Palau vol.3 n.1

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PALAU

vol.3

ISSN 25268708

No.1


PALAU

20 17

05 Os Versos Satânicos 30 anos Depois 08 La Movida Española cerca de cumplir 40 años 12 Dialogismo e metaforização entre a ilustração e a linguagem jornalística 19 Ficção e documentário na construção narrativa do filme O quarto de Jack 29 Marcel Duchamp, a pintura me ama (ou je suis la peinture) 33

A

Moderna

Reconstruções

70

Cultura

Latino

-Americana:

Interpretações

e


EDITORIAL

Cinema, pintura, literatura e sociedade O que é uma cultura, a grosso modo podemos entender como as representações imateriais que espelham e distinguem um grupo, sua língua, suas crenças e suas regras de convívio. Daí também a sua a interaçãooposição com outros grupos humanos. Neste número a Palau vê o conceito de cultura a partir da produção de alguns grupos. O romancista Salman Rushdie nos traz um mundo regido por convenções religiosas do oriente, que não são as do ambiente onde os personagens escolheram viver, e todo o conflito que isto provoca, dentro das marcas de estilo já bem conhecidas do escritor indiano. O artigo sobre o quarto de Jack fala das diferenças e intercomunicações entre uma obra de ficção e um documentário no cinema. O documentário pode ser cru e mostrar muitos detalhes de uma realidade, mas a ficção tem um poder de síntese e de representação que o registro do real não alcança. Marcel Duchamp, o grande representante da modernidade nas artes visuais, aparece comentado através de seus ready-mades, suas inovações envolvendo a pintura e vários suportes, como a do Grande Vidro. Destaque para suas características libertárias, que não obedecem aos preceitos da arte tradicional como ter talento, formação ou preparação para entrar no mundo das encenações visuais. Como contribuição especial para este número temos dois artigos inovadores, um discute a ilustração e o dialogismo na linguagem jornalística, especificamente como alguns textos de jornal apresentam-se sob formato de hipertexto, cujas janelas abrem-se para novos sentidos; neles o campo semântico não está restrito aos textos verbais, pois a ilustração presente em cada um oferece um aspecto polissêmico e transforma-se em uma síntese discursiva. O segundo infere como é impossível se erigir um pensamento descomprometido, posto que ele se encontra inextricavelmente ligado às condições da sua formulação, de seu entorno social. Utilizando-se da obra de Adorno a pesquisadora reflete sobre a própria concepção corrente de cultura, da recusa em pensá-la como epifenômeno, tampouco tratá-la como uma entidade, uma esfera isolada da existência social, finalmente, rejeita cristaliza-la em conceitos, ou substantivá-la em concepções imutáveis. Boas reflexões e boa leitura. Prof. Dr. João Eduardo Hidalgo e Prof. Dr. José Leonardo do Nascimento Editores Palau.


EXPEDIENTE

EDITORES - SENIORES João Eduardo Hidalgo

José Leonardo do Nascimento

EDITORES-CHEFES Fabia Giordano Guilherme Kadayan

Melissa Vassalli

Donny Correia

CONSELHO EDITORIAL Mariarosaria Fabris (FFLCH/USP)

Emilio García Fernández (Universidad Complutense de Madrid)

George Preston (City University of New York)

José Leonardo do Nascimento (IA/UNESP) Caroline Kraus Luvizotto (FAAC/UNESP)

Marcia Barbosa da Silva (UEPG/PR) Urbano Nobre Nojosa (PUC/SP) Elza Maria Ajzenberg (ECA/USP) Rosa Maria Araújo Simões (FAAC/UNESP) Paulo Roberto Monteiro de Araújo (Mackenzie/SP)

Jorge Schwartz (Diretor Museu Lasar Segall/SP)


OS VERSOS SATÂNICOS 30 ANOS DEPOIS

Até 1987, o escritor anglo-indiano Salman Rushdie vinha despontando como umas das vozes mais imponentes e originais da literatura ocidental com obras reputadas e premiadas, como Filhos da meia noite, vencedor do The Man Booker Prize de 1981, e Vergonha, que gozou de igual êxito de leitores e críticos. Verdade que ambas as obras se propunham, em suas tramas, a provocar um olhar crítico sobre figuras

como

Indira

Gandhi

e

o

presidente do Paquistão, Zia ul Haq, mas a complexidade estética de Rushdie e a profundidade

de

tramas

e

suas

amarrações que visavam a uma revisão crítica da cultura indo-muçulmana na qual

fora

criado,

suplantavam

suscetibilidades circunstanciais.

Escrito por Donny Correia, crítico e pesquisador- USP


Contudo, em 14 de fevereiro de 1989, Dia de São Valentim e, para muitas culturas, data de celebração do amor, Salman Rushdie, então com 41 anos, começaria a experimentar um dos períodos mais conturbados e sombrios de sua vida, que duraria cerca de dez anos. Meses antes, Rushdie havia lançado o tão esperado e comentado Os versos satânicos, romance de realismo fantásticos que discutia a condição do imigrante, as convenções religiosas e o cosmopolitismo da capital britânica, Londres, onde a trama se passa. Na trama, dois atores indianos, reputados funcionários de Bollywood, caem dos céus após o avião em que viajavam sofrer um atentado a bomba e explodir em pleno voo. Milagrosamente, sobrevivem a uma queda em Brighton, litoral inglês, de onde são levados por forças policiais para um hospital, para serem estudados e interrogados. Os atores, Saladin Chamcha e Gibreel Farishta passam a sofrer um processo de metamorfose. Gibreel – transliteração do original para Gabriel, o anjo que revelou as palavras do Alcorão a Maomé – assume uma aparência de anjo, enquanto seu colega, Saladin, transforma-se num ser de aspecto demoníaco. A reencarnação do diabo na Terra.Passamos a conhecer os conflitos inerentes aos dois sobreviventes. Saladin tem um profundo ressentimento em relação às suas origens indianas e deseja ascender socialmente de maneira a apagar qualquer rastro de inadequação cultural. Já Gibreel, cuja esquizofrenia nunca proferida, mas sempre aferida nas várias passagens, o torna um homem instável e, ainda que guarde a aparência angelical, bastante agressivo, passa a ter sonhos estranhos que o remetem a uma passagem do livro sagrado do Islã polêmica e negada por diversas

autoridades religiosas ao longo de todos os séculos: os versos satânicos do Corão. Neles, o profeta do islamismo teria sido enganado pelo Diabo. Sabe-se da dificuldade que o islamismo, em seus primeiros dias, enfrentou para convencer os seguidores da existência de um só Deus, responsável por tudo e o único digno de adoração. Portanto, o Diabo teria se disfarçado e proferido a Maomé que seu povo teria, sim, autorização para adorar outros deuses. Tempos depois, convencidos de que tais versículos não passavam de uma farsa, as autoridades do Islã teriam suprimido palavras do livro sagrado em prol da coesão religiosa. Uma vez que mulçumanos legítimos pregam que Maomé é o último e verdadeiro profeta da fé professada, e que o Alcorão é a bula definitiva do amor, da misericórdia e da moral divina, nada pode refutar tal documento, ainda que indiretamente. Rushdie, em sua reconhecida vaidade literária, apropriou-se de tal lenda para voltar ao incidente dos versículos proibidos e criar uma subtrama nos sonhos do perturbado Gibreel, que, em seus pesadelos, se vê na cidade de Jahilia, nome pagão pelo qual Meca era chamada no passado. Lá, o profeta Mahound, corruptela deletéria feita a partir do nome Muhammad pelos cavaleiros templários, durante a Guerras Santa, ostenta um bordel privado com doze prostitutas que têm os mesmos nomes das esposas do profeta original. Ainda, nos mesmos delírios, conhecemos um chefe religioso radical muçulmano exilado em Londres, de onde faz transmissões radiofônicas para seu país, também Jahilia, convocando a massa para uma peregrinação simbolicamente em favor da misericórdia divina por seu povo, mas que se prova uma marcha suicida.


Portanto, além de atacar diretamente as bases do Islamismo, Rushdie evocava a figura do Aiatolá Khomeini que, dez anos antes, havia deixado seu exílio na França para liderar a Revolução Mulçumana no Irã. A despeito das diversas advertências e dos inúmeros conselhos contrários à publicação, por parte de especialistas e autoridades que tiveram a oportunidade de ler os originais de Os versos satânicos, Rushdie decidiu impor-se e se valer da condição de celebridade para sustentar suas escolhas. Pouco a pouco, vários países com população muçulmana, incluindo a Índia, baniram o livro. Comunidades mulçumanas na Inglaterra iniciaram uma série queimas públicas de cópias. Finalmente, no início do ano seguinte à publicação, o próprio Khomeini emitiu uma fawa, ou seja, uma pena de morte que conclamava o povo muçulmano a assassinar Salman Rushdie, um infiel. Para os muçulmanos, pode ser tolerável que se fale contra Deus, mas há que se tomar cuidados com o que se fala sobre Maomé. Rushdie, àquela altura, percebeu a dimensão do que fizera e, até o final dos anos 1990, precisou viver uma vida nômade, oculta, sempre escoltado por segurança particular. Enquanto especulavam sobre ser Nova York sua nova residência fixa, Rushdie, nas raras entrevistas que dava após a condenação, insinuava uma confirmação quando dizia que “O melhor lugar para se esconder é nas grandes metrópoles, onde todos são anônimos”. Anos depois, a fatwa foi revogada e Rushdie prosseguiu com sua prosa cada vez mais pretenciosa, como em Fúria (2003). Quanto a Os versos satânicos, o que poderia parecer uma objetificação de conflitos políticos-religiosos travados entre o Oriente e o Ocidente nas décadas de 1970 e 1980, provou-se ao longo dos anos seguintes uma cartografia de antigos conflitos sociais e dinásticos que incendeiam as notícias sobre as relações entre os árabes e os americanos e europeus até nossos dias. As alucinações de Gibreel e os arroubos xenófobos de Saladin são apenas as camadas superficiais de um poço tão profundo quanto aqueles que jorram petróleo, o ouro escuro que faz emergir todas as diferenças que levam o mundo rumo ao afogamento que o pobre e louco personagem de Rushdie vê quando o povo de Jahilia, cego pela fé, caminha mar adentro como se fosse encontrar a última salvação. Desse polêmico esforço discursivo, ainda emerge a liberdade de expressão que Rushdie almejou e defendeu a um custo extremo. Uma ideia mais complexa que a própria mente de seus personagens, maior que os embates culturais e religiosos. Salman Rushdie talvez não soubesse, mas revelou a inexistência de qualquer possibilidade de expressão irrestrita sem que se sofra com o crivo das convicções engessadas pelo atavismo das autoridades.

Diálogo entre a Pauliceia Desvairada de Mario de Andrade e o Espetáculo Teatral Encenado Pelo Teatro Didático da UNESP.

Donny Correia, crítico e pesquisador, é mestre e doutor em Estética e História da Arte pela USP.


LA MOVIDA ESPAÑOLA CERCA DE CUMPLIR 40 AÑOS

are radiators of a culture that values ​the trivial, the ephemeral and the stereotyped, the subgenres and marked a cultural change in Spain.

Key-words: La Movida, Francoism, Almodóvar.

Por João Eduardo Hidalgo

counterculture,

late

Foto 1: Esquina Almodóvar, llamada así por él, en la confluencia de las calles Alcalá, Caballero de Gracia y Gran Vía. En esta esquina frente al edificio Metrópolis, con su ángel protector, fue atropellado Esteban (Eloy Azorín) de Todo sobre mi madre (1999) e Isabel (Penélope Cruz) casi da a luz en Carne Trémula (1997). Bajo este cielo, en esta ciudad, surgió Pedro Almodóvar y sucedió La Movida.

