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A ideia de América Latina tem várias vertentes, que tratam de unir a diversidade de seus povos autóctones, a brutal colonização que trouxe uma plêiade de etnias e culturas, que reagindo, unindo-se ao outro, formaram um grande mosaico cultural, social e linguístico. A própria definição América Latina, ou seja, uma região onde dominam as línguas latinas é imprópria, pois apaga as línguas nativas, o quéchua, o aymara e o idioma Nahuatl dos astecas, que tinha uma escrita estabelecida. Deste idioma vem as palavras tomate e chocolate tão usadas no mundo moderno (produto e nomenclatura), hoje os linguistas já reconhecem com inventores da escrita os sumérios e os astecas. Neste número a Palau trás várias contribuições que discutem o conceito cultural e social da dita América Latina. Temos um artigo que celebra a obra do antropólogo e escritor peruano José María Arguedas, lembrando o cinquentenário de seu desaparecimento em 1969. Arguedas foi um grande falante e defensor da língua e cultura quéchua, língua dos Incas, que tiveram um império que cobria toda a costa andina da América do Sul, e que deixaram uma cultura e destacadamente uma arquitetura monumental e misteriosa em sua construção que assombra a humanidade até hoje. O cinema e a literatura latino-americana estão representados através de uma análise da adaptação para o cinema do livro O beijo da mulher aranha de Manuel Puig, que tinha como marcas de estilo a paródia e a crítica social. Da paródia fala mais detalhadamente o artigo que trata de temas da pós-modernidade e da influência que ela tem no discurso artístico, na literatura de Puig, no cinema de Pedro Almodóvar, que tanta relação tem com a américa hispânica (outro termo não muito preciso), entre outros autores. Dois artigos tratam da crítica as artes em nosso contexto social, mostrando que ela segue muito ligada a teóricos anglo-saxões e europeus, quando deveria olhar para nossos representantes. Como contribuição para este volume temos um artigo que trata da obra imortal de Miguel de Cervantes El Quijote, através de suas adaptações cinematográficas e suas influências visuais, como Velázquez e Goya. Outro artigo trata de Walter Lewy, judeu alemão que teve plena realização artística em terras brasileiras. E destas mesmas terras brasileiras trata o conto Aos pedaços, que fala do imaginário de uma pequena comunidade, tão definida localmente e tão universal em seu imaginário. Fecha o volume a contribuição inestimável de um ensaio, que investiga com profunda iluminação intelectual, a trajetória dos pensadores latino-americanos, que mesmo se sentindo estrangeiros, tem que refletir sobre a vida e a sociedade que parece desterrada em seu próprio e invadido território. Prof. Dr. João Eduardo Hidalgo e Prof. Dr. José Leonardo do Nascimento Editores Palau.
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O antropólogo e escritor José María Arguedas nasceu no seio de uma família abastada branca, no dia 18 de janeiro de 1911, na pequena cidade de Andahuaylas, Departamento de Apurímac, Peru, no sudeste do país, distante de Lima quase 800 quilômetros. Seu pai, advogado, viajava constantemente, pelos povoados do Peru. Com apenas três anos morre sua mãe, em 1917 seu pai se casa novamente com uma viúva, dona de várias propriedades e que tem um filho que, segundo consta, será uma presença nefasta na primeira infância de Arguedas. Estes fatos da biografia são considerados por ele e pela maioria de seus críticos como fundamentais no entendimento da sua obra, seja como antropólogo, seja como ficcionista. Supostamente rejeitado pela madrasta e pelo meio irmão de criação, Arguedas encontrou refúgio com os índios que trabalhavam na fazenda. Aprendeu com eles a língua e a cultura quechua, cresceu ouvindo suas lendas e suas histórias. Aprendeu primeiro a manejar o quechua e depois o espanhol e tornou-se desde a infância um bilingüe, podia tanto entender todo o universo dos empregados que serviam à sua família, como se situar no universo dos que estavam acima. Essa dualidade perpassa toda a obra de Arguedas; às vezes é vista por ele como algo destrutivo, pois o seu coração é dividido. Ele
compactua com os ideais de liberdade e igualdade dos índios, mas vive dentro da sociedade dominante, branca, criolla. Em 1926, junto com o seu irmão mais velho, Arístides Arguedas Altamirano, matricula-se em um colégio em Ica. Neste mesmo ano José Carlos Mariátegui funda o jornal Amauta, onde defende a corrente literária chamada Indigenismo, na qual Arguedas será enquadrado como escritor. Muda-se com o pai para Huancayo em 1928; começa a publicar pequenos textos no jornal estudantil Antorcha, é assíduo leitor de Amauta. Em 1931 chega à Lima para estudar Humanidades na Universidad Nacional Mayor de San Marcos. No ano seguinte morre seu pai. Sem recursos trabalha como auxiliar de correios para manter-se. Em 1935 aparecem seus primeiros livros: Agua, Los escoleros, Warma Kuyay. Com alguns amigos Arguedas funda, em 1936, a revista estudantil Palabra na Faculdade de Letras de San Marcos. Militante antifascista, é encarcerado no presídio El Sexto por quase um ano, fato que vai gerar um romance com o mesmo nome. Na prisão prepara seu livro Canto Kechwa, que será publicado logo após sua libertação em 1938. Em fevereiro de 1939 é nomeado Professor de Castelhano e Geografia no Colégio Mateo
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Pumaccahua de Sicuani, província de Canchis. Em junho do mesmo ano casa-se com Celia Bustamante Vernal. Colabora com regularidade com o La Prensa de Buenos Aires. No ano seguinte participa do Primer Congreso Indigenista Interamericano de Pátzcuