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SUMÁRIO
A imagética do Sertão em O Cacto de Manuel Bandeira
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Phabulo Mendes de Sousa
Visualidades do sertão: aproximações da arte com a literatura
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Luana do Amaral Silva
O Írreverso: Poética a Partir de Reminiscencia, Esquecimento e Impedimento, entre João Guimarães Rosa e Willian Kentridge
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Lucas Gorzynski
Diadorim e o feminino ocultado em Grande Sertão: Veredas - O Reconhecimento de Gênero no Espaço do Cangaço Rosângela Canassa
Vidas Secas Fabia Giordano Guilherme Kadayan
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Macabéa: A Estrela do Sertão
26
Thales Felipe Dantas Alves
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20
SUMÁRIO
Deserto Feliz: As Contradições do Sertão Contemporâneo no Novo Cinema Pernambucano
35
Melissa Caroline Vassalli
História da eternidade: o gênero e a natureza na idealização do sertão
38
Lara Barqueta Bione
Entre sertões e zona da mata. A Cerâmica de Tracunhaém/PE
41
Vanessa Lopo Bezerra
Paisagens habitáveis: o olhar poético de Maristela Ribeiro
48
Fabíola Cristina Alves
O sertão nas esculturas populares do nordeste
51
Bárbara Passeau
Canudos: uma ou duas histórias
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José Spaniol
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EXPEDIENTE EDITORES-SENIORES João Eduardo Hidalgo
Fabia Giordano Kadayan Daniela Farias
Nelyse Salzedas (FAAC/UNESP)
José Leonardo do Nascimento EDITORES DE LITERATURA EDITORES-CHEFES Fabia Giordano Kadayan
Agnus Valente (IA/UNESP)
Fernandes Filho
Edson Leite (MAC/USP)
Thales Felipe Dantas Alves
João Eduardo Hidalgo (FAAC/UNESP)
CONSELHO EDITORIAL
Wagner Francisco Araújo Cintra (Vice-Diretor IA/UNESP)
Melissa Vassalli Donny Correia
REDATORES-CHEFES Barbara Passeau Teresa Midori Rosangela Canassa
EDITORES GRÁFICOS E DE DESIGN Daniela Farias
Mariarosaria Fabris (FFLCH/USP)
Marcelo Tápia (Diretor Casa das Rosas, São Paulo)
Emilio García Fernández José Spaniol (Universidad Complutense de Madrid) (IA/UNESP) George Preston (City University of New York) José Leonardo do Nascimento (IA/UNESP) Caroline Kraus Luvizotto (FAAC/UNESP
Lucas Gorzynski
Marcia Barbosa da Silva (UEPG/PR)
EDITORES ARTES/CULTURA
Urbano Nobre Nojosa (PUC/SP)
Fabíola Cristina Alves Lucas Gorzynski Marco Antonio Baena Luana do Amaral
EDITORES DE IDENTIDADE Luis Roberto Quesada
Elza Maria Ajzenberg (ECA/USP) Rosa Maria Araújo Simões (FAAC/UNESP) Paulo Roberto Monteiro de Araújo (Mackenzie/SP) Jorge Schwartz (Diretor Museu Lasar Segall/SP)
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Dinah Papi Guimaraens (UFF/MNBA/RJ) Milton Sogabe (IA/UNESP) Maria Izabel Branco Ribeiro (MAB /FAAP) Percival Tirapeli (IA/UNESP) Olívio Guedes (MuBE/SP) Mario Bolognesi (IA/UNESP) Sebastiana Freschi (IA/UNESP)
EDITORIAL
Os Sertões no imaginário brasileiro contemporâneo
A referência a uma região geográfica é de importância significativa no estudo de seu patrimônio cultural. O imaginário de sua população é composto pelo terreno/contexto que a envolve, gera, modifica. Neste caso específico, o sertão – ou, melhor ainda – os sertões, pois a paisagem não é única (suas características variam de acordo com o estado ou a comunidade que a constitui), são uma fonte seminal de criação. Para a literatura, o cinema e as artes visuais, os sertões são uma referência poética de constante inspiração, diálogo, revisitações e reconfigurações. A partir de obras fundamentais, como Os Sertões, de Euclides da Cunha, ou Grande Sertão: veredas, de João Guimarães Rosa e A hora da estrela, de Clarice Lispector grandes composições foram desenvolvidas (por inspiração, oposição, reatualização), como, no cinema, Baile Perfumado (1996) de Lirio Ferreira e Paulo Caldas; Deserto Feliz (2008) de Paulo Caldas; Vidas Secas (adaptação do livro de Graciliano Ramos) de Nelson Pereira dos Santos e História da Eternidade (2014) de Camilo Cavalcante, para citar somente os que são assunto deste número da Palau. Nas artes visuais, Candido Portinari criou um diálogo estético entre seus retirantes pictóricos e a literatura do início do século XX, principalmente com O quinze, de Rachel de Queiroz, outro monumento ao imaginário do sertão e de seu povo. Aldemir Martins também é um autor que não pode ser esquecido, mesmo que não esteja diretamente presente aqui, mas suas ilustrações para Vidas Secas e Grande Sertão, seu traço de cordel é patrimônio imaterial da estética do sertão brasileiro. Ilustram também este número alguns desenhos do artista plástico José Spaniol, feitos durante pesquisa de campo em Monte Santo e Canudos, na Bahia, um pequeno diário visual da passagem do artista pela região e pela mística do local. O sertão é inabarcável, seja em uma única revista, filme, quadro ou performance, mas fazemos aqui um exercício de diálogo, catarse e crítica deste tema dentro da cultura brasileira contemporânea.
Prof. Dr. João Eduardo Hidalgo e Prof. Dr. José Leonardo do Nascimento Editores Palau.
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LITERATURA
A imagética do sertão em O cacto de Manuel Bandeira Phabulo Mendes de Sousa Um dos aspectos mais significativos da poesia modernista brasileira é a confluência de realidades e contextos distintos. O discurso considerado erudito e clássico, no modernismo, aparece, muitas vezes, amalgamado com outros discursos. As barreiras entre o erudito e o popular foram problematizadas. A partir desse questionamento, muitos artistas elaboraram suas obras. Um caso exemplar dessa “combinação” de realidades é o poema O Cacto de Manuel Bandeira. Ei-lo.
O cacto
Aquele cacto lembrava os gestos desesperados da estatuária: Laocoonte constrangido pelas serpentes, Ugolino e os filhos esfaimados. Evocava também o seco Nordeste, carnaubais, caatingas… Era enorme, mesmo para esta terra de feracidades excepcionais. Um dia um tufão furibundo abateu-o pela raiz. O cacto tombou atravessado na rua, Quebrou os berais do casario fronteiro, Impediu o trânsito de bondes, automóveis, carroças, Arrebentou os cabos elétricos e durante vinte e quatro horas privou [a cidade de iluminação e energia: - Era belo, áspero, intratável. Petrópolis, 1925 Do ponto de vista formal, o poema é composto de três estrofes, com versos brancos e livres. A primeira estrofe possui cinco versos; a segunda, seis e a última apenas um verso. Em linhas gerais, podemos observar que as duas primeiras estrofes apresentam “visões” distintas do cacto. Nos três primeiros versos do poema, o poeta apresenta a
primeira lembrança da planta. Em seguida (versos quatro e cinco), evidencia outra evocação. Assim, enquanto a primeira estrofe é impregnada de imagens provindas da memória, na segunda, vemos uma descrição concreta: a queda do cacto. O poema termina com apenas um só verso cuja função é resumir sinteticamente as funções e as ideias apontadas nas demais estrofes em torno da planta. Elaborado em Petrópolis, em 1925, e publicado em 1930 no livro Libertinagem, o cacto retrata metonimicamente a complexa imagem do sertão. Tão complexa que em nenhum momento esse termo aparece no poema. Em seu lugar vemos um campo lexical servindo de alusão a este local: “cacto” – título do poema –, “seco Nordeste”, “carnaubais”, “caatingas”. O poema apresenta o cacto, espécie de árvore típica das regiões secas do nordeste brasileiro, distante tanto do plano espacial quanto do ideológico. Isso ocorre graças ao uso do pronome demonstrativo “aquele”, antecedendoo. Esse pronome insere as imagens usadas para se referir ao cacto. A primeira delas é “os gestos desesperados da estatuária”. O olhar metafórico do poeta recua no tempo para oferecer ao leitor a primeira lembrança suscitada pela planta. Para compô-la, ele usa imagens provenientes da cultura clássica. Essas imagens retratam episódios muito difundidos no imaginário ocidental e estão representadas em vários suportes artísticos: pintura, desenho, escultura. Entretanto, no poema, é da escultura que o sujeito mais se aproxima, uma vez que, segundo ele, são os gestos da estatuária que lembram o cacto. A primeira lembrança alude ao conhecido episódio grego envolvendo o sacerdote troiano Laocoonte, filho de Príamo e Hécuba e sacerdote de Apolo. Segundo o mito, Laocoonte casou-se contra a vontade do deus e teve dois filhos, Antífenes e Timbreu. Além de ter transgredido as normas de seu cargo, casando-se, durante a Guerra de Troia, Laocoonte advertiu os troianos contra os gregos, arremessando sua lança contra 6
LITERATURA
o Cavalo de Troia. Apolo, irritado com esta atitude, vingou-se, enviando duas serpentes marinhas para matar os filhos de seu sacerdote, mas este, ao tentar salvá-los, acabou sendo picado e morto. Para muitos críticos, o conjunto escultórico, aludido no poema, é considerado uma das mais belas obras da escultura helenística. Muitos estudiosos veem-na como metáfora da agonia humana, uma vez que nela transparecem sentimentos como: dor, sofrimento, desespero. A segunda lembrança está descrita no Canto XXXIII da Divina Comédia, de Dante Alighieri. Para compô-la, o escritor baseou-se na tragédia ocorrida contra o Conde Ugolino della Gherardesca (1220-1289), pertencente à família Guibellina que, junto com o seu neto Nino dei Visconti, exercia sua autoridade sobre a cidade de Pisa. Insatisfeito em ter que dividir o poder com Nino, Ugolino traiu seu partido e aliou-se ao arcebispo Ruggieri degli Ubaldini, apoiado por outras famílias gibelinas. Juntos, eles tramaram a expulsão de todos os seguidores de Visconti. Mas, por desconfiança, o conde procurou eliminar aqueles dos quais suspeitava. Após algumas desavenças, o arcebispo Ruggieri traiu-o, divulgando pela cidade que Ugolino havia entregue seus castelos aos povos de Florença e Lucca. Conseguiu então provocar uma revolta popular que culminou com a invasão do castelo de Ugolino, forçado a se render. Ruggieri, mandou prender Ugolino numa torre posteriormente chamada de "torre da fome". Na mesma cela havia Uguccione e Gaddo, filhos de Ugolino, Anselmuccio e Brigata, netos do conde. Meses depois, os pisanos lacraram a torre e jogaram a chave no rio Arno. Em poucos dias todos morreram de fome. Diferente das duas lembranças anteriores, a terceira trata-se de uma evocação. Saímos das referências da tradição ocidental e adentramos em solo brasileiro. Pensando no contexto nacional, esta evocação é central para o desenvolvimento do poema, uma vez que trata metonimicamente do sertão: “seco Nordeste, carnaubais, caatingas”. Contudo, apesar de distantes os discursos que essas imagens suscitam, o “traço” trágico e desalentador das imagens de Laocoonte e Ugolino assemelha-se, em certo sentido, à
ambientação inóspita do sertão. A seca que impera nesse ambiente também traz consequências drásticas aos seres que lá habitam: fome, seca, ausência de recursos básicos para a sobrevivência, são algumas delas. Nesse sentido, sobretudo a fome que dizimou Ugolino e os filhos, encarcerados em uma torre, pode ser retomada na imagem do seco nordeste. Vale lembrar aqui que a temática sobre o sertão pode ser encontrada nas muitas manifestações artísticas brasileiras: literatura, pintura, cinema, teatro. E, a partir do movimento modernista brasileiro, no início do século XX, passou a ser mais problematizada e debatida. Em alguns momentos, como no romance regionalista da década de 1930, ano de publicação de Libertinagem de Manuel Bandeira, esta temática ganhou papel de destaque. Basta verificarmos os muitos romances lançados neste período, como O Quinze de Raquel de Queiroz e Vidas Secas de Graciliano Ramos, por exemplo. Na década de 1940, Cândido Portinari executa Os retirantes, tela icônica que expõe explicitamente os muitos problemas enfrentados pelo país. No cinema, na década de 1960, Nélson Pereira dos Santos adapta o romance de Graciliano Ramos, Vidas Secas. Enfim, são inúmeras as formas artísticas que se debruçaram e se debruçam sobre este tema, complexo e multifacetado. Retomando a leitura do poema, na segunda estrofe, não temos mais lembranças ou evocações. Assistimos a uma ação concreta: a queda do cacto por causa de um tufão furibundo. A consequência disso, dadas as proporções da planta, foi impedir o funcionamento da cidade, privando-a de energia, da mesma forma que atrapalhou a passagem dos transportes e ainda quebrou os berais de um casarão que estava próximo. Aqui, o cacto, planta-símbolo do sertão, a qual consegue sobreviver em condições precárias, graças à capacidade de armazenamento de água por longos períodos de seca, é abatido por um tufão, fenômeno natural cujos ventos, devido à grande força, gera muitos desastres. A leitura atenta dessa estrofe permite extrair uma série de contrastes decorrentes da queda do cacto, dentre eles: tradição / renovação, arcaísmo / modernismo, velho / novo, erudito / 7
LITERATURA
popular, campo / cidade. O último nos parece exemplar quando pensamos nas contradições que assolam o Brasil. Em certa medida, a imagem do cacto tombado na rua da cidade representa metonimicamente a maneira, muitas vezes “pejorativa” e “ultrapassada”, que muitos indivíduos de centros urbanos tecem sobre o sertão, região onde imperam um maior descaso e injustiças sociais. Se, por um lado, é sabido que muitas pessoas compartilham dessa imagem depreciativa; por outro, é impossível não perceber a força descomunal do cacto, mesmo já abatido. Valendo-se dessa metáfora, podemos afirmar que embora o cacto não encontre uma convivência harmoniosa na cidade, a sua capacidade de resistência é percebida e sentida. O ritmo e a normalidade do local, adaptado aos hábitos e costumes citadinos, seguramente sentiram-se incomodados com a presença daquele cacto caído na rua, atrapalhando o bom “andamento” da vida. Um aspecto curioso que existe nas imagens usadas para a construção do poema é a temática da destruição. Nas imagens retiradas da cultura clássica, tanto Laocoonte quanto Ugolino são “castigados” e padecem de forma dolorosa e angustiante por causa dos erros cometidos. O primeiro, por desrespeito ao deus Apolo, foi castigado. Logo, a tentativa de salvar os filhos da serpente enviada pelo deus foi em vão. Já Ugolino, inebriado pelo poder, foi traído por aqueles que considerava aliados e aprisionado, morreu de fome, junto com seus filhos e netos. Nesse caso, a punição foi feita pelos próprios homens que agem de forma impiedosa para conseguir domínio e fama. Nas palavras do próprio Bandeira, esses exemplos poderiam exprimir de forma pontual algumas das “feracidades excepcionais” feitas pelos homens. Em se tratando do cacto, foi preciso um agente natural e descomunal para a sua destruição. A violência do “tufão furibundo” foi tamanha que o arrancou pela raiz. Diante dessa força esmagadora, o cacto, mesmo com sua imperiosidade, não conseguiu resistir. Levando em consideração o ritmo de crescimento do país nas últimas décadas, assim como o abismo que separa o sertão (pobre, excluído, atrasado) das
grandes cidades, é possível resgatar a imagética do sertão, implícita no poema, na queda do cacto. Dessa forma, podemos admitir que seu abatimento simboliza, de certa forma, a problemática em torno de indivíduos provenientes de regiões do sertão que se descolam para os grandes centros urbanos em busca de uma condição melhor e precisam enfrentar, diariamente, obstáculos que muitas vezes privam-nos de uma vida digna, transformando-os em massas e contingentes sempre acossados e oprimidos socialmente. Muitos deles são “abatidos” e excluídos ao longo de sua breve existência. Isso parece corroborar a grande desigualdade que impera no país. Enfim, a última estrofe confirma o poder de síntese do poeta, já notado em versos anteriores. Com a conjugação criteriosa de três adjetivos: belo, áspero, intratável, Bandeira aponta não somente aspectos físicos da planta, mas também delineia características ideológicas. As definições de “belo” e “áspero” apontam, inicialmente, à descrição física do cacto. A aspereza se dá principalmente pela forma espinhosa que possui a planta. Não se pode, por exemplo, tocar em um cacto, como se fosse uma planta florida que apraz o olhar desde o primeiro contato, seja por sua delicadeza e fragilidade, seja por sua textura. Em contrapartida, o olhar apenas contempla um cacto de longe. Seus espinhos servem como uma camada de proteção. Ele parece estar sempre se resguardando. Contudo, a beleza atribuída aqui pelo sujeito lírico ao cacto extrapola o aspecto físico. Levando em consideração à estética modernista – Manuel Bandeira esteve à frente de outros poetas que introduziram o movimento modernismo no Brasil – temas considerados não estéticos pela tradição literária passaram a figurar nos poemas, transformando-se em eixo central. Parece ser o caso do poema em questão. A beleza do cacto está associada a ações contrárias à sua sobrevivência, como o tufão violento que o destrói ou ainda às imagens angustiantes associadas a ele no início do poema, já que todas denotam morte, privação e destruição. O último adjetivo “intratável” parece ligarse mais ao plano ideológico. A característica 8
LITERATURA
principal de um ser intratável é a incapacidade de lidar com o meio em que está inserido ou com as pessoas que precisa conviver, ou seja, ele está sempre relutando, esquivando-se de contato. No caso específico, o cacto estava plantado em um local onde não “deveria”. Ele é um intruso na cidade. Deve-se a esse atributo, o transtorno que causa com sua queda. Aqui reside mais um ponto em comum com as obras artísticas aludidas no começo do poema. Os personagens, Ugolino e Laocoonte, agiram de forma intratável com o meio do qual faziam parte. A solução para as atitudes indesejadas deles foi a privação, em seguida, a morte. Enfim, a beleza do cacto não se opõe ao seu aspecto intratável e áspero, mas se complementam.
Bibliografia Bandeira, Manuel. 50 poemas escolhidos pelo autor. SP: Cosac Naify, 2006. Sites consultados http://www.stelle.com.br/pt/inferno/notas_33.h tml. Acesso em 19/12/2016 https://almaacreana.blogspot.com.br/2013/06/l aocoonte-ou-sobre-as-fronteiras-da.html. Acesso em 10/01/2017 https://omundodasnuvens.wordpress.com/2015 /11/30/laocoonte-e-seus-filhos-por-victoriakubale-o-mito-sobre-o-mito/. Acesso em 28/01/2017. ____________________ Phabulo Mendes possui graduação e mestrado em Letras pela Universidade de São Paulo. Em 2013, ingressou na graduação em Artes Visuais na UNESP. Atualmente, além da graduação, também faz seu doutorado na mesma instituição.
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LITERATURA
Visualidades do sertão: aproximações da arte com a literatura Luana do Amaral Silva
Introdução Neste ensaio, proponho ao leitor algumas considerações sobre a obra “Os Retirantes”, a partir das aproximações de seus elementos estéticos com os livros “O quinze” de Rachel de Queiroz e “Vidas Secas” de Graciliano Ramos. Antes de partir para a leitura e interpretação da obra, farei um breve relato da literatura escolhida. Rachel de Queiroz tinha apenas 22 anos quando escreveu “O Quinze”. Na época, a escritora foi considerada um gênio da literatura, devido a sua pouca idade. Escrito em 1930, o livro evoca a terrível seca do Ceará de 1915, da qual a sua própria família foi obrigada a fugir. “O quinze” é um romance regionalista de temática social que vai mostrar a saga de uma família de retirantes que tenta chegar a capital e durante a caminhada perdem dois filhos de maneira trágica, encontrando desgraça e morte por toda parte. Revela também a história de amor entre Vicente e Conceição, cuja falta de comunicação entre os dois devido ao desnível cultural que os separa, constituem ingredientes amargos para um desfecho infeliz: a seca, responsável por tantos infortúnios, é a causadora da impossibilidade de ser feliz para quem tem consciência da miséria no sertão. Graciliano Ramos escreveu “Vidas Secas” em 1938, livro também considerado um clássico da literatura. O escritor faz parte da segunda geração do Modernismo Brasileiro, chamado Neorrealismo Regionalista Nordestino. Essa geração desenvolveu uma literatura engajada que denunciava os problemas sociais e políticos do Brasil. “Vidas Secas” revela uma família de retirantes nordestinos que fogem da seca. Essa família é composta por Fabiano, sua esposa Sinha Vitória, o Filho-mais-novo, o Filho-mais-velho e a cachorra Baleia. O espaço da trama é o sertão nordestino, onde vemos a luta do homem pela sobrevivência num meio hostil.