(Foto: J.E.H. 2008)

La Movida Española cerca de cumplir 40 años Resumen: El término La Movida se creó para denominar el movimiento contracultural que tuvo lugar en Madrid a finales de los 70 y principios de los 80. La movida marca un renacimiento cultural después de cuatro décadas de una existencia gris y anticuada. El movimiento es heredero del Pop Art americano y los grandes centros como Nueva York y Londres son radiadores de una cultura que valora lo trivial, lo efímero y lo estereotipado, los subgéneros y marcó un cambio cultural en España. Palabras-llaves: La movida, Contracultura, Tardofranquismo, Almodóvar. Abstract The term La Movida was created to refer to the countercultural movement that took place in Madrid in the late 1970s and early 1980s. La Movida marks a cultural renaissance after four decades of a centers such as New York and London

El término La Movida se creó para denominar el movimiento contracultural que tuvo lugar en Madrid a finales de los 70 y principios de los 80. De hecho, La Movida ocurrió en varias capitales españolas, en Vigo y Bilbao, con sus grupos de rock; Barcelona con sus cantautores Joan Manuel Serrat y Lluís Llach; Sevilla con Triana y Paco de Lucía. La movida marca un renacimiento cultural después de cuatro décadas de una existencia gris y anticuada. El dictador murió después de causar mucho daño al pueblo y al país, en 1975 España era una nación pobre, atrasada y perdida en una realidad que se remonta a principios del siglo XX. El nombre y definición del movimiento no inquietó a ninguno de los involucrados en él, nunca hubo un manifiesto, decían 'estamos en el Rollo' o 'yendo de movida', creando un vocabulario que parece haber salido de la experiencia de salir de casa para comprar sustancias alucinógenas, o adentrarse en espacios subterráneos (bares, cafés-conciertos y similares). El movimiento es heredero del Pop Art americano y los grandes centros como Nueva York y Londres son radiadores de una cultura que valora lo trivial, lo efímero y lo estereotipado, los subgéneros, las antiguas estrellas. Uno de los primeros signos del movimiento suele citarse como


grupo pop Kaka de Luxe, en 1977, liderado por la cantante Alaska, figura clave de La Movida. Esta nueva ola trajo a un grupo de personas que no tenían experiencia con la música, pero que estaban dispuestas a formar una banda y dar conciertosacontecimientos en Madrid y otros centros urbanos de España. El otro eje (hubo dos fundamentales -la música fue el primero) de La Movida fueron las artes plásticas, principalmente la pintura y la fotografía, en las que destaca la presencia de los pintores Sigrifido Martín Begué (1959-2011), Guillermo Pérez Villalta y los fotógrafos Alberto GarcíaAlix y Pablo Pérez-Mínguez (1946-2012). La gran impulsora del movimiento fue la galerista Blanca Sánchez (1948-2007), quien animó a muchos de los artistas a producir e hizo una gran exposición conmemorativa a principios de 2007 y se fue en paz. El grupo frecuentaba un bar en el casco antiguo de Madrid, La Via Lactea, donde se presentaban los modernos de la metrópoli. En este escenario de la Nueva Ola y como dicen Rocanrol (Rock & Roll) se sumó Pedro Almodóvar a una figura indefinible, que era Fabio de Miguel, nacido en 1957 en Madrid, que frecuentaba la Casa das Costus (abreviatura de Las Costureras, formada por los pintores Juan Carrero 1955-1989 y Enrique Naya 1953-1989), en la Calle de la Palma 14, Madrid y circuló por la ciudad asustando a franquistas medio podridos y conservadores en general. Fabio no era músico y como Almodóvar no tenía voz, pero la idea era más una cuestión de estética, de apariencia, que de ser. El dúo dinámico lanzó un LP de vinilo, llamado ¡Como está o lava de Señoras! Almodóvar se dio a conocer luego de ser seleccionado para participar en la muestra Nuevos Directores/Nuevas Películas en el MoMA (Museo de Arte Moderno) de Nueva York, en

para merecer esta?! (¡¿Qué hice yo para merecer esto?!) y el Festival de Río de Janeiro, FESTRIO, en 1987 con La ley del deseo, donde ganó el premio Tucano de Prata a la mejor dirección. Buen resultado para quienes debutaron en el cine con Pepi, Luci, Bom y otras chicas del montón, en 1980. En cuanto a su método de creación, es parte del universo de Almodóvar utilizar argumentos, detalles, personajes de películas que admira en la composición de sus guiones, citando, incorporando el elemento parodiado a la nueva obra. Y a partir de 1995 empezó a retomar personajes e historias de su propia obra, desde otro punto de vista o con otro tratamiento, recurso que llamo auto cita paródica. Por ejemplo, la historia de Volver (2006) es el resumen del libro de la escritora Amanda Gris (Marisa Paredes), quien es rechazada por su editor en la película La flor de mi secreto (1995). La enfermera Manuela aparece como personaje secundario en esta misma película, para volver como protagonista de Todo sobre mi madre (1999). Como ya he dicho, el cine, y en segundo lugar la literatura, han sido siempre fuentes fundamentales en la creación de Pedro Almodóvar. ¡Pueden ser solo una estructura, que pasa casi desapercibida, como cuando en Atame! Ricki (Antonio Banderas) le presenta su vida como puntos en un mapa a Marina (Victoria Abril) y luego le declara que solo tiene 50 mil pesetas en el bolsillo y quiere ser un buen padre para sus hijos. Esta estructura repite las de la película Bus Stop (Nunca fui santa, 1956) del discurso de Cherie (Marilyn Monroe) a su criada, mostrando dónde estaba y adónde quería ir (puntos en un mapa) y la declaración de la Bo (Don Murray) apasiona por ella, y hay que recordar que el personaje de Almodóvar,


2013, es una gran enciclopedia almodovariana de citas y referencias a personajes y situaciones de sus 18 películas anteriores. Aquí tenemos una pareja que se separa, con la mujer tirando su maleta por la ventana e intentando suicidarse por amor, además de la virgen que es sensible (elementos de Mujeres al borde de un ataque de nervios, 1988). Ojo con los nombres, nunca gratis en Almodóvar: la dueña de un burdel es Norma Boss (Normal y Boss), el piloto es Acero (Steel, tiene mujer y novio), el actor es Mr. Galán (lo que se espera de un actor), el empresario deshonesto Sr. Más (siempre quiere más) y el copiloto es el Sr. Morón (idiota, retardado). Recuerden Qué he hecho yo para merecer esto, que la pobre ama de casa que interpreta Carmen Maura se llama Gloria y la prostituta que interpreta Verónica Forqué se llama Cristal. En la nueva película, el personaje central es una mujer, Juliet, retratada en dos momentos de su vida, en sus veinte y principios de los cincuenta. La relación madre-hija también es central en la trama, factor redundantemente paródico en Almodóvar, recuérdese Tacones lejanos (De tacones altos, 1991) que trata sobre la enfermiza relación entre Rebeca (Victoria Abril) y Becky (Marisa Paredes); y Volver (2006) de la madre Irene (Carmen Maura) y su hija Raimunda (Penélope Cruz) y su hija Paula (Yohana Cobo), quien mata asu supuesto padre (que ya se basa en el caso de la hija de la actriz Lana Turner). En la entrevista del 20 de marzo con El País Almodóvar, aclara que se basó en tres cuentos de Alice Munro, escritora ganadora del Premio Nobel en 2013, que son Chance (Destino en español), Soon (Pronto en

Runaway (Escapada en español). Para los más atentos, debo recordarles que el personaje Vera Cruz (ojo con el nombre, La vera cruz en español significa ‘la verdadera cruz’) de La piel que habito está leyendo, en su cuarto de prisión, Escapada de Munro. Y Almodóvar le sugirió a Elena Anaya que leyera el libro para inspirarse en la creación del personaje, en el momento en que se anunció que Almodóvar tenía los derechos de Escapada desde 2009. En esta película nuevamente las artes visuales juegan un papel central en la historia, la escultura El hombre sentado del artista Miquel Navarro es un hilo conductor de la trama. También hay pinturas del pintor gallego Seoane, Lucien Freud, Richard Serra y Dis Berlin, quien también diseñó el tatuaje de Xoan. En la pared del nuevo piso de Julieta, justo al principio de la película, vemos el cartel de la obra La vieja de Robert Wilson y una fotografía de la esquina de la calle Alcalá con la calle Sevilla (del Palacio de la Equitativa) que dialoga con el 'esquina Almodóvar' (Alcalá con Gran Vía), tan querido y fotografiado por el propio director. El inicio de La Movida se acepta como 1977, con la formación de la banda Kaka de Luxe (mierda de lujo) y su final se fija en 1985 con el cierre de la sala de conciertos Rock-ola de Madrid y la desaparición del programa de televisión. La Edad de Oro (1983-1985) presentada por Paloma Chamorro (19492017). Pedro Almodóvar acaba de celebrar su 68 cumpleaños el 24 de septiembre, tiene 20 películas en su haber (21 si tenemos en cuenta el mediometraje Tráiler para amantes de lo prohibido de 1985) La Movida cumplió este año su 40 aniversario, con un gran epitafio, casi todos se han ido. La Movida renovó, o resucitó, la escena cultural española y Almodóvar transformó el cine español establecido en una plataforma de


realización personal y estilística precedentes en la historia del cine.

sin

Referencias:

ALMODÓVAR, Pedro. Volver. (Guión). Madrid: El Deseo/Ocho y Medio, 2006. __________ Fuego en las entrañas. Madrid: El Víbora (Colección Onliyu), 1981. APARICIO CILLÁN, Ana; CIMADEVILA NIÑO, Eduardo. La movida madrileña. Madrid: Editorial Tébar Flores, 2019. ARIÑO, Antonio. Sociologia de la cultura. Barcelona: Ariel,1997. CARDONA, Gabriel. Cuando nos reíamos de miedo. Crónica desenfadad de un régimen que no tênia ni pizca de gracia. Barcelona: Ediciones Destino, 2010. CERVERA, Rafael. Alaska y otras historias de la movida. Barcelona: Plaza & Janés Editores, 2002. GALLERO, José Luis. Solo se vive una vez. Esplendor y ruina de la movida madrileña. Madrid: Ediciones Árdora, 1991. GARCÍA-ALIX, Alberto. De donde no se vuelve. Madrid: La Fabrica Editorial, 2010. HARO IBARS, Eduardo. Gay rock. Madrid: Ediciones Júcar, 1975. HIDALGO. João Eduardo. Docudramas de La Movida madrilena: “Pepi, Luci, Bom y otras chicas del Montón” e “Laberinto de pasiones”, do cineasta gespañol Pedro Almodóvar. Revista Conexão, UCS, N. 15, 2009, pp. 165-184.

_________ A autocitação paródica em Almodóvar: uma poética da pósmodernidade. Revista Poéticas Visuais, UNESP, N. 1, 2010, pp. 81-95. ÍÑIGO, José María; PARDO, José Ramón. Una historia del pop y el rock en España de los 80. Madrid: RTVE Música, 2006. LLAMAZARES, Julio. El cielo de Madrid. Madrid: Santillana, 2006. LECHADO, José Manuel. La movida. Una crónica de los 80. Madrid: Agaba Ediciones, 2005. PÉREZ-MÍNGUEZ, Pablo. Mi movida. Fotografías 1979-1985. Madrid: Ediciones Lunwerg, 2006 PÉREZ PERUCHA, Julio. Antología crítica del cine español 1906-1995. Flor en la sombra. Madrid: Cátedra/Filmoteca Española, 1997. QUINTANA, Gerardo. Tino Casal. Más allá del embrujo. Madrid: T&B Editores, 2007. SÁNCHEZ, Blanca. La Movida. Madrid: Comunidad de Madrid, 2007. SUÑER, Eugenia et al. Clausura – exposición antológica Costus (Juan Carrero + Enrique Naya). Cádiz: Diputación de Cádiz, 1992


Dialogismo e metaforização entre

a ilustração e a linguagem jornalística Por Rivaldo Alfredo Paccola e Nelyse A. Melro Salzedas

A proposta deste artigo é discutir, embora em torno de um texto, a possibilidade da mescla de gêneros, de linguagens na produção de sentido. Uma ilustração do jornal O Estado de São Paulo, de 05/03/2006, uma outra, do mesmo jornal e Caderno 2, de 31/03/2006, e mais três outras da Revista Pesquisa Fapesp nº 118, dez./2005, constituem o corpus da análise. Todas elas, contextuadas por textos verbais, constroem sentidos paralelos de vozes diferentes, acentuadas pelo “ethos” temático dos artigos assinados por Ignácio de Loyola Brandão, Wilson Bueno e Carlos Haag, respectivamente. Com apoio na polifonia discursiva de Bakthin, a leitura dos textos iniciou-se pela metaforização do discurso que constrói os títulos: O fantástico num circo de horrores;

Rainha da bateria dos absolvidos; e Decifra-me ou devoro-te. Os textos apresentam-se sob o formato de hipertexto cujas janelas abrem-se para novos sentidos; esse tipo de discurso carnavalizado e polissêmico exige do leitor uma atenção especial, construindo uma espiral sêmica. O campo semântico não está restrito aos textos verbais, uma vez que a ilustração presente em cada um deles oferece, também, um aspecto polissêmico e poderá ser considerada uma síntese discursiva pela mídia impressa. Assim, o leitor segue os caminhos traçados no texto, quando se estabelece uma relação dialógica entre o leitor e o texto no processo de leitura. Jogando o texto, o leitor não escapa de ser jogado por ele. Linguagem jornalística: polissemia


a ilustração para criar um diálogo om o verbal, meio de expressão dos rtigos O fantástico num circo de orrores e Rainha da bateria dos bsolvidos, utilizando-se da charge e elas famosas, como aquela tualizada por José Siqueiros da Balsa da Medusa, de Gericault, onjugando-as com os títulos e matéria conteudística. A questão levantada diz respeito à produção e à recepção de tais textos onstruídos com duas linguagens, erando alguma dificuldade ao eitor, quanto ao processo de leitura indagações: o seu horizonte de xpectativa permite um mergulho o texto? Quanto à produção, o cronista ou rticulista Ignácio de Loyola Brandão trabalha com um fato corrido no Congresso Nacional, por casião da crise da Comissão Parlamentar de Inquérito dos Correios: o valerioduto. O título Rainha da bateria dos absolvidos ndica o fio temático e os motivos da rama que irão enrolar o carretel arrativo: escola de samba; rainha a bateria; mensalão; absolvição; e ança. Citamos alguns fragmentos orrelatos: “Ela saltou elétrica e xcitada de sua cadeira no Parlamento assim que um ompanheiro foi absolvido da

E logo adiante: “[...] dançava e ria de mim, ria do Brasil, ria dos tolos que acreditam em integridade?” Separamos esses fragmentos para arrolá-los com o título, um vetor para a leitura e produção de sentido, bem como para discuti-lo com um outro produzido pelo ilustrador. Parecenos que o ilustrador – Cido Gonçalves – ateve-se ao toque da bateria; à dança de sua personagem, como o diabo gosta; à bandeira do Brasil, rota, sem estrelas, e sem o dístico “ordem e progresso”; a um tocadisco, sustentado por um D.J. infernal; a um disco, aliás uma metáfora de “pizza”. Essa ilustração revela uma leitura, ou melhor, uma releitura crítica do texto de Loyola Brandão. Que relação teria entre o diabo, um D.J., portador do tocadisco e da “pizza”? Estaria o “pizzaiolo” produzindo, ouvindo a música e direcionando-a à protagonista? O leitor leria essa ilustração, seus detalhes, seus índices, como o buraco do assoalho disfarçado por um tapete, a camiseta amarela, os botões do toca-disco, a dança sobre a bandeira rota e sem estrelas? A euforia diabólica da protagonista? O texto de Brandão instila ironia, é uma escrita crítico-satírica instrumentada pela mídia carnavalesca e televisiva, como os


foi criticada por preconceito, por ser mulher, por ser gor-da, não possuir os padrões de beleza convencionais exigidos pela mídia.” (grifo nosso) “Lula, então, nunca sabe nada, parece aquele personagem do Sílvio de Abreu em Belíssima, o Jamanta.” Essa referência atualiza o texto, a novela ainda estava sendo exibida pela rede Globo de televisão. Naturalmente, o leitor – presume o autor – é um telespectador e fará a ligação com a ação do referido personagem. É uma alusão midiática. Em outro fragmento: “A senhora Ângela dançava e poderia cantar ‘I could have dance all night’, como se fosse uma personagem de My Fair Lady.” É um referência a um musical e a um filme, também linguagens midiáticas. O leitor deverá, mais uma vez, fundir seu horizonte de expectativa ao do texto, a fim de concretizar a leitura. O texto dessa crônica, preferimos chamá-la assim, é um tecido crítico irônico, fruto intertextual de referências musicais, fílmicas, televisivas, o que faz do seu leitor, o do Caderno 2, possuir um horizonte de expectativa diferenciado para construir o sentido profundo, gerado pela escrita, pela imagem e pelas vozes dos comentários, dos diálogos, criando uma polifonia. Esse tipo de texto apresenta-se sob o formato de um hipertexto, cujas janelas abrem-se para novos sentidos, exigindo do leitor atenção especial

aos detalhes da escrita e da ilustração, produtores de vários sentidos a construir uma espiral sêmica. Aponta, também, o texto de Brandão a possibilidade da mídia impressa operar com várias linguagens e tipos de textos, enriquecendo o tecido comunicativo pelo diálogo entre meios expressivos (as várias linguagens), pois os traços caricaturais construtores dos personagens (a dançarina e o diabo) casam-se para gerar atmosfera irônico-satírica. Dois autores, dois textos. Um só tom. O outro texto/ilustração objeto deste estudo é uma resenha do livro de Marcelo Rezende, Arno Schmidt, feita por Wilson Bueno, com a imagem de uma tela de José Siqueiros, muralista mexicano, O Nascimento do Fascismo, uma atualização da tela do pintor francês Gericault, A Balsa da Medusa, que, nesse texto, a mídia impressa utilizou-se de uma obra de arte. A sua leitura é mais complexa, pois é um texto decorrente de um outro texto e uma questão levanta-se a priori: a imagem ilustradora conjugase com o romance ou com a resenha? Quantas associações deverá o leitor realizar para concretizar o ato de leitura? A formação do horizonte de expectativa é mais comcomplexa


pela quantidade de leituras que deverá realizar. Uma outra questão impõe-se: por que a mídia impressa usou de uma obra artística como ilustração? Por que uma tela atualizada daquela de Gericault? A de Siqueiros teria conhecimento do fato histórico que motivou o francês? Remeterse-ia ao naufrágio do navio La Meduse? À mesma querela quando da exposição do óleo de Gericault no Salon Officiel, em 1919, em Paris; à mesma quando da exposição no l’Egyptian Hall, em Londres, 1920? O pincel do francês teria motivação nacional? Patriótico? E o de Siqueiros? Parece-nos que a atualização de Siqueiros, O Nascimento do Fascismo, compõe-se de elementos interventivos plásticos: uma causa e um efeito. Uma causa: a deusa Minerva parindo um monstro – um polvo com vários tentáculos; um efeito: bombas despejadas sobre o mar, cadáveres a boiar, e a suástica nazista por sobre as ondas revoltas. Esse episódio, pode-se dizer, casa-se com o motivo nacional e patriótico de Gericault. A reprodução da tela de Siqueiros junto do texto de Rezende tem algumas funções. Enumeremo-las: 1) evocativa, em relação ao título; 2)

lística; 3) hiperbólica, em relação a um fragmento da resenha: “[...] dar conta de um mundo onde o fantástico não é, em hipótese alguma, encantando ou encantatório, mas o fruto repulsivo de um circo de horrores.”; 4) emblemática, em relação ao nazifascismo italiano, alemão e espanhol (serão eles os tentáculos do polvo?); 5) didascálica, em relação a um capítulo de Arno Schmidt “Nacional Socialismo. Mas a proposta deste texto recai sobre o uso da ilustração pela mídia impressa. Assim, analisamos os textos verbais para discutir, posteriormente, a função da ilustração como linguagem midiática em dois tipos de escrita: uma crônica e uma resenha, buscando a coerência plausível entre elas, com vistas à leitura e a concretização de sentido. A crônica de Brandão desenha uma caricatura explícita, resultante da implicitação que seu texto contém. Seu ilustrador preenche os vazios e visualiza a atmosfera irônica que o envolve, através da deformação plástica dos personagens, dos objetos e cenário compositivos. A ilustração é uma causa e efeito da C.P.I. dos Correios, do mensalão, da absolvição.


A resenha de Wilson Bueno do livro de Marcelo Rezende, Arno Schmidt, oferece um outro tipo ilustração: uma obra de arte, tematizada politicamente pelo fascismo, o que nos parece coerente com as considerações formuladas pela mencionada resenha, principalmente nas linhas finais do penúltimo parágrafo, acima transcritas no item 3. O jogo do texto A entrada do leitor no texto é um processo gradual. Para tanto, é necessária a formação do leitor, com a ampliação de seu horizonte de expectativa, ou seja, é preciso aguçar-lhe a sutileza interpretativa. Tal como num jogo de xadrez, não basta dispor as peças no tabuleiro e ir movimentando-as, mecanicamente, segundo as regras instrumentais. É preciso algo mais: estudar os lances, as possibilidades, antever jogadas, descobrir novas escapatórias, isto é, ao mergulhar no jogo proposto pelo texto, o leitor vai preencher os vazios do texto. Para ilustrar esse ponto de vista, enfocaremos a maneira pela qual os atos de apreensão de sentido são orientados pelas estruturas do texto, mas não são completamente controlados por elas, pois entram em jogo as disposições do leitor –

O objeto estético é um produto da interação entre o fictício (texto ficcional) e o imaginário pelo jogo do texto. O jogo de oscilar significa desconectar o componente imitativo de sua referência com o objeto, a fim de utilizá-lo para visualizar o que é simbolizado. Desse modo, a simbolização perde seu caráter de substituto, de modo a utilizar o componente imitativo para tornar imaginável o que não é passível de objetivação, ou não existe. Pelo jogo o leitor entra no texto. Para discutirmos a maneira como se dá essa entrada, encontramos um artigo de Carlos Haag com ilustrações de Hélio de Almeida (2005, p.78-83), no qual o primeiro autor discute “o que se esconde atrás das capas de revistas e das primeiras páginas dos jornais”, analisando o fato de que “no princípio era o verbo. Mas ele, sozinho não vendia muita revista e jornal, em especial num mundo onde a luz se fez e encheu-se de imagens fotográficas.”O que nos interessa, particularmente, são as três ilustrações do segundo autor, que dialogam com o texto verbal, posto que deixam patente o processo de sedução do leitor: primeiramente, o leitor está em


ca de algo para ler; tem de ser provocado pelo texto. Seduzido pelo efeito estético do texto, aproxima-se cada vez mais dele, num processo gradual, de interação, de esgarçamento. Numa relação lúdica, começa o jogo. Nesse jogo, o fictício e o imaginário só podem funcionar como interação, e o próprio jogo originase dessa interação, quando o leitor, jogando o texto, não escapa de ser jogado por ele. Assim, pouco a pouco, o estético transforma-se em estésico, levando o leitor ao prazer do texto, de tal maneira que vai criar o seu próprio tempo, isto é, o tempo da leitura. Considerações finais Dois textos verbais diferentes, dois tipos de ilustração: uma críticosatírica; outra trágico-dramática; uma é charge, outra, obra de arte. Esse fazer, leva-nos a concluir que a linguagem midiática usa de um mecanismo, se nos permitem o neologismo, linguofágico para criar e produzir seu processo expressivo ao buscar, manipular, servir-se da cultura popular e erudita como fontes compositivas e representativas, o que confere ao seu discurso aspectos polifônicos e riqueza semântica pelo grau de in-

textualidade. Quanto ao leitor, terá possibilidade de concretizar várias leituras, descobrir a pluralidade do texto, participar da construção de sentido e, como diz Vincent Jouve, tornar-se um leitante. A linguagem midiática vista nestes textos parece-nos apresentar graus de complexidade pelo uso conjugado com a ilustração e exigir do leitor um horizonte de expectativa crítico e pesquisador.

Referências BRANDÃO, Ignácio de Loyola. Rainha da bateria dos absolvidos. O Estado de São Paulo, São Paulo, 31 mar. 2006. Caderno 2, D20. BUENO, Wilson. O fantástico num circo de horrores. O Estado de São Paulo, São Paulo, 5 mar. 2006. Cultura, D4. ELSAESSER, Thomas et al. Writing for the medium: television in transition. Amsterdam: Amsterdam University Press, 1994. HAAG, Carlos; ALMEIDA, Hélio de. Decifra-me ou devoro-te. São Paulo, Revista Pesquisa Fapesp, dezembro 2005, nº 118, p. 78-83. JOLY, Martine. Introdução à análise


da imagem. Tradução de Marina Appenzeller. 2.ed. Campinas: Papirus, 1999. JOUVE, Vincent. La lecture. Paris: Hachette, 1993. MITCHELL, W.J.T. Iconology: image, text, ideology. Chicago: The University of Chicago Press, 1986.


FICÇÃO E DOCUMENTÁRIO NA CONSTRUÇÃO NARRATIVA DO FILME

O quarto de Jack (2015) por João Eduardo Hidalgo

FICCION AND DOCUMENTARY ON THE NARRATIVE CONSTRUCCION OF THE ROOM (2015)

O fator técnico fundamental a ser considerado dentro do ato fotográfico (e cinematográfico) é a supra realidade que um processo fotográfico pressupõe. A câmera, que tem uma manipulação humana, capta quimicamente ou em pixels uma realidade muito mais complexa do que o olho e a mente humana podem perceber a principio. Ela apresenta traços de um real muitas vezes não percebido de imediato pelo espectador. Esta é a razão dela ser sempre um registro do real e uma porta para a ficção. O grande escritor argentino Julio Cortázar (1914-1984) escreveu um conto em 1958 ‘Las babas del diablo’, onde parte da ação de um fotógrafo ao registrar um instantâneo em

um ilha no rio Sena, no centro de Paris, e acompanha todo o processo de compreensão e análise de tudo o que foi capturado nela.

“Ergui a câmera, fingi estudar um ângulo que não os incluía, e fiquei na espreita, certo de que enfim os apanharia no gesto revelador, a expressão que resume tudo, a vida que o movimento mede com um compasso, mas que uma imagem mas que uma imagem rígida destrói ao seccionar o tempo, se não escolhemos a imperceptível fração


essencial. Não precisei esperar muito. A mulher avançava em sua tarefa de atar suavemente o garoto, de atirar-lhe sua teia e roubar seus últimos instantes de liberdade, em uma lentíssima deliciosa tortura. Imaginei os possíveis finais (agora aparece uma pequena nuvem espumosa, quase sozinha no céu), previ a chegada a casa (um andar térreo provavelmente, que ela atulharia de almofadas e gatos) e imaginei a aflição do garoto e sua decisão desesperada de disfarçá-la e deixar-se levar fingindo que para ele não se tratava de nada novo. Fechando os olhos, se é que os fechei, pus a cena em ordem, os beijos brincalhões, a mulher rejeitando com doçura as mãos que pretendiam despi-la como nos romances, numa cama que teria um edredom lilás, e obrigando-o, em vez disso, a deixar que ela tirasse a roupa dele, verdadeiramente mãe e filho debaixo de uma luz amarela de opalina, e tudo acabaria como sempre, talvez, mas talvez tudo ocorresse de outro modo, e a iniciação do adolescente não passasse, não deixariam que passasse, de um longo preâmbulo onde a falta de jeito, as carícias exasperantes, a corrida das mãos se resolvesse sabe-se lá em que, num prazer por separado e solitário, uma petulante negativa misturada com a arte de fatigar e desconcertar tanta inocência ferida.”

A partir da análise e de ampliações da fotografia feita o personagem-narrador acaba por perceber uma situação dramática, que a principio não havia entendido, e como a sua presença e ação (de tirar a fotografia) interferiu nela. Usando este conto como base o cineasta italiano Michelangelo Antonioni (19122007) realizou em 1966 o filme Blow-up, mostrando um fotógrafo londrino, que por puro tédio dentro de sua agitada vida, vai dar um passeio em um parque da periferia de Londres e começa a tirar fotografias aleatoriamente. Um casal se abraça no parque, de repente a mulher corre atrás do fotógrafo e exige o filme, dando início ao conflito central da obra. O título do filme é um termo técnico que se refere a ‘ampliação’, que interessa pelo significado que carrega. O procedimento nos lança no terreno da construção de significados, se alguém recorta um detalhe da realidade e dá destaque a ele, a relação parte/todo está quebrada. Novos significados e interpretações são acrescentados. No conto de Cortázar o escritor faz um jogo com as possibilidades de se contar uma história, em primeira pessoa do singular, terceira, primeira do plural e Antonioni leva este jogo para o filme. Quando vemos Thomas fotografando a famosa modelo alemã Veruschka, ela fazendo o papel de si mesma (atentar para o detalhe), visualizamos uma cena orgiástica e também criativa, pois vemos a partir da lente do diretor, fotógrafo vendo a modelo pela lente de sua câmera. O recurso não é gratuito, ele fala da própria essência da trama do filme e do conto em que está baseado.


No início do filme Thomas aparece no meio de vagabundos saindo de um centro de acolhimento de pobres em Londres, para fotografar este grupo ele se disfarça como para fotografar este grupo ele se disfarça como um deles. Na primeira cena do filme vemos um grupo de mímicos passeando pelo centro de Londres, provocando as pessoas e pedindo contribuição para seu espetáculo. Na última sequência eles voltam e instalam-se numa quadra de tênis, no parque onde Thomas fotografou o casal, e começam a jogar organicamente sem raquete e sem bola. Um dos mímicos/jogadores, num golpe, atira a bola para fora da quadra, todos se voltam para Thomas e ele entra no jogo e corre para buscar a inexistente bola e a atira para os jogadores. Neste momento Antonioni faz um primeiro plano do ator, que devolve a bola e não vemos mais os mímicos, mas ouvimos os barulhos e vemos que a principio Thomas entra na brincadeira, mas depois baixando os olhos volta para o seu conflito e abandona o parque na cena final do filme. No conto de Cortázar não temos um desfecho convencional, o garoto que fugiu das teias da mulher madura pode voltar para a praça no outro dia e ser enredado por ela novamente; no filme de Antonioni o final é aberto; quem foi morto, por quem, onde está o corpo e a mulher vai procurar o fotógrafo novamente? Nada disto interessa a ficção criada por eles já se basta em si. Esta obra prima do cinema foi aqui apresentada, pois ela contém o jogo primordial que constitui ontologicamente o cinema. A narrativa tem como tema central uma obra de ficção, vinda da

literatura e como ela usa um dispositivo técnico e seus procedimentos para criar uma realidade (documental) que é mais real que a própria existência física, pois é expandida, ampliada. É aqui se revela o eixo central da classificação dos gêneros cinematográficos a intenção criativa de seu autor, pois todo obra cinematográfica tem um índice de irrealidade na sua constituição. Quem decide se a obra se desenvolverá como documentário ou ficção é seu autor, independentemente do assunto abordado ou do letreiro inicial que diga ‘baseado em uma história real’. Rogério Luz fala da narrativa de ficção cinematográfica e sua ligação indissociável com a literatura e seus elementos constitutivos:

“O cinema parte de tradições narrativas importantes. Do ponto de vista do estilo- e o estilo é a maneira estética de pensar o mundo -, é o naturalismo, uma escritura da visibilidade, que recolhe os signos, por ele tornados visíveis, de uma sociedade em desagregação. Signos exaltados, e não pacificadores, arrastam o todo social em direção à obscuridade, à cegueira e à destruição. Do ponto de vista de como operar com esse estilo, a referência é o folhetim do século XIX: sequências em sucessão, que admitem o corte ou a suspensão da ação culminante, assim como a multiplicação de cenários, ambientes e personalidades sociais envolvidas no fluxo dos sentimentos. Portanto, narrativa naturalista e melodramática.”


Para exemplificar as manipulações possíveis no índice do real de uma imagem fotográfica fiz duas imagens reais a partir de uma inspiração documental, mas que tem uma manipulação intencionalmente ficcional que chamei de ‘foto-criação’. A primeira dialoga com o documentário e com o personagem Nanook e a segunda com uma imagem famosa de Robert Capa (1913-1954), da Guerra Civil Espanhola (19361937). O termo ‘documentário’ foi cunhado por John Grierson (1898-1972), documentarista inglês do General Poste Office Unit Film, numa resenha crítica sobre o filme Moana de Robert Flaherty (1884-1951), para o jornal New York Sun, em fevereiro de 1926. Avaliese, 31 anos depois de seu nascimento o cinema ainda não tinha um termo para classificar este tipo de filme. “Documentário é uma abrangente definição, mas deixemos como está. Os franceses que usaram o termo pela primeira vez só queriam referir-se a filmes de viagens. Isto lhes da uma sonora desculpa para os trejeitos (e outras falácias) exóticas do Vieux-Colombier. Enquanto isto o documentário foi trilhando seu caminho. De obras provocativamente exóticas ele desenvolveu-se para incluir filmes mais dramáticos como Moana, Earth e Turksib. Em tempo, o documentário ainda inclui outros tipos tão diferentes na forma e na intenção como Moana é de Voyage au congo. Ultimamente nós temos pensado que todos os filmes feitos a partir de material natural fazem parte desta categoria. O uso de material natural tem sido considerado como a distinção vital. (...)

Mas fundamental é a posição que a câmera (autor) toma frente ao que é filmado. (...) Berlim sinfonia da grande cidade deu início a nova moda de buscar material documental na porta de casa: em eventos que não tem a novidade do desconhecido, ou o romance de um nobre selvagem numa exótica paisagem para recomendálos. Isto representa a fuga do mundo do romance para a realidade cotidiana. " A obra Moana de Flaherty que provocou a criação do termo documentário é um registro etnográfico documental, na maior parte, dos seus 85 minutos. Flaherty e sua mulher viveram nas ilhas da Polinésia, especificamente na de Samoa durante dois anos para conhecer as lendas ancestrais e rituais deste grupo de Samoanos. A personagem principal é chamada de Moana, que na língua nativa significa ‘mar profundo’. O seu jovem par romântico foi obrigado por Flaherty a participar de um ritual de passagem, onde foi feita uma tatuagem no seu corpo, o costume já estava em desuso na época, mas Flaherty fez questão de colocá-lo no filme, por esta razão teve que pagar para o rapaz fazê-la. Algumas destas atitudes fazem com que alguns críticos considerem que o filme tem muito de ficção e que inclusive o rotulem de docudrama. Mas temos que levar em conta que Flaherty não criou a história da sua imaginação, ele viveu no ambiente Samoano e dentro dele selecionou situações dramáticas que interessavam para a sua obra. Prevalece a intenção documental. Voltando ao primeiro trabalho de Flaherty, obra prima fundamental, que entrou para a história do cinema, como um


dos primeiros a utilizar o documentário, registro factual da realidade, Nanook of the north (Nanook, o esquimó), de 1922, merece ser redescoberto. Rodado na Bahia de Hudson, no extremo norte do Canadá, o documentário capta o dia a dia de uma família de esquimós, do grupo dos Itimuvit Inuit. O filme é realizado em preto e branco, sem som, usa intertítulos, e é um longametragem (duração 86 minutos). A luz do polo norte é bastante forte para registrar, sem a necessidade de nenhum artifício de iluminação, imagens de contornos nítidos, impressionantes até hoje. Por mostrar a vida de um grupo de Esquimós, enfrentando as adversidades do ambiente, com os nativos do local, ele introduz uma relação de registro “verdadeiro” do cotidiano, opondo-se às interpretações marcadas e ensaiadas dos filmes dos grandes estúdios. Como contraponto às imagens que já faziam parte do imaginário ocidental, como Le Voyage à travers l’impossible (França) de Georges Méliès, de 1904; Cabíria (Itália), de Giovanni Pastrone, de 1914, Les Vampires (França), de Louis Feuillade, de 1915; Intolerância (EUA), de Griffith, de 1916, a denominação ‘documentário’ fez-se necessária. Já os limites e usos da ficção e não ficção seguiriam como desafios de definição de gênero no audiovisual. Na abertura do filme, há uma introdução de Flaherty inferindo que, depois de várias viagens de pesquisa na área, pois seu pai era minerador, ele já tinha um vasto material: mapas, desenhos, descrições dos habitantes. Entre 1910 e 1916, registrou em película a vida do grupo de esquimós, mas um acidente inutilizou os negativos. Financiado por empresários e amigos, ele

voltou em 1920 e refilmou as imagens entre os nativos. Este dado é sempre muito lembrado pelos críticos, quando discutem o filme. O que é real? E o que é ficção, encenação para a câmera? Nanook e a família estavam repetindo ações rotineiras, mas especialmente para a câmera que registrava as imagens. O primeiro plano do filme mostra lobos no pé de uma pequena geleira, enquanto somos informados da difícil vida da família de Esquimós, que vamos conhecer. O segundo plano é um longo close do rosto de Nanook; com sua face expressiva ele fixa a câmera, seus olhos passeiam para os lados, provavelmente para o diretor e o operador de câmera e sorri ligeiramente. Depois conhecemos Nyla, sua sorridente mulher, os filhos Allee, Cunayou e Comock e os cachorros, importante força para a locomoção em um ambiente tão inóspito. As imagens registram a luta de Nanook para conseguir alimento, pescar no gelo, comercializar as peles das caças, construir e manter sua casa. Mostrando em detalhes a vida de um grupo exótico, Flaherty retoma concepções do início do cinema, quando os rmãos Lumière enviavam correspondentes a lugares exóticos e distantes, para realizarem ‘vistas’ (panorâmicas), para uma plateia encantada com o novo milagre científico, a imagem em movimento. Nanook é um herói épico, que luta diariamente contra as forças da natureza, como um Aquiles moderno, tenta dominar o mar e seus caminhos, e como herói trágico morre em uma caçada, surpreendido pelo clima e pela fome. Flaherty sintetiza na frase destacada no início deste trabalho, que ‘o homem existe em sua oposição/interação com o meio


ambiente em que vive’, seu método de trabalho e de construção poética. O grande acolhimento que a obra recebeu impulsionou a carreira de Flaherty, e tornou-a paradigma para o surgimento de outras realizações fundamentais como, Cinema-verdade, de 1922 e Um homem com uma câmera, de 1929, ambos de Dziga Vertov (1895-1954). Também alimentou uma escola chamada de documentário antropológico ou antropologia visual, que tem em Jean Rouch (1917-2004) seu principal representante, com obras como Au pays de mages noirs (1949), Les Maîtres Fous (1954) e Chronique d’un été (1961). A importância de Flaherty é tão grande que, além de inaugurar o documentário, ele também recebe o crédito pela fusão dos gêneros de ficção e documentário, com seu filme Moana de 1926, classificado como ‘docudrama’ ou ‘docuficção’, e às vezes denominado também como ‘cinema-poesia’. Nanook é tão inovador que incita realizadores de várias partes do mundo a produzirem visões particulares de seus grupos. Um dos diálogos estabelecidos é do documentário de Luis Buñuel (19001983), Las Hurdes (tierra sin pan), lançado em 1932, que mostra a vida miserável de alguns povoados da região de Salamanca, na Espanha, que vivem isolados, sem saúde, comida e assistência governamental. E como registro do ‘verdadeiro’ cotidiano dos nativos, que só comem carne quando um cabrito montês cai acidentalmente das montanhas, ele nos mostra o fato. Analisando-se cuidadosamente a imagem, vemos a fumaça da pólvora de um rifle (que está

fora de campo) sendo disparado, quando se registra a ‘queda’ de um animal. A questão da representação e da naturalidade da ação é muito discutida em Nanook, já que o próprio diretor afirma que tinha imagens anteriores, que se perderam, e que ele refilmou, tendo então a oportunidade de melhorar o que desejava. Quando Nanook pesca a foca, vemos que os planos se sucedem na montagem, e que algumas focas já estão bem congeladas, não tendo sido pescadas naquele dia ou momento. Quando Nanook constrói seu Iglu, também o faz maior do que o normal, a pedido de Flaherty, e com um lado somente, para possibilitar a luz necessária para a filmagem. Pode-se justificar que Nanook e sua família estão representando a sua estória cotidiana e estão conscientes da câmera e atuam para ela o tempo todo. Foto-criação: Guerra Civil em Damasco, 2012 (J.E.H.). Robert Capa, Guerra Civil espanhola, 1936. Enquanto o cinema aprimorava sua técnica, com grandes cenários, atuações muito pensadas e uma busca pelas inovações tecnológicas, como a introdução de som (ainda não sincronizado com a imagem e em suporte diferente), Flaherty inova na linguagem. Os esquimós são seus próprios personagens, a luz é a natural e a história é a mais próxima da realidade possível. Ele antecipa uma ruptura que surgiria no cinema em meados dos anos quarenta, com o neorrealismo cinematográfico italiano; que trabalha com atores não profissionais, com filmagens em ambientes naturais e história de um cotidiano de guerra.


O documentário de Flahery, Man of Aran, (O homem e o mar) de 1934, mostra pescadores numa ilha irlandesa, em titânica luta com o mar. Em 1948, Luchino Visconti (1906-1976) realizaria um dos marcos do neorrealismo, La terra trema – Episodio del mare (A terra treme), mostrando o miserável cotidiano de um grupo de pescadores da Sicília, protagonizado pelos próprios, e falado em seu dialeto. Impossível não estabelecer ligações entre as duas obras. Flaherty é uma figura de grande importância dentro da história do audiovisual, ele inaugurou o gênero documentário e anos depois ainda criou, novamente intuitivamente, o docudrama. Como já foi dito, a definição ‘documentário’ foi usada pela primeira vez em 1926 em uma crítica feita a Moana de Flaherty. O prestigiado American Film Institute define documentário como: “Documentário é um filme de não ficção que descreve alguns elementos da condição humana. Durante toda a sua existência este gênero tem procurado desde persuadir a audiência até a oferecer um ponto de vista objetivo de um evento. O formato começou a ser utilizado nos Estados Unidos e na França no início do século XX, como informativos noticiosos, que mostravam fatos contemporâneos ou os reconstruía para serem exibidos. Um grande número de documentários apareceu durante os anos 1910 na Inglaterra e nos Estados Unidos, com os filmes de propaganda dominando o gênero durante a Primeira Guerra Mundial. Durante os anos 1920 vários diretores internacionais desenvolveram o gênero agora com uma visão artística. Nos

Estados Unidos, apareceu Robert Flaherty com Nanook of the north (1922); Marc Allégret na Franca com Finnis tarrae (1929); e Sergei Eisenstein na União Soviética com October (1928). O termo ‘documentário’ foi criado em uma crítica sobre Moana de Flaherty. Durante os anos 1930 e 1940, o documentário desenvolveuse como um eficiente instrumento de propaganda, em filmes como Triumph des Willens de Leni Riefenstahl (1935), na Alemanha e In which we serve dirigido por David Lean e Noël Coward, em 1942 na Inglaterra. O gênero foi renovado depois da Segunda Guerra Mundial refletindo a influência da televisão e o desenvolvimento dos equipamentos de filmagem. Títulos notáveis realizados nas décadas posteriores a guerra incluem The endless summer (1966) e Harlan county (1976). O documentário continua florescendo como um gênero receptivo para novos diretores independentes espalhados pelo mundo e aberto a explorar assuntos controvertidos. Obras representativas: The durbar at delhi (1911, UK); The life of Villa (1914); Thirty leagues under the sea (1914); How life begins (1916); Nanook of the north (1922); Cinema eye (1924,USSR); Grass (1925)/ Moana (1926); Berlin – Symphony of a big city (1927, Germany); Voyage au Congo (1927, France); October (1928, USSR); Drifters (1929,UK); Finnis Terrae (1929, France); Man with a movie camera (1929, USSR); Las hurdes (1932); Coal face (1935); Triumph of the will (1935, Germany); The plow that broke the plains (1936); The Spanish earth (1937); The city (1939); The 400 million (1939); Valley town (1940); In which we serve (19242, UK); Desert victory (1943, UK); Prelude to war (1943 ;


The memphis belle (1944); Victory in the Ukraine (1945,USSR); Louisiana story (1948); The living desert (1953); Nuit et brouillard (1955, France); The silent world (1956); For days in November (1964); The Eleanor Roosevelt story (1965); The endless summer (1966); Why man creates (1968); Le chagrin e la pitié (1971, Switzerland); The hellstrom chronicle (1971); Hearts and minds (1974); Brother can you spare a dime? (1975); Harlan county, (1976, USA); The children of theatre street (1977); Let’s get lost (1988); Roger and me (1989); The thin blue line (1989); Paris is burning (1990); Hoop dreams (1994); When we were kings (1996); Endurance; shackleton’s legendary Antarctic expedition (2000, UK/US).” Coal face, direção de Alberto Cavalcanti, 1935. Na lista acima temos representantes de vários países do mundo especialmente da França, da Inglaterra e dos Estados Unidos, onde o gênero documentário apareceu e se desenvolveu. Nanook o esquimó é o destaque óbvio, mas também são apontadas obras fundamentais como Triunfo da vontade de Leni Riefenstahl; Las hurdes, tierra sin pan de Luís Buñuel; Coal face do brasileiro Alberto Cavalcanti (realizado na Inglaterra); Homem com uma câmera de Dziga Vertov; In which we serve de David Lean; The thin blue line de Errol Morris; Nuit et brouillard de Alain Resnais e Hearts and minds de Peter Davis entre outros. A importância de Flaherty é indiscutível, ele aparece com três obras na lista: Nanook, o esquimó, Moana e Louisiana story.

O quarto de Jack

O filme irlandês/canadense Room (O quarto de Jack, 2015) foi uma das grandes surpresas do Oscar deste ano, falando de um tema trágico que estranhamente assola majoritariamente o norte da Europa e os Estados Unidos, o rapto e abuso sexual de menores e jovens, cativou crítica e público. Sendo um filme de ficção, ele trouxe para o tema mais atenção e discussão que os casos reais, que são muitos, nos quais se inspirou. O roteiro do filme foi feito pela escritora irlandesa Emma Donoghue, que escreveu o livro em 2010. Muitas foram as ocorrências de desaparecimento e abuso sexual de menores no período, mas uma ficou particularmente conhecida, o de Natascha Kampusch, menina seqüestrada na periferia de Viena, em 1998, aos 10 anos e que conseguiu escapar em 2006, já com 18 anos. Neste mesmo ano foi lançado na Inglaterra o livro de Allan Hall e Michael Leidig Girl in the Cellar: The Natascha Kampusch Story e o canal britânico Channel 5 criou um documentário com uma longa entrevista com Natascha e com imagens minuciosas de seu cativeiro em cinco metros quadrados. O caso teve uma imensa repercussão na Europa e enfaticamente no Reino Unido, onde vive Emma Donoghue. O livro de Emma Donoghue Room – a novel, é uma ficção, como o próprio título esclarece; o de Natascha Kampusch 3096 tage é um relato real em primeira pessoa. Para o cinema temos as bases de um drama e a de um documentário, mas a própria origem do cinema o liga a uma narrativa visual e sonora que é sempre uma recriação da realidade, seja ela ficção ou registro do real.


Os dois gêneros têm a marca da reprodução e da artificialidade, seja ela uma excessiva ficção ou uma suposta realidade objetivamente reencenada; a realidade ‘verdadeira’ (documentário) parece mais difícil de transmitir que a artificial (ficção). Este é meu ponto de vista nesta comparação de Room e 3096 tage. Kampusch exagera nos detalhes e nos dados e não consegue nunca atingir a contundência que a experiência necessita, ela informa e não emociona ou modifica a nossa experiência sobre o fato. Totalmente oposto é o resultado de Room (2015), o enredo e o cenário mínimo desdobram-se em imagens e situações inusitadas e aparentemente sempre novas. Já nas primeiras imagens vemos fragmentos de objetos que identificaremos depois, como o abajur, a pia, a mesa. No enquadramento vemos primeiros planos e closes do rosto de Jack e de sua Ma (mãe), quando eles se falam a câmera, que parece estar pousada no ombro da mãe, gira de sua face para a de Jack. A mãe estimula Jack a ter aptidão física e principalmente nenhuma limitação mental. Room começa com uma narração em off (quando o personagem não aparece) de Jack que diz: era uma vez... Já no livro ele nos informa em primeira pessoa que ‘hoje tenho cinco anos’. Está data é marcada por um bolo de aniversário e pelo início do esclarecimento de dados que até agora Jack entende como sendo todos de um mesmo universo, o do quarto. Com trinta minutos de filme Ma esclarece que está neste ambiente porque foi ajudar um homem que disse que tinha um cachorro doente, quando ela tinha 17 anos, e sete se passaram desde o rapto. Depois de muito pensar Ma decide que Jack vai fingir-se de

morto e ela o colocará dentro do velho tapete, Old Nick não terá outra alternativa a não ser levá-lo para longe e enterrar o corpo. A armadilha funciona e Jack consegue fugir do interior do tapete e mesmo alucinado pelo azul do céu, pela grama, pelo espaço consegue gritar e pedir ajuda, a libertação da mãe vem em seguida. O livro e o filme Room tem a qualidade de representar uma multiplicidade de vozes, dos que foram vítimas deste crime incompreensível e desumano e como são uma representação desta realidade podem transcendê-la, por serem maior que a síntese ou simples registro das mesmas. Quando Jack volta com sua mãe para visitar o quarto onde nasceu e ficou preso cinco anos sintetiza: ‘ele é tão pequeno’. Concordo, grande é a capacidade humana de tecer, a partir da realidade, uma narrativa que a espelhe de uma maneira tão completa, que uma fração deste real nunca encontrara correspondência dentro da complexa teia que ela ontologicamente contém; como um ponto já conteve toda a matéria do universo, antes do big bang. O quarto de Jack é este ponto cientificamente ficcional e ilimitado. Um drama ou documentário no cinema passam pelo mesmo fator criativo, a capacidade humana de fabular.

Referências BARSAM, Richard Meran. Nonfiction film: theory and criticism. Bloomington: Indiana University Press, 1982. BENTES, Ivana (Org.) Ecos do cinema, de Lumière ao digital. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 2007.


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QUINTANA, Angel. Fábulas de lo visible. El cine como creador de realidades. Barcelona: Acantilado, 2003. RAMOS, Fernão. Mas afinal ... o que é mesmo documentário? São Paulo: SENAC, 2008.


Marcel Duchamp, a pintura me ama (ou je suis la peinture) por Sergio Romagnolo

Na exposição que terminou no dia 5 de janeiro de 2015, no Centro Pompidou, pôde-se ver pela primeira vez uma grande quantidade de pinturas executadas por esse artista, que se notabilizou por inventar novas categorias de objetos de arte. Na biografia que escreveu sobre Duchamp, Calvin Tomkins relata que certo dia, depois de um jantar com amigos em sua casa, “Marcel leu em voz alta para ela (sua esposa Teeny) algumas passagens do livro de Alphonse Allais, que fizeram os dois rir”. Tratavase de um livro de trocadilhos e textos humorísticos. O próprio título da exposição faz um jogo de palavras com même, “mesmo” em francês, que dita em voz alta lembra a expressão “me ama”. Essa ambiguidade já existia no título de outro trabalho de Duchamp La Mariée mise à nu par ses célibataires, même (A noiva despida pelos seus solteiros, mesmo). Nesse caso, na versão induzida, ficaria: A noiva despida pelos seus solteiros, me ama. Essa maneira de dizer, sem dizer, ou deixar versões em camadas, caracteriza toda a obra de Duchamp. Em 1913 Duchamp construiu um objeto sem função aparente, simplesmente porque gostou do som que produzia, era uma roda de bicicleta sobre um banquinho. Nesse momento Duchamp inaugurou uma operação que se repetiu algumas vezes na história da


Arte Moderna, que é a supressão da alegoria. Em 1915 deu o nome para essa categoria de objeto: ready-made, em inglês, porque gostou da sonoridade, disse ele, talvez por algum significado que não foi esclarecido. O ready-made surgiu como um objeto não alegórico, não metafórico, não mimético, um objeto que se apresenta e não representa. Um objeto autônomo, que não depende de significados ou subtexto, um verdadeiro espelhamento da maneira como o humano é. Essa tentativa de tornar o objeto de arte independente se repetiu quase que simultaneamente no Suprematismo, depois da Segunda Guerra com os textos de Clement Greenberg, e nos anos setenta com a Arte Conceitual, principalmente com o texto de Joseph Kosuth, “A Arte depois da Filosofia”. O mais interessante é que uma a uma essas propostas foram deixadas de lado com o retorno à alegorização da obra de arte. Ao mesmo tempo que Duchamp nomeava a sua nova categoria de objeto em 1915, dava início ao seu Grande Vidro, com a Noiva e seus Solteiros. Duchamp disse que o Grande Vidro não era uma pintura para ser vista, mas para ser lida, e que ele era uma máquina sexual e a noiva, o motor dessa máquina. Ao mesmo tempo que inaugurava a categoria dos objetos não alegóricos elaborava a sua obra com mais camadas metafóricas, a sua última pintura, dada como “definitivamente inacabada” em 1923. • Tomkins, Calvin. Duchamp, uma biografia, São Paulo, Cosac & Naify, 2005, p. 499. Nesta exposição e no catálogo editado para a ocasião foi possível, pela primeira vez, ver em conjunto as pinturas de sua fase inicial e a forma como as alegorias foram elaboradas.

Em 1910 e 1911 experimentou vários estilos, formalmente as primeiras pinturas se relacionam com o impressionismo, fauvismo e cubismo. Mas o que chamou a atenção na exposição foram os temas dessas pinturas, por exemplo os nus, como Femme nue aux bas noirs ou Femme nue assise dans an tube, ambas de 1910. Nesta última, a mulher olha diretamente para o observador com expressão séria e triste, parece que vai se virar, ficar de frente e abrir as pernas para se lavar, mas não parece ter água na banheira, como se ela estivesse simulando um banho e recebesse instruções do artista, por isso a expressão de desagrado. A mulher não é uma noiva pois não existe sedução nem erotismo, a cena tem a crueza do cotidiano. A carne branca, meio esverdeada e as pernas abertas prenunciam o nu que estará no seu último trabalho, Étant donnés, executado de 1946 a 1966. Outra pintura, Nu rouge, também de 1910, a luz frontal como um flash fotográfico ou uma luz forte como uma luminária achata a imagem e tira as sombras, vemos a modelo nua na cama numa cena doméstica, distraída, sem se importar com o artista. Sua perna esquerda têm linhas pretas geométricas pintadas sobre a pele, como se a intenção fosse reduzir os seus volumes a sólidos. A mulher parece estar olhando para essas linhas, mais uma vez a crueza das carnes, mas agora avermelhada. São desses dois anos também alguns retratos, paisagens, pinturas simbolistas, os corpos como assunto reaparecem em pinturas geometrizadas, com alegorias de reis, rainhas, virgens e noivas. Jeune homme triste dans un train mostra uma imagem ambígua, não é possível perceber onde e está o jovem ou onde estão os bancos


existem volumes que se multiplicam e se sobrepõe, todos em cores escuras, sépias, mas com contornos pretos que aparecem em alguns momentos, como na perna da mulher avermelhada. Deste mesmo período são também imagens sobrepostas, como se os corpos pudessem habitar o mesmo espaço ao mesmo tempo. Em sua entrevista a Pierre Cabanne, Duchamp diz que “a quarta dimensão virou uma coisa de que se falava, sem saber o que significava. O que hoje ainda é feito, aliás”, mais adiante refere que “ aquilo que nos interessava, naquele momento, era a quarta dimensão. Na caixa verde há uma pilha de notas sobre a quarta dimensão”. Duchamp cita um autor, Povolowski, que teria escrito poemas sobre a quarta dimensão em um jornal da época, mas na nota de rodapé é feita uma correção que diz se tratar de Gaston de Pawlowski, autor de Viagem ao País da Quarta Dimensão, publicado em forma de contos na revista Comedia a partir de 1908. Antes disso, em 1884, Edwin Abbott Abbott havia publicado Flatland, a romance of many dimensions. A pintura do homem triste num trem começa a tratar dessas questões que envolvem tempo e espaço, o tempo relativo dentro do trem e fora dele, o passado e o futuro. Um ser que dominasse a quarta dimensão poderia ir de ontem em Paris, para amanhã em São Paulo, num estalar de dedos. O que Duchamp parecia querer retratar era o que este ser poderia ver enquanto se deslocasse entre as dimensões, como os corpos e objetos se atravessariam durante a viagem.

