e cores, criado pelo artista olharmos para esses rostos, o que sabemos deles? Celso Sim e pela arquiteta Anna Ferrari, em Nada ou quase nada. Por isso a urgência de homenagem aos restos mortais de 1.046 vítimas repensar e representar artisticamente – como foi do regime militar, que descansam no Ossário feito pelos fotógrafos estrangeiros – o que Geral do cemitério do Araçá. aconteceu com os desaparecidos no Brasil. Seu título é uma referência aos penetráveis, instalações labirínticas de Hélio Oiticica realizadas na segunda metade dos anos 1960, e a Jean Genet, o qual, no texto A estranha palavra... (1967), incitava a fazer dos cemitérios espaços teatrais, onde a cerimônia fúnebre se transformaria numa representação dramática. A instalação artística, inaugurada em 3 de novembro de 2013, foi quase destruída na madrugada do dia em que deveria ter sido aberta à visitação por pessoas interessadas em não exumar o cadáver da ditadura. Não foi diferente a intenção do performer Alexandre D’Angeli em 436, no qual propôs ao público a confecção de máscaras de papel que permitiam criar a volumetria de um rosto. Em cada máscara era colada uma etiqueta com o nome de uma das 436 vítimas oficiais da repressão – azul para os desaparecidos; vermelha para os mortos –, uma vez que o artista queria resgatá-las da desmemória imposta por pactos de silêncio ainda imperantes no país.
Veja mais: Assista ao trailer do documentário Retratos de Idetificação em <https://youtu.be/o2oRwACIqrg>
Apesar da aposição das etiquetas com os nomes das vítimas, a performance – realizada numa das quatro celas do conjunto prisional preservadas pelo Memorial da Resistência de São Paulo (que ocupa uma parte do antigo DEOPS) não consegue fazer emergir suas individualidades. Isso acontece em geral nas obras atuais sobre a ditadura no Brasil, nas quais se lida antes com listas de nomes, quando seria necessário devolver um rosto e uma história a cada um dos citados. Emulando os anúncios sobre procurados pelas forças de repressão, o Comitê Brasileiro pela Anistia e o Grupo Tortura Nunca Mais, a partir 84
O filme Blow-up de Antonioni faz 50 anos João Eduardo Hidalgo FAAC/UNESP O fator técnico fundamental a ser considerado dentro do ato fotográfico (e cinematográfico) é a supra realidade que um processo fotográfico pressupõe. A câmera, que tem uma manipulação humana, capta quimicamente ou em pixels uma realidade muito mais complexa do que o olho e a mente humana podem perceber a princípio. Ela apresenta traços de um real muitas vezes não percebido de imediato pelo espectador. Esta é a razão dela ser sempre um registro do real e uma porta para a ficção. O grande escritor argentino Julio Cortázar (19141984) escreveu um conto em 1958 ‘Las babas del diablo’, onde parte da ação de um fotógrafo ao registrar um instantâneo em um ilha no rio Sena, no centro de Paris, e acompanha todo o processo de compreensão e análise de tudo o que foi capturado nela. No conto o fotógrafo presencia uma cena em que uma mulher mais velha joga as suas teias de sedução, daí o nome do conto, sobre um jovem rapaz num jogo de permitir/proibir suaves beijos e inocentes carícias, que levarão a um jogo de amantes. Esclarecendo, Babas del diablo é o nome que recebem na Argentina as teias que as aranhas prendem na vegetação para capturar vítimas.
O título do filme é um termo técnico que se refere a ‘ampliação’, que interessa pelo significado que carrega. O procedimento nos lança no terreno da construção de significados, se alguém recorta um detalhe da realidade e dá destaque a ele, a relação parte/todo está rompida. Novos significados e interpretações são acrescentados. No conto de Cortázar o escritor faz um jogo com as possibilidades de se contar uma história, em primeira pessoa do singular, terceira, primeira do plural e Antonioni leva este jogo para o filme. Quando vemos Thomas (David Hemmings) fotografando a famosa modelo alemã Veruschka, ela fazendo o papel de si mesma (atentar para o detalhe), visualizamos uma cena orgiástica e também criativa, pois vemos a partir da lente do diretor, um fotógrafo vendo a modelo pela lente de sua câmera. O recurso não é gratuito, ele fala da própria essência da trama do filme e do conto em que está baseado.