O livro foi escrito em 13 capítulos justapostos, sem que haja uma relação causal evidente entre eles. Possui apenas um tênue fio narrativo que vai ligar os capítulos, que é o sofrimento pelo qual seus personagens passam privados dos seus direitos básicos da vida. Essa fragmentação vai expressar o isolamento e a solidão dessas personagens excluídas socialmente. A pintura A obra “Os Retirantes” do pintor Cândido Portinari data de 1944 e faz parte do acervo do MASP. Foi produzida em óleo sobre tela, tem como dimensões 190 cm x 180 cm. Como inspiração para esta obra, Portinari se referia a sua infância: assistia da janela de sua casa em Brodowsky, no interior de São Paulo, as idas e vindas de famílias nordestinas, sempre muito sofridas em busca de trabalho. Ele relatava que vinham para as fazendas de café famílias inteiras em estado de grande miséria. O próprio pintor era filho de imigrantes italianos de origem muito humilde, morava em uma fazenda de café, e recebeu apenas instrução primária. O ser-migrante pode ter favorecido de alguma maneira a escolha do tema que Portinari levou por toda a vida, uma vez que esta memória de infância era recorrente. O contexto histórico no qual o Brasil vivia era a Era Vargas, caracterizada por movimentos operários, revoluções, rebeliões e golpes de Estado. Na descrição da obra, percebemos nove personagens flagelados da seca, sendo duas mulheres, um homem maduro e outro idoso, além de cinco crianças. Uma das crianças está com o sexo exposto, e outra está totalmente nua. O personagem idoso que está atrás da mulher encontra-se com o dorso nu, cabelos barba hirsuta, e segura um cajado: seu único olho aberto, triste, se faz distante. A mulher à sua frente, que segura a criança nua e esquelética, tipicamente a sustenta pela anca1: seu olhar 10
LITERATURA
Os Retirantes, 1944. Candido Portinari Acervo MASP Digital - http://masp.art.br/masp2010/acervo_detalheobra.php?id=438 (acessado em 30/12/2016)
distante, também transmite tristeza e solidão, que é marcada pela fragilidade de sua fisionomia. Podemos perceber um pequeno raio de cor presente na veste desta mulher, que usa uma saia com o tom rosa/avermelhado. Ela, mesmo frágil em sua condição social, possui algum vigor físico, maior do que seu suposto marido. Na outra família, percebemos uma mulher mais jovem, com cabelos longos e negros, seu olhar é triste, cansado e sua face transmite uma grande carga expressiva que retrata seu sofrimento. Esta mulher está segurando com seu braço esquerdo sobre a cabeça uma trouxa branca que certamente contém roupas. No braço direito apoia um bebê. Ao seu lado está provavelmente o seu marido, com um chapéu na cabeça, segurando a mão de uma criança que também está usando um chapéu. Com a outra mão o pai
das crianças está segurando um pequeno pedaço de pau, com uma trouxa de roupas na sua ponta, que está apoiada sob seu ombro esquerdo. E ao lado do pai se encontram duas crianças, sendo a de trás provavelmente a mais velha por ser a mais alta dentre eles e a criança da frente do sexo masculino, pois está seminua e sua genitália está à mostra. Esta mesma criança apresenta um abdome bastante avantajado, o que pode ter sido proposital pelo artista ao querer mostrar que no período da produção da obra, o país enfrentava sérios problemas com as questões de saneamento básico e tratamento da água, o que fazia com que grande parte da população fosse atingida pela esquistossomose. No céu azul, percebemos uma grande quantidade de pássaros pretos, retratados certamente com a finalidade de representação da 11
LITERATURA
morte, lembrados pela presença dos urubus, que no sertão aguardam sorrateiramente a hora de se aproveitarem daqueles que estão moribundos na caatinga. Vemos também uma alusão alegórica à morte no encontro de uma destas aves com o cajado do personagem mais velho da composição, formando a conhecida foice que representa a presença “daquela que ceifa a vida”. Na linha do horizonte percebemos uma luminosidade presente, como um amanhecer, diferenciando-se de toda a cena que é predominantemente escura. E ainda no lado superior direito percebemos a lua retratada num tom de cinza escuro, o que a faz quase se confundir com o céu. Do lado oposto, vemos três estrelas sobre a cabeça do idoso. No canto inferior esquerdo, vemos algumas montanhas bastante distantes, e quatro “montinhos” de terra, provavelmente retratando os que já partiram. Sob o chão que os personagens estão, podemos ver além de seus pés descalços ou com pedaços de alparcatas que sobraram da caminhada, grande quantidade de pedras e também uma parte de uma ossada animal, que pela sua constituição e forma, percebemos que é uma parte de fêmur, osso da perna que sustenta o corpo, e está retratado numa cor bastante clara, quase num tom de branco. Na composição geral da cena, temos um embate entre o sagrado e o profano: o sagrado com a figura da família, e o profano, com a morte que se mostra mais pesada num cenário de sofrimentos. Percebemos claramente o ciclo da vida que se inicia com uma criança nesta cena, e finda na figura cadavérica do personagem mais idoso da pintura.
cansados e famintos. Ordinariamente andavam pouco, mas como haviam repousado bastante na areia do rio seco, a viagem progredira bem três léguas.” (RAMOS, 2006. pg.02) A respeito da mulher com a trouxa na cabeça na pintura, e a outra com o filho pendurado em seu quadril, o parágrafo que segue nos revela a semelhança da literatura com a arte: “Sinha Vitória com o filho mais novo escanchado no quarto e o baú de folha na cabeça...” (RAMOS, 2006, pg.27)
Sobre figura do vaqueiro, não percebemos semelhanças, mas sim diferenças, o homem com os seus objetos típicos como o chapéu e a roupa de couro, espingarda e cinturão, estão presentes na literatura, mas não na pintura de Portinari, onde este homem parece derrotado e desistente do ofício de vaqueiro: “Fabiano sombrio, cambaio3, o aió4 a tiracolo, a cuia pendurada numa correia presa ao cinturão, a espingarda de pederneira no ombro.” (RAMOS, 2006, pg.02) Uma das passagens mais recorrentes e intrigantes tanto na literatura como na pintura de Portinari, é a presença maléfica dos urubus, prenunciando a morte e a ruína dos (sobre) viventes do sertão: “O vôo negro dos urubus fazia círculos altos em redor de bichos moribundos.” (RAMOS, 2006. pg. 03) “Pensou nos urubus, nas ossadas, coçou a barba ruiva e suja, irresoluto, examinou os arredores.” (RAMOS, 2006. pg. 03) “Trepou-se no mourão do canto, examinou a catinga, onde avultavam as ossadas e o negrume dos urubus.” (RAMOS, 2006. pg. 04)
Algumas conexões da arte com a literatura “Interessou-se pelo voo dos urubus. Debaixo dos couros, Da obra “Vidas Secas” de Graciliano Fabiano andava banzeiro, pesado, direitinho um urubu.” Ramos, podemos comparar a pintura “Os (RAMOS, 2006. pg. 24)
Retirantes” com os trechos que seguem. Sobre a composição de uma maneira geral, “O que indignava Fabiano era o costume que os miseráveis podemos visualizar neste parágrafo os tinham de atirar bicadas aos olhos de criaturas que já não se personagens magros, rostos infelizes, pés podiam defender.” (RAMOS, 2006. pg.58) descalços sobre os seixos da vereda2: “– Tenho comido toicinho com mais cabelo, declarou Fabiano “Os infelizes tinham caminhado o dia inteiro, estavam desafiando o céu, os espinhos e os urubus.” (RAMOS, 2006.
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LITERATURA pg.59)
“No céu azul as últimas arribações tinham desaparecido. Pouco a pouco os bichos se finavam, devorados pelo Sobre pássaros migratórios que fogem da carrapato. E Fabiano resistia, pedindo a Deus um seca do sertão, temos esta passagem na literatura, milagre.” (RAMOS, 2006. pg.54) que embora não apareça diretamente na pintura de Portinari, nos descreve uma cena de terror que “O que indignava Fabiano era o costume que os resulta ao final na situação em que se encontram miseráveis tinham de atirar bicadas aos olhos de criaturas os personagens da pintura: que já não se podiam defender. Ergueu-se, assustado, como se os bichos tivessem descido do céu azul e andassem ali “O mulungu do bebedouro cobria-se de arribações. Mau perto, num vôo baixo, fazendo curvas cada vez menores sinal, provavelmente o sertão ia pegar fogo. Vinham em em torno do seu corpo, de Sinha Vitória e dos meninos.” bandos, arranchavam-se nas árvores da beira do rio, (RAMOS, 2006. pg.58) descansavam, bebiam e, como em redor não havia comida, seguiam viagem para o sul. O casal agoniado sonhava Finalmente, sobre o momento da desgraças. O sol chupava os poços, e aquelas migração para o sul representada na pintura de excomungadas levavam o resto da água, queriam matar o Portinari advinda de suas lembranças de infância, gado.” (RAMOS, 2006. pg.50) temos este trecho na literatura de Graciliano Ramos: A respeito da tradição e o uso ou não de sapatos, tanto a pintura como a literatura nos “Que iriam fazer? Retardaram-se temerosos. revelam a alpercata5: Chegariam a uma terra desconhecida e civilizada, ficariam presos nela. E o sertão continuaria a “As botinas e o colarinho eram indispensáveis. Não poderia mandar gente para lá. O sertão mandaria para a assistir à novena calçado em alpercatas, a camisa de algodão cidade homens fortes, brutos, como Fabiano, aberta, mostrando o peito cabeludo. Seria desrespeito. Como Sinha Vitória, e os dois meninos.” (RAMOS, tinha religião, entrava na igreja uma vez por ano. E sempre 2006. pg. 59) vira, desde que se entendera, roupas de festa assim: calça e paletó engomados, batinas de elástico, chapéu de baeta, Da obra “O quinze” de Rachel de colarinho e gravata. Nãose arriscaria a prejudicar a tradição, Queiroz, podemos fazer conexões com a pintura embora sofresse com ela. Supunha cumprir um dever, tentava “Os Retirantes” nos seguintes trechos: aprumar-se. Mas a disposição esmorecia: o espinhaço vergava, Sobre o sofrimento das pessoas durante a naturalmente, os braços mexiam-se desengonçados.” migração e o seu aspecto doentio e cadavérico, (RAMOS, 2006. pg.35)
principalmente das crianças, percebemos a conexão com os personagens da pintura com “E os pés dele esmoreciam, as alpercatas calavam-se na estes trechos da literatura: escuridão. Seria necessário largar tudo? As alpercatas chiavam de novo no caminho coberto de seixos.” “A criança era só osso e pele: o relevo do ventre inchado (RAMOS, 2006. pg.54) formava quase um aleijão naquela magreza, esticando o couro seco de defunto, empretecido e malcheiroso.” (QUEIROZ, iconografia 2016. pg. 24)
Ao contrário do que a ocidental nos traz como significado da cor azul (paz, calma, bondade, o manto da virgem), o azul “Depois, ficando só com Chico Bento, atentou na miséria na cultura do sertão tanto na literatura quanto na esquelética e esfarrapada do retirante: pintura de Portinari nos revelam a desesperança e - Então, compadre, que foi isso? A velha largou você? o prenúncio da morte iminente: - Ela não quis tratar do gado mode a seca, e mandou abrir as porteiras... E eu fiquei sem ter o que fazer. A “(Fabiano) viu as nuvens que se desmanchavam no céu morrer de fome lá, antes andando...” (QUEIROZ, azul, embirrou com elas.” (RAMOS, 2006. pg.24) 13
LITERATURA
2016. pg. 38)
“A luz lhes dava gradações estranhas, desde o cinzento metálico, e um azul da cor do céu, e o outro azul de violeta“O sol poente se refletia vermelho nos trapos imundos e pálido, até ao negro do lodo que escorria em grandes listas, nos corpos descarnados.” (QUEIROZ, 2016. pg. 50) sumindo-se nas anfractuosidades, chama lotando as ásperas paredes a pique.” (QUEIROZ, 2016. pg.41)
“...uma rapariga magra, suja, esfarrapada – um dos eternos fantasmas da seca - apertava ao colo um embrulho “E mais baixo, os olhos perdidos num recorte de serra, que vagia e choramingava baixinho.” (QUEIROZ, que aparecia através da janela, azul e longínquo.” 2016. pg.64) (QUEIROZ, 2016. pg.63)
“A rapariga (...) aconchegando ao peito o seu embrulho “Um homem de mescla azul vinha para eles em grandes vivente, a silhueta vivamente destacada na luz crua do passadas.” (QUEIROZ, 2016. pg.29) meio-dia, aparecendo-lhe as pernas finas através da saia rala.” (QUEIROZ, 2016. pg. 65) “De fato, a letrinha desenhada da prima encomendava cinco metros de cambraia azul-clara, com carocinhos brancos: ”dou esse trabalho a você porque Vicente é muito Sobre os urubus, figura recorrente e capaz de trazer madapolão por cambraia...” temida no sertão, que surge tanto na obra de (QUEIROZ, 2016. pg.33) Portinari como em vários trechos da literatura de Rachel de Queiroz: E saiu depressa, segurando as pregas da sua saia de lã azul, em direção ao local da distribuição; atrás dela Chico “- De que morreu essa novilha, se não é da minha conta? Bento arrastava os pés, curvado, trêmulo, com a lata na Um dos homens levantou-se, com a faca escorrendo sangue, mão estendida, habituado já ao gesto, esperando a esmola. as mãos tintas de vermelho, um fartum sangrento (QUEIROZ, 2016. pg.41) envolvendo-o todo: - De mal-dos-chifres. Nós já achamos ela doente. E vamos Em dois minutos voltou, com uma saia de pano azul aproveitar, mode não dar para os urubus.” (QUEIROZ, muito comprida, e um chapelão de palha na cabeça. 2016. pg. 16) (QUEIROZ, 2016. pg.53) “Toda descarnada, formando um grande bloco sangrento, era uma festa para os urubus vê-la, lá de cima, lá da frieza O céu de Rachel de Queiroz aparece mesquinha das nuvens. E para comemorar o achado avermelhado, ou com a presença do sol, executavam no ar grandes rondas festivas, negrejando as asas contrastando com o céu azul de Portinari em “Os pretas em espirais descendentes.” (QUEIROZ, 2016. pg. 17)
Retirantes”, de 1944:
“Urubus riscavam, negrejando, o ar úmido de neblina, impregnado dum cheiro mau de sangue velho.” “Era madrugada. Passarinhos desafinados, no pé de turco (QUEIROZ, 2016. pg. 64) espinhento do terreiro, cantavam espaçadamente. A barra do dia foi avermelhando o céu. Os golinhas continuaram a cantar com mais força.” (QUEIROZ, 2016. pg.11) A cor azul na obra “O quinze” faz referência ao céu apenas uma vez, mas aparece Debaixo de um juazeiro grande, todo um bando de em vários trechos de descrição da serra ao longe retirantes se arranchara: uma velha, dois homens, uma e das vestimentas dos personagens mais mulher nova, algumas crianças. O sol, no céu, marcava abastados, os fazendeiros e sua família, se onze horas. (QUEIROZ, 2016. pg.16) distanciando dos sertanejos flagelados da pintura de Portinari: 14
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Sobre o ser vaqueiro e suas vestimentas de Bibliografia couro, a literatura demonstra o momento que Chico Bento precisou vendê-las para conseguir CUNHA, E. Os Sertões. São Paulo: Editora Três, dinheiro para ir embora, na pintura o vaqueiro já 1984. (Biblioteca do Estudante/ versão digital). aparece sem elas. DEBS, S. Os mitos do sertão: emergência de uma “Um boiote, uma vaca solteira e um garrote. Tem mais a identidade nacional - cinema e literatura no Brasil. minha roupa de couro que eu queria que o compadre Fortaleza, Interarte/APCNN, 2007. ficasse com ela. É toda de couro de capoeiro, sem um rasgo que seja...” (QUEIROZ, 2016, pg. 09) DRUMOND, J. N. Ecos do sertão: sertões vozes do árido, do semiárido e das veredas. SP: Opção, 2012. Considerações finais Não pretendemos aqui esgotar as conexões entre a obra “Os Retirantes” de 1944 com a literatura apresentada, mas indicar alguns caminhos de leitura desta obra. Acreditamos que Cândido Portinari provavelmente leu “Vidas Secas” e “O quinze”, e que podemos considerar suas pinturas não como simples releituras destas obras, mas como diálogo criativo entre elas. A genialidade dos três artistas faz com que nenhum dos trabalhos fique diminuído diante das aproximações e distanciamentos estéticos e temáticos realizados neste artigo. Neste sentido, consideramos importante a discussão sobre os aspectos da visualidade do sertão que surgem na arte e na literatura, por se tratar um campo fecundo para discussões estéticas.
NASCIMENTO, J. L. Os sertões de Euclides da Cunha: Releituras e Diálogos. São Paulo: Editora da UNESP, 2002. PELLEGRINI, T. JOHNSON, R. XAVIER, I. GUIMARAES, H. AGUIAR, F. Literatura, cinema e televisão. São Paulo: SENAC SP / Itaú cultural, 2003. RAMOS, G. Vidas Secas. São Paulo: Record, 2006. (Biblioteca do Estudante/ versão digital). QUEIROZ, R. O Quinze. São Paulo: Record, 2016. ____________________
Luana do Amaral Silva é doutoranda em Artes, professora e artista plástica. Representante no Conselho de Pós-Graduação no Instituto de Artes da UNESP. Membro Integrante dos 1 Anca: Região lateral do corpo humano, da cintura à Grupos de Pesquisa: LABIDIC - Laboratório de articulação da coxa. Quadril. Pesquisa em Identidade e Diversidade Cultural e GIIP - Grupo Internacional e Interinstitucional 2 Vereda: rio seco. em Convergências entre Arte, Ciência e Tecnologia. Compõe o corpo editorial da Revista 3 Cambaio: que ou quem tem pernas tortas; fig. diz-se de Palau como editora de literatura desde 2016. ou indivíduo que tem as pernas fracas, que tem dificuldade em andar ou manter-se de pé; trôpego. 4 Aió: bolsa de caça trançada com fibras de caroá. 5 Alpercata: sandália que se prende ao pé por tiras de couro ou de pano.
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O Irreverso: poética a partir de reminiscência, esquecimento e impedimento, entre João Guimarães Rosa e Willian Kentridge Lucas Gorzynski
“Então todos os filmes que estamos vendo nesta noite foram feitos sem script ou storyboard, então há grandes partes de inconsistência e incoerência e partes onde se requer enorme generosidade da parte de vocês, os espectadores, para fazer sentido narrativo e para tentar retroativamente criar um script ou storyboard para os filmes” (William Kentridge, Journey to the moon – drawings for projection) Não podendo, no breve espaço de que dispõe um artigo em revista, realizar uma aproximação mais espessa entre as obras de dois expoentes exemplares de seus ofícios respectivos, o escritor brasileiro João Guimarães Rosa (19081967) e o artista contemporâneo sul-africano William Kentridge (1955-), me deterei na tarefa de enunciar alguns pontos de contato promissores - pois inquietantes - que se deram a minha percepção. Penso haver uma série de pontos nos quais poderia dizer que suas produções conversam entre si. Aqui selecionei Nenhum, Nenhuma, conto do brasileiro e os processos pelos quais o sul-africano realiza as animações de sua série Drawings for Projection (1989-2011). Parto da maneira como cada um trata a matéria de seu fazer - a memória e seu relato na narrativa de Rosa; o carvão, o papel e a percepção visual nas animações de Kentridge - e destaco temas de interesse para os trabalhos Primeiramente respondo a um questionamento - mais que razoável - que a escolha dos trabalhos a serem aproximados há de suscitar em tantos: do haver ou não propriedade em que sujeitos de épocas, lugares, práticas e idiomas tão distantes possam ter suas obras afinadas, ao que digo que não há propriedade nessa aproximação que também não exista em qualquer outra possível e que, se se justifica é como precedente para que coisas de tal ou maior distância possam cada vez mais e com menos
receio, serem aproximadas, já mesmo porque a propriedade é algo que atribuímos e destituímos, como às aproximações fazemos e desfazemos, com ou sem motivos; Pois bem, parto com um trecho da nota introdutória de Paulo Rónai, - com trechos do próprio Guimarães Rosa - do volume Primeiras Estórias, ao qual pertence o conto Nenhum, Nenhuma: Cada estória tem como núcleo um acontecimento. Mas o sentido atribuído a esse termo não é o que lhe dão comumente os dicionários, isto é, não é sinônimo de ocorrência. 'Parecia não acontecer coisa nenhuma', advertenos o contista certa vez; e em outra ocasião pondera, ainda mais explícito: "Quando nada acontece há um milagre que não estamos vendo'. (RÓNAI, 2001, p. 5) Na produção de Kentridge em geral há uma tendência à tentativa de impedimento da continuidade de nossas formas automatizadas de perceber o mundo, que nos impedem de ver tais milagres. Em suas palestras, o artista atribui tal condição de nossso olhar à excessiva confiança que depositamos na racionalidade (KENTRIDGE, 2012b) e chega mesmo a apresentar exemplos de sua própria percepção desse tipo de milagre, quando fala sobre sua experiência em um eclipse solar em Joanesburgo e comenta - auxiliado por um pequeno cavalo composto por pequenos pedaços de papel rasgado - que o fenômeno da percepção está repleto de acontecimentos que nos passam desapercebidos (KENTRIDGE, 2012). O próprio artista descreve seu processo de animação da seguinte maneira: Os filmes que vocês verão daqui em diante são feitos de maneira muito simples com uma folha de papel sobre a parede. Há uma câmera no meio do atelier; um desenho é feito sobre o papel e filmado por um par de frames. Ando de volta ao desenho e então apago e os altero levemente e 16
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filmo novamente. E então o filme evolui como essa caminhada entre o papel e a câmera, na esperança de que em algum lugar no meio dessa caminhada alguma ideia irá emergir. (KENTRIDGE, 2004, p. 6. Tradução nossa.) Além disso, permeado por 'um milagre que não estamos vendo', é também um dos regimes de percepção do mundo que podemos perceber no processo de animação de Kentridge. Para cada segundo de animação, de doze a vinte e quatro desenhos, cerca de mil para cada plano de câmera, feitos um sobre o outro, na mesma folha de papel. Assim, cada desenho que permanece ao final do processo contém mais de mil outros que estiveram no mesmo suporte e que 'não estamos vendo', de cuja existência a sequência animada em si é o mais próximo que pode haver de um registro. Ao mesmo tempo, é exemplo gritante de como cada desenho não é fim, pois a cada registro fotográfico há um desenho final, que constará na animação, no entanto o processo de Kentridge depõe a favor de que sempre é possível continuar um desenho, mesmo que já pudesse ser aceito como terminado. Nosso pensamento voltado a finalidades é colocado em cheque ainda por outro ângulo, visto que, na animação, a configuração final do desenho, que recebeu mais atenção que cada uma das mil anteriores, não se faz, de modo algum, necessariamente superior às outras; cada configuração recebe a mesma importância, ocupa a mesma fração de tempo no produto dito 'final'. O que há nisso é uma reversão da ideia de finalidade, do 'mais bem-acabado'. Falando sumariamente, outro ponto que pode ser apontado como 'o milagre que não estamos vendo', nas animações de Kentridge, são os meses de trabalho do artista na realização e registro fotográfico dos desenhos, condensados em poucos minutos de animação e as milhares de configuracões das dez ou doze folhas de papel nesses meses, conformadas a uma cada. Ter isso em mente pode nos acender um interesse para como cada coisa atual - um desenho, uma pintura, um livro, uma pessoa - resulta de um número incontável de anteriores configuracões de si.
Se o quadro final de cada plano da animação é exposto - não há como questionar - é primeiramente porque os demais não poderiam sê-lo; não dispomos de maneiras para acessar no presente as configurações anteriores dos objetos (artísticos ou não) constituídos pela grande maioria das materialidades, sendo a exceção a tal regra exclusividade quase total dos 'objetos' digitais e da escrita. Isso é particularmente relevante com relação ao conto de Guimarães Rosa, que se desenvolve justamente na tentativa de acessar uma configuração anterior - praticamente inalcançável -, menos nebulosa das memórias a respeito do acontecimento distante; É a pessoa atual procurando, ter acesso a sua configuração como criança na casa de fazenda, tarefa extensa e dolorosa, como vemos no conto: “[...] muito lento, o difícil clarão reminiscente, ao termo talvez de longuíssima viagem, vindo ferir-lhe a consciência.” (GUIMARÃES ROSA, 2001, p. 62), o que, de obstrução, se torna ponto de interesse, pois os impedimentos e dificuldades de tal tentativa são revertidos em pontos fundamentais do conto, explorando toda uma gama de variações de possibilidades de uso da linguagem, nesse caso concentrada no 'menos bem-acabado' (a memória em ruínas, as vagueações do relembrar, no caso), assim como Kentridge articula uma série de impedimentos e dificuldades em suas animações, a forma de registro em video analógico e o grande número de desenhos sobre uma única folha de papel sendo apenas dois exemplos. Essa lógica de valorização dos acontecimentos, das perturações, da imprevisibilidade e da irracionalidade, chamada por Kentridge de Fortuna em sua produção (TONE, 2012, p. ) é profunda também na poética de Guimarães Rosa: Os protagonistas de Primeiras estórias farejam esses acontecimentos, adivinham esses milagres, são todos, em grau menor ou maior, videntes: entregues a uma ideia fixa, obnubilados por uma paixão, intocados pela civilização, guiados pelo instinto, inadaptados ou ainda não integrados na sociedade ou rejeitados por ela, pouco se lhes dá do real e da ordem. Neles, a intuição e o devaneio substituem o 17
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Fragmento de Journey to the moon, de William Kentridge http://www.hilliardmuseum.org/exhibits/william-kentridge-journey-to-the-moon
raciocínio, as palavras ecoam mais fundo, os gestos e os atos mais simples se transubstanciam em símbolos. O que existe dilui-se, desintegra-se; o que não há toma forma e passa a agir. Essa vitória do irracional sobre o racional constitui-se em fonte permanente de poesia. (RÓNAI, 2001, p. 5-6)
analógico, agora como etapa do processo, desenhos quase perfeitamente concebíveis como as matrizes a partir das quais o trabalho será gravado, tendo seu valor devido entao à relação que possuem com o produto final do processo, o 'trabalho pronto'? Pois já adianto que não pode haver Para o sul-africano tal vitória também é resposta simples e racional a esta questão, ou fonte potente. Nas palestras acima referidas, melhor, quase certamente deve existir quem também Kentridge afirma suas precauções com possa cunhá-la, mas acredito ser melhor que não relação à racionalidade e destaca sua intenção se faça, pois se aqui faço o mal de propor (como autoproclamado artista da ilusão) em respostas a algumas das ricas incertezas dos promover também a ilusão como forma de trabalhos do artista ou do conto do escritor, pelo conhecimento (KENTRIDGE, 2012). menos deixo outras obstruções. O racional e o irracional também se Para finalizar, após comentar aspectos confundem nas animações de Kentridge gerais do conto de Guimarães Rosa, me deterei desenvolvidas de tal maneira: por acaso não brevemente em um trecho do conto em si: "[...] podemos dizer que os registros fotográficos dos passaram-se e passam-se, na retentiva da gente, desenhos (estes últimos, portanto, na condição de írreversos grandes fatos — reflexos, relâmpagos, objetos de arte e os primeiros na condição - lampejos — pesados em obscuridade." plenamente funcional, documental - de coisa (GUIMARÃES ROSA, 2001, p. 62) obtida a partir de repetição praticamente Digo que, como percebo, passaram-se no industrial) são o que constituirá as animações, mundo exterior percebido, assim como passam-se projetadas digitalmente e reprodutíveis, trabalhos ,a todo o tempo, justamente na retentiva da gente mais reconhecidos do artista? E não têm, então, (também percebida, mesmo que de maneira os desenhos, cada um deles único e insubstituível, distinta), na memória, - passam-se pois não penso seus papéis invertidos com os registros em filme que algo efetivamente permaneça inalterado na 18
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memória, que esse mundo de cruzamentos entre imagens de agora e de outrora é um arquivo higienicamente organizado, ou seja, “Como vivi e mudei, o passado mudou também” (Ibid., p. 66). Pois bem, passaram-se e passam-se, na retentiva da gente, írreversos grandes fatos: o fato marcante, cuja percepção é irreversível, assim como seu registro, retido (mas nunca fiel ou estável) e a sedimentação deste nos estratos da memória. Pesados, em obscuridade, constantemente pesados nas dinâmicas da imprevisível economia psíquica, uma memória pesada em comparação a outra, uma memória, em relação à lembrança de outra configuração mais antiga, uma memória da memória - de lembrança do mesmo fato, tudo isso em relação a qualquer outra configuração - anterior - da folha de papel desenhada. Referências
RÓNAI, Paulo. Os vastos espaços. In: GUIMARÃES ROSA, J. Primeiras Estórias. Nota introdutória à publicação. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001. TONE, Lilian. William Kentridge: Fortuna (tr. J. R. Siqueira e R. Mantovani). São Paulo: Pinacoteca do Estado, 2012. Lucas Gorzynski Artista e pesquisador, com pesquisa na área de crítica de arte. É mestrando em Abordagens Teóricas, Históricas e Culturais da Arte, pelo PPGA - IA/UNESP sob orientação do Prof. Dr. José Leonardo do Nascimento, com bolsa CAPES DS. Integrante dos grupos de pesquisa LABiDIC (Laboratório Internacional de Pesquisa em Diversidade e Identidade Cultural) e GIIP, ambos do IA/UNESP.
GUIMARÃES ROSA, João. Nenhum, Nenhuma. In: Primeiras Estórias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001. KENTRIDGE, William. Journey to the moon – drawings for projection. Johannesburg: Art Logic, and Milan: Change Performing Arts, 2004. ______. Lesson 1 - In Praise of Shadows. Em: Six Drawing Lessons. Palestra de William Kentridge como professor visitante na Universidade de Harvard (71 min). 2012. Disponível em: <http://media.fas.harvard.edu/FAS/humanities_ center/norton/kentridge/praise-ofshadows.m4v>. Acesso em 12 de abril de 2017. ____. Lesson 2 - A Brief History of Colonial Revolts. Em: Six Drawing Lessons. Palestra de William Kentridge como professor visitante na Universidade de Harvard (74 min). 2012. Disponível em: http://media.fas.harvard.edu/FAS/humanities_c enter/norton/kentridge/colonial-revolts.m4v. Acesso em 17 de maio de 2017. 19
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Diadorim e o feminino ocultado em Grande Sertão: Veredas – o reconhecimento de gênero no espaço do cangaço Rosângela Canassa O presente artigo Diadorim e o feminino ocultado em Grande Sertão: Veredas – o reconhecimento de gênero no espaço do cangaço visa à leitura e a análise da obra ficcional do Autor e da personagem Diadorim, cujo foco é a problemática do feminino ocultado, a qual está inserida numa cultura patriarcal e falocêntrica no universo sertanejo. O cangaceiro Riobaldo e sua figura traz em sua subjetividade, a busca de um traço de identidade e representatividade, no espaço sertanejo. Nota-se que a criação literária é realizada a partir do imaginário de suas personagens, portanto, o sertão é um espaço metafórico da luta entre as forças do bem e do mal, inseridas no universo ficcional, que transforma um cangaceiro em herói medieval. A história da amizade com Reinaldo/Diadorim, eles enfrentam as guerras, entre os bandos no sertão das “gerais”, ao mesmo tempo, em que lutam pela vingança contra Hermógenes, cujo jagunço assassinou o pai de Reinaldo. Já dizia a personagem Zé-bebelo: “pelo avesso que se chega ao direito”. (Candido, 2011, p. 125) A sua atração por Diadorim iniciou na adolescência, quando eles se encontraram num porto de um afluente do rio São Francisco, na ocasião em que Riobaldo pedia esmola para pagar uma promessa feita pela mãe. O cangaceiro se apaixona por esta mulherhomem, cujo amor será proibido. O herói desconhece o seu segredo de ser mulher e a sua paixão o atordoa. A sua única pista é o seu codinome feminino: Diadorim. A personagem enigmática era reconhecida por Riobaldo como: “Diadorim representava essa alma incognoscível, fechada a sete chaves”. (Olea, 2006, p. 56) A personagem tem como característica sua vestimenta masculina, que serve para camuflar a sua verdadeira identidade entre os homens, bem como, ajuda-lo na sua proteção:
usar ou não uma roupa específica, uma cor, uma textura (...) de determinada vestimenta. (Barnard, 2003, p. 169) Ao lado disso, o sexo pode ser descrito como sendo uma coleção de diferenças físicas e biológicas, enquanto que o gênero é um fenômeno cultural, razão pela qual as roupas nem sempre servem para distinguir o gênero do indivíduo nesta obra. A guerreira e a sua figura ambígua, com as suas atitudes e gestos masculinos, apresentam-se de modo não titubeante na hora dos conflitos. Segundo Passos: O imperioso desejo de Diadorim recupera a velha ordem: da vingança de sangue, na trama ficcional; e a da “donzela guerreira”, na tradição literária, reiterando-a seja pelo papel de substituta do pai, seja pela carência de sangue que perpetua, literalmente, o “ódio de gente velha”. (Passos, 2000, p. 168)
A autora entende que o mal vai sobreporse à nova Lei, desembocando em mais um rito, propiciador de mudanças e afastando o mundo sertanejo prosaico, que leva Riobaldo a visualizar “o diabo na rua, no meio do redemoinho”. Assim, os fenômenos naturais, como o vento e o redemoinho, indicam sinais de potências misteriosas e inexplicáveis, aliando-se a uma consciência de fantasias, regulada pelo mundo do sagrado e do fantástico, traço principal deste personagem. A donzela guerreira e o seu corpo, envolto em roupas grossas e masculinas, tampa a sua carne e decreta a morte do corpo, anulando os seus desejos e a sua sexualidade, que se escondem na quietude do corpo intacto de uma virgem. Ademais, segundo o perfil histórico cabe à mulher a passividade e a doçura, segundo a lei do patriarcado, que fabrica modelos de mulheres para servir, as quais, em seu silêncio, permanecem quase que invisíveis. Portanto, a redução da mulher, apenas em seu A sua indumentária, enquanto se pode mudar o que uma corpo, pertence a uma cultura que não reconhece cultura considera como traje masculino ou feminino, as o feminino com a sua fragilidade, a sua força e distinções de sexo e de gênero podem ser feitas por meio do 20
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também a sua coragem. Em geral, tanto na literatura, nas artes e no cinema, na história de gênero, o feminino é sempre negativo. Segundo a pesquisadora norte-americana E. Ann Kaplan sobre o feminino, o patriarcado é o responsável pela mulher não ter lugar na sociedade aonde possa confirmar o seu feminino, na esfera pública e nem na vida privada. (Kaplan, 1995, p. 72) No desfecho da obra, e num momento apoteótico, a morte de Diadorim torna acessível ao jagunço a mulher-cadáver pela sua nudez, cuja imagem não está mais envolta em armas, mas numa luz que evoca o domínio do sagrado. A donzela vai subverter a ordem de gênero no universo dos homens com o seu corpo nu, que jaz na cama de pedra como uma máscara (seria outro travestimento que a morte exige?). Riobaldo é o duplo de Diadorim conforme explica Matos: Riobaldo também é o duplo e se espelha na duplicidade de Diadorim: é o ‘através de’ que funda o eixo da reflexão e o procedimento de espelhamento de representação da imagem do discurso. O que não se viu no momento da experiência, no momento da vivência, se evidencia como sentido através dessa fala de espelhos. (Matos, 2011, p. 71)
condenado de Riobaldo, que carrega o peso de um amor não correspondido. Por fim, a donzela guerreira, após a sua morte, transforma-se apenas em recordações nas memórias de um velho cangaceiro, que ao relatar sobre a sua infância e a breve carreira de professor de Zé Bebelo, até o momento da sua entrada no cangaço, ele não conhecia o amor. Referências Bibliográficas: 1. BARNARD, Malcolm. Moda e comunicação. Rio de Janeiro: Rocco, 2003. 2. CANDIDO, Antonio. A personagem de ficção. São Paulo: Perspectiva, 2011. 3. KAPLAN, E. Ann. A mulher e o cinema: os dois lados da câmera. Rio de Janeiro: Rocco, 1995. 4. OLEA, Héctor. O professor Riobaldo: um novo místico da poetagem. Cotia/SP: Ateliê Editorial: São Paulo: Oficina do Livro Rubens Borba de Moraes, 2006. 5. PASSOS, Cleusa R. Guimarães Rosa: do feminino e suas estórias. São Paulo: Hucitec/FAPESP, 2000. 6. ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006. ____________________
Riobaldo e Diadorim na adaptação do romance para a televisão.
Segundo o autor, Diadorim é o suporte do imaginário do cangaceiro e de seu contar, em várias passagens, compondo elos espetaculares dos “efeitos de sentido” para a existência do atormentado jagunço e que corresponde ao seu duplo. A personagem, mesmo encapsulada no seu corpo de homem, é também a ressonância de um amor
Rosângela Canassa é graduada em Psicologia Clínica (Universidade São Marcos), mestrado em Artes Visuais (Instituto de Artes – UNESP) e doutoranda na área de Educação, Artes e História da Cultura na Universidade Presbiteriana Mackenzie. Também é pesquisadora junto ao grupo de estudos do Laboratório de Pesquisa em Identidade e Diversidade Cultural do IA/UNESP.
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Vidas Secas e a materialidade no Sertão Fabia Giordano Guilherme Kadayan
Cena do filme Vidas Secas, de Nelson Pereira dos Santos
O filme “Vidas Secas” foi produzido em 1963, no sertão de Alagoas, nas cidades de Palmeiras dos Índios e Mirador Negrão. Baseado na obra de Graciliano Ramos, publicada em 193,8 pertencente à segunda fase modernista, com retrato regional. O estilo seco do escritor que se expressa por meio do uso econômico dos adjetivos e sem excessos retórico, é intuído pelo perspicaz cineasta Nelson Pereira dos Santos que consegue transmitir a aridez do ambiente e seus efeitos sobre as pessoas que ali estão e qualificar seu filme como um dos como um dos mais premiados em todos os tempos, sendo reconhecido inclusive como obra prima. Já no título encontramos um contrassenso: a palavra “vida” é indicativa de algo orgânico e “seca” algo que não tem vida, inorgânico. São palavras que se excluem mutuamente, reforçando a ideia das dificuldades da vida no sertão. A obra retrata a vida miserável de uma
família de retirantes sertanejos obrigada a se deslocar de tempos em tempos para áreas menos castigadas pela seca em busca de sobrevivência, sob um sol inclemente. Essa família é composta por Fabiano, que quase não fala e apresenta uma enorme dificuldade de socialização. É branco, porém, não sabe ler nem escrever, mas, sabia fazer a leitura das condições geográficas e sociais do contexto que vivia e necessários a sua sobrevivência ; Sinha Vitória, mulata esperta que sabia fazer conta com grãos; os dois meninos, sem nome; a cadela Baleia, personagem mais humana da obra e o papagaio que só latia, que seguem por uma vereda até chegarem a um casebre abandonado nas terras de um fazendeiro, onde se estabelecem. Mas, com a chegada das chuvas e a recuperação dos pastos, o proprietário retorna a sua propriedade com seu gado e manda Fabiano e sua família sairem. Fabiano se coloca a serviço do coronel como vaqueiro e conhecedor de outras atividades de fazenda e o coronel o aceita como 22
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empregado pagando-lhe muito pouco e em boi. A família de Fabiano, a principio, tem esperança de prosperar, mas ao final do primeiro ano de trabalho, percebe que apesar do incessante esforço, a miséria persiste e uma nova seca está prestes a assolar novamente o sertão. A narrativa é ambientada no sertão nordestino, não apresentando, na obra, nenhuma exuberância natural ou belas paisagens, ao contrário, apresenta uma geografia marcada pela luta do homem na busca da sobrevivência num meio hostil e inóspito. O filme apresenta três movimentos: a fuga, a permanência, e novamente a fuga, que juntamente com outros elementos materiais do filme, como a luz claustrofóbica, dá a impressão de uma situação sem saída. A esperança sertaneja floresce com o Inverno, nome dado à época de chuvas, surge o sonho de uma existência menos árida e miserável que se esboça no horizonte e dura até cessarem e a seca retornar implacável. No romance, essa esperança aparece no capítulo “Inverno”, em que Fabiano alimenta a expectativa de uma vida melhor, mais digna. O retorno à visão marcada pela falta de perspectivas recomeça com o fim das chuvas, fim da esperança também. O nomadismo esta ligado neste contexto às condições climáticas, sociais e políticas. No final do filme, um novo período de estiagem vai obrigá-los a outra migração, desta vez para o sul, posto que Fabiano e sua família não conseguem escapar das condições desumanas de existência sob o flagelo da seca, reeditado a cada migração a fome e a miséria. O filme é marcado pela supervalorização do tempo psicológico em detrimento do cronológico, dando a nítida impressão do distanciamento dos personagens de uma estrutura civilizada, evidenciando, concomitantemente, a angustia e a exclusão dos personagens. Na obra, pode-se apontar, também, para dois recortes espaciais: o ambiente rural e o urbano. A relevância desses recortes se deve às sensações de adequação ou inadequação dos personagens em um ou outro espaço. Fabiano consegue, apesar da miséria presente, dominar o ambiente rural. Incapaz de se comunicar, o
personagem, desempenhando a solitária função de vaqueiro, não sente tanto as consequências de seu laconismo. Além disso, conhece as técnicas de sua profissão, o que lhe dá uma sensação de utilidade e permite que goze até de certa dignidade. A leitura cinematográfica de Vidas Secas é fiel aos romances da década de 30, onde a geração de escritores deste período desenvolveu uma literatura engajada que denuncia a estrutura social e política brasileira e consequentemente, a desigualdade social, o atraso humano e desumanizador, a escravidão em moldes mais modernos trazida com a decadência dos engenhos de açúcar e o patriarcalismo latifundiário vigente. A divisão social do trabalho se coloca bastante evidente quando Sinhá Vitoria andava à frente da sua família, com o baú de folhas na cabeça, cuidando dos únicos pertences que possuíam, Fabiano, logo atrás, com a espingarda fazendo a proteção e seus dois filhos mais atrás ainda, em suas insignificâncias, cuidados apenas pela cadela Baleia, a mais humana das personagens, retratando a antropomorfização da mesma. O nome dado aos personagens pode ser interpretado como mais uma crítica de Graciliano Ramos. A palavra “sinhá” era o tratamento que as escravas e as serviçais utilizavam para suas senhoras, e também uma peculiaridade do brasileiro nordestino em contrair a expressão original de “Senhora”. Por analogia, podemos pensar na palavra “sina”, que pela supressão do único grafema que não tem nenhum valor fonético, o h, significa "a que crê no destino inevitável” e que se complementa ao nome “Vitória” que significa vencedor(a), e nesta história, a personagem nunca vencerá. O nome “Baleia” pode ser interpretado como a constante procura por água, sem nunca encontrá-la. O nome “Fabiano” é uma derivação do nome latino “Fabio / Fábia” que vem das favas, cujo significado é fartura. Contam que na Roma antiga os grãos de favas comestíveis eram usados como amuletos pelos romanos para dar boa sorte e trazer bonança. Os filhos não têm tinham nome, indicando a pouca importância que possuíam 23
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naquela estrutura social. “Soldado Amarelo” é apresentado na trama como símbolo de repressão, palidez, e covardia. “Tomaz da Bolandeira”, símbolo do saber, da humildade e da justiça. “Papagaio que não falava”, só latia, imitando a cachorra Baleia e que nos leva à reflexão sobre a escassez da comunicação entre os humanos e a forma rudimentar com que se apresenta, denunciando o processo de zoomorfização dos sertanejos. A representação da casa é a composição clássica do sertão: o casebre ao fundo, o pasto, o carro de boi, um pouco de água represada da chuva explicitada na poça barrenta, o rio seco e a mata nativa compondo a paisagem cênica. O sertanejo é apresentado no filme, arredio às pessoas, mas conhecedor dos sinais do sertão: Fabiano interpreta a natureza que lhe indica futuras privações e sofrimentos ou bonança com a chegada da chuva. O filme mostra objetos arcaicos para o dia a dia, como o pote de barro que coleta água, o manejo do couro para fabricação de roupas e calçados, o fogão de lenha, a cama de varas, o véu e o terço das mulheres, o baú de folhas, a espingarda, o embornal, as roupas de trapos, a cabaça, e a trouxa de pano. A representação material em ocasião de festa mostra objetos diferentes, ainda dentro da simplicidade sertaneja, como as roupas novas e sapatos de verniz, sombrinha, chapéu de palha ou as fantasias dos brincantes do Boi Bumbá com coroas brilhantes enfeitadas com fitas coloridas, espadas, trajes reais e estandartes. Na cidade, a simplicidade da construção das casas, o chão de terra e a ausência de um banco de praça onde a família pudesse se sentar, a figura do boi presente em todas as atividades do sertanejo. Os urubus espreitando o gado agonizante, os animais presentes no filme, a culinária possível, a forma com que se alimentam… Como elementos imateriais, temos a estrutura de poder do coronelismo e a servidão do povo representado por Fabiano tendo o seu salário roubado pelo fazendeiro, a submissão ao Estado na figura de Fabiano amedrontado junto ao Soldado Amarelo na caatinga, a fala monossilábica primitiva com grunhidos
animalescos de Fabiano que se considerava um animal, o papagaio que latia e foi consumido num momento de fome de Sinha Vitória, a luz estourada nas filmagens representando a situação claustrofóbica em que se encontrava a família, a passagem fácil do diálogo para a agressão que representa a violência velada do sertanejo, as festas e procissões religiosas, a maneira como a família se relacionava entre si e o tratamento dado aos filhos, os sons do sertão e o boi como fonte principal de subsistência do sertanejo… A presença do boi é muito forte, em oposição à cultura da elite, representada pelas lições de violino clássico da filha do coronel. No filme Fabiano aparece fabricando alpercatas de couro para o filho. As suas roupas de vaqueiro são de couro, o baú de folhas tem couro, a festa do boi-bumbá, com sua presença, o salário “em boi” que o vaqueiro recebe pelo trato do próprio gado, o cuidado que eles têm com o boi como alimento, vestuário e cultura. A festa do Bumba-meu-Boi é uma manifestação folclórica tradicional em que o povo simbolicamente divide o boi e o oferece as autoridades locais. Apesar da aparência festiva e descritiva, a festa parece assumir uma postura crítica trazida pelo autor, que denuncia a alienação do povo que oferta o boi, fruto do árduo trabalho, às autoridades locais ao invés de desafiar a opressão imposta pelos mesmos. Dificilmente uma pessoa passava de uma hierarquia para outra, nessa estrutura rígida e determinista, tendo como saída a morte ou a migração. A estrutura de poder é rígida e composta basicamente por dois grupos diferentes: o de Fabiano, sua família e os participantes da festa do boi (os sem poder) e o mundo lá fora que, por sua vez, se divide em quatro outros níveis que são o poder econômico (fazendeiro), o poder civil (prefeito), o poder militar (Soldado Amarelo) e a Igreja (poder religioso). No filme, o prefeito também é fazendeiro, portanto não perceptível claramente a distinção hierárquica e econômica/civil, presente no filme. A igreja e os militares pertenciam a uma hierarquia intermediaria subordinados ao prefeito e aos fazendeiros, desempenhando um poder 24
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opressivo pela omissão. No filme, Sinhá Vitoria se percebe sozinha, após a Missa, com a prisão de Fabiano, e senta-se na calçada em frente da Igreja, desconsoladamente. A presença do Estado é notada todo o tempo, legitimando o poder local e Fabiano reconhece a hierarquia existente, notadamente em uma passagem do filme, quando na caatinga, teve oportunidade de matar o soldado amarelo e não o fez, dizendo: “governo é governo…” Percebemos a utilização do português arcaico e a influência de outras culturas na região sertaneja, como, por exemplo, Sinha Vitoria dizendo “Via! via!” para os meninos irem embora ao momento da morte da cachorra Baleia ou, quando nos deparamos com o próprio nome dos personagens da história: Fabiano, Sinhá Vitória, ainda outros arcaísmos como as vestimentas bordadas com tachinhas, a religião católica e os rituais marcados pela presença de muitos “beatos” locais. Neste contexto, a terra determina o drama pelas condições da miséria social. Nestas circunstâncias geográficas, a única sociedade possível era a sertaneja. Assim, o drama não se resolve no local, e é lançado em ciclicidade, dando a sensação de movimento circular e portanto não se resolvendo o que exige que a família esteja inserida nesse movimento de migração, de tempos em tempos, à procura de uma saída . Assim, consideramos que os elementos da civilização material (ou cultura material) define o estado civilizacional sobre a cultura sertaneja.