Referências Cabanne, Pierre. Marcel Duchamp: Engenheiro do tempo perdido, Perspectiva, São Paulo, 1987, pag. 36. 3 ______. Marcel Duchamp, pag. 66. 4 No Brasil, Planolândia, um romance de muitas dimensões, Conrad, 2002, São Paulo, 126 págs. Mas com o Grande Vidro, essa vontade se dilui no suporte transparente, o vidro se mistura e admite outros objetos e corpos, a pintura passa a tratar de dimensões alegóricas, a noiva e os solteiros, a máquina sexual, a noiva que atrai, mas nunca é tocada. De 1946 a 1966 Duchamp realizou secretamente sua última e mais enigmática obra Étant donnés: 1º la chute d’eau, 2º le gaz d’éclairage ... Esta obra, um misto de cenografia, diorama, escultura e instalação, aparece na exposição representada em uma maquete, pois o original não pode sair do Museu de Arte da Filadélfia por razões de conservação. Nesta obra se espia por dois buracos, em uma porta antiga de madeira, se vê um corpo feminino nu, deitado na relva com as pernas abertas. O público, sem querer, se torna um voyeur e só se dá conta disso depois que olhou, quando já é tarde. Lacan fala desse desejo do olhar em sua análise de Las meninas de 1656, de Diego Velázquez, “você não vê de onde eu te olho”. É uma fórmula fundamental para explicar o que nos interessa, em qualquer relação do olhar. Se trata da pulsão escópica e mais precisamente, no exibicionismo como no voyeurismo, mas


não estamos ai para ver, se no quadro alguém percebe, ou se algo acontece. “O olhar pelo orifício é o olhar congelado, imutável, um olhar sem ver, um olhar que olha para si próprio. Lacan identifica o centro da pintura de Velázquez, “no centro deste quadro está o objeto oculto, que não deve se desviar da sagacidade do analista não estou aqui para explicar sobre um determinado tema fácil-, mas para chamálo pelo seu nome, ainda válido no nosso registro estrutural e que se chama a fenda”. No Étant donnés o olhar cego vê a fenda, que está no centro da obra, não mais escondida em baixo do vestido como na pintura das meninas, mas atrás da porta, através do orifício. A fenda é o retorno, tanto à casa que todos já habitamos, como às primeiras pinturas com os nus. O retorno à Femme nue assise dans an tube de 1910, que olha para o artista segurando os tornozelos ensaiando os movimentos da mulher sem rosto do Étant donnés. Referências • Lacan, Jacques. Seminário 13, aula 18, 18 de maio de 1966. http://www.bibliopsi.org/descargas/autores/ lacan/LACAN/Lacan%20TODO!%20Psikolibro/16%20Seminario %2013.pdf s/pag. 6 – Lacan. s/pag.


A MODERNA CULTURA LATINO-AMERICANA: INTERPRETAÇÕES E RECONSTRUÇÕES

“A NECESSIDADE DO PENSAMENTO É O QUE NOS FAZ PENSAR”. (THEODOR W. ADORNO)

Talvez o aforismo do sociólogo alemão Theodor Adorno seja um bom mote para niciar esta reflexão, sobre a máxima que Adorno faz da tão decantada relação entre o ato de pensar e as constrições sociais que he são inerentes. Nele é feito alusão à mpossibilidade de se erigir um pensamento descomprometido, posto que se encontra inextricavelmente ligado às condições da sua formulação. Mas, quando apreendida independentemente do conjunto do seu pensamento, a frase adorniana pode levar a interpretações sobre a total imanência da prática reflexiva, aprisionada pela identificação acrítica com o seu objeto, construída por uma relação sincrônica e submissa ao universo fenomênico. Teorizando sobre uma concepção sucinta dos princípios que ordenaram a reflexão adorniana, poder-se-ia encerrá-la na busca ncessante do não idêntico, isto é, da negação de todo e qualquer movimento de dentificação, tornando-o um autor comprometido com o manejo crítico das próprias formulações, requisito da crítica da própria sociedade, como se percebe em outra frase lapidar presente no seu livro Dialética Negativa, publicado em 1966: “A dentidade é a forma originária da deologia” . Ou, em outro ensaio, quando escreveu: “A resistência à sociedade é resistência à sua linguagem”.

MARIA ARMINDA DO NASCIMENTO ARRUDA*

Teorizando sobre uma concepção sucinta dos princípios que ordenaram a reflexão adorniana, poder-se-ia encerrá-la na busca incessante do não idêntico, isto é, da negação de todo e qualquer movimento de identificação, tornando-o um autor comprometido com o manejo crítico das próprias formulações, requisito da crítica da própria sociedade, como se percebe em outra frase lapidar presente no seu livro Dialética Negativa, publicado em 1966: “A identidade é a forma originária da ideologia” . Ou, em outro ensaio, quando escreveu: “A resistência à sociedade é resistência à sua linguagem” . Ao trazer a linguagem para o centro da reflexão e perseguir a multiplicidade das relações que se desenvolvem no processo da sua modelagem, Adorno fez da análise da cultura dimensão privilegiada ao entendimento da sociedade moderna. Em outra obra lapidar, a densa Teoria Estética, considerou que a análise da arte moderna oferece acesso privilegiado à compreensão e elucidação das formas de manifestação do capitalismo, a partir do tratamento vistas da linguagem da criação . Na obra Dialética do Iluminismo , escrita em conjunto com Max Horkheimer, os autores, segundo o filósofo Habermas, “querem fazer o iluminismo iluminar-se radicalmente a si próprio” , revelando o caráter central da linguagem na crítica da sociedade moderna.


Por essa razão, as reflexões de Adorno são perturbadoras, posto que construídas na ótica do exame das obras culturais, da própria concepção corrente de cultura, da recusa em pensá-la como epifenômeno, tampouco tratá-la como uma entidade, uma esfera isolada da existência social, finalmente, rejeita cristalizá-la em conceitos, ou substantivá-la em concepções imutáveis. Coerente com essas posições, afirmou: “A arte é um instante” . Isto é, um fragmento do todo situado no tempo, o que a torna resistente à fixidez conceitual. Teoria Estética – cujo título poderia dar impressão de afastamento da sua crítica da sociedade – é, contrariamente, um exame impiedoso das interpretações baseadas na afirmação da autonomia da arte, no princípio da autorreferência do fazer artístico, capaz de ser analisado segundo concepções invariantes, nublando os componentes sociais inerentes a todo ato criativo. Buscar inspiração em um autor tão fecundo, como Adorno, permite que se construa problemas de envergadura analítica, capazes de iluminar os caminhos do pensamento latino-americano, apreendido, especialmente, no prisma sociológico e referida ao caso brasileiro, que me é mais familiar. Nesse passo, cabe retornar ao aforismo adorniano utilizado como sugestão. As concepções de Adorno revelam procedimentos profícuos à compreensão dos fenômenos afeitos à cultura, à vida intelectual e às artes em geral, expressos em posturas que indagam sobre os fundamentos simbólicos da vida coletiva, perseguindo o modo como a experiência social impregna a obra, transfigurada no desenvolvimento das

ideias, nas dimensões formais, sejam elas diretamente intelectuais ou essencialmente artísticas. Em sentido estrito, nenhuma reflexão pode estar desapegada do desafio de enfrentar, simultaneamente, a singularidade da produção cultural e os condicionamentos de vária ordem, devendo romper, portanto, a conhecida disjuntiva entre análise interna ou externa, crítica imanente ou transcendente, pois se traduzem em falso problema. A rejeição a concepções sobre a substância irredutível da cultura e da arte, pensadas como esfera independente do social, fundamenta a própria reflexão sociológica, legitimando os seus procedimentos analíticos. A teoria crítica inscreve-se nesse registro, na qual Adorno pode ser considerado o mais denso, complexo e desafiador representante. Por ser crítica da cultura no capitalismo tardio, a teoria crítica é, em essência, exame do processo civilizatório moderno, esquadrinhamento dos limites da sua realização. Este problema central orientou as pesquisas realizadas no Instituto de Investigação Social, desde a sua fundação, em 1923, sendo explorado, sobretudo, nas reflexões de Adorno e Horkheimer, nos decênios seguintes. Posteriormente, retornou nas formulações habermasianas da teoria da ação comunicativa que, não obstante a preservação do pensamento crítico, afastaram-se do pessimismo visceral que regia as análises dos primeiros. Habermas opôs ao ceticismo avassalador de Adorno e Horkheimer a respeito da razão iluminista, presa dos mecanismos regressivos, a exploração do potencial racional da ação comunicativa, assinalando que os próprios


autores resguardavam ainda a “esperança mesmo que há muito tempo revogada de conciliação” . Os questionamentos de Adorno sobre a real possibilidade de liberação são coerentes com a perspectiva apontada, como se percebe nas suas indagações a respeito do estatuto da cultura e da arte, entendidas por ele como fontes exclusivas de canalização de energias autônomas. Embora a constatação possa encerrar certo travo substancialista, filiada à tradição filosófica alemã, Adorno, de outro lado, foi crítico do pensamento de Kant e de Hegel nos domínios dos fenômenos estéticos. Permeiam as suas idéias princípios da sociologia de Max Weber, que considerou a arte, o amor erótico e o carisma esferas capazes de romper o domínio imperioso da racionalidade moderna. Em Adorno, a expressão desenvolvida da racionalização sufocante manifesta-se na burocratização crescente, contemplada na noção de sociedade administrada e no caráter dominante de produção dos bens simbólicos, presente na categoria de indústria cultural. O diagnóstico sombrio que permeou as suas reflexões, dado o caráter virtualmente dominante do sistema de indústria cultural, combinado à imposição da lógica burocrática a submeter os fenômenos da cultura, antecipou posições de sociólogos que perseguiram a neutralidade axiológica, requisito de uma ciência social não normativa, como é o caso de Pierre Bourdieu. Mais de cinqüenta anos após as primeiras formulações de Adorno e Horkheimer sobre a indústria cultural, o eminente sociólogo francês escreveu:

“Quando, como dizia Gombrich, as condições ecológicas da arte’ são destruídas, a arte não tarda em morrer. A cultura está ameaçada porque as condições econômicas e sociais, nas quais ela pode se desenvolver, estão profundamente afetadas pela lógica do lucro nos países avançados, onde o capital acumulado, condição da autonomia, já é importante, e, a fortiori, nos outros países”. A referência, no caso, diz respeito à mercantilização plena da cultura e ao domínio da racionalidade econômicoburocrática sobre ela. O propósito do texto de Pierre Bourdieu – A Cultura está em Perigo –, do qual se retirou as frases citadas, é escrever um libelo contra a ameaça à autonomia da produção cultural, em função da tendência dominante das normas econômicas que se espraiam em direção ao conjunto. No caso da cultura, a ameaça é crucial, uma vez que põe em risco a sua própria condição, ou seja, de formular as suas regras. “A intrusão da lógica comercial em todos os estágios da produção e da circulação dos bens culturais” , segundo palavras de Bourdieu, guarda certa analogia com o princípio adorniano a respeito do aprisionamento da arte pela lógica dos efeitos. É interessante perceber, insistindo em prosseguir na aproximação entre os dois autores, como o livro La Misère du Monde, organizado por Bourdieu e publicado em 1993 , é profundamente crítico dos processos sociais contemporâneos, similar ao diagnóstico de Adorno sobre o mundo que emergiu após a experiência da Segunda Guerra Mundial. Especialmente Minima Moralia, publicado em 1951, e que


contém o sugestivo subtítulo reflexões a partir da vida danificada , espelha a própria miséria do mundo, irremediavelmente marcado pela barbárie nazista, fazendo da obra uma espécie de testemunho da perda indelével das promessas civilizatórias. Os escritos por aforismos, em si mesmos representações da dificuldade de se construir uma reflexão orgânica a respeito do mundo estilhaçado, pretende reproduzir a contaminação da narrativa pela irracionalidade instalada. Do mesmo modo em que Adorno sempre defendeu a forma ensaio como expressão apropriada da crítica, as suas máximas transpiram forte sentimento de desesperança. Igualmente em A Miséria do Mundo, transparece desalento: “Ser consciente dos mecanismos que fazem com que a vida seja dolorosa, quase invisível, não significa neutralizá-los; iluminar as contradições não significa resolvê-las” . Estranhos são os caminhos capazes de pavimentar aproximações entre autores radicalmente diversos. Mas é tempo de expor os argumentos sugeridos nesse já longo escorço e que ainda permanecem esboçados, para examinar, com mais atenção, as possibilidades inscritas nas análises sociológicas da cultura, bem como a sua fecundidade ao entendimento da vida intelectual em realizações históricas não típicas, como dos países latino-americanos. Preliminarmente, parto de uma platitude, revisitando o conhecido: a sociologia da cultura trata, primordialmente, do modernismo cultural, embora não exclusivamente. E se essa questão possa parecer trivial, uma vez que o pensamento sociológico é produto da moderna

sociedade capitalista e constituiu-se na esteira das transformações sociais, propondo instrumentos de correção, nem sempre se exploram as implicações da sua origem embebida no ideário reformista. Naturalmente, a possibilidade de criação da figura do sociólogo como capaz de propor medidas corretivas já pressupõe a laicização da cultura, o desencantamento do mundo, a independência das esferas da realidade, submetidas a legalidades próprias, tal como se encontram formuladas na sociologia de Max Weber. A teia de ações orientadas pelo sentido põe no próprio centro da sociologia compreensiva o problema da significação, o que tem permitido a autores como Clifford Geertz anunciar a sua filiação ao conceito weberiano de cultura. Na conclusão de as Formas Elementares da Vida Religiosa, Durkheim alertou sobre o risco de relacionar, de modo mecânico, a classificação das coisas e a classificação dos homens, afirmando a dimensão específica da consciência coletiva que não é simples epifenômeno de sua base morfológica, uma vez que “as categorias do pensamento não são jamais fixadas sob uma forma definida” . Especialmente nessa obra, Durkheim assentou a sua teoria do simbólico que se transformou em referência necessária quando se pretende indagar sobre os fundamentos culturais da vida social. Em Marx, a construção do fetiche da mercadoria, para permanecer no registro dos clássicos, baseia-se na autonomização da forma em relação ao seu referente, resultando numa trama de significações produtora da condição alienada dos sujeitos no capitalismo. Com a análise do


fetiche, Marx elucidou a espessura desse universo simbólico, fábrica de uma subjetividade heterônoma e de uma cultura que se dissolveu na inconsistência concreta dos objetos-mercadorias que assumiram a condição de significação, adquirindo caráter de pura linguagem. A reflexão de Marx sobre a espessura cultural capitalista antecipou correntes analiticamente frágeis, surgidas um século depois, mas que julgaram apresentar grande novidade por caracterizarem o social como “redes flexíveis de jogos de linguagem” . Dessa forma, a tradição disciplinar da Sociologia formulou e contemplou, embora segundo perspectivas diversas, as questões pertinentes aos fenômenos da cultura na sociedade moderna, ao mesmo tempo em que instituiu os procedimentos de análise. Pelo menos desde então, sistematizou-se a identidade entre a experiência histórica da modernidade e os fenômenos da cultura, cujas implicações permitem desdobramentos e inspiram análises sobre contextos diversos daqueles sobre os quais se assentaram. A rigor, se as concepções de moderno pressupuseram a autofundamentação e a autocriação, isto é, a ruptura radical com o passado e a construção dos próprios critérios de reconhecimento, ou segundo palavras de Blumenberg, a busca da sua “legitimidade histórica”, no âmbito da cultura, a identificação se estabeleceu com as expressões do modernismo . Como assinalou Habermas, foi “no domínio da crítica estética que tomamos consciência do problema de uma fundamentação da modernidade a partir de si própria, e isso torna-se claro quando se traça a história do

conceito de ‘moderno’” . Para Baudelaire, a modernidade confundia-se com a experiência estética do modernismo. Virgínia Woolf escreveu, em 1911, que o modernismo “promoveu profunda transformação na nossa concepção do real”, a partir dele, “o caráter humano mudou” . Posto o problema nesses termos, o vínculo entre modernismo e modernidade estabelecido leva, necessariamente, a que a consideração de um e de outro fique preestabelecida; de um lado, a volatilidade das vanguardas modernistas questionou a modernidade; de outro, a crítica do modernismo passou a estar ligada ao julgamento da modernidade; finalmente, a reflexão a respeito das dimensões interna e externa da obra tornou-se crucial, colocando o problema da “representação da realidade”, da questão da mimesis, contemplada na obra magistral de Erich Auerbach . O problema da representação manifestou-se, aliás, já na época clássica do Ocidente, quando ocorreu, como analisou Foucault, a ruptura com o universo das similitudes. Segundo o filósofo, “D. Quixote é a primeira das obras modernas, pois nela se vê a razão cruel das identidades e das diferenças zombar incessantemente dos signos e das similitudes; pois a sua linguagem rompe a velha intimidade com as coisas, para entrar nessa soberania solitária de ser abrupto, donde só sairá convertida em literatura” . Ou, para buscar novamente inspiração em Adorno, no modernismo, a desarmonia da arte atingiu a sociedade, ao mesmo tempo, a desarmonia interna da obra pode ser tomada como expressão de alienação .


Apresento, nesse passo, o segundo problema de reflexão presente no desafio de evitar a relação redutora entre modernismo e modernidade, preservando o seu caráter particular de linguagem, mas recusando considerá-la associal. Vale dizer, não se trata de aderir à escrita branca, pensar o “grau zero da escrita”, como Barthes ; tampouco desconhecer a presença de elaborações originais das obras. Subjazem, naturalmente nessas afirmações, outros argumentos: a permanente renovação da linguagem inerente às vanguardas, ao mesmo tempo em que desafia a interpretação, nubla a relação pressuposta entre modernidade e modernismo, base de muitas polêmicas em torno do sociologismo e do formalismo; a posterior cristalização da linguagem modernista, expressa no cânon, provoca a “ironia”, para citar Raymond Williams, da anulação da história, uma vez que o “modernismo é o fim, qualquer coisa ulterior é considerada fora do desenvolvimento”, passa a ser vista como “posterior, estacionada no pós” . O movimento de integração do modernismo no movimento do capital internacional, a partir, sobretudo, de meados do século XX, isto é, a sua assimilação pela dinâmica do mercado, destruiu a sua força contraditória em relação ao mundo burguês, repercutindo no universo da vida intelectual, questão crucial ao entendimento da cultura contemporânea. Na América Latina, como se sabe, a emergência das vanguardas modernas ocorreu nos primeiros decênios do século XX, realizando-se no compasso das propostas em ebulição. Apesar disso, combinou as bandeiras culturalmente

farrojadas com profunda reflexão sobre os dilemas do continente. Como salientou Richard Morse, “com respeito especificamente aos pensadores, observamos que suas afirmações de uma identidade europeia anterior foram no último século demasiado problemáticas, e sua confiança num contínuo intercâmbio crítico com ideologias do Ocidente industrial demasiado insegura, para favorecer uma absorção das correntes internacionais. Concordaram com as receitas vigentes de ‘progresso’ e reconheceram com pesar o atraso de seus países na questão”. Nesse sentido, o modernismo do continente não se configurou como uma cultura de transplante; apesar das fundas relações com a matriz, não era mera cópia, em função do seu compromisso com a problemática específica à sua realidade. Isto é, as ideias externas eram submetidas a uma torção, posto que engolfadas nas vagas de contextos iniludíveis. “Em sua fase áurea (1910-1930), o modernismo, sobretudo a partir de sua arena parisiense, acabou por causar impacto sobre a América Latina, mas não como mero papel de tutor. É que na época a Europa sofria de uma crise de nervos associada com a tecnificação, a comoditização, a alienação e a crescente violência, tal como eram expressas nas contradições marxistas, na decadência splengleriana, nas invasões freudianas do subconsciente e, é claro, na industrialização e na Primeira Guerra Mundial... Agora a Europa não oferecia apenas modelos, mas patologias. O desencanto no centro deu ensejo à reabilitação na periferia”. A desvantagem relativa, fruto da própria condição,


produziu “cosmopolitas excêntricos” , ou, para lembrar Carlos Fuentes, o intelectual latino-americano deve reconhecer “que a sua excentricidade está centrada hoje num mundo sem eixos culturais”. A vida intelectual latino-americana teve que enfrentar, todavia, ao menos três desafios: absorver propostas forâneas e já em questionamento; construir os seus próprios caminhos reflexivos, enleando o autoconhecimento das suas realidades com profunda meditação sobre a efetiva possibilidade das suas sociedades palmilharem a aventura moderna; por fim, conciliar os ditames modernistas de desconhecimento do passado com a reflexão sobre as origens das suas sociedades, sem a qual não se poderia pensar os dilemas do presente. Daí, os intelectuais não puderam se descomprometer do destino da nação; tampouco afirmar o caráter de pura experimentação vanguardista. Os modernistas da América Latina, a despeito das suas diferenças, construíram retratos comprometidos das suas sociedades, mesclando aos seus diagnósticos projetos de nação, indiferenciando ser e dever ser. A inescapável normatividade presente, não elidiu a real elucidação das realidades consideradas, pois a vida do espírito não se guia por pressupostos estritos de neutralidade. Particularmente na Sociologia, como bem assinalou Pierre Bourdieu, não se aplica a famosa distinção estabelecida por Wilhelm Dilthey que separa explicação e compreensão: “... é preciso ser dito que compreender e explicar são a mesma coisa” . E é por essa razão que é possível explicar sem excluir a compreensão crítica, fundamento da dis -

tinção entre as disciplinas humanas e as disciplinas da natureza, sendo inescapável certa atitude normativa, mesclando perspectivas científicas com atitudes de cunho valorativo. Cabe reconhecer, todavia, a dificuldade de se distinguir os dois planos, quando se trata de obras mais diretamente comprometidas, problema já formulado pelos autores clássicos, sintetizado na formulação weberiana sobre o “valor do conhecimento” , ou na frase lapidar do sociólogo Hans Freyer: “Só vê algo sociologicamente quem quer algo socialmente”, ou na frase lapidar do sociólogo Hans Freyer: “Só vê algo sociologicamente quem quer algo socialmente” . Essa condição, no entanto, não é sinônimo de incapacidade de formular, compreender e explicar os fenômenos; tampouco de produzir uma cultura criativa e original. Nas palavras polidas de Pascale Casanova: “ é entre os excêntricos literários que se fomentam as maiores revoluções específicas, as que contribuem para mudar a própria medida do tempo e da modernidade literária”. A América Latina no seu conjunto é exemplo paradigmático de vida intelectual marcada pelo caráter empenhado, comum em sociedades que escapam à tipicidade, situação característica do Brasil. Parafraseando Marx, a propósito da sua análise sobre os neo-hegelianos em A Ideologia Alemã, o lugar para apreciar melhor o pensamento situa-se a partir de um ponto de vista descentrado, condição a que estava relegado em função do exílio, produtor de uma vivência de perda de raízes . Daí, a máxima de Adorno em Mínima Moralia: “Todo intelectual emigrado, sem exceção, está mutilado” .


Ou a conhecida frase de Thomas Mann, quando do seu exílio nos Estados Unidos, admitindo tornar-se mais alemão distante da Alemanha. Para Marx, a melhor avaliação da vida intelectual do seu país exigia o afastamento, o que não deixa de ser uma confissão de profundas ligações com a origem. Para Adorno e Thomas Mann, a distância reforçava o reconhecimento primordial. Em realidades como a nossa, o problema parece redefinido na vivência do desterro “em nossa terra”, para retomar a conhecida frase na abertura de Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda, que alude, na verdade, ao drama dos intelectuais nos países de modernização tardia . O problema intelectual recorta, então, questão de outra natureza, equacionada no ensaio de Paulo Arantes, Providências de um Crítico Literário na Periferia do Capitalismo, a propósito da análise dos ensaios recorrentes sobre a formação, “noção a um tempo descritiva e normativa” Um tipo de avatar do intelectual na periferia do mundo, o primado do ideal de formação permite que se contorne o sentimento de artificialidade da nossa cultura, a ausência de linha evolutiva, inexistência de seriação nas idéias, a persistência da nossa “indiferença”, segundo Sílvio Romero, constante domínio da importação externa sobre a tradição local . O problema da formação como questão decisiva de ordem intelectual, fundamentou o florescimento de uma cultura enraizada, na medida em que conferiu organicidade à sociedade brasileira, estabelecendo o lastro para a expressão da intelectualidade nativa. Foi a publicação de Formação da Literatura Bra-

soleira de Antonio Candido, que se desatou, segundo Arantes, este “nó histórico” , quando o princípio da formação converteuse em método, permitindo o tratamento do sistema literário, “processo cumulativo de articulação”. A formação como “acumulação literária” é anulação da descontinuidade, simultaneamente atividade intelectual criativa na periferia, ou, recuperando o preceito construído por Antonio Candido para balizar a reflexão no Brasil, é condensação equilibrada de “localismo” e “cosmopolitismo”. Enquanto problema de fundo intelectual, o tratamento da formação permite contornar a origem da “torção” da vida intelectual brasileira, expressa em As Ideias fora de Lugar, de Roberto Schwarz, uma vez que o nascimento da economia moderna, baseada no trabalho livre, punha o Brasil “fora do sistema da ciência”. Para desdobrar essa questão, retorno a Antonio Candido, intelectual decisivo na formulação do cânone da cultura no Brasil. Construído o sistema literário, nutrido no compromisso dos escritores brasileiros em “nos exprimir”, a derivação passa a exigir que se situe o momento em que o processo expressivo se completa. Para Candido, os anos trinta são decisivos, uma vez que às transformações de vulto implementadas na área da cultura, aduziu-se a rotinização e expansão do modernismo, gerando “um movimento de unificação cultural, projetando na escala da nação fatos que antes ocorriam no âmbito das regiões” . Sem que se descure da qualidade artística e intelectual das obras plasmadas pela estética modernista, a visão de Candido estabelece analogia com as concepções sobre a ruptura introduzida pelo modernismo, patente “numa maior