No início do filme Thomas aparece no meio de vagabundos saindo de um centro de acolhimento de pobres em Londres, para fotografar este grupo ele se disfarça como um deles. Na primeira cena do filme vemos um grupo de mímicos passeando pelo centro de Londres, provocando as pessoas e pedindo contribuição para seu No filme a partir da análise e de ampliações da espetáculo. Na última sequência eles voltam e fotografia feita, o personagem-narrador acaba instalam-se numa quadra de tênis, no parque por perceber uma situação dramática, que a onde Thomas fotografou o casal, e começam a principio não havia entendido e como a sua jogar organicamente sem raquete e sem bola. Um presença e ação (de tirar a fotografia) interferiu dos mímicos/jogadores, num golpe, atira a bola nela. para fora da quadra, todos se voltam para Thomas e ele entra no jogo e corre para buscar a Usando este conto como base o cineasta italiano inexistente bola e a atira para os jogadores. Neste Michelangelo Antonioni (1912-2007) realizou em momento Antonioni faz um primeiro plano do 1966 o filme Blow-up, mostrando um fotógrafo ator, que devolve a bola e não vemos mais os londrino, que por puro tédio dentro de sua mímicos, mas ouvimos os barulhos e vemos que agitada vida, vai dar um passeio em um parque da a principio Thomas entra na brincadeira, mas periferia de Londres e começa a tirar fotografias depois baixando os olhos volta para o seu aleatoriamente. Um casal se abraça no parque, de conflito e abandona o parque na cena final do repente a mulher (Vanessa Redgrave) corre atrás filme. No conto de Cortázar não temos um do fotógrafo e exige o filme, dando início ao desfecho convencional, o garoto que fugiu das conflito central da obra. teias da mulher madura pode voltar para a praça 85
no outro dia e ser enredado por ela novamente; no filme de Antonioni o final é aberto; quem foi morto, por quem, onde está o corpo e a mulher vai procurar o fotógrafo novamente? Nada disto interessa, a ficção criada por eles já se basta em si. Esta obra prima do cinema contém o jogo primordial que constitui o próprio cinema. A narrativa tem como tema central uma obra de ficção, vinda da literatura e como ela usa um dispositivo técnico e seus procedimentos para criar uma realidade (documental) que é mais real que a própria existência física, pois é expandida, ampliada. E aqui se revela o eixo central da classificação dos gêneros cinematográficos a intenção criativa de seu autor, pois toda obra cinematográfica tem um índice de irrealidade na sua constituição. Quem decide se a obra se desenvolverá como documentário ou ficção é o autor, independentemente do assunto abordado ou do letreiro inicial que diga ‘baseado em uma
história real’. Cinqüenta anos atrás Antonioni soube como ninguém utilizar este jogo fundamental do cinema e criar uma obra de referência para a história da sétima arte.
João Eduardo Hidalgo é doutor em Comunicação pela Universidade de São Paulo e pela Universidad Complutense de Madrid. Professor da Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação da Unesp de Bauru.
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Mona Hatoum o La poética de lo terrible Lucía Viviana Rey Orrego La dislocación de la mirada se sustenta en la poética de lo cotidiano que permite el ingreso sutil hacia la percepción mnémica de lo terrible que nos ha constituido como humanidad, pudiendo generar reacciones emotivas antípodas y simultáneas.