PELLEGRINI, Tania. JOHNSON, Randal. XAVIER, Ismael. GUIMARAES, Helio. AGUIAR, Flavio. Literatura, cinema e televisão. São Paulo: SENAC SP / Itaú cultural, 2003. RAMOS, Graciliano. Vidas Secas. São Paulo: Record, 2006. Sites Consultados http://www.lettere.uniroma1.it/sites/default/file s/528/GRACILIANO-RAMOS-Vidassecaslivro-completo.pdf (acesso: novembro 2016) https://www.youtube.com/watch?v=UXlFjWqn NNg&t=4159s (acesso: outubro 2016) https://www.dicionariodenomesproprios.com.br /busca.php?q=fabiano (acesso: janeiro 2017) ____________________
Fabia Giordano Guilherme Kadayan possui graduação em Pedagogia (2004), e Direito (1999). Tem experiência na área de Educação, com ênfase em Ensino-Aprendizagem, Identidade e Cultura, na Prefeitura de SP, onde atua desde 1998. É pós-graduada em Arte e Educação e em Estética e História da Arte. Possui pósgraduações realizadas na PUC-SP: Direito Processual Civil, Direito das Relações de Consumo, Direito Administrativo e MackenzieSP: Direito Penal. Também é pesquisadora junto ao Laboratório de Estudos e Pesquisas em Referências Bibliográficas Identidade e Diversidade Cultural no IA/UNESP. É mestranda da UNESP, em Artes CUNHA, Euclides da. Os Sertões. São Paulo: Visuais. Três, 1984. (Biblioteca do Estudante/ versão digital). DEBS, Sylvie. Os mitos do sertão: emergência de uma identidade nacional - cinema e literatura no brasil. Fortaleza, Interarte/APCNN, 2007. DRUMOND, Josina Nunes. Ecos do sertão: sertões - vozes do árido, do semiárido e das veredas. SP: Opção, 2012. 25
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Macabéa: A Estrela do Sertão Thales Felipe Dantas Alves
Introdução A prática das adaptações ou o diálogo criativo, se pudermos assim dizer, entre o cinema e a literatura no Brasil, é sem dúvida algo consolidado como prática artística. Percebe-se que há, não só no Brasil como ao redor do mundo, uma sólida troca entre as linguagens cinematográfica e literária desde o surgimento da sétima arte. Porém no âmbito acadêmico parece que a discussão sobre a prática das adaptações ainda se mostra pouco aprofundada conforme coloca Genilda Azerêdo da Universidade federal de Pernambuco (UFPB) no Apêndice A do livro Uma Teoria da Adaptação, de Linda Hutcheon, traduzido por André Cechinel publicado pela editora UFSC em 2011.
interpretada pela atriz Marcélia Cartaxo, o papel de Olímpico de Jesus pelo ator José Dumont. O chefe de Macabéa no trabalho o Sr. Raimundo Corrêa foi interpretado pelo ator Humberto Magnani, e a personagem Glória pela atriz Tamara Taxman. A cartomante foi interpretada pela atriz Fernanda Montenegro.
Embora o fenômeno da adaptação, como gesto criativo amplo, seja também comum entre nós, há poucos estudos críticos organizados em livro que focalizam essa problemática em contexto brasileiro. Quando consideramos especificamente o fenômeno da adaptação fílmica, não é difícil constatar que ainda se trata, em certo sentido, de uma área marginal, seja dentro dos estudos literários, seja no âmbito dos estudos fílmicos. ( AZERÊDO 2011, p. 271) Sob este aspecto, o presente artigo se faz relevante por ampliar a discussão no meio acadêmico sobre o tema das adaptações no brasil, por tratar da obra de uma autora indiscutivelmente importante para a literatura moderna brasileira. Sobre tudo da literatura produzida pelas mulheres pois Clarice Lispector configura-se como uma autora de extrema relevância na atualidade pela contundente reflexão sobre o papel da mulher em toda sua obra. Compreender os principais aspectos que fizeram com que o filme a A Hora da Estrela dirigido por Suzana Amaral recebesse inúmeros prêmios do público e da crítica tanto no Brasil como no exterior. O elenco principal do filme foi composto da seguinte forma: A personagem Macabéa foi
Recebeu Urso de Prata no Festival Internacional de Berlim em 1986, e prêmio de Melhor Atriz para Marcélia Cartaxo e Menção Especial na Confederação Internacional de Cineclubes. Recebeu o prêmio Gran Coral de Melhor Filme no Festival Novo de Cinema Latino Americano de Havana 1986, e indicação do Brasil para Competição ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro, pela Academia de Cinema, Artes e Ciências de Hollywood em 1986. No Festival de Cinema de Brasília do Cinema Brasileiro de 1985 venceu como melhor filme, melhor direção para Suzana Amaral, melhor roteiro para Suzana Amaral e Alfredo Cruz, melhor atriz para Marcélia Cartaxo, melhor ator 26
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para José Dumont, melhor montagem para Idê Lacreta, melhor cenografia para Clóvis Bueno, melhor fotografia para Edgar Moura, melhor trilha Sonora para Marcos Vinícius, e foi premiado pela critica e pelo Juri popular. Em 1986 Suzana Amaral venceu como Melhor Direção no Festival Internacional de Filmes de Mulheres de Creteil. E como Melhor Filme no Festival de Cinema dos Países de Língua Portuguesa de Aveiros em 1988. Foi eleito melhor filme pelo juri popular no Festival dos Festivais de Cinema Brasileiro de Natal em 1992, prêmio de melhor atriz para Marcélia Cartaxo, melhor direção e melhor montagem no prêmio Governador do Estado de São Paulo de 1988. Sendo assim o objetivo deste trabalho é apresentar as principais operações realizadas no processo de adaptação do romance A Hora da Estrela, evidenciando as principais modificações e alterações e inserção de novos elementos pelas quais a obra passou na transposição da linguagem literária para a linguagem cinematográfica. O presente artigo utilizou como base metodológica a pesquisa bibliográfica partindo dos conceitos sobre adaptação apresentados por Linda Hutcheon no livro Uma Teoria da Adaptação, além de artigos e dissertações de mestrado que auxiliaram na compreensão de diversos aspectos das linguagens cinematográfica e literária. Em relação ao material audiovisual do filme A Hora da Estrela que encontra-se disponível para exibição no YouTube, foi realizado um trabalho de decupagem para escolha das cenas que melhor pudessem servir de exemplo para abordagem teórica utilizada neste artigo. Se tomarmos como base as principais obras literárias no Brasil podemos constatar que há um número considerável dessas obras que foram adaptadas e podemos citar como exemplo uma série delas. Para que se tenha dimensão da amplitude do diálogo entre a literatura e o cinema no Brasil citamos aqui uma relação de obras adaptadas a partir da obra de alguns dos escritores de relevância para a literatura brasileira, sendo José de Alencar, Machado de Assis e Graciliano Ramos apenas para exemplificar a profunda relação entre as duas linguagens.
Do escritor José de Alencar podemos citar Lucíola, o Anjo Pagador(1975, 100 min., cor) dirigido por Alfredo Sterheim adaptado da obra homônima de 1862; Senhora (1976, 109min., cor) dirigido por Geraldo Vietri adaptado da obra homônima de 1875. Iracema, a Virgem dos Lábios de Mel (1979, 98 min., cor) dirigido por Carlos Coimbra adaptado da obra homônima de 1865. O Guarani (1916, 135 min., preto e branco) dirigido por Vittorio Capellaro, e O Guarani (1979, 135 min., cor) dirigido por Fauzi Mansur e O Guarani (1996, 91min., cor) dirigido por Norma Bengell as três obras são adaptações da obra homônima de 1857. De Machado de Assis temos, Capitu (1968, 105min., cor) dirigido por Paulo César Saraceni, a partir da obra Dom Casmurro. Azyllo muito louco (1970, 100 min., cor) dirigido por Nélson Pereira dos Santos adaptação do conto O Alienista. Quincas Borba(1987, 116 min., cor).dirigido por Roberto Santos inspirado na obra homônima de 1891. A Causa secreta (1994, 93 min., cor) dirigido por Sérgio Bianchi a partir da obra homônima Quincas Borba. Memórias Póstumas (2001, 101 min., cor). Dirigido por André Klotzel, adaptação do livro Memórias Póstumas de Brás Cubas de 1881. Dom (2003, 91 min., cor) dirigido por Moacyr Goes inspirado na obra Dom Casmurro. A cartomante (2004, 90 min., cor). Dirigido por Wagner de Assis e Pablo Uranga. Quanto Vale ou É Por Quilo? Direção: Sérgio Bianchi (2005, 104 min., cor). Livre adaptação do conto Pai Contra Mãe. De Graciliano Ramos temos Vidas Secas (1963, 99 min., preto e branco). Dirigido por Nélson Pereira dos Santos, do romance homônimo de 1938. São Bernardo (1971, 113 min., cor). Dirigido por Leon Hirszman, a partir do romance de 1934. Memórias do Cárcere, (1984, 185 min., cor). Dirigido por Nélson Pereira dos Santos, obra póstuma e inconclusa de 1953. E poderíamos prosseguir citando Lima Barreto, Érico Veríssimo, João Guimarães Rosa, Nélson Rodrigues, Jorge Amado, José Lins do Rego, Mario de Andrade e tantos outros. Porém devido à questões técnicas do artigo disponibilizaremos o link com a resenha As 27
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Grandes Obra da Literatura Brasileira (aproximação a uma filmografia) do Prof. Dr José Paz Rodrigues da Universidade Ourense da Espanha que se não engloba todos os filmes baseados ou adaptados de grandes obras da literatura brasileira, nos dá uma noção de como a prática das adaptações se faz presente no nosso universo criativo e artístico brasileiro. Espera-se que a discussão apresentada neste trabalho levante, e elucide questões pertinentes aos artistas, acadêmicos e estudiosos da literatura bem como do cinema no contexto das adaptações e contribua para a ampliação da produção teórica sobre o assunto. História Lacrimogênica Romance
de
Cordel:
seu processo de adaptação. Ao transferir a narrativa para São Paulo, a cineasta problematiza de forma diferenciada a questão da migração nordestina na cidade de São Paulo.
O
“Dedico-me à saudade de minha antiga pobreza, quando tudo era mais sóbrio e digno e eu nunca havia comido lagosta”. Clarice Lispector O romance A Hora da Estrela de 1977 foi a última obra escrita por Clarice Lispector e coincidentemente mesmo ano de publicação do livro e de sua morte. Logo na abertura do livro Clarice nos oferece outros 12 possíveis títulos para sua obra derradeira. E sem dúvida nesses doze possíveis títulos podemos identificar razões extremamente pertinentes pelas quais o livro poderia ser chamado porém o este trabalho não é uma análise da obra literária mas de sua transposição para o cinema. Sendo assim a presente discussão que relaciona o romance de Clarice Lispector com o filme homônimo de Suzana Amaral intitula-se humildemente com o penúltimo desses 12 títulos. História Lacrimogênica de Cordel. Em linhas gerais o romance traz a saga da nordestina do sertão de Alagoas que se dá a partir de sua chegada na cidade do Rio de Janeiro. Dessa forma a autora estabelece logo de inicio um interessante contraponto entre o sertão e o litoral, sendo que no filme de Suzana Amaral, Macabéa sai do sertão de Alagoas para viver na grande metrópole de São Paulo e assim temos a primeira alteração relevante que a obra sofre em
Após os 12 títulos possíveis Clarice escreve o que ela mesma nomeia como uma “Dedicatória do autor (na verdade Clarice Lispector)”. Nesta dedicatória ela oferece seu livro aos grandes nomes da música como Beethoven, Schumann, Chopin, Richard Strauss, Marlos Nobre, a Carl Orff e a tantos outros. Oferece aos gnomos, sílfides e ninfas que lhe habitaram a vida. Por fim, encerrando a “Dedicatória do autor” ela nos dá, coincidentemente ou não, a primeira pista cinematográfica que mais tarde a cineasta Suzana Amaral capitaria. “É uma história em tecnicolor para ter algum luxo, por Deus, que eu também preciso. Amém para nós todos” (LISPECTOR, 1998 Ironicamente, pode se dizer que é um romance escrito em técnica cinematográfica pois o Tecnicolor era uma antiga forma de se colorir 28
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os filmes até final dos anos 70 muito utilizada em hollywood, numa história que nada tem de hollywoodiana. E essa deixa é apenas a primeira referência a linguagem cinematográfica que há na obra. Algumas páginas a frente teríamos mais uma indicação (LISPECTOR, 1998): “Pois na hora da morte a pessoa se torna brilhante estrela de cinema, é o instante de glória de cada um e é quando como no canto coral se ouvem agudos sibilantes”. Mais a frente ainda, quando Clarice descreve Macabéa coloca que esta, manifestara o desejo de ser Marylin Monroe. Mas o que ela queria mesmo ser não era a altiva Greta garbo cuja trágica sensualidade estava em pedestal solitário. O que ela queria, como eu já disse, era parecer com Marylin. Um dia, em raro momento de confissão, disse a Glória quem ela gostaria de ser. E glória caiu na gargalhada: - Logo ela, Maca? Vê se te manca!(LISPECTOR, 1998, p. 64) E, além do desejo profundo de ser artista de cinema, Macabéa era datilografa, virgem e tinha o luxo de uma vez por mês ir ao cinema. Mora num quarto de pensão na Rua do Acre, próximo ao cais do porto do Rio de Janeiro. Rua essa que, coincidentemente leva o nome de um estado brasileiro consideravelmente marginalizado, bem como a personagem central do romance. Divide o quarto com mais outras moças que no livro são quatro e no filme aparentemente são três. Todas levam o nome de Maria – Maria da Penha, Maria Aparecida, Maria José e Maria apenas Seu nome originário do livro bíblico dos macabeus, que era um povo de origem hebraica escravizado pelos gregos durante séculos. Olímpico de Jesus Moreira Chaves, é o nome de seu namorado, um metalúrgico que não tem muita paciência com a conversa pouca de Macabéa. Possui um emprego como datilógrafa, que sua tia lhe arranjou antes de morrer. No romance a empresa intitulada Roldanas S/A, e no filme aparentemente um depósito, no qual Macabéa divide o ambiente de trabalho com Glória que é diretamente oposta a Macabéa. Possui boa
comunicação, é esperta, e comporta-se como uma mulher antenada da cidade grande. A nordestina tinha mania de ouvir rádio, sintonizada na Rádio Relógio. E dando inicio à análise do filme de Suzana Amaral, é com o locutor da Rádio Relógio que foi feita a abertura do filme e a exibição dos créditos iniciais: “Você sabia que a mosca é o inseto dos mais ligeiros em voar? E que se ela pudesse voar em linha reta levaria 28 dias para atravessar o mundo todo? (comercial) Depois do sol quem ilumina seu lar é a galeria silvestre. Você sabia 1300 anos antes de cristo as mulheres já usavam cosméticos para manter a beleza do rosto? O Falcão peregrino recebe esse nome por que viaja muito, um exemplo chega ao Brasil voando desde a América do norte. Você sabia? Um homem consome, em alimentos por dia o equivalente a 2.5% do seu peso, o colibri no mesmo período consome 200%”. Sobre a abertura do filme, relacionando as curiosidades apresentados pelo locutor da Rádio Relógio com as características de Macabéa ou mesmo do romance, podemos identificar nessas curiosidades relações diretas com as características de Macabéa, por exemplo, quando fala da mosca ou do falcão peregrino subjetivamente podemos relacionar com a principal característica de Macabéa que é o fato dela ser uma viajante, uma retirante que veio do sertão de Alagoas até o sudeste. Quando o locutor fala dos cosméticos que as mulheres desde antes de cristo usavam para embelezar o rosto, curiosamente relacionamos com o fato de Macabéa ter vontade de comer o creme de uma de suas companheiras do quarto e ao mesmo tempo com sua pouca vaidade. E sobre tudo quando o locutor fala sobre a quantidade com que um homem se alimenta, relacionamos diretamente com a maneira peculiar da pobre moça se alimentar e seu gosto por salsicha e Coca-Cola, além de goiabada com queijo. Através dessa pequena relação feita entre a abertura do filme com elementos presentes no romance apresentaremos, segundo os conceitos de Linda Hutcheon, três formas de se compreender uma adaptação. Em resumo uma adaptação pode ser 29
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descrita do seguinte modo: - Uma transposição declarada de uma ou mais obras reconhecíveis; - Um ato criativo e interpretativo de apropriação/recuperação; - Um engajamento intertextual extensivo com a obra adaptada. (HUTCHEON, 2011 p. 30) Nesta perspectiva podemos verificar como se mostrará ao longo da análise que a adaptação de Suzana Amaral configura-se, ora como uma transposição declarada, ora claramente um ato criativo e interpretativo de apropriação/recuperação, ora um engajamento intertextual extensivo com a obra adaptada. Visto que essas três formas de compreensão da adaptação estão presentas em A Hora da Estrela, filme de 1984. Conforme nos explica (HUTCHEON, 2011) então uma adaptação pode ser uma transposição ou transcodificação envolvendo uma mudança de mídia, que é exatamente o que ocorre com o filme porém este mantém o foco narrativa centrado na história da personagem sem grandes alterações. Em seguida compreender a adaptação como um processo de criação ou reinterpretação, como ocorre no caso citado anteriormente na abertura do filme que utiliza de elementos presentes no romance e os insere de outra forma. E em terceiro, pode ser compreendida na perspectiva de seu processo de recepção como uma forma de intertextualidade. Neste caso há uma experiência palimpséstica, no momento em que uma obra pode gerar a lembrança ou à referência a outras obras que trazem temas aproximados, neste caso podemos relacionar tanto o romance como o filme à outras obras da literatura que também foram adaptadas para o cinema, que é o caso de Vidas Secas, de Graciliano Ramos, já citado na introdução do artigo, e do romance Os Sertões de Euclides da Cunha. Uma passagem do filme que pode ser claramente compreendida como um ato criativo e interpretativo de apropriação da obra adaptada ou do texto fonte, conforme coloca Linda
Hutcheon, é a cena do filme na qual Macabéa diz para as companheiras de quarto que o que ela gosta mesmo é de passear no metrô nos dias de domingo, causando espanto nas companheiras de quarto. Ela argumenta que acha tão bonito o metrô. Corta para plano plongée da nuca de Macabéa descendo a escada rolante da estação da Luz. Ela se aproxima da linha amarela que fica a margem dos trilhos, fazendo com que o guarda se aproxime e faça uma advertência, pois ela ultrapassou a linha amarela e o guarda diz a linha amarela não pode e que é perigoso, e como de costume Macabéa se desculpa e vai embora, corta para o quarto. Nesta passagem do filme tem-se um exemplo claro de apropriação. Macabéa está em São Paulo, é uma personagem opaca e sem vida, e vai passear na Estação da Luz e na sequencia ela realiza uma ação totalmente condizente com seu perfil psicológico, a pequena transgressão de ultrapassar a linha amarela que margeia os trilhos do metrô. Conforme já foi citado no inicio, a narrativa fílmica é ambientada na cidade de São Paulo, diferente do romance se passa no Rio de Janeiro. Sob este aspecto como uma escolha da diretora Suzana Amaral, entende-se que também há uma relação pertinente e clara com o enorme número de retirantes nordestinos na cidade de São Paulo na segunda metade do século XX. Ainda nessa perspectiva de apropriação ou interpretação, há no livro, uma passagem que diz (LISPECTOR, 1998 p. 33) “Volto a moça: o luxo que se dava era tomar um gole frio de café antes de dormir. Pagava o luxo tendo azia ao acordar”. No filme há a cena na qual Macabéa acorda, puxa de debaixo da cama uma bacia ou pinico para urinar, e enquanto urina pega uma marmita de alumínio e come uma coxa de frango mordida a cena toda em plano aberto. Transcrevemos um trecho um pouco maior do livro a seguir para comentar na sequencia a cena do filme que se relaciona com o mesmo. Quando dormia quase que sonha que a tia lhe batia na cabeça. Ou sonhava estranhamente em sexo, ela que de aparência era assexuada. Quando acordava se sentia culpada sem saber por quê, talvez porque o que é bom 30
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devia ser proibido. Culpada e contente. Por via das dúvidas se sentia de proposito culpada e rezava mecanicamente três ave-marias, amém, amém, amém. Rezava mas sem Deus, ela não sabia quem era Ele e portanto Ele não existia (LISPECTOR, 1998 p.34). Sobre este trecho do romance, há no filme, uma cena que oscila entre uma tranposição declarada e um ato de interpretação. Uma sequência que tem início novamente no metrô, numa situação na qual Macabéa está num vagão lotado entre dois homens viris conversando sobre futebol. Ela contempla os homens com olhar de desejo, e um deles está com o braço levantado segurando a barra superior no teto do trem fazendo com que suas axilas fiquem na altura do rosto de Macabéa. Corte para plano geral de Macabéa dormindo, aos poucos ela vai se excitando, leva as mãos à região genital e começa a se masturbar. Sua masturbação é interrompida por uma tosse que faz com que ela acorde, perceba que está molhada e se benza. Corte para escritório. Conforme temos na descrição das cenas do filme e na transcrição da passagem do livro percebemos que há uma manutenção da temática e quase uma reprodução parcial da narrativa de Clarice Lispector, no entanto a sequencia que antecede à cena da masturbação cria no imaginário do espectador a relação da masturbação com a situação vivida no metrô. Tanto no romance como no filme, um belo dia do mês de maio, Macabéa inventa uma mentira para seu chefe Raimundo Silveira, dizendo que no dia seguinte iria tirar os dentes. Já no filme há uma sequencia que nos faz entender que a mentira contada por Glória de que iria levar sua mãe ao médico inspira Macabéa a contar a sua mentira também. Vejamos como se dá esta passagem no romance. Pois não é que quis descansar as costas por um dia? Sabia que se falasse isso ao chefe ele não acreditaria que lhe doíam as costelas. Então valeu-se de uma mentira que convence mais que a verdade: disse ao chefe que no dia seguinte não poderia trabalhar porque arrancar um dente era muito perigoso. E a mentira pegou. Às vezes só a
mentira salva. Então, no dia seguinte, quando as quatro marias cansadas foram trabalhar, ela teve pela primeira vez na vida uma coisa a mais preciosa: a solidão. Tinha um quarto só pra ela. Mal acreditava que usufruía o espaço. E nem uma palavra era ouvida. Então dançou num ato de absoluta coragem, pois a tia não a entenderia. Dançava e rodopiava porque ao estar sozinha se tornava: l-i-v-r-e! Usufruía de tudo, da arduamente conseguida solidão, do rádio de pilha tocando o mais alto possível, da vastidão do quarto sem as Marias. (LISPECTOR, 1998 p. 41) No filme o diálogo com o Sr. Raimundo se dá de forma quase idêntica, porém a sequencia criada por Suzana Amaral para a continuidade da história no momento em que Macabéa consegue ficar sozinha no quarto ao mesmo tempo que ilustra perfeitamente o que está no romance traz uma nova atmosfera de imagem em som, valendo-se dos recursos que a linguagem cinematográfica dispõe que acabam por completar de modo mágico primeira epifania de Macabéa. Com a Valsa conhecida como Danúbio Azul de Johann Strauss II, tocando ao fundo, Macabéa dança de maneira saltitante pelo quarto que nesse momento é só dela, com um lençol branco, posiciona-se em frente ao espelho e arruma o lençol na cabeça como se fosse um véu de noiva. Durante essa sequência por duas vezes é interrompida, sendo a primeira interrupção por umas das companheiras de quarto e a outra pela dona da pensão. Porém nenhuma das duas interrupções conseguem atrapalhar a primeira epifania de sua vida. Pode-se dizer que a construção cinematográfica da narrativa acrescida da Valsa de Johann Strauss confere uma identidade poética equivalente à descrição feita no romance, unindo assim duas formas de compreensão da adaptação num só gesto criativo que seria ao mesmo tempo umas transposição declarada da escrita de Clarice Lispector e um ato criativo e interpretativo de criação. Para concluir exata etapa da análise, comentaremos mais duas partes pertencentes tanto ao filme quanto romance, que será o momento em que Macabéa e Olímpico se 31
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encontram pela primeira vez, e a sequencia final, exato momento da morte de Macabéa, no filme que seria a verdadeira hora da estrela clariceana. de Suzana Amaral a figura de um narrador foi Assim temos: suprimida o que denota um rompimento brusco com a narrativa construída por Clarice Lispector. Sua exclamação talvez tivesse sido um prenúncio do que ia O que podemos explicar através do que a autora acontecer no final da tarde desse mesmo dia: no meio da canadense Linda Hutcheon define como Modos chuva abundante encontrou (explosão) a primeira espécie de engajamento. de namorado de sua vida, o coração batendo como se ela tivesse englutido um passarinho esvoaçante e preso. O No modo contar – na literatura narrativa, por exemplo – rapaz e ela se olharam por entre a chuva e se reconheceram nosso engajamento começa no campo da imaginação, que é como dois nordestinos, bichos da mesma espécie que se simultaneamente controlado pelas palavras selecionadas, farejam. Ela olhara enxugando o rosto molhado com as que conduzem o texto, e liberado dos limites impostos pelo mãos E a moça, bastou-lhe vê-lo para torná-lo auditivo ou visual. Nós não apenas podemos parar a imediatamente sua goiabada com queijo (LISPECTOR, leitura a qualquer momento, como seguramos o livro em 1998 p.43) nossas mãos e sentimos e quanto da história ainda falta para ler; de resto, podemos reler ou pular passagens. Mas No filme porém, o momento do encontro com a travessia para o modo mostrar, como filmes e do casal acontece numa praça, na qual Olímpico adaptações teatrais, somos capturados por uma história se prepara para uma foto, ela está sentada num inexorável, que sempre segue adiante. Além disso banco próximo enquanto ambos trocam olhares. passamos da imaginação para o domínio da percepção No exato momento em que o fotógrafo vai direta. (HUTCHEON 2011, p. 48) disparar, Macabéa se levanta e passa bem na frente da câmera, fazendo com que Olímpico A partir disso, supõe-se que a opção pelo pergunte se ela é cega, após o retrato o casal sai ocultamento da figura do narrador esteja para dar um passeio pelo parque e iniciam o associada a uma particularidade da linguagem diálogo parco de ideias e de palavras. No cinematográfica, que permite apresentar ao momento em que ele pergunta o nome dela, o espectador a história num outro ritmo e num diálogo ocorre idêntico ao do romance. Quando outro tempo, utilizando-se assim de mecanismos ela responde ele diz que seu nome parece doença específicos do cinema, como os planos e de pele. E Macabéa concorda que o nome é movimentos de câmera, trilha sonora composta esquisito, e explica que foi por motivo de por músicas e efeitos sonoros. Por outro lado o Promessa. cinema pode mostrar-se insuficiente para Novamente podemos perceber a presença reproduzir determinadas construções narrativas das duas formas de compreensão da adaptação, como por exemplo a descrição presente no como a transposição declarado e o ato romance e citada acima do momento em que interpretativo. Sendo que neste caso há uma Macabéa e Olímpico se conhecem se conhecem. predominância de um modo de recriação e E caminhando para a finalização desta apropriação. análise e discussão, comentaremos o terceiro No romance há desde o início um modo de compreensão de uma adaptação narrador, Rodrigo S.M. É ele quem conta a relacionado à intertextualidade, perspectiva esta história de Macabéa como uma história que está ligada diretamente ao processo de recepção da sendo contada ao mesmo tempo que está sendo obra. escrita. Na página 14, temos “Aliás – descubro eu Através do artigo de Fátima Cristina Dias agora – também eu não faço a menor falta, e até Rocha, da Universidade federal do Rio de Janeiro, o que escrevo um outro escreveria. Um escritor, podemos exemplificar bem este forma de sim, mas teria que ser homem por que escritora compreensão das adaptações. Em seu artigo ela mulher pode lacrimejar piegas.” Clarice Lispector relaciona três obras literárias, que são A Hora da cria um narrador homem, que também morre no Estrela, Sargente Getúlio de João Ubaldo Ribeiro 32
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e o conto A Hora e Vez de Augusto Matraga de João Guimarães Rosa. Acreditando estarem estas três histórias relacionadas pelas características de seus personagens centrais, conforme exemplifica. Deste modo, os romances A hora da Estrela e Sargento Getúlio, assim como o conto “A hora e vez de Augusto Matraga”, dão vida a personagens que experimentam um “sentimento de identidade” frágil e esgarçado, sentimento que só adquire contornos mais nítidos no momento da morte, instante em que Macabéa, por exemplo, afirma: “Hoje é o primeiro dia de minha vida: nasci”. Nos três textos, portanto, a morte se mostra como a “vez” do personagem. Esta ideia baseia-se nas palavras que o padre diz a Augusto Matraga, no conto de Guimarães Rosa, palavras que passam a ser o lema do personagem: “Cada um tem a sua hora e a sua vez: você há de ter a sua”.
de 1965 por Roberto Santos e a segunda em 2012 por Vinícius Coimbra e coincidentemente o ator José Dumont que faz o papel de Olímpico na adaptação de A Hora da Estrela, também está no elenco de A Hora e Vez de Augusto Matraga. Considerações Finais
A tarefa de compreender de forma analítica, o processo de adaptação do romance A Hora da Estrela para a linguagem cinematográfica, analisando as semelhanças e as diferenças entre as duas obras nas duas linguagens, demonstra que o assunto das adaptações apresenta-se como campo fértil de discussão sobre a criação artística e o pensamento criativo dos artistas no Brasil, visto que os Excluindo o romance de João Ubaldo elementos intertextuais apresentados aqui, são Ribeiro por não ser diretamente o objeto de apenas uma partícula de um todo incalculável nas estudo deste trabalho, podemos entender a relações existentes entre as linguagens, como o intertextualidade presente na relação feita entre o cinema, a literatura, o teatro, a pintura, as artes romance de Clarice Lispector e o conto de João plásticas e até a performance. Guimarães Rosa, conforme coloca HUTCHEON Os conceitos apresentados em Uma (2011), nós experienciamos as adaptações como Teoria da Adaptação(2011), da pesquisadora palimpsestos por meio da lembrança de outras canadense Linda Hutcheon nortearam obras que ressoam através da repetição com basicamente quase que a totalidade da análise variação. apresentada neste artigo, levando nos ao desejo Ampliando a relação entre as obras tem-se de acessar outras produções relacionadas ao ainda: assunto, mas que pela busca realizada tanto em bancos de dados da internet como em bibliotecas Além desse traço comum – a morte como a “vez” –, as se mostra como insuficiente. três narrativas figuram um espaço geográfico social e Desta forma, espera-se que a discussão humano distinto daquele em que se situa a cultura letrada levantada neste artigo, sirva de referencial para e urbana do escritor: “A hora e vez de Augusto Matraga” estudos aprofundados sobre a temática das cenariza o interior de Minas Gerais; Sargento Getúlio adaptações em futuras ocasiões e auxilie recria o sertão nordestino; e A hora da estrela lança a estudantes e interessados tanto pelo cinema migrante nordestina na cena agressiva da cidade grande. como pela literatura e contribua para a ampliação (ROCHA) da produção intelectual neste campo. Adaptação representa movimento. Um contínuo Dessa forma compreende-se bem a transitar de ideias. Um lugar no qual, os conceitos relação entre as obras que nos leva a exercitam sua maleabilidade e um espaço em que compreender a intertextualidade presente no a profundidade da pesquisa e da reflexão processo de recepção das adaptações. Lembrando atravessa as fronteiras do conhecimento. que A hora e Vez de Augusto Matraga, a última (ALVES, 2014 p.70) novela do livro Sagarana publicado em 1946, Enfim Suzana Amaral realiza o sonho de também foi adaptado para o cinema, por duas Macabéa de ser artista de cinema e transporta a vezes no Brasil, sendo que a primeira foi no ano personagem clariceana para a linguagem 33
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cinematográfica. A nordestina com seu vestido de chita e sem nenhuma datilografia, foi parar em São Paulo, passear na estação da luz e andar de metrô, morar num quarto de pensão e viver as mazelas que grande parte dos nordestinos viveram e vivem até os dias atuais. Homens que trazem sua bagagem, repleta de sonhos, de luta e de sede. Homens e mulheres que trouxeram em sua bagagem a bravura e a coragem que são a marca maior do sertanejo.
Thales Felipe Dantas Alves. Possui Bacharelado em Comunicação Social com Habilitação em Rádio e TV, pela Universidade do Vale do Paraíba. Pós-Graduação lato sensu em Artes Cênicas pela Faculdade Paulista de Artes. Atualmente é aluno especial do Programa de PósGraduação em Artes da UNESP Universidade Júlio de Mesquita Filho.
Referências ALVES, T.F.D. Macunaíma: o caráter de uma adaptação.2014 Monografia de Pós-Graduação lato sensu em Artes Cênicas. Faculdade Paulista de Artes. LISPECTOR, C. A Hora da Estrela. Rio de Janeiro: Rocco, 1998. 1ª edição. HUTCHEON, L. Uma Teoria da Adaptação. Tradução André Cechinel. Florianópolis: Ed. da UFSC, 2011. ROCHA, F. C.D. De Euclides da Cunha à Clarice Lispector: Imagens do sertanejo na ficção brasileira. CiFEFIL (Circulo Fluminense de estudos filosóficos e linguísticos) caderno 04 disponível em: http://www.filologia.org.br/vicnlf/anais/caderno 04-05.html acesso em: 16 de abril de 2017. RODRIGUES, J. P. As Grandes Obras da Literatura Brasileira no Cinema (aproximação a uma filmografia. Espanha, Portal Galego da Língua, 10 de junho de 2015. disponível em: http://pgl.gal/as-grandes-obras-da-literaturabrasileira-no-cinema-aproximacao-a-umafilmografia/ Acesso em: 16 de abril de 2017. ____________________
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Deserto Feliz: As Contradições do Sertão Contemporâneo no Novo Cinema Pernambucano Melissa Caroline Vassalli
Imagem do filme Deserto Feliz, de Paulo Caldas
O Novo Cinema Pernambucano compreende um ciclo cinematográfico que teve início com grupos universitários que começaram a se articular na década de 1980, com a produção de curtas-metragens, e que se consolidaram nos anos 90, em paralelo com a retomada do cinema brasileiro. O diretor Paulo Caldas estava ativamente ligado a esses grupos. Em 1996 lançou O Baile Perfumado. Co-dirigido por Lírio Ferreira, esse foi o primeiro longa-metragem da retomada pernambucana e um marco do novo ciclo. Os filmes do cinema contemporâneo de Pernambuco, porém, não possuem uma estética unitária, o que nos permite identificá-los dentro de um “ciclo”, como afirma Nogueira (2009), é principalmente a sua forma de produção: grupos que atuavam em um mesmo momento histórico e cenário sociocultural, engajados em retomar (e manter ativa) a produção cinematográfica do Estado. Os diretores que surgiram nesse contexto
eram autodidatas e produziam num sistema colaborativo, e, ainda que cada um tenha desenvolvido seu próprio estilo, seus filmes trazem marcas que os aproximam. Um aspecto em comum é que eles retratam o sertão a partir de uma visão interna. Outrora mítico e arcaico, o universo sertanejo se revela agora tocado pela modernidade. Não há mais a velha oposição entre sertão e litoral. Porém, isso não quer dizer que as dicotomias deixaram de existir: agora cada espaço traz suas próprias contradições. Para deixar essas questões mais evidentes, vamos discutir alguns pontos levantados pelo filme Deserto Feliz, de Paulo Caldas (2007), que narra a história de Jéssica, uma jovem de 14 anos que mora no sertão de Pernambuco, num vilarejo de Petrolina chamado Deserto Feliz. Depois de ser estuprada por Biu, seu padrasto, a prostituição aparece para Jéssica como uma possibilidade de sair de casa. Ela se muda para Recife, onde 35
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conhece um alemão que a leva para Berlim, mas, insatisfeita com a nova vida, retorna ao Brasil. O filme é dividido em três blocos, definidos pelos lugares em que Jéssica se encontra. O sertão, ponto de partida da personagem, não é tão árido quanto antes. Agora é banhado por um rio, e, irrigado, torna-se também verde e fértil. Há uma rede de comércio que emprega a população, como Maria, mãe de Jéssica, que não tem uma vida restrita apenas ao núcleo doméstico. E há também veículos modernos, como carros, motocicletas e caminhões. Mas esses elementos contrastam com o que permanece de arcaico. Biu tem uma moto, mas as roupas são lavadas à mão. A tecnologia, embora presente no sertão, não é acessível a todos. Para Lipovetsky (2007) o que define a relação contemporânea de consumo é que ela é cada vez mais hedonista e individual, com a funcionalidade colocada em segundo plano. Nesse sentido, a família de Jéssica não teria atingido à contemporaneidade, pois é sempre necessário fazer uma escolha pautada pela maior necessidade. A casa tem geladeira, mas não máquina de lavar. A única televisão vista na residência se encontra na sala, onde pode ser compartilhada por toda a família. O único aparelho que Jéssica consegue levar para o quarto é um rádio. A contradição entre o sertão arcaico e o contemporâneo, que coexistem no mesmo espaço, também está expressa em outros aspectos. Maria conquistou o mercado de trabalho, mas dentro de casa ainda está subjulgada à antiga lógica patriarcal: é o marido quem senta na ponta da mesa e se serve primeiro, enquanto ela cozinha e executa outras atividades domésticas. A relação dos personagens com a comida também mostra a dicotomia desse sertão. Ainda que haja grandes plantações e um centro comercial, de onde poderiam prover sua alimentação, eles abatem animais para comer. Depois de ser violentada pelo padrasto, Jéssica foge para Recife, onde divide um quarto com outras garotas de programa. Vemos que não há melhora em sua vida. Em Deserto Feliz o litoral não aparece como oposição ao sertão, e reproduz as mesmas contradições presentes nele.
Mesmo que houvesse muitas possibilidades ali, elas continuaram inacessíveis para Jéssica, que ainda se prostitui e não tem um lar – o quarto em que ela vive não oferece conforto. É um ambiente sujo, bagunçado, pequeno, e, sem recuo para câmera, só é possível registrar todo o cenário com lentes grande-angulares, que distorcem a imagem. Quanto aos bens de consumo, tudo é restrito para as personagens. Nem mesmo o rádio Jéssica possui agora. É só pela televisão de um salão de beleza que ela descobre que Biu foi preso. E, com baixo poder aquisitivo, as jovens tentam reafirmar sua individualidade nas pequenas coisas – como a posse de uma roupa íntima ou de um pacote de bolacha, que mesmo a contragosto, elas são obrigadas a dividir. As condições em que as personagens vivem denotam uma preocupação do diretor em não idealizar a prostituição. Esse cuidado é reforçado pelo discurso de Pâmela, a mais velha do grupo, que não vê nenhuma perspectiva de melhora dessas condições; e também pela caracterização: apenas Pâmela aparece com maquiagem mais acentuada; as demais estão sempre com o rosto limpo, e o vermelho, cor normalmente associada à prostituição no cinema, nunca aparece nos figurinos, adereços e maquiagem de Deserto Feliz. Samuel Paiva (2008) aponta que se não há estética única no cinema contemporâneo de Pernambuco, há pelo menos uma confluência de interesses temáticos, onde a morte, o estrangeiro e o próprio cinema aparecem como assuntos recorrentes. Em Deserto Feliz a temática que se sobressai é a do estrangeiro, que no filme representa a verdadeira oposição à vida que Jéssica leva. Se os primeiros clientes eram desinteressantes (Jéssica dorme na mesa do bar enquanto espera um deles terminar sua bebida), é pelo alemão Mark que ela se sente realmente atraída. Mark é a promessa de alteridade, e Jéssica o acompanha até Berlim. Passa a viver com ele em uma casa ampla e moderna. Consegue, finalmente, estabilidade e conforto. Mas a felicidade do casal logo se transforma em uma rotina banal. Se o sertão de Paulo Caldas já é 36
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retratado com uma fotografia menos quente que a habitual, quanto mais Jéssica se afasta de sua origem, mais fria a imagem se torna. Em Berlim tudo é cinza, ampliando a falta de conexão da personagem com o local. Distante, Jéssica se esforça para preservar sua própria cultura: come manga, alimenta bodes e, como fica sugerido em um diálogo com Mark, se reúne com grupos de brasileiros, conservando seu idioma. Insatisfeitos, Jéssica e Mark se separam, e supomos que a menina retornará ao Brasil. Assim, temos que responder a uma última pergunta: se a Europa era o único lugar em que Jéssica poderia alcançar tudo o que lhe foi negado, por que ela retorna? Talvez a falta da cumplicidade construída com as colegas, ou a dificuldade de adaptação à nova cultura, ou ainda sua pouca idade (afinal, Jéssica é uma adolescente se relacionando com um adulto) possam ter contribuído para sua decisão. Mas Jéssica enfrentou situações ainda mais adversas no Brasil. Para Bauman, nos tempos atuais “a virtude que se proclama servir melhor aos interesses do indivíduo não é a conformidade às regras [...], mas a flexibilidade: a prontidão em mudar repentinamente de táticas e de estilo, abandonar compromissos e lealdades sem arrependimento” (2007, p. 10). Por fim, constatamos que a vida na Alemanha também não era realmente acessível para Jéssica, que perderia tudo, assim que se separasse de Mark. Portanto, ainda que a menina pudesse ter se resignado, como sua mãe (que se revolta, mas permanece), Jéssica opta por construir sua individualidade, o que só possível pela capacidade de decidir sobre si mesma. A música favorita de Jéssica fala sobre uma terra prometida. No sertão, no litoral e na Europa, Jéssica constantemente fita o horizonte através de uma porta ou janela, o que nos indica que sua terra prometida está sempre além, e nunca onde ela se encontra. Jéssica vive num mundo contraditório, às vezes moderno, às vezes arcaico. Se não há destino final e tendo sido privada de tudo o que é moderno, é na capacidade de se mover que ela consegue afirmar sua contemporaneidade.