consciência a respeito das contradições da própria sociedade, podendo-se dizer que sob este aspecto os anos 30 abrem a fase moderna das concepções de cultura no Brasil” . Antonio Candido estabelece, assim, relação entre linguagem inovadora e engajamento intelectual, mas que teria provocado, segundo o crítico João Lafetá, tendência ao esfriamento da experimentação, acompanhada da acentuação do “projeto ideológico” frente ao “projeto estético”. As análises de Candido estão ancoradas em dois critérios complementares – estético e político – sugerindo que o modernismo só se completou de fato, quando realizou seu lado engajado, no momento em que os intelectuais assumiram um compromisso com o país moderno no seu conjunto. A abordagem do autor sobre esse período é tributária do tratamento que conferiu à formação da literatura brasileira no seu livro clássico; o cumprimento do processo formativo pressupôs a “tomada de consciência” e o “aspecto empenhado das obras”. Por conseguinte, a própria formação do pensamento brasileiro passa a coincidir com a intelectualidade modernista, dedicada a participar da construção da sociedade moderna nesse lado do mundo, vista como uma geração voltada para o futuro. Talvez a sua resistência à análise de Sérgio Miceli sobre a participação dos modernistas na elaboração da política cultural do Governo Getúlio Vargas, resulte do desconforto em aceitar a intimidade desses intelectuais com o Estado Autoritário. Paradoxalmente, Antonio Candido escreveu o prefácio na edição da obra, mas considerou a proposta fruto de um “olhar sem paixão e quem sabe sem

piedade”. O juízo restritivo que elaborou foi, no entanto, nuançado em outro texto, distinguindo a inserção profissional do “artista e escritor aparentemente cooptados” da realização efetiva da obra, mas não deixou de sublinhar tanto o caráter pioneiro do livro de Miceli quanto a análise notável sobre a “expansão do mercado do livro e à gênese de um grupo de romancistas profissionais” (Candido, A. 2000, p195). Nos termos da sociologia de Pierre Bourdieu, a profissionalização é dimensão essencial à constituição do campo intelectual moderno . Em suma, a classificação elaborada por Antonio Candido que considerou os três ensaístas do decênio de trinta, Gilberto Freyre, Caio Prado Jr. e Sérgio Buarque de Holanda, Intérpretes do Brasil, obscurecendo o lugar dos pensadores precedentes, naturalizou, em certa medida, a tradição intelectual brasileira. O “eixo catalisador”, dos trinta, foi um marco histórico, pois revelou a ruptura entre o “antes” e o “depois”, para retomar Antonio Candido. Essas “operações sociais de nomeação” exprimem posições intelectuais, permitindo desnaturalizar as classificações. A tradição firmada provém do modernismo, visto como expressão mais genuína da nossa cultura. Naturalmente, nenhum cânone resulta de construções arbitrárias. Mestre Candido expressa uma visão normativa que, como se vê, parece inescapável. Para sumarizar, há, de fato, grande transformação no pensamento intelectual, quando a linguagem modernista chega ao ensaio, sincronizando o problema da reflexão – a viabilidade de inserção na modernidade de um país cuja formação histórica escapa do


padrão – com a forma da expressão – a ruptura com a norma culta portuguesa, por meio da incorporação da oralidade da língua falada no Brasil, cuja tradição se imporá, inspirando, inclusive, a moderna literatura africana de língua portuguesa. Os chamados intérpretes, de outro lado, inseriram-se no caldo do modernismo ao ajustarem a visão orientada para as nossas particularidades, apoiada na aceitação da diversidade e não no espelhamento nas experiências da modernidade hegemônica. Deixamos a condição de sociedade faltosa, incompleta, carente dos atributos civilizados, como aparecia em muitos dos predecessores, para a afirmação das nossas qualidades nem sempre positivamente valoradas, como se vê especialmente em Raízes do Brasil. Ensaio notável de interpretação da formação do Brasil, Raízes é obra característica da tensão que distingue esses textos, sobretudo daqueles de inspiração modernista. Publicado em 1936, o livro enfrenta o dilema de refletir sobre as possibilidades de conciliar patriarcalismo com liberalismo, cordialidade com racionalismo. Em suma, de como aliar valores modernos e existência de uma cultura cujos traços psicossociais foram marcados pelo ruralismo, patriarcalismo e personalismo, produtores do culto à personalidade. Daí a consequente tensão, uma vez que a cordialidade não é substituída pela civilidade, produzindo um descompasso entre o movimento de modernização e o substrato cultural existente, cuja sombra projetada pelo passado acaba por impedir que se vislumbre um futuro seguro.

O ceticismo resultante é derivado da recusa de formular qualquer solução para o impasse, produzindo uma espécie de suspensão do juízo. Ou melhor, a insistência em copiar os modelos forâneos poderia produzir novo desterro, aprofundado a nossa condição de países fadados a abrigar tendências e criações exteriores, como se vê já nas primeiras frases do livro: “Trazendo dos países distantes nossas formas de convívio, nossas instituições, nossas ideias e timbrando em manter tudo isso em ambiente muitas vezes desfavorável e hostil, somos ainda hoje uns desterrados em nossa terra”. Esse período lapidar e que formula o problema central a percorrer todo o livro, a despeito das inúmeras digressões, aliás, de origem modernista, é retomado nas frases de encerramento: “Podemos ensaiar a organização de nossa desordem segundo esquemas sábios e de virtude comprovada, mas há de restar um mundo de essências mais íntimas que, esse, permanecerá sempre intato, irredutível e desdenhoso das invenções humanas. Querer ignorar esse mundo será renunciar ao nosso próprio ritmo espontâneo, à lei do fluxo e do refluxo, por um compasso mecânico e uma harmonia falsa”. Tendo em vista que a cordialidade não cria princípios civilizatórios modernos, a ambiguidade cultural tenderá a ser a marca do Brasil moderno, produzindo novo desterro e reforçando o mal estar da vida intelectual. Raízes do Brasil encerra-se com uma alusão ao pacto fáustico, que, todavia, não leva a mais iluminação, tampouco mais sabedoria, como no impulso que moveu a personagem da literatura germânica. As frases de encerramento são decisivas: “Há,


porém, um demônio pérfido e pretensiosofrases de encerramento são decisivas: “Há, porém, um demônio pérfido e pretensioso, que se ocupa em obscurecer aos nossos olhos estas verdades singelas. Inspirados por ele, os homens se veem diversos do que são e criam novas preferências e repugnâncias. É raro que sejam das boas” . Construção ensaística exemplar, pois parte de um problema e a ele retorna, mas transformado pelos argumentos desfiados ao longo do texto, Raízes segue um percurso circular, expressando na forma o dilema das sociedades latino-americanas, fruto do transplante da cultura europeia adventícia, combinado às culturas nativas e àquelas dos povos aportados. É também expressiva contribuição crítica da assimilação das ideias forâneas, exercício sisifista e exigente em busca de resposta da primeira submissão, da violação ancestral, cujo “símbolo da entrega é a dona Malinche, a amante de Cortés”. Não por casualidade, ainda segundo Otávio Paz, “o adjetivo despectivo ‘malinchista’,... [foi] posto em circulação pelos jornais para denunciar a todos os contagiados por tendências estrangeiradas” . A problemática das ideias importadas firmou tradição na América Latina, ainda que com gradações diversas entre os países e intensidades variáveis em função do momento. O crítico brasileiro Roberto Schwarz é representante de frutífera tradição reflexiva sobre o problema; para o mexicano Paz, “a história do México desde a Conquista até a Revolução, pode ser vista como uma busca de nós mesmos, deformados ou mascarados por instituições estranhas, e de uma Forma que nos expresse”.

Evidencia-se, nessas passagens, a fusão entre a adesão ao cânone modernista, mas, simultaneamente aceitação do compromisso de responder ao problema desafiante da identidade da América Ibérica. Embora originários da mesma dinâmica de expansão da Europa na Época Moderna e, a despeito da existência de similitudes, México e Brasil são países bastante diversos, pois foram produtos de formações históricas particulares, criando um mundo de diferenças que se manifestaram no movimento moderno. A comparação entre o modernismo brasileiro e o mexicano revela, de saída, que o primeiro emergiu de uma conjuntura de expansão econômica e de mudança social profunda; o mesmo ocorreu no aparecimento do fenômeno das vanguardas na Argentina. Segundo Richard Morse, no México, “o momento modernista coincidiu com uma revolução”... No país, “o programa modernista não foi a cognição de São Paulo, nem a decifração de Buenos Aires, mas um esforço de propaganda no sentido original, do dever de espalhar as ‘boas novas’” . Tais distinções manifestaramse na literatura dos dois países ao longo do século XX. Tomando como exemplo dois livros exemplares da melhor ficção produzida no Brasil e no México: Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa publicado em 1956; Pedro Páramo de Juan Rulfo, editado em 1955, percebe-se a distância entre eles. Obras contemporâneas reproduziram a mesma andança por regiões inóspitas, esquecidas da civilização e submetidas ao arbítrio dos poderosos locais, o sertão rosiano e o mundo perdido de Rulfo. Porém, a profusão sertaneja de Guimarães Rosa,


expressa no rememorar barroco do jagunço Riobaldo, discrepa da seca expressão da personagem de Rulfo, cuja única identidade é ser o filho de Doloritas. Em busca do pai inexistente, Pedro Páramo, antigo potentado local, há muito falecido, o filho só encontra desolação. Personagem insondável, Páramo, tal como Medeiros Vaz, que tinha sido “rei das Gerais”, vivia da lenda que deixara. O imaginário criado por figuras como Medeiros Vaz perseguiu o jagunço Riobaldo, que “queria ficar sendo” mesmo a custa de fazer pacto com o Demônio; já a personagem de Rulfo nada pode ou espera, é filho de uma mulher submetida, “inimiga de retratar-se”, detentora, por isso, de certo afastamento em relação ao destino cruel de Malinche. Em ambos os escritores encontramos o retrato vivo da realidade de seus países, daqueles contextos oriundos de histórias à margem do centro civilizado. Raízes do Brasil, obra nascida da mais fértil reflexão buarquiana, pode ser entendida no bojo das preocupações do autor em categorizar as nossas singularidades: Segundo Arnoni Prado, “quem olha o conjunto da obra crítica de Sérgio, anterior a 1930, nota, já no período que antecede a semana de 1922, uma impressão difusa de que a nossa produção intelectual inscreviase num quadro típico de cultura de periferia sem eixo próprio” . Construída a nomeação da nossa cultura, como um tipo periférico, Sérgio Buarque afasta-se da tradição do pensamento brasileiro, anterior ao modernismo, que pensava o Brasil como o avesso da Europa, como ausência de atributos próprios, como formação incaracterística. O tema da formação, especial legado da tradição modernista,

permitiu que se construísse uma visão do Brasil, comprometida com a compreensão dos problemas provocados no curso do trânsito para o moderno. Por essa razão, a crítica de Abel Barros Baptista, para quem a noção de formação, “neste sentido não é modernista, ou seja, é modernista sem o ser” , redunda em exercício estéril, pois está ancorada numa concepção forjada pelos próprios modernos, que não se reconheciam como frutos de uma dinâmica histórica anteriormente iniciada. Talvez resida aí a explicação para a tendência dos intelectuais no Brasil escreveram profusamente a respeito de si próprios, sobretudo sobre os chamados Intérpretes do Brasil, que é um modo de revisitar o modernismo e pensar a nossa modernidade. Uma vez que a linguagem das vanguardas vicejou entre nós, afirmando as nossas particularidades, em sincronia com os projetos de modernização, os ligamentos entre eles destacaram as nossas singularidades. A reflexão sobre as relações entre modernismo, modernidade e modernização construiu uma espécie de tradição do pensamento latino-americano evidente na realização concomitante da formação da moderna nação e da criação da linguagem modernista, identificada com a expressão nativa. Por essa razão, a análise dos meandros da vida intelectual elucida a história brasileira, tendo em vista, como observou Élide Rugai Bastos, que “sem compreender tanto as ideias como o lugar social desses intelectuais é impossível entender o movimento geral da sociedade brasileira” . No que se refere aos chamados Intérpretes, os praticantes do ensaismo crítico, a condição de “explicadores do


Brasil moderno” permitiu-lhes auferir dicção própria, uma vez que nessa modalidade “o nome próprio de quem assina o ensaio é um dos elementos chave do gênero”. A recorrência de estudos a respeito da obra dos ensaístas é, no nosso tempo, tendência marcante no Brasil, revelando a correção da frase lapidar do sociólogo Roger Bastide, para pensar a sociologia da cultura: “Pensar o que se faz, é saber o que se pensa”. Em conseqüência, a renovação das reflexões sobre a obra dos chamados Intérpretes, aviva a apreciação das hesitações da nossa modernidade, fruto de algum desconforto frente ao presente, pelo menos de certo ceticismo da análise. Em contrapartida, a iluminação de experiências que escapam às realizações típicas reverte para a própria teoria, como sublinhou Florestan Fernandes, para quem o confronto do pensamento clássico com a história da chamada periferia moderna permite equacionar pontos obscuros da tradição e preencher vazios não contemplados. Mesmo porque “a necessidade do pensamento é o que nos faz pensar”, para voltar ao aforismo de Adorno. Os pensadores latino-americanos foram impelidos a refletir sobre a sensação de vida desconcertada, sobre seu próprio desterro intelectual, expresso na frase antológica do jagunço Riobaldo em Grande Sertão: Veredas: “O que é isso, que a desordem do mundo podia bem mais do que a gente”?

Muito obrigada


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