Miró en el año 2011, tal vez precisamente por su capacidad de sintetizar y cristalizar estas micro y macro coordenadas sociales en una obra artística; considerando posibilidades constructivas de subjetividades marginales en la operación simbólica de construcciones estéticas y elaboraciones artísticas amplias y a Hatoum trabaja conceptualmente la vez específicas, crudas y a la vez y desde una limpieza minimalista sutiles, terribles y a la vez poéticas. que permite la codificación comunicativa de su obra, En su obra Cube (9 x 9 x 9)[1] se insertándose y/o emergiendo observa una escultura reticular desde discursos internacionales y cerrada, que desde una primera políticos que de una u otra forma mirada se muestra como un logran tocar al espectador en la enigma, ya que parece apuntar únicamente a la estructura de un experiencia contemplativa. cubo, realizada con precisión, de También, Hatoum incorpora en alguna manera indicando el vacío este discurso estético una alianza del espacio y la cuestión de su con la historia del arte, a través de impenetrabilidad, con un aspecto citas conceptuales o nominales, fino y pulcro, por el tipo de trabajo generando así una trama que meticuloso con el alambre. sostiene su obra ampliamente, tanto desde lo vernáculo e Sin embargo, en una segunda inaprensible, como desde lo lectura en la que el ojo pierde distancia con el objeto observado, político y estructural. comienzan a aparecer ciertas Le fue otorgado el premio Joan incógnitas en este material, que La obra de Mona Hatoum se presenta desde una estética de lo cotidiano, que permite (sorpresivamente) el ingreso al espectador hacia la contemplación y percepción de ámbitos de la existencia no deseables de observar, como lo es por ejemplo: el desgarro de la violencia.
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deja de lado su apariencia elegante y sutil para ser absorbido por este micro-relato de lo cotidiano universal. Apareciendo ante el ojo el alambre de púa, cual estorbo visual en el paisaje, una amenaza al cuerpo, un dispositivo mnemotécnico insoportable y letal para quien pretende ingresar en esta tentativa de mundo cuadriculado. El alambre de púa es liviano, resistente y barato, lo que permitió que fuera un material dolorosamente masivo a finales del siglo XIX. Además, esta obra cita al artista estadounidense Sol LeWitt, quien desarrollando un arte conceptual por sobre el minimalismo, trabaja estructuras modulares por medio de la figura del cubo, precisamente citando nominal y figurativamente su obra Nine-part Modular Cube, 1977. Su obra Misbah[2] (que en árabe significa linterna o lámpara), corresponde a la construcción de
una lámpara de bronce colgando de una cadena de metal, que proyecta luz por medio de una lamparilla eléctrica con un sistema de rotación automático. Hatoum atrae la atención del espectador a través de esta instalación lumínica que en su uso cotidiano tiene una connotación lúdica y posiblemente romántica por citar la oscuridad en su aspecto ideal del sueño y la imaginación. Es a partir de esta estética cotidiana que permite el ingreso atencional desde una apertura perceptiva, desprejuiciada políticamente.
un rallador con 3 partes, que en su amplificación dimensional llega a convertirse aparentemente en un biombo que mediante su diseño filudo, simétrico y funcional al raspado y rallado, permite ingresar visualmente hacia el otro lado oculto, mediante el ejercicio del corte del ojo observador, mediado por la posibilidad de la propia fragmentación doméstica e invisible. Daybed, que cita un rallador de queso, en su agigantamiento ingresa en una nueva funcionalidad cotidiana, una cama que no guarda el descanso, sino que existe al acecho, como si representase la invasión agresora en los sueños del otro. El ingreso agresivo y absoluto en el mundo onírico de un presidiario. La mayor de las condenas, en donde el inconsciente queda preso del dolor.