Referências Bibliográficas BAUMAN, Zygmunt. Tempos Líquidos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007. LIPOVESTSKY, Gilles. A felicidade paradoxal: ensaios sobre a sociedade de hiperconsumo. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. NOGUEIRA, Amanda Mansur Custódio. O novo ciclo de cinema em Pernambuco: a questão do estilo. 2009. 157 f. Dissertação (Mestrado em Comunicação). Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2009. PAIVA, Samuel. Do curta ao longa: relações estéticas no cinema contemporâneo de Pernambuco. In: Hamburguer, Esther (Org.). Estudos de cinema - Socine IX. São Paulo: Annablume, 2008. p. 99-107. FILMOGRAFIA BAILE Perfumado. Direção: Lírio Ferreira; Paulo Caldas. Produção: Aniceto Ferreira; Beto Monteiro. Recife, 1996, 93 min, cor/PB, formato: 35 mm. DESERTO Feliz. Direção: Paulo Caldas. Produção: Germano Coelho Filho. Brasil/Alemanha: Camará Filmes, 2007. 88 min, cor, formato: cinemascope 35 mm. ____________________ Melissa Caroline Vassalli é Bacharel em Cinema e Audiovisual pelo Centro Universitário Nossa Senhora do Patrocínio, Especialista em Fundamentos da Cultura e das Artes pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP) e Mestranda em Artes Visuais pela mesma instituição. Trabalha como assistente de produção e diretora de arte em obras audiovisuais.
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História da eternidade: o gênero e a natureza na idealização do sertão Lara Barqueta Bione
Este artigo analisa como o filme História da Eternidade, de Camilo Cavalcante (2014), se propôs a retratar as relações sociais e afetivas dentro de uma cidadezinha sertaneja e a relacionar essa cidade junto às suas moradoras e moradores com os fenômenos e paisagens da natureza. Esse sertão elaborado por Camilo Cavalcante e sua equipe se apresenta para o expectador de uma maneira fantástica. A trama acontece em uma cidade de cinco casas, um bar, uma igreja, um posto telefônico e um cemitério. Segundo entrevista dada por Cavalcante na Revista de Cinema (2013) a intenção da construção desse universo era criar uma cidade sem um tempo específico, que pode acontecer hoje, mas também pode se passar em um tempo antigo. Suas personagens não usam celular, não têm internet e o único contato com o mundo exterior é o telefone público e o caminhão pau de arara que transporta moradores para fora da cidade. Cavalcante e equipe criaram uma cidade que ainda não é pautada pela chamada sociedade de consumo e na qual ainda não aconteceu a lapidação de uma sociedade contemporânea. Uma cidade que consegue existir para além do litoral, do consumo e da contemporaneidade. Assim como a representação do sertão no Cinema Novo essa obra também é repleta de objetos culturais arcaicos. O candeeiro, o rádio de pilha, fogão a lenha, a vitrola, a TV de tubo no meio da praça, o orelhão, que entre outras coisas contribuem para a construção de um imaginário imagético dessa sociedade. Esses objetos auxiliam no decorrer da trama a tirar o expetador de seu tempo/lugar atual e a transportá-los para um sertão sem tempo específico, criando um enredo que conduza à ideia do eterno, do cíclico. Ideia passada desde o título da obra. Esse filme de ficção conta a história de três personagens femininas que pertencentes a essa cidade: Afonsina, uma adolescente cujo maior sonho é conhecer o mar; Querência, uma mulher adulta, que no início do filme, ao que nos
parece, está enterrando um filho ou filha bebê e Das Dores, idosa, viúva e “padre” da cidade. No primeiro contato com essas personagens já podemos perceber três fases da vida de mulheres sertanejas, suas aspirações, suas dores, suas vidas. Os três pares afetivos delas, respectivamente, são: João, o tio de Afonsina, artista, que sofre de epilepsia; Aderaldo, cego e tocador de sanfona e Geraldo, neto de Das Dores, que volta fugido de São Paulo, onde foi morar por causa da migração da mãe. São figuras masculinas, também em diferentes fases da vida e que possuem diferentes relações com o sertão, não se adequando ao imaginário do sertanejo bruto, cangaceiro ou vaqueiro. Pode-se sentir nessas relações afetivas algumas tragédias pré-anunciadas, pois vão mexer com assuntos considerados tabus da sociedade tradicional e também da contemporânea, tais como: incesto, sexualidade na velhice e relacionamento entre diferente gerações. Afonsina é a dona da casa, cuida dos pais e do irmão já na sua adolescência, pois substituiu o posto da mãe que há tempos não está mais lá. O maior sonho dela é visitar o mar e graças ao seu tio João o mar é quem a visitar. E a partir dessa visita, o mar estará pra sempre em Afonsina. Cria-se quase uma ideia do mar como a de uma “paz interior”, de “esperança”. Nataniel, o pai de Afonsina e irmão de João, é o sertanejo do imaginário comum, o vaqueiro, provedor da família e ainda que sensível, facilmente recorre à violência. Podemos visualizar esse personagem Nataniel como a personificação da moral do patriarcado, que reprime quem está ao seu redor a fim de preservar o que considera sua honra, em detrimento dos outros. Na primeira sequência do filme, assistimos Querência, junto com as moradoras e moradores do povoado, enterrando um criança, talvez um bebê. Essa personagem ao longo do filme está em processo de superação dessa morte, e da aceitação de uma nova afetividade a medida em que sua relação com Aderaldo se acentua. Ao final do filme mais um ciclo se completa, pois ela acaba por ter outra filha que aparentemente é de 38
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Aderaldo. A outra personagem Das Dores é uma senhora que tem por volta de 70 anos, viúva e atua no povoado como a realizadora das missas católicas. É uma personagem que acolhe aqueles que necessitam de ajuda. É uma matriarca, agindo como se fosse mãe de todos que ali vivem. Geraldo é seu neto e volta de São Paulo fugido de algo que só é evidenciado no final do filme. Ele desperta em Das Dores um sexo esquecido e/ou reprimido por um marido talvez autoritário e também pela religião. Ela própria se pune, por causa do condicionamento patriarcal e católico que não perdoa a liberdade sexual de uma mulher idosa, nem a prática do incesto. Todas essas histórias são tracejadas por fenômenos da natureza. Os três capítulos podem ser interpretados como representações de ciclos naturais daquele espaço social, são eles: 1. Pé de Galinha; 2. Pé de Bode; 3. Pé de Urubu. O primeiro capítulo, “Pé de Galinha”, admite diversas interpretações, uma delas que é muito conhecida dentro do mundo cristão é a concepção de anticristo. A ideia do anticristo pode ser interpretada nesse âmbito como o personagem diferente, o outro, aquele que vem
de fora, o estrangeiro que não segue as regras sociais nem padrões pré-determinados. Nessa primeiro capítulo, somos apresentados aos personagens masculinos e podemos perceber uma semelhança. Todos fogem do estereótipo passado e repassado contido na frase de Euclides da Cunha em seu livro Os sertões: “o sertanejo é, antes de tudo, um forte” ou de titã acobreado (CUNHA, 2002). “Pé de Bode” e “Pé de Urubu” aparentemente nos permite uma interpretação mais rápida e instintiva. No capítulo “Pé de Bode” acontece o aniversário de quinze anos de Afonsina. E Nataniel manda matar cinco bodes para comemorar. Podemos interpretar o bode como símbolo de fartura também no sentido de desenvolvimento emocional, pois as personagens femininas vão amadurecendo. Durante esse processo de maturação permitem sentimentos e começam a se posicionar de maneira mais definida em relação aos respectivos parceiros afetivos. O capítulo “Pé de Urubu” é facilmente lido como mal presságio, morte, mas também de renovação. É nesse capítulo que chove fortemente no povoado e é nesse momento que
Imagem do filme História da eternidade, de Camilo Cavalcante
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os desejos se concretizam e as tragédias são efetivadas. A água da chuva vem como agente provocador dessa fábula de renovação eterna. Essas análises nos levam a perceber uma narrativa que se constrói a partir de elementos estéticos visuais propondo juntamente com uma fábula fantástica um imaginário imagético de um sertão que apresenta acontecimentos cíclicos, atemporais e eternos. As personagens desta narrativa podem até estar em diferentes tempos, mas a história, aparentemente, será sempre a mesma. O universo onde decorre o filme é pautado a partir dos fenômenos naturais. A terra e as águas ao mesmo tempo em que possibilitam a vida, a dificultam. Será a partir do tempo da natureza que as “regras” morais de uma sociedade arcaica serão vividas. O filme nos leva a fazer contrapontos entre contemporâneo e arcaico, litoral e sertão, o cíclico e o pontual.
FUZIS, Os. Direção: Ruy Guerra. Copacabana Filmes,1963. HISTÓRIA da Eternidade. Direção: Camilo Cavalcante. Pernambuco: Aurora Filmes e República Pureza, 2014. VIDAS Secas. Direção: Nelson Pereira dos Santos. Alagoas: Hebert Richers Produções Cinematográficas, 1963. ____________________
Lara Barqueta Bione se formou em audiovisual pelo Senac. Lá produziu o trabalho de conclusão de curso Identidades Culturais Construídas em “Som ao Redor” e “Boa Sorte, Meu Amor” e participou da pesquisa de iniciação de científica Como a mídia digital influenciou o trabalho da Referências Bibliográficas diretora Eliane Caffé em “O Louco do Viaduto”. Atualmente trabalha no projeto Visto CUNHA, Euclides. Os Sertões. São Paulo: Permanente, acervo digital de vídeos sobre Editora Martin Claret, 2002 cultura imigrante em São Paulo, que atua como produtora; e no Coletivo Na Rego, focado em ALMEIDA, Carlos Helí de. “A história da produção de performances na temática transexual eternidade”, de Camilo Cavalcante, vence o 6º e travesti, atuando com captação e edição de som. Paulínia Film Festival. Disponível em <http://oglobo.globo.com/cultura/filmes/ahistoria-da-eternidade-de-camilo-cavalcantevence-6-paulinia-film-festival-13401435> Acessado em: 15 de nov. de 2016. BARROSO, Cecilia. Camilo Cavalcante – Filmografia. Disponível em <http://www.cenasdecinema.com/camilocavalcante-filmografia/> Acessado em: 10 de nov. de 2016. SAMPAIO, João Carlos. O Cinema dos oprimidos de Camilo Cavalcante. Disponível em <http://revistadecinema.uol.com.br/2013/07/ocinema-dos-oprimidos-de-camilo-cavalcanti/> Acessado em: 10 de nov. de 2016 DEUS e Diabo na Terra do Sol. Direção: Glauber Rocha. Bahia: 1963. 40
ARTES VISUAIS
Entre Sertões e Zona da Mata. A cerâmica de Trucunhaém/PE Vanessa Lopo Bezerra
“Não é razão para que se deixe de comprar as minhas, o barro sempre é barro, é autentico, é natural, Vá dizer isso aos clientes, não quero afligi-lo, mas creio que a partir de agora sua louça só interessará a colecionadores, e esses são cada vez menos.” José Saramago (2003)
índios da região já produziam cerâmica. Sua população, segundo censo de 2010 era de 13.055 habitantes. Até os anos de 1960 Tracunhaém pertencia ao município vizinho de Nazaré da Mata. Da exploração do pau-brasil, passando pelos engenhos até chegar no tempo da usina, em meados de século XX começam a surgir os Quando se fala em arte popular no Brasil primeiros bonecos de barro, que trazem aspectos muitos fazem referência à figura de mestre valiosos da história dessa região. Em Caruaru, Vitalino de Caruaru. Com total razão, Vitalino, esses bonecos começam a ser vendidos na feira, como afirma Frota (FROTA 2010), foi o junto com panelas e aos poucos sua produção foi primeiro mestre a se consagrar como artista crescendo e se transformando em ‘arte’. popular. Após ganhar visibilidade, uma nova Ricardo Gomes Lima (2014), antropólogo geração de artesãos ligados ao barro se e pesquisador da cultura popular, faz uma desenvolveu em Caruaru. Zé Caboclo, Zé importante observação para conceituar o que se Rodrigues e Manuel Eudócio também se denomina arte popular brasileira. Quando nos destacaram e foram influenciados por Vitalino. referimos ao popular, podemos encontrar uma A cidade se tornou um pólo de produção de vasta gama de sentidos e significados possíveis. cerâmica figurativa e, surgiu assim, o que foi No entanto, quando nos referimos ao termo ‘arte chamado de “Escola de Caruaru” (LIMA, 2014). popular’ ou cultura popular’ devemos saber que Duas cidades Pernambucanas que compartilham se trata de uma questão social. Como o Brasil algumas histórias. Diferentemente de Caruaru, ainda apresenta uma grande desigualdade entre as Tracunhaém não teve o mesmo alcance e classes é nítido que há uma relação entre a visibilidade na imprensa, no entanto, esconde origem desses artistas a classes sociais distintas. muitos artistas que mal são lembrados pela Seguindo com sua explicação Lima faz historiografia da arte brasileira. Não apenas referência ao historiador Peter Burke (BURKE artistas, mas um modo de produção de cerâmica apud LIMA, 2014), e esclarece que, mesmo peculiar. Tracunhaém também guarda sua própria havendo origens diferentes não podemos ‘Escola’ de cerâmica tendo um trabalho com acreditar que haja uma delimitação clara entre características estéticas bem diferentes das popular e erudito. Afirma que sempre houve desenvolvidas em Caruaru. Além da produção do trocas entre os diferentes grupos sociais, e que figurativo que ganhou destaque no cenário da hoje, isso é ainda mais forte devido ao arte popular também há em Tracunhaém oficinas crescimento dos meios de comunicação. Ou seja, de artesãos que se dedicam à produção de peças existe uma questão de classes, mas isso não utilitárias. significa que não haja trocas e mudanças entre Situada entre os canaviais e as paisagens diferentes culturas. restantes da mata nativa, Tracunhaém parece Algumas autoras já andaram por essas viver em outro tempo. Com um ritmo terras para desvendar esse universo artístico que característico de cidade de interior. Duas igrejas parece estar tão distante do circuito de artes das que guardam sinais dos tempos do barroco metrópoles. A última grande publicação sobre os colonial, uma praça e poucas ruas ao redor. Sua artistas de Tracunhaém O Reinado da Lua – economia se divide entre a agricultura familiar a Escultores Populares do Nordeste, de Flávia plantação de cana e a cerâmica artesanal. Martins, Silvia Rodrigues Coimbra e Maria Letícia Segundo a tradição oral, Tracunhaém Duarte tem sua primeira edição em 1980. É feito significa ‘panela de formiga’, eles contam que os um grande estudo sobre artistas populares de 41
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todo o Nordeste. Um capítulo é dedicado à Tracunhaém, onde encontramos uma pesquisa fundamental para iniciar este trabalho. Foram transcritos e estudados os discursos da parte dos próprios artistas a respeito de suas obras. São apresentados alguns artesãos, como Severina Batista, Maria Amélia, Família Vieira, Antônia Leão, Zezinho, Luis e Elisete, Nuca e Maria. A tônica dessas autoras é a questão das condições de vida, pois muitos buscaram no trabalho com o barro uma alternativa para a exploração decorrente do corte da cana, a dificuldade econômica. Também colocam que esses artesãos trabalham na perspectiva de arte com um ofício. Não se trata apenas de uma expressão artística, mas sim da ‘arte da olaria’. Como a maioria dos artesãos era filha de oleiros, vendiam seus trabalhos nas feiras da região, geralmente para consumidores de fora. Atualmente os artesãos vendem os trabalhos em suas próprias oficinas e alguns deles enviam para centros de comercialização de artesanato no Recife. A FENEARTE1 é uma feira de grandes proporções que acontece anualmente, nesta feira eles têm contato direto com o público e, geralmente, movimentam sua produção por alguns meses após a feira. Outro programa que acontece desde 2002 é a Lei de Registro do Patrimônio Vivo, através desta lei são selecionados artistas populares representativos de Pernambuco, tais artistas recebem uma pensão vitalícia do governo, como uma aposentadoria, para poder dar continuidade e multiplicar seu saber na comunidade em que vivem. Em 2015 foi feita uma primeira visita à cidade, neste dia foi possível conhecer alguns artesãos e estabelecer um primeiro contato. À época da visita foi impossível não fazer uma associação com o romance A Caverna, de José Saramago (2000). O fio condutor deste romance é uma família de oleiros, que produzia cerâmica utilitária. Pratos, chávenas, quartinhas, bilhas, jarros, enfim... pai e filha viviam deste ofício que fora herdado pelos seus familiares. Em certo ponto do romance, a família se vê em apuros, pois o mercado não tem mais interesse nas
louças e assim começa toda uma investida na criação de peças figurativas, buscando uma adaptação àquela situação, pois querem continuar a viver do ofício que lhes foi herdado. Vivem em uma pequena cidade da zona rural, vão ao cento apenas para levar suas peças para vender. Esta primeira visita foi intensa e produtiva, sendo impossível não fazer uma associação entre ficção e realidade, era como se aqueles artesãos que conversava também fossem personagens da ficção. O clima pacato, a simplicidade das pessoas, o modo como faziam as peças, os fornos a lenha, tudo era muito parecido com o romance. Para realizar a pesquisa foram selecionados alguns ceramistas de acordo com os seguintes critérios: maior idade e tempo de produção, ter a cerâmica como única ou principal atividade econômica e dar continuidade às primeiras gerações de artistas da cidade. Mestre Jair é um dos oleiros que compartilharam suas histórias. Nascido em Tracunhaém, em 20 de maio de 1949, neto de oleiros começou a aprender com oito anos de idade, sua especialidade é cerâmica de torno. Já produziu muitas peças de cozinha, e hoje faz peças decorativas para jardim. "Minha vó era oleira e meus avós tinham olaria, né? E ela fazia peças também, a minha tia também fazia peças. Ela hoje ainda é viva, é a última tia que eu tenho, está com 90 92 anos parece. Meus pais vieram da cana, da mata, trabalharam na usina Matarini na época. Aí vieram pra qui pra Tracunhaém, não sei como se engraçaram um do outro, aí ele veio morar aqui. Trabalhou muito com um tio meu, que é dois irmãos com duas irmãs, aí ele trabalhou muito junto com eles. Meu pai dava polimento em peças, eu também comecei dando polimento em peças, também. Mais ou menos com oito anos eu assumi responsabilidade de gente de adulto. O meu trabalho com oito anos nem todo mundo fazia. Eu passei uns 3 ou 4 anos dando polimento em peças, depois eu aprendi fazer as peças. Que eu sempre tinha um sonho de querer a profissão que ganhasse mais, e eu como ajudante eu ganhava menos. E como o oleiro ganhava mais...eu comecei aprender fazer peças...então com o tempo eu aprendi a fazer todo tipo de pacas. O que é de torno 42
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d’água aí foi caindo...caindo caindo..A Jarra que você vê hoje é quase decorativa. Na década de 1960 1970 o que fazia de Jarra aqui não era brincadeira não…
hoje eu praticamente faço tudo."2
Olaria do Mestre Jair. Vasos. Fonte: acervo da autora
Começou quando criança, como era um dos irmãos mais velhos tinha que ajudar a família, eram nove irmãos. Como trabalhava o dia todo foi muito prejudicado nos estudos, disse que tentou, mais não conseguia assimilar. E assim, fez a vida trabalhando com o barro. Seu Jair conta que com a expansão do plástico e do alumínio a demanda pelas peças de cozinha diminuiu bastante, por conta disso trabalha mais com peças para ornamentação. Também fala sobre a diferenciação que existe entre os artesãos que produzem o figurativo e os oleiros. Afirma que os programas do Patrimônio Vivo não se interessam pela ‘classe de oleiros’3 E quanto à aprendizagem a olaria ela é bastante demorada, afirma que quem faz figuras não leva tanto tempo para aprender como quem aprende o torno. Afirma também que o mercado para quem fazia a imagem era sempre mais fácil. Sempre os que fazia trabalho com imagem, sempre os que fazia imagem não teve pra eles esse período mais difícil não...Agora pra quem trabalhava nos potes nas panelas teve dificuldade..Aqui antigamente era só olaria pra panelas...tinha o que ? tinha umas 10 olarias... Começaram a fazer quartinha, fazer jarra, que jarra vendia muito...antes de existir a caixa d´água né? Quando pessoal sabia que ai faltar água...quem fazia jarra se fazia.. ganhava dinheiro....depois com a caixa
Hoje seu Jair continua trabalhando sozinho olaria. Não trabalha com uma equipe como outras oficinas. As queimas, como em todas as olarias, são feita em forno à lenha. Sua produção gira em torno de 100 a 300 peças, o que equivale a uma fornada por mês. Não retiram mais a argila de Tracunhaém, como era feito antigamente, compram o barro que vem da Paraíba. Hoje Jair vende apenas para os clientes que vão até sua olaria, mas afirma que quando foi presidente a associação dos artesãos já participou de duas exposições no Espírito Santo, juntamente com outros ceramistas, e que também forneceu para centros de comercialização no Recife. Sua esposa também participa e nos revela aspectos da história de Tracunhaém. Fala sobre a influência indígena, sobre os modos de fazer cerâmica, e da retirada do barro. Aqui era engenho, olaria....era cana. Eu tentei,(aprender cerâmica de tono) quando ele saia do torno eu ia tentar fazer, mas eu não conseguia, conseguia fazer na mão. Aí a vó dele dizia “ é porque tu é índia” porque o que eu fazia eu fazia na mão. Eu queria aprender no torno né? É porque os índios não fazia no torno não, não sabia...Até o nome daqui era indígena, Tracunhaém foi depois, que era Tracunhê, depois como passou a cidade passou a Tracunhaém, ai mudou...Tracunhê significa panela de formiga, porque foi os índios que chegara aqui e começaram, aí o nome disso aqui era panela de formigaA história de Tracunhaém foi criada aqui mesmo... Porque tinha o barro...Que dava uma louça! De cozinhar! Era o barro, toda louça de cozinha, e jarra, e pote..aí, tinha barro, tinha lenha, em todo canto...eu e ele mesmo tirou muito barro aqui atrás, Nessa soita de Santa Cruz, muita lenha agente tirava lá, até pra cozinhar em casa, nessa soita de Santa Cruz tirava, nesse córrego aí embaixo que hoje é o terreno do meu irmão. Era barro em tudo...salina era barro, a cerâmica tinha barro, agente cavava as barreira, isso aqui oh era tudo umas barreira lá bem alta, as casa em cima, quando chovia agente ia
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catucar, catucar e pegava o barro..aí eu e meu irmão fazia bicho de barro...Fazia panela, na mão mesmo...não aprendi fazer no torno, fazia na mão, fazia uma bolinha e pin pin pin pin...Eu acho que nasceu aqui a história por causa dos índios...Tem gente aqui que ainda era descendente desses índios, aí faz na mão, fazia na mão...misturou com o torno, as pessoas que vieram de fora já aprendendo.
Patrimônio Vivo. José Felix da Silva, conhecido como mestre Da Hora, foi outro oleiro que compartilhou sua emocionante história de vida. Senhor de uma simplicidade e sabedoria comovente. Só a vida de seu Da Hora, como é conhecido na cidade, daria um trabalho a parte. Seu Da Hora tem uma olaria que produz panelas, moringas e variadas tigelas, somente peças utilitárias. Hoje em dia já não produz, pois está Neste depoimento vê-se que os recursos com as mãos cansadas e a idade avançada, filhos e disponíveis favoreciam a atividade oleira, netos continuam o trabalho na olaria. antigamente não compravam a lenha nem o barro. Era uma terra fértil e abundante. Observe a descrição que é feita pela esposa de Jair e o que fala Gilberto Freyre sobre as terras do Nordeste. O Nordeste do massapê, da argila, do húmus gorduroso é o que pode haver de mais diferente do outro, de terra dura, de areia seca. A terra aqui é pegajenta e melada. Agarrase aos homens com modos de garanhona. Mas ao mesmo tempo parece sentir gosto em ser pisada e ferida pelos pés de gente, pelas patas do bois e os cavalos. Deixa-se docemente marcar até pelo pé de um menino que corra brincando, empinando um papagaio (FREYRE, 1967, p. 46). Parafraseando Gilberto Freyre, terra que se deixou docemente marcar. Vejamos como a terra se deixa marcar em Tracunhaém. Mestre Jair não fala com amargura de seu ofício, apesar de não ter podido estudar e ter assumido responsabilidade de adulto aos oito anos de idade. É um homem sereno e demonstra ter pleno domínio e satisfação com sua profissão. Até mesmo orgulho em ser oleiro. Assim que falei sobre a pesquisa ele demonstrou uma vontade enorme de colaborar, entrou em sua casa e veio com tudo que tinha de material impresso que pudesse ter pistas sobre a história da cerâmica em Tracunhaém. Sua única amargura eram as dificuldades com o patrimônio, a falta de reconhecimento de sua atividade como uma forma de artesanato, de arte, de expressão simbólica e cultural. Sua única insatisfação era o fato de seu ofício nunca entrar na lista do
Mestre da Hora. Fonte: acervo da autora
Contou dos tempos de criança, que viviam do roçado. Filho de agricultores, quando o inverno era bom, que havia chuvas, havia fartura, quando não chovia, não tinham nenhuma garantia de sustento. Comenta sobre a chegada da cana, a destruição das matas. Faz uma associação entre a plantação de cana e a destruição ambiental. Lembrou-se de uma forte seca, quando menino, seu pai achou que todos morreriam de fome, revela não terem morrido por milagre. Até que um dia, um senhor, dono de uma olaria, convidou - o para aprender o ofício e dessa maneira superou a situação de dificuldade. Desse dia em diante permaneceu na olaria. Pois conta que quem vivia da roça naquele tempo não 44
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tinha aposentadoria e com a olaria garantiu o sustento da família. Apesar de ter sido um depoimento emocionante, de ter ficado com os olhos rasos ao falar da fome, não é uma pessoa amarga. Sua única mágoa era a mesma do Mestre Jair: “Sou um artesão e não sou reconhecido como artesão” logo em sua primeira fala revelou seu ‘desgosto’ com relação à política cultural da cidade. Esses mestres oleiros que foram entrevistados consideram uma arte, não fazem distinção entre o figurativo e o utilitário. Maria Amélia (1925) é uma das consagradas artistas da arte figurativa de Tracunhaém, Patrimônio Vivo da cidade. Já não produz mais pela idade avançada e seu filho Ricardo dá continuidade ao trabalho. Suas obras estão no acervo de importantes museus e em coleções particulares. Da primeira vez que cheguei em sua casa, bati na porta, receosa, por estar incomodando uma pessoa de idade. Aparentemente estava tudo fechado, não havia ninguém. Havia uma placa dizendo “Casa de Maria Amélia”. Bati na porta e aguardei. Sabia se tratar de uma das artesãs mais velhas da cidade. Em pouco tempo aparece uma senhorinha, em sua cadeira de rodas e abra a janela da porta, sorrindo. Logo abriu a porta e convidou-nos para entrar. Uma casa simples e pequena, uma vitrine da sala com algumas esculturas. Logo chegou seu filho Ricardo, tão simpático quanto sua mãe. Com a idade bastante avançada, lúcida, porém cansada Maria Amélia contou algumas histórias, de quando começou modelar o barro. Seu pai também era oleiro, produzia utilitários para vender na feira, disse que seu pai lhe dava um pedaço de argila para brincar, para que não ficasse com os meninos na rua.
da olaria, Ricardo acrescenta que seu avô sabia muito sobre cerâmica, até peças de encanamento ele sabia fazer. A família passou um tempo em Limoeiro, cidade vizinha, quando as vendas estavam devagar, pois lá tinha barro e lenha, logo voltaram para Tracunhaém. Maria Amélia conviveu com Lídia Vieira, Antônia Leão e Severina Batista, primeiras artesãs que começaram comercializar peças figurativas. Eram todas conhecidas. Ricardo conta que, quando ainda era menino, às vezes sua mãe visitava Severina Batista, ele via suas peças e as achava muito engraçadas, tinha que se segurar para não rir na frente delas. Hoje ele compreender que Severina era uma grande artista, que suas peças eram de criatividade singular. Maria Amélia fala de Antônia Leão, conta uma história de um leão de porcelana que Antônia tinha em sua casa e que um dia pegaram escondido para tirar o molde. Em sua fala nota-se certa nostalgia do passado, tanto ela quanto o filho falam que o trabalho com o barro foi muito maior no passado, e que hoje poucas pessoas podem viver exclusivamente da cerâmica, tem que ter um emprego fora. Ricardo não quer que seu filho siga o ofício da cerâmica como meio de vida, quer que ele estude par ter outra profissão, mas que o trabalho com o barro fique apenas para as horas vagas. Segundo consta no Reinado da Lua (MARTINS; COIMBRA; DUARTE, 2010) Maria Amélia era diferente, pois seu marido trabalhava fora, e por isso ela pode desenvolver um trabalho mais elaborado, que levasse mais tempo para ficar pronto. Maria Amélia fala ainda que ela também costurava, mais que as pessoas da cidade naquela época eram muito pobres e mal tinham dinheiro para encomendar roupas, a cerâmica era vendia mesmo para pessoas que vinham de fora Pensei que era brincadeira dele mas foi castigo que ele deu, (MARTINS; COIMBRA; DUARTE, 2010). castigo até bom viu, castigo bom do meu pai...ele não batia A artesã conta que começou brincando, nos filhos não... foi fazendo figuras, bichinhos com era o costume, até que chegou a linguagem religiosa e se manteve nela. Suas esculturas representam Nossa Senhora, Lembrou de seu pai com muito carinho, Nossa Senhora da Conceição, São José. São diz que ele era um homem muito bom, às vezes Francisco. As peças variam de 30 a 60 ela subia em cima de seu torno e quebrava o eixo, centímetros de altura. Queimadas em forno a mas ele não castigava. Cresceu no meio no meio lenha, de maneira bem simples, como a maioria 45
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na cidade não recebem pintura. Imagens dinheiro é o senhor de engenho né? É muito complicado, expressivas e, ao mesmo tempo, delicadas. muito complicado mesmo.6 Trabalhadas com texturas e pequenos detalhes, o rosto sempre em posição de serenidade Hoje, Ricardo guarda em uma gaveta meditação. todos os materiais que pode sobre a obra de sua mãe, fica triste por não haver na cidade um espaço adequado para expor a obra e a história dos artistas. Lamenta a ausência de um museu na própria cidade que conta a história dessas pessoas. Apesar de ter guardados alguns livros e catálogos eles não tem ao certo dimensão de quantas obras estejam expostas em museus e coleções, sabe que muitas de suas peças já foram pra fora, mas não controlo sobre isso. Mesmo depois de tanto produzir, Ricardo e sua mãe vivem com simplicidade, reclamam que o Patrimônio Vivo é um dinheiro incerto, muitas vezes atrasa, passam dois meses sem receber. Para finalizar, o que encontramos nas palavras e nas vidas desses artesãos ainda são reflexos da desigualdade social, da herança dos Maria Amélia com suas peças. Fonte: acervo da autora tempos de engenho, e das consequências do desequilíbrio socioeconômico. A exploração e as precárias condições de trabalho, impostas pelo Ricardo relata que sua mãe se casou muito corte da cana, levou muitos trabalhadores a nova, e foi conciliando as atividades da casa e dos procurar alternativa econômica, muitos se filhos com o trabalho com o barro. Mãe e filho revelaram exímios artesãos de figuras, outros não têm muita dimensão de quantas peças ela já exímios na arte de tornear panelas, jarros e vasos. produziu e quem tem suas peças, mas tem Talvez a grande arte mesmo em Tracunhaém, guardadas algumas publicações, como a primeira seja a arte de escapar das duras condições sociais. edição do Reinado da Lua (MARTINS; COIMBRA; DUARTE, 2010), de 1890, e um Tracunhaém, embora ainda esteja situada catálogo com o acervo de Jarbas Vasconcelos. em uma área úmida guarda muitas semelhanças Maria Amélia era casada e sue marido não era com esses aspectos da vida difícil do sertão, os oleiro, ele trabalhava fora e ela cuidava mais da canaviais vão se impondo e trazendo tanta casa, não tinha forno em casa, como até hoje miséria quanto há em Vidas Secas (RAMOS, queimam as peças fora. Quando pergunto a 2011), pelo menos nos tempos da infância de seu Ricardo sobre a situação econômica de Da Hora, levando o dinheiro para bem longe, Tracunhaém no passado ele diz o seguinte: talvez para o litoral. Tal rudeza e simplicidade deu força àquelas famílias e grupos de artesãos, que, com o modelado do barro, conseguiram É porque antigamente a turma tinha muito sítio né? a transformar a dura realidade em que viviam em turma plantava, e assim, o senhor de engenho é muito arte. mau, ele foi pegando esse pessoal que tinha sitio...foi comprando o sitio ai foi entrando a cana... sabe? Não ____________________ tem mais passarinho...hoje é cana, cana, cana...uma pobreza muito grande..e hoje a cana de açúcar é muito 1 Feira nacional de negócios do artesanato forte, e onde tem cana só tem pobreza, só quem ganha 46
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http://www.fenearte.pe.gov.br/?locale=ptBR#inicio 2 Depoimento do Mestre Jair. 3 Sic., palavras de mestre Jair. 4 Sic. Depoimento da esposa de Mestre Jair. 5 Sic., palavras de Maria Amélia. 6 Sic,. Ricardo, filho de Maira Amélia. Referências bibliográficas
____________________ Vanessa Lopo Bezerra é formada em Licenciatura em Artes Visuais pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, ceramista e professora de Arte no Colégio Giordano Bruno. Mestranda em Artes Visuais no Programa de Pós-Graduação da UNESP. Orientada pela Profª. Drª. Geralda M. F. Silva Dalglish.
BURKE, Peter. Cultura popular na Idade Moderna. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. FREYRE, Gilberto: Nordeste. Aspectos da influência da cana sobre a vida e a paisagem do nordeste do Brasil .Rio de Janeiro, José Olimpo, 1967. FROTA, Artesanato: Tradição e modernidade em um país em transformação. Revista Patrimonio Cultural Inmaterial Latinoamericano II: artesanías. Cusco, Peru: Crespial, 2010. Disponível em: http://www.academia.edu/2429899/El_arte_del _mate_decorado_trayectoria_hist%C3%B3rica_y _continuidad_cultural 28/01/2017 ________.Lélia Coelho. Pequeno dicionário da arte do povo brasileiro, século XX. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2005. LIMA, Ricardo Gomes. Arte Popular. In: Sobre a arte brasileira;da Pré-História aos Anos 1960/Fabiana Wernek Barciski. (org.)São Paulo, WMF Martins Fontes , SESC, 2014. MARTINS, Flávia; COIMBRA, Silvia Rodrigues; DUARTE, Maria Letícia. O reinado da lua: escultores populares do Nordeste. 4. ed. Recife: Caleidoscópio, 2010. RAMOS, Graciliano. Vidas Secas. Rio de Janeiro: Record, 2011. SARAMAGO, José. A Caverna. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. 47
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Paisagens habitáveis: o olhar poético de Maristela Ribeiro Fabíola Cristina Alves Este artigo de caráter ensaístico é uma reflexão sobre a obra “Casas do Sertão” de Maristela Ribeiro, trata-se de um projeto desenvolvido pela artista visual no interior da Bahia, na cidade de Morrinhos em 2014. O projeto incorporou diversas ações artísticas e educativas realizadas com a comunidade local de Morrinhos na região de Feira de Santana. A obra “Casas do Sertão” foi uma dessas ações, um conjunto de intervenções artísticas realizadas nas casas dos moradores da cidade. Nas fachadas das casas foram coladas imagens fotográficas da paisagem sertaneja, transformando sensivelmente a paisagem local num lugar de habitação. Este ensaio é parte do estudo desenvolvido junto ao Grupo de Pesquisa da CNPQ “Laboratório de Pesquisa em Identidade e Diversidade Cultural da UNESP”, entre as ações desse grupo de pesquisa destaca-se a investigação sobre a construção do imaginário sertanejo na cultura brasileira. Nesta reflexão elegemos o campo da produção em artes visuais e a obra “Casas do Sertão” de Maristela Ribeiro como parte do repertório que envolve a representação do sertão na cultura brasileira e, mais especificamente, a construção do imaginário da
paisagem sertaneja na produção da arte contemporânea. Muito já se discutiu sobre a representação do sertão em obras de suma importância para o assunto, tais como: Os Sertões de Euclides da Cunha (1902) considerado o livro fundador do campo de estudos e Grande Sertão: veredas de Guimarães Rosa (1956). No caso do livro Os Sertões de Euclides da Cunha, observamos que a obra é estruturada em três partes: A Terra, O Homem e A Luta. A primeira parte A Terra é relevante para nossa reflexão, pois, tendo a terra em destaque, percebemos que a construção do sertão se estabelece primeiramente pelo lugar, ou melhor, o meio – a paisagem sertaneja. É no capítulo A terra que Euclides da Cunha caracteriza e nos apresenta a natureza e o ambiente do que se intitula como sertão. Neste sentido, os modos de ver, de viver e de conceber a paisagem sertaneja são importantíssimos para a compreensão do que entendemos como o sertão nordestino. Nas palavras de Euclides da Cunha, o sertão é: “O estranho território, a menos de quarenta léguas da antiga metrópole, predestinava-se a atravessar absolutamente esquecido os quatrocentos anos da nossa história”. (Cunha, 1984, p.7). Assim, o sertão é
Casas do sertão, de Maristela Ribeiro
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ARTES VISUAIS em parte um lugar longínquo, um lugar que pode parecer estar numa temporalidade anterior ao tempo contemporâneo, porém, apenas para quem fala do ponto de vista do outro, pois quem fala do ponto de vista do nativo, do habitante local, o sertão não é estranho, mas lugar de pertencimento. Outras obras cinematográficas produzidas durante o período do Cinema Novo também se destacam na construção do imaginário coletivo sobre o que chamamos de sertão, tais como Deus e o Diabo na Terra do Sol de Glauber Rocha (1964), Os Fuzis de Ruy Guerra (1964) e Vidas Secas de Nelson Pereira dos Santos (1963). Por exemplo, em Deus e o Diabo na Terra do Sol, a cena inicial apresenta ao espectador a paisagem local, revelando para o apreciador esse lugar que chamamos de sertão e quais são a implicações dessa paisagem na trama da narrativa – um lugar onde violência e procissões religiosas dividem o mesmo espaço. É notável que tanto no capítulo A Terra da obra de Euclides da Cunha quanto na cena inicial de Deus e o Diabo na Terra do Sol de Glauber Rocha, a caracterização da paisagem local determina as relações existenciais que são narradas ao longo dessas obras. O sertão possui muitos significados que são estudados pelos pesquisadores que se dedicam a tal objeto, entre os significados que compõem a compreensão do que se intitula como sertão no imaginário brasileiro destaca-se, primordialmente, a paisagem que o caracteriza: um lugar distante e situado no interior do Brasil, onde a caatinga é a vegetação predominante e com um preocupante índice de desigualdade social. Sobre esta última caracterização da paisagem sertaneja como o lugar de origem dos miseráveis que buscam refúgio a caminho do litoral brasileiro, destacamos ainda a Série dos Retirantes de Candido Portinari (1944). Atualmente o sertão permanece no imaginário brasileiro, porém, se parte desse imaginário é composto pelo repertório imagético das obras literárias, cinematográfica e pictóricas mencionados acima, o sertão na contemporaneidade continua a ser explorado e revisitado nas produções artísticas desenvolvidas pelos artistas que elegem a paisagem sertaneja ou o sertão como: tema, objeto, lugar de intervenção ou ação de seus trabalhos. Para melhor situar como o sertão é revisitado
na produção contemporânea de artes visuais, entendemos que a obra “Casas do Sertão” de Maristela Ribeiro é um bom exemplo de como a arte contemporânea vem contribuindo para a construção do imaginário que envolve a paisagem sertaneja, sobretudo, para resignificá-la. Nosso intento neste ensaio é justamente aludir os novos significados atribuídos à paisagem sertaneja e ao sertão na poética de Maristela Ribeiro. A artista visual Maristela Ribeiro atua no meio cultural da Bahia e região desde os anos 1990. A região de Feira de Santana, onde a artista vive e trabalha, transforma-se em objeto de reflexão poética na sua produção artística, principalmente, na obra “Casas do Sertão” quando a artista desvenda os laços de afetividade entre os moradores da cidade de Morrinhos, suas casas e a paisagem sertaneja. Maristela Ribeiro ilumina essa relação de afetividade quando desenvolve suas intervenções artísticas nas casas dos moradores, pois as casas, as ruas e a cidade deixam ser apenas um cenário onde as pessoas transitam diariamente, mas uma paisagem que é vivida, parte da compreensão de mundo dos habitantes locais e uma grande amostra do sentimento de pertencimento entre eles e a paisagem que habitam. A obra “Casas do Sertão” nos mostra a evidente integração dos habitantes da região com a paisagem sertaneja, no entanto, de um modo totalmente diferente do repertório construído pela obra de Euclides da Cunha ou pelas pinturas de Candido Portinari. A obra “Casas do Sertão” é um projeto de empoderamento. O olhar poético de Maristela Ribeiro emancipa a paisagem sertaneja do imaginário social que vincula o sertão à ideia de terras não quistas, onde todos que lá habitam procuram um modo de fuga. “Casas do Sertão” revela a beleza e a sensibilidade necessária para a apreciação da paisagem sertaneja. A obra de Maristela Ribeiro possui esse poder, sobretudo, porque é uma obra construída com os habitantes do sertão, ou seja, com quem olha para a paisagem sertaneja sabendo que essa é o seu mundo vivido. É notável e tocante, o modo como os moradores de Morrinhos receberam e interagiram com a obra “Casas do Sertão”. Quando questionados sobre as interferências realizadas em seus lares pela
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ARTES VISUAIS artista, os moradores respondem com alegria e satisfação, demonstrando apreço e gratidão pelas belas paisagens que fazem parte dos seus lares. Logo, tornam-se evidentes os laços de afetividade que compõem a obra: a relação de pertencimento entre os habitantes e paisagem sertaneja. Para o antropólogo Tim Ingold (2002) as experiências vividas pelos homens são partes constituintes da paisagem onde as pessoas vivem, portanto, a paisagem é lugar de habitação e o habitar é uma ação dada no tempo. Neste sentido, Maristela Ribeiro resignifica o sertão no imaginário brasileiro, pois, o sertão deixa de ser um lugar de sofrimento ou um território que causa estranhamento, mas um lugar de tranqüilidade, de alegria e encantador. Sobretudo, uma paisagem fundada nas experiências vividas pelos moradores de Morrinhos, desvendado os sentidos de pertencimento necessário para a compreensão do sertão brasileiro na contemporaneidade. O olhar poético de Maristela Ribeiro dá visibilidade a uma importante lição deixada por Guimarães Rosa na sua obra Grande Sertão: veredas, que o sertão é “dentro da gente”. Assim, o sertão não é um território definido pelos termos geográficos utilizados por Euclides da Cunha na descrição desenvolvida no capítulo Terra, ao contrário, o sertão é um universo afetivo de quem vive, habita e lhe pertence. O sertão como casa, morada, habitação na obra de Maristela Ribeiro ultrapassa a beleza formal, certamente, as imagens que compõem as interferências nas casas são belíssimas, mas, a apreensão do sentimento de pertencimento entre os habitantes e a paisagem local é sensivelmente uma beleza que transborda os padrões formais, pois toca nossos espíritos. Nas palavras de Maristela Ribeiro “a casa é extensão do sujeito” 1. O sertão-casa está dentro da gente.