Una vez dentro de este espacio es posible observar que lo que gira en proyección sobre el cielo de la habitación oscura son figuraciones de soldados armados envueltos en constantes luces que no son estrellas (aunque lo parezcan), sino que corresponden a la representación de explosiones de En Keffieh[4], Mona Hatoum bombas en el aire. trabaja con cabello humano y algodón. Este objeto trae consigo Además, el material de la lámpara diversos aparatos simbólicos que que proyecta la luz cita los fierros entretejidos funcionan fríos en los que se sustenta la artísticamente en la dislocación del guerra a mano armada. Esta uso doméstico del mismo, escena en donde la luz inicialmente potenciando a través de una atraía al espectador como mirada crítica su valor simbólico. “guardiana de los sueños”, luego emerge en su antípoda, como la Entonces, la artista por una parte “enemiga del sueño”. La locura de parece afirmar la potencia la imposibilidad del descanso, en discursiva de la resistencia pero una rotación veloz y tortuosa que por medio de un agudo acto parece un mantra de pesadillas. crítico y deconstructivo. Este pañuelo, que aunque actualmente Paravent y Daybed[3], que es usado por hombres y mujeres, significan Biombo y Sofacama en su tradición bélica cita respectivamente, cristalizan el constantemente la estructura traslado estético de un típico masculina de una cultura de objeto doméstico a escalas que resistencia, invisibilizando lo exceden su contexto usual. femenino. Paravent cita la figura y el uso de
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Existe una potencia estética en este tejido de cabellos de mujer (de la propia artista), generando conceptualmente una cita en torno a una “Rabia controlada”. La artista menciona: “hay un dicho árabe: ‘estaba tan enojada que podría haberme arrancado el cabello’. Me imaginé mujeres que arrancaban el cabello y controlaban su rabia mediante el paciente acto de entretejer esos mechones en una prenda de vestir que se ha convertido en símbolo del movimiento de resistencia palestino. El acto de bordar puede verse en este caso, como un acto más: una especie de protesta silenciosa”. Entonces, un pañuelo con valor político, cuadricular, erecto, masculino, es atravesado por la curva de lo cotidiano, en donde se ubica el mundo silencioso de lo femenino en una sociedad altamente masculinizada a través de la guerra continua. Además de esto, Hatoum trabaja el cabello como “símbolo de una sexualidad no contenida”, así, en este caso el cabello no solo traspasa la tela que debiera cubrirle, sino que además le desborda, generando la reflexión crítica en torno al valor del imperio de lo masculino en la resistencia de un pueblo, y la simbolización de la mujer de forma utilitaria en su sexualización y ocultamiento.
Lucía Viviana Rey Orrego Investigadora Asociada Universidad de Chile
Uma lista que não é a de Schindler João Eduardo Hidalgo FAAC/UNESP Confira os diretores que utilizaram-se do período nazista para produzir filmes que retratassem o horror do holocausto
O ator Liam Neeson como Oskar Schindler
Quando os Irmãos Lumière fizeram a primeira sessão pública do cinematógrafo, no porão do Grand-Café do Boulevard des Capucines, em Paris, no dia 28 de dezembro de 1895, não tinham a mínima ideia que estivessem criando um novo tipo de arte. Para eles o cinema era só uma curiosidade científica, opinião da qual discordou um dos espectadores, o prestidigitador George Méliès (1861-1938); os irmãos não se interessaram nem em discutir o assunto e muito Cena do filme O nascimento de uma nação menos em vender uma de suas câmeras para o impressionado senhor, que seria o introdutor da ficção no cinema. O pioneiro Robert Flaherty (1884-1951), com bastante justiça, é sempre lembrado como o Os franceses e os americanos foram os primeiros diretor do primeiro documentário a acreditarem neste novo meio de expressão, que cinematográfico. A sua aventura no norte do seria a mídia dominante do Século XX. Em 1915 Canadá, o contato e interesse em registrar a vida David Griffith realiza a sua ficção racista. O dos esquimós fez com que ele intuitivamente nascimento de uma nação (The birth of a realizasse um dos primeiros documentos visuais nation), onde culpa a chegada dos negros mais significativos do século XX, Nanook, o escravos pela destruição da nação americana, e esquimó. louva a existência da Ku-Klux-Klun, para defender os verdadeiros americanos. A linguagem Gigantesca é a presença da alemã Leni do cinema sendo usada para um discurso Riefenstahl (1902-2003) quando se estuda o ideológico repugnante. modelo do documentário clássico. Ela conhecia 89
todos os seus predecessores, sabia o que tinham feito de eficiente, era admiradora e amiga de Walter Ruttmann (1887-1941), diretor do documentário Berlim – sinfônia da métropole, ficou atordoada com as ficções Encouraçado Potemkim (1925) e Outubro (1927) de Sergei Eisenstein (1898-1948) e desejava fazer o mesmo uso ágil das câmeras de Abel Gance (1889-1981) no drama Napoleon (1927). E teve pleno êxito em reunir todos os procedimentos destes realizadores no seu monumental Triunfo da vontade, onde ela mostra uma virtuosidade no uso da posição das câmeras, na composição das cenas, no uso do som e principalmente na montagem, para criar a propaganda nazista que mudou o cinema.
Uma década antes, no último ano do conflito, o diretor italiano Roberto Rossellini dirigiu Roma, cidade aberta (Roma, città aperta, 1945), mostrando o sofrimento da população subjugada pelo facismo de Mussolini e pelo nazismo. Filmando escondido dos alemães que ainda estavam na cidade, usando prisioneiros para filmar as cenas de conflito e principalmente colocando no centro do filme o fuzilamento de um padre, que colaborava com a resistência italiana, fez uma metáfora do sacrifício pelo qual a população passou, para conquistar a sua liberdade.
Cena da execução de um padre em Roma, cidade aberta
O triunfo da vontade, de Leni Riefenstahl
Com o final da guerra a humanidade chocada veria um dos mais contundentes retratos da loucura de Hitler em Noite e Neblina (Nuit et brouillard), um documentário feito em 1955, por Alain Resnais, para mostrar o imponderável da existência dos campos de concentração nazista.
Noite e neblina, de Allain Resnais
Os Estados Unidos tornam-se o paraíso no pósguerra e sua história é contada em detalhes nem sempre edificantes por Orson Welles em Cidadão Kane, de 1941. Neste filme ele narra a história do magnata da imprensa William Randolph Hearst, que dominou a opinião pública americana no final do século XIX e começo do XX, e que podia inclusive inventar conflitos, como o fez com a guerra EUA x Cuba de 1898, que nasceu nas páginas de seus jornais. Para muitos críticos de cinema Cidadão Kane é o melhor filme de todos os tempos. Com o desenvolvimento no pós-guerra o cinema deixou para trás o conflito mundial e começou a prestar atenção em história de grupos e populações no novo mundo. Romeu e Julieta visitam a América dentro de um bairro de imigrantes, no melodrama Amor Sublime Amor (West Side Story), de Robert Wise realizado em 1961. Na Itália ou em Nova York os choques culturais tem a mesma força e os destinos estão ligados em uma imensa trama. 90
Em 1974 o jornalista americano Peter Davis faria um dos documentários mais eticamente justos que já foi realizado, Corações e mentes (Hearts and minds). Nele é mostrado, através de entrevistas e imagens de noticiário, a posição dos americanos na Guerra do Vietnã, mas também o sofrimento e o que pensam os vietnamitas do ataque aos seus povoados e as suas famílias, pelo governo dos Estados Unidos, imperdível.
julgamento do nazista fugitivo Adolf Eichmann. Ela apontou a culpa de muitas lideranças judaicas que não informaram a situação de seus grupos e não tentaram mais efetivamente evitar o seu envio para os campos de concentração. E também apontou a banalidade do mal, pois Eichmann nunca se sentiu culpado, pois estava simplesmente ‘cumprindo ordens’, com muita eficiência. Complementando a visita aos regimes totalitários, também em 2013, o diretor polonês Pawel Pawlikowsk dirigiu Ida, um dos filmes mais emocionantes da atualidade. Neste drama a jovem Ida, na Polônia do início dos anos 1960, tem que decidir entre tornar-se freira, no convento em que foi acolhida ainda pequena durante a guerra, ou viver a modernidade que se insinuava no país, depois da morte de Joseph Stalin (1879-1953), que pairava sobre a nação satélite do império comunista.
Pôster do documentário Corações e mentes
No final do século XX muito da memória da II Guerra Mundial estava sendo esquecida e negada, o diretor Steven Spielberg fez o seu emocionante drama A lista de Schindler (1991). Ele mostra que a consciência não poderia deixar de existir durante um período ditatorial como foi o domínio de Adolf Hitler (1889-1945), na Alemanha. Um alemão, Oskar Schindler, que não concordava com o nazismo, salvou mais de mil pessoas, que contratou como operários em suas fábricas, retirando-as da morte certa nos campos de extermínio.
Ida, de Pawel Pawlikowsk
O final do filme ensina que nestes conflitos o desfecho nem sempre é simples, os culpados e inocentes se mesclam sem chance de separação.
Uma lista sobre filmes de ficção e documentário, clássicos e modernos, como a lista de Schindler, sempre deixará muita coisa de fora, mas tentará como esta, elencar alguns dos representantes Recentemente uma cineasta alemã brindou o essenciais no amplo cenário de 120 anos da cinema com um filme corajoso, Hannah Arendt chamada Sétima Arte. (2013). Neste filme a diretora Margarethe Von Trotta mostra o dilema vivido pela filósofa alemã, de origem judia, Arendt (1906-1975) ao cobrir, para a revista The New Yorker em 1960, o 91
Pinacoteca do Estado exibiu obra de José Spaniol: "Tiamm Schuoomm Cash" José Leonardo do Nascimento IA/UNESP
O artista plástico e professor José Spaniol criou no octógono da Pinacoteca de São Paulo a sua obra.
Como já é marcante em sua carreira, a instalação tem como tema onomatopéias, neste caso ligadas ao mar, já que a obra compõe-se de dois barcos flutuando em ondas, compostas por bambus entrelaçados. O nome do trabalho: TIAMM SCHUOOMM CASHSH, sons que o mar produz nas suas profundezas e nas margens que recebem estas duas naves que, como define o próprio Spaniol, simbolizam uma ancoragem. Perguntamos: onde?
superfície da obra, que necessariamente se modificará no percurso da exibição. Elucidativo da gênese da obra é o desenho número um, que coloca junto e em sequência: a casa, o sino, a tempestade. Uma trilogia fundamental na obra de José Spaniol.
A casa lembra a instalação Mirante, de 1997, realizada no terreno da fábrica Matarazzo, dentro do Arte Cidade, e que utilizou a terra do local para construir em taipa as quatro paredes de quatro metros que formavam um quadrado e Nesta criação que foi inaugurada em março de deixavam ver o céu e os arredores, pelas frestas 2017, Spaniol trabalha com os materiais e suas nos cantos da construção. propriedades; a madeira foi cortada, montada e envernizada para criar os dois barcos, já o bambu O sino liga-se ao Tímpano, instalação criada em está com sua textura natural. taipa, em 2009 na Capela do Morumbi, São Paulo, ela mesma construída em taipa no século Os dois materiais dialogam com o espaço do XVI. octógono, que é famoso pelos seus tijolos centenários naturalmente à mostra. E a luz que E finalmente a figura de A tempestade revela-se entra pelo telhado de vidro, sem filtros, como um barco sustentado por um mar de transforma o trabalho de acordo com o período bambus, ou troncos, que agora se realiza. Em do dia, multiplicando formas, alongando todas elas permanece com fio condutor um sombras, reflexos e agindo diretamente na elemento caro ao artista, a horizontalidade. 92
TIAMM SCHUOOMM CASHSH dialoga também com outras produções do artista, como a obra Ascensões, de 2010, que se constituía de armários de sacristia erguido por troncos de eucaliptos, seis por armários, que estavam colocados nos cantos de uma sala completamente branca, do Mosteiro de São Bento de São Paulo, na mostra Arte e Espiritualidade.
Nas duas obras somos içados para outra dimensão e nela devemos nos instalar, de dentro dos dois barcos deveremos fechar os olhos e ouvir o som que a obra carrega consigo- tiamm schuoomm cashsh.
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Veja a montagem em andamento:
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Um novo olhar sobre a arte brasileira Nelyse A. Melro Salzedas - UNESP & Rivaldo Alfredo Paccola - UFVJM "O Brasil não começou a pintar com a missão Francesa, mas com os índios, dizem os ensaístas”
Recentemente lançado, o livro organizado por Fabiana W Barcinski, foi apresentado no Caderno 2 do jornal Estadão (mar/2015) de modo instigante: A arte virada ao avesso e não menos incitante com este enunciado: “o Brasil não começou a pintar com a missão Francesa, mas com os índios, dizem os ensaístas” Com o registro de gravuras rupestres e artefatos indígenas, é legítimo falar em arte Brasileira com características próprias e espaços definidos?
brasileira. Assim, a obra convida o leitor para uma reflexão sobre a importância do patrimônio cultural brasileiro e sua difusão. Trata-se de um novo olhar pelo qual especialistas respondem estética-historicamente ao regarder sobre objetos artísticos, através de uma sequência linear, sob o ponto de vista de uma História Social da Arte Brasileira. Por ser um lançamento recente – abril/2015 – julgamos viável confrontála com a maioria das obras cuja tradição propõe contar a história cronológica da arte, enquanto Sobre a arte brasileira, de Barcinski (2015) ancora-se no contexto de produção político e social.
A tais indagações no texto dos ensaístas, soma-se a assertiva de que tampouco o concretismo ou a arte experimental dos anos 1960 são frutos da clonagem da arte estrangeira, em artigos conjugados por períodos histórico-estéticos. É o Barcinski (2015) mergulha os textos artísticos que mostra o livro, que traz um capítulo sobre a organizados por ela na nossa pré-história da arte. arte popular, prova da riqueza e diversidade Há um texto inicial fundamental para a leitura e posicionamento social da produção artística: 95
“Para uma história (social) da arte brasileira” (ALAMBERT, p. 6-20). A partir desse, outros marcantes de períodos temporais políticoeconômicos alicerçam a historiografia da produção artística: “Arte pré-histórica no Brasil: da técnica ao objeto” (PESSIS; MARTIN, p. 2261); “O olhar estrangeiro e a representação do Brasil” (PICCOLI, p. 62-94); “Maneirismo, barroco e rococó na arte religiosa e seus antecedentes europeus” (OLIVEIRA, p. 96-135); “Arte e academia entre política e natureza (1816 a 1857)” (DIAS, p. 136-173); “A arte no Brasil entre o segundo reinado e a belle époque” (MIGLIACCIO, p. 174-231); “Modernismo no Brasil: campo de disputas” (SIMIONI, p. 232263); “Concretismo” (VILLAS BÔAS, p. 264293); “Os anos 1960: descobrir o corpo” (BRAGA, p. 294-323); “Arte popular” (LIMA, p. 324-345).
“O importuno”; de Rodolfo Amoedo, “Marabá”. Os temas burgueses, indianistas e históricos corroboram os literários dos nossos poetas e romancistas do romantismo. Chega-se ao Modernismo, ao Concretismo, aos anos 1960, à arte popular que fecha o volume de Barcinski (2015), onde cada um deles é tratado em capítulos e analisados por autores diferentes.
De certa forma, Barcinski (2015) é “a arte virada ao avesso” que revê, com outros olhares, a Arte Brasileira desde seus primeiros objetos estéticos até 1960, fundamentada na formação do estado brasileiro e nos cânones da Arte Ocidental e desmistifica seu nascimento com a vinda da missão francesa, em 1916, tampouco o concretismo ou a arte experimental da segunda metade do século são apropriações da arte Assim, comparados períodos temporais nos estrangeira. textos, qual seria o resultado: em obras que abordam a arte pela história cronológica, no século XIX: o Impressionismo, Pontilhismo, Com esse enfoque, a obra joga luzes na riqueza e Expressionismo, no Brasil; em Barcinski (2015), diversidade da arte popular brasileira. 1816 a 1857: arte e academia entre política e natureza, com a assistência da missão francesa e seus articuladores; já, a partir do segundo reinado, Assim, enquanto a maioria das obras propõe têm-se algumas alterações estéticas com a pintura contar a história cronológica da arte, Barcinski de Vitor Meirelles, “A primeira missa no Brasil” e (2015) dessolda a cortina que encobria a “Moema”; de Pedro Américo, “A batalha de brasilidade artística; de modo que as primeiras Guararapes” e “Batalha do Avaí”; há, ainda, a analisam a arte a partir dos artefatos produzidos, considerar a fuga temática de Belmiro de pela cronologia, esta resenhada discute a arte a Almeida, em “Arrufos”; de Agostinho José da partir de suas condições de produção, pela Motta, “Natureza morta com frutas”; de José cultura Ferraz de Almeida Jr., “Caipira picando fumo” e
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Especial: Vídeo
Assista ao vídeo em que Percival Tirapeli mostra seu "autorretrato" feito por Pedro Leão <https://youtu.be/APHDxRJHo0> ou
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