INGOLD, Tim. The Perception of the Environment. London and New York: Routledge, 2002. RIBEIRO, Maristela Santos Almeida. Casas do Sertão. In: Anais do 22º Encontro Nacional ANPAP, Belém, Pará, 2013. WYLIE, John. Paysage - Manières de voir. Trad. Xavier Carrère. Paris : Actes Sud, 2015. Sites Consultados http://www.fotografiaecultura.com/2014/05/14 /maristela-ribeiro-morrinhos-nao-se-ouve-e-naose-ve-ninguem-feira-de-santana/ (acesso: dezembro de 2016) maristela-ribeiro.blogspot.com (acesso: dezembro de 2016) https://www.youtube.com/watch?v=1Nbl3n78 Uwo (acesso: janeiro de 2017) https://www.youtube.com/watch?v=gWJdhVX ExyE (Reportagem/ Jornal da Band/ acesso: dezembro de 2017) ____________________
Fabíola Cristina Alves é doutora em Artes Visuais pela UNESP e mestre pela mesma instituição. Desenvolveu estágio de doutorado sanduíche na Université Paris 1-Panthéon Sorbonne (bolsa PDSE/CAPES/12 meses). Desde 2011 é pesquisadorado “Laboratório de Pesquisa em Identidade e Diversidade Cultural da UNESP”. Atualmente é colaboradora no SESC/Sorocaba, onde desenvolve ações Referências Bibliográficas formativas em artes. Tem experiência no magistério superior como professora substituta CUNHA, Euclides da. Os Sertões. São Paulo: na UFPR e como pesquisadora convidada do Três, 1984. (Biblioteca do Estudante/ versão Grupo de Pesquisa AESTHETICA da Université digital). Paris 1-Panthéon Sorbonne. GUIMARÃES ROSA, João. Grande Sertão: veredas. Editora: Nova Aguilar, 1994. 50
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O sertão nas esculturas populares do nordeste Bárbara Passeau
“A arte popular não é branca. Tampouco cristã. coloca outra questão: apesar de as histórias Ou não é suficientemente cristã”. contarem a vida no sertão, elas são escritas por litorâneos. Além de termos, portanto, um ponto Eduardo Subirats, 2012 de vista do observador e não do sujeito, pode estar aí a chave para entendermos por que elas são hoje obras consagradas e traduzidas internacionalmente – será que se tivessem sido escritas pelos próprios sertanejos teriam tal “É que neste caso a raça forte não destrói a fraca alcance? Essa dúvida faz com que cheguemos a pelas armas, esmaga-a pela civilização.” um outro oxímoro, esse não euclidiano, entre cultura erudita e cultura popular e, finalmente, à Euclides da Cunha, 1984 amostra escolhida para observação deste trabalho. Para contrapor as narrativas litorâneas, foram escolhidas obras produzidas pelos próprios sertanejos, feitas em suportes com os quais são acostumados a lidar ao longo de toda a vida: o O presente artigo tem como objetivo barro e a madeira. Foram selecionadas apenas contribuir para o estudo do que se convencionou obras assinadas (o que exclui produções coletivas chamar de sertão por meio da observação dessa ou adereços usados em rituais ou festas) e cuja representação em algumas esculturas populares disponibilidade de informações seja satisfatória, já do nordeste. Para tanto, parte-se de análises já que o registro acadêmico das esculturas populares feitas acerca desse tema na literatura, em obras ainda é pouco, por se questionar a sua condição como Os Sertões, de Euclides da Cunha, como arte no circuito institucional. Vale por fim frisar que não tenho a Sagarana, de Guimarães Rosa, A Hora da Estrela, de Clarice Lispector, O Quinze, de Raquel de pretensão de estabelecer um parâmetro Queiroz e Vidas Secas, de Graciliano Ramos, que quantitativo ou definitivo sobre a temática da arte nos ajudam a entender a construção do popular do sertão nordestino, mas propor imaginário sertanejo, para enfim chegar às algumas reflexões acerca da imagem do sertanejo esculturas e suas semelhanças com essa projetada nesse suporte e possíveis comparações representação já estabelecida. Observa-se nas com a imagem já disseminada pela literatura narrativas literárias que o fio condutor estrutura- brasileira. Um bom ponto de partida é a obra do se em uma tensão entre litoral e sertão, sendo o primeiro quase uma miragem que desaparece à Mestre Saúba (1953), ou Antonio Elias da Silva, medida que se chega mais perto, como se o cujo currículo tem início no teatro de bonecos do destino do sertanejo fosse permanecer na sua mamulengo. Hoje ele não mais se apresenta, mas própria condição ao mesmo tempo em que guarda a preocupação com o movimento e sustenta a fé na mudança – basta pensarmos no articulação em suas obras, o que lhes confere um fim que levou Macabéa ou a decisão da família de grande teor narrativo. Não à toa o artista de Chico Bento de entregar seu filho, Duquinha, Carpina, Pernambuco, já foi exposto ao lado de para uma madrinha. A cultura rude da seca é Abraham Palatnik em Máquinas Poéticas, estanque e mesmo a chuva é passageira , não exposição promovida pelo Museu Casa do Pontal altera a natureza da vegetação (ou dos habitantes) em 2011, cuja curadoria procurou explorar a arte do local. Essa dualidade entre a vida que se leva – cinética. Nas figuras 1 e 2 vemos trechos de sua sertaneja – e a vida que se almeja – litorânea, nos obra Chegada do Cangaço, da década de 70. 51
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Figura 1: Chegada do Cangaço, madeira. Mestre Saúba, década de 70. Fonte: MASCELANI, 2009.
luta essa que explicita ainda uma moral diferente da do litorâneo, que recorre à ajuda de um órgão terceirizado para garantir a sua segurança e punir os que têm atitude contra a lei. A cena pode ser considerada violenta para quem vê de fora, mas é retratada com a naturalidade do retrato cotidiano da cultura sertaneja. Uma aproximação pode ser feita com a obra de Mestre Manoel Graciano (1923-2014), de Santana do Cariri, conhecido por seus personagens entalhados em madeira. Dono de cores marcantes, fabricadas com anilina misturada à álcool e outros suportes químicos, ele compôs um estilo de pintar bastante característico, que aproveita o pontilhismo e o exagero das cores dos contornos nas feições para criar uma dose de humor, como vemos nas figuras 3 e 4. O sertão está presente tanto nessa ironia dos personagens, cuja risada não denuncia o que está por trás dela, se dor ou felicidade – um sorriso de Monalisa à sua maneira, quanto na expressão padronizada nos rostos, que ressalta a imobilidade sertaneja e a repetição cotidiana. O tocador da banda de pífanos e o cangaceiro poderiam ser facilmente transpostos, diferenciados apenas pelo figurino e não pelos sentimentos – que parecem estar em segundo plano ou escondidos de propósito. Afinal, o sertanejo é, antes de tudo, um forte.
Figura 2: Chegada do Cangaço, madeira. Mestre Saúba, década de 70. MASCELANI, 2009.
A riqueza de detalhes faz com que a narração do banditismo característico da região seja quase didática, enfatizando a violência em momentos de tortura explícita e um quase exagero da tinta vermelha que cobre os bonecos. A caracterização desses também merece atenção: o artista cuida para que todos estejam devidamente ornamentados como cangaceiros, portando armas, chapéus, cartucheira e lenços, embora não sejam personagens que tenham traços individuais tão marcantes. Um deles poderia ser Augusto Matraga, se o artista pudesse tê-lo lido1, mas a intenção parece ser a de reforçar o espírito de bando sertanejo e a cumplicidade dos homens na situação de luta –
Figura 3: Lampião e Maria Bonita, madeira policromada. Mestre Manoel Graciano, sem data. Fonte: acervo do portal Arte Popular do Brasil
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Figura 4: Banda de Pífanos, madeira policromada. Mestre Manoel Graciano, sem data. Fonte: acervo do portal Arte Popular do Brasil
Figura 6: Brincadeira no pé de caju, cerâmica. Sil da Capela, sem data. Fonte: acervo do portal Arte Popular do Brasi
Se continuássemos na narrativa euclidiana e dividíssemos os artistas em três partes, Saúba abriria a parte da luta, enquanto Manoel Graciano estaria no homem. A terra estaria a cargo de Sil da Capela (1979), ou Maria Luciene da Silva Siqueira, que leva esse nome pela região em que nasceu, no Alagoas. Ao contrário dos outros artistas vistos até aqui, é da própria terra que ela trabalha, moldando no barro as suas obras desde criança, quando viu pela primeira vez uma peça feita em argila, diferente do gesso que adornava as igrejas que conhecia. A relação com a terra, porém, não se limita aí: sua produção artística, em sua maioria, é composta por cenas do cotidiano que têm como eixo central uma árvore, normalmente frutífera, conforme mostram as figuras 5 e 6.
O ambiente é encarado como uma extensão do sertanejo, parte de seu corpo – seu próprio pé. A árvore que dá a fruta também representa a vida e é curioso perceber como nas obras de Sil a expressão dos personagens é marcada pelo sorriso genuíno de quem brinca ou festeja. O lúdico se sobrepõe ao sofrimento da vida seca, talvez como uma comemoração da chuva recente que fez com que as frutas pudessem surgir. Esse aspecto festivo traz também a força do núcleo familiar para o sertanejo, com personagens infantis, casais e grupos compartilhando a mesma cena. Uma natureza oposta aparece nos trabalhos de Marcos de Sertânia (1974), que também leva o nome da região em que nasceu, em Pernambuco. Ao contrário dos personagens de Sil, que têm o corpo e a alma saudáveis, os de Marcos Paulo Lau da Costa são carregados de fome e sofrimento.
Figura 5: Forró no pé de jaca, cerâmica. Sil da Capela, sem data. Fonte: acervo do portal Arte Popular do Brasi
Figura 7: Cachorros, madeira. Marcos Paulo de Sertânia, sem data. Fonte: acervo da Galeria Pontes.
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mesmo nos contam as criações de Manoel Galdino (1929-1996), de São Caetano, Pernambuco. A transcendência do artista encontra residência em peças antropomórficas, animais monstruosos, carrancas e moringas de cerâmica, personagens de um imaginário só seu – e, como sertanejo, esse imaginário traz os traços dessa cultura de forma inconsciente. Tem tom onírico as figuras 9 e 10, São Francisco Cangaceiro (Figura 9) e , Lampião-sereia (Figura 10), respectivamente. Figura 8: Título desconhecido, madeira. Marcos Paulo de Sertânia, sem data. Fonte: ALBUQUERQUE;BELCHIOR;LUZ, 2013.
Na figura 7, temos a mais icônica de suas representações: um cachorro cujas costelas estão já arqueadas, numa representação clássica do sofrimento sertanejo da fome – já retratado anteriormente pela Baleia, de Vidas Secas. Curioso observar que é um dos poucos artistas que traz um animal doméstico nas suas obras, igualando-o aos humanos, como se ambas as formas fossem animalizadas pela condenação própria de sua natureza – também uma forma de retratar o núcleo familiar. Na figura 8, humana, embora também acompanhada pelo cão, vemos as mãos abertas e a cabeça voltada ao céu em tom de súplica, marcando a religiosidade sertaneja – presente mesmo quando a devoção não está em primeiro plano, como nas origens do estudo da escultura popular, que parte da análise dos exvotos e imagens religiosas e que até hoje representam grande parte da produção conhecida. Se no desertão8 a vida parece estar estagnada e a seca restringe as possibilidades de mudança, é justamente ao extraterreno que se recorre para explicar as limitações da vida ou as dificuldades - e não apenas pelos símbolos do cristianismo. O imaginário popular é recheado de mitos que ajudam a explicar o cotidiano e a natureza sertanejos e é na arte que eles criam vida, seja nos repentes, nos cordéis, nas festas e rituais ou nas esculturas. Quando diz que “o sertão está em toda parte”, Guimarães Rosa nos conta que o que não é sertão é transcendente. O
Figura 9: São Francisco Cangaceiro, cerâmica. Manoel Galdino, década de 70. Fonte: MASCELANI, 2009.
Figura 10: Lampião-sereia, cerâmica. Manoel Galdino, década de 60. Fonte: MASCELANI, 2009.
A oposição entre lampião e sereia presente na escultura mostra um ser humano ideal, que 54
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tem a força do primeiro e a sutileza da segunda – aspectos que juntos são inimagináveis na cultura patriarcal dominante. Já o São Francisco desce à terra ao se tornar cangaceiro e confirma não só a oposição entre bondade e crueldade das duas figuras combinadas, mas a ligação de ambas à uma natureza que tem regras próprias – santo, no sertão, tem que ser parte dele. O colonizador não dita as regras, se torna colonizado. Antonio Rodrigues é outro que nos brinda com um realismo fantástico. A sua obra Conselho de Animais (figura 11) questiona com ironia o método civilizado do debate, da reunião, da política, cena que parece incabível entre os animais – ou entre os sertanejos.
de Caruaru, é bastante icônica dessa relação entre o arcaísmo do artista e de seu material e o estilo de vida almejado - outra tensão observável ao longo dessa análise.
Figura 12: Apolo 11, cerâmica. Maria de Caruaru, década de 60. Fonte: MASCELANI, 2009.
Figura 11: Conselho de animais, cerâmica. Antonio Rodrigues, década de 70. Fonte: MASCELANI, 2009.
Ele parece reconhecer o outro e, a partir de seu modo de vida, questionar a própria realidade, utilizando o absurdo para despertar discussões em quem vê a obra. Esse retrato do litorâneo (uma maneira inversa de se fazer a literatura de outro ponto de vista, talvez) é bastante comum entre os ceramistas de costumes – são vários os registros de profissões esculpidas que não existem no sertão, mas que podem ser vistas nos jornais e na televisão – fotógrafos, dentistas, bombeiros e médicos são apenas alguns exemplos. A obra Apolo 11 (figura 12), de Maria
Assim, vê-se uma semelhança entre as narrativas eruditas e populares que abordam o sertão, sendo os traços de sua cultura observáveis tanto na literatura quantos nas esculturas, cada qual à sua maneira. Apesar dessa semelhança, porém, a valorização que se dá a cada uma é bastante divergente e parece depender de quem conta a história. Talvez ainda estejamos presos aos cânones que ditam a qualidade das expressões artísticas e deixemos de lado a importância temática. Entender o sertão (ou qualquer alteridade) passa também por ouvir o que o sertanejo tem a dizer, na forma que lhe cabe, e dar à sua expressão a mesma importância que os discursos já consagrados têm. Se isso não é feito, passamos a construir o outro da maneira como mais nos agrada, isolando-nos em nossa própria cultura e limitando-nos estética e academicamente. 55
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____________________ 1 Saúba era analfabeto, como a maioria dos escultores populares. 2 Disponível em:< http://artepopularbrasil.blogspot.com.br/2011/0 1/mestre-manoel-graciano.html>. Último acesso em janeiro de 2017. 3 Disponível em:< http://artepopularbrasil.blogspot.com.br/2011/0 1/mestre-manoel-graciano.html>. Último acesso em janeiro de 2017. 4 Disponível em:< http://artepopularbrasil.blogspot.com.br/2010/1 2/sil.html>. Último acesso em janeiro de 2017. 5 Disponível em:< http://artepopularbrasil.blogspot.com.br/2010/1 2/sil.html>. Último acesso em janeiro de 2017. 6 Disponível em: <http://galeriapontes.com.br/?portfolio=marco s-paulo-2>. Último acesso em: janeiro de 2017 7 Nas missões folclóricas lideradas por Mário de Andrade nos anos 30, o primeiro volume teve nome “Escultura Popular do Nordeste”, assinado por Luis Saia, embora trouxesse apenas ex-votos – partes do corpo esculpidas em madeira e dedicadas aos santos como agradecimento a uma promessa conquistada. 8 Há a hipótese que o termo sertão tenha origem do aumentativo de deserto, usado pelos colonizadores portugueses e depois ressignificado em solo brasileiro.
74, 2000. CUNHA, Euclides da. Os Sertões. São Paulo: Três, 1984. FROTA, Lélia Coelho. Pequeno dicionário da arte do povo brasileiro. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2005. INSTITUTO DO IMAGINÁRIO DO POVO BRASILEIRO (org.). Textos: Maria Lucia Montes. Teimosia da Imaginação - Dez Artistas Brasileiros. São Paulo: Martins Fontes, 2012. MASCELANI, Angela. A casa do Pontal e suas coleções de arte popular brasileira. Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, n.28, Rio de Janeiro, IPHAN, 1999. __________, O Mundo da Arte Popular Brasileira. Rio de Janeiro: Mauad Editora, 2009. MUSEU CASA DO PONTAL. Acervo. Disponível em: <http://www.museucasadopontal.com.br/ptbr/busca-completa>. Último acesso em: janeiro de 2017. ____________________
Barbara Passeau é mestranda em Abordagens Teóricas, Históricas e Culturais da Arte, programa do Instituto de Artes da UNESP. Desde a especialização, em Mídia, Informação e Cultura, Referências estuda as manifestações da cultura popular brasileira e suas relações com o circuito ALBUQUERQUE, Flavia Martins; COIMBRA, Silvia institucional vigente. Rodrigues; DUARTE, Maria Letícia. O reinado da lua: escultores populares do nordeste. Recife: Caleidoscópio, 2010. ALBUQUERQUE, Flávia Martins; BELCHIOR, Pedro; LUZ, Rogerio. Nova fase da lua: escultores populares de Pernambuco. Recife: Caleidoscópio, 2013.
BEUQUE, Jacques Van de. Arte Popular Brasileira. Mostra do Redescobrimento. p. 64 a 56
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Canudos: uma ou duas histórias José Spaniol
Estive na cidade de Uauá, na Bahia, pela primeira vez em 1983, no mês de dezembro, e lá permaneci até 20 de janeiro de 1984. Na bagagem levei o livro Os Sertões, de Euclides da Cunha. Durante as semanas seguintes pude ler o famoso romance sobre a guerra de canudos, exatamente no local onde ocorreu a primeira batalha do conflito. A leitura permitia que eu confrontasse os relatos de Euclides com a paisagem a minha frente e as histórias que eu ouvia pelas ruas da cidade.
I O olhar de Marcelino. Marcelino, descendente quilombola, ficou famoso na cidade pela propriedade rara de seu olhar. Pela manhã, antes de alimentar-se, não podia olhar para nada que fosse vivo, que invariavelmente o ser adoeceria ou morreria. Precisava alimentar-se para controlar a força de seu olhar. Ganhava vida engraxando sapatos na casa de moradores da região. Dona Urânia, uma de suas clientes, tinha uma criação de galinhas. Sempre após as visitas de Marcelino, as galinhas adoeciam. Quando via um urubu comendo a carne de Sol estendida no telhado de sua casa, bastava Marcelino abanar mansamente o chapéu para o bicho, que este invariavelmente levantava um voo trêmulo para cair mais à frente já sem vida. 57
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II A chuva ainda não caiu. O ar amanheceu muito fresco numa das manhãs daquele janeiro. Depois de uma das maiores secas do sertão, o chão todo esturricado, a caatinga seca e retorcida, chamava atenção aquela brisa fresca logo pela manhã. Cabo Ferreira, meu vizinho da frente, trombonista pontual dos finais de tarde quando chegava em casa. Perguntei a ele, grande observador da paisagem sertaneja e da monotonia do entardecer, qual o motivo daquela manhã fresca. Sem abandonar o que fazia, sem olhar para mim, respondeu dizendo que era chuva. Imediatamente olhei para os lados, para o horizonte, imaginando enxergar a chuva caindo a distância, mas não vi nada. Continuava tudo seco. Perguntei novamente onde estava chovendo? Ao que me respondeu no mesmo tom: aqui. Achei que era uma provocação ou uma brincadeira. Insisti, mas está tudo seco, não há nem sinal de chuva. Ao que me respondeu novamente, ainda não caiu mas está baixando.
III A chuva caiu. Durante a madrugada uma tormenta atingiu a cidade, coisa tão rara que fez aparecer todas as goteiras no telhado. Dentro de casa também chovia. No dia seguinte, caminhando nos arredores da cidade, onde costumava passear para verificar os relatos de Euclides da Cunha, descobri que a pequena estrada rural era, na verdade, um Ribeirão, que na madrugada voltou a ser o leito das águas da chuva. A caatinga seca e torcida, aparentemente morta, empoeirada, já começava a brotar pela manhã. Uma semana após o temporal, descobri a flor do Mandacaru. Uma experiência reveladora para compreensão do temperamento sertanejo e os seus contrastes.
No sertão é assim, após um longo período de seca, a chuva não atingi o solo apenas com uma única precipitação. Durante a queda, com atmosfera extremamente quente, inicia-se uma nova evaporação. Dessa maneira, a chuva mantém-se em suspensão, entre a queda e a evaporação permanece ainda no ar as vezes por horas. 58
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A beleza do vermelho aveludado da flor transforma-se também em armadilha quando tentamos tocá-la. Esse aveludado era formado por uma fina e delicada camada de espinhos. Quando bati as mãos tentando retirar aquele pozinho da ponta dos dedos, na verdade espalhei ainda mais os espinhos. Meses depois, já novamente em São Paulo, ainda tinha que eventualmente pegar uma pinça para arrancar um dos espinhos inflamados.
do Estado de São Paulo (2016), participou da SPArte, Feira de Arte de São Paulo, representado pela Dan Galeria (2016), da mostra Clube de Gravura: 30 anos, curadoria Cauê Alves, Museu de Arte Moderna de São Paulo (2016), do Projeto ÉTER, exposição coletiva na Faculdade de Belas Artes / Universidade do Porto, em Portugal (2017), e realizou a exposição individual TIUMMMMTICHAMM na DAN Galeria em São Paulo (2018).
____________________ José Paiani Spaniol é Doutor em Artes pela ECA/USP. Artista Plástico e Professor Doutor, formou-se em 1983 na Faculdade de Artes Plásticas da Fundação Armando Álvares Penteado - Faap, em São Paulo. Atualmente é professor no Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista (UNESP, Departamento de Artes Plásticas, campus São Paulo). Nos últimos anos realizou a exposição individual Tiam Schuoomm Cash! no Octógono da Pinacoteca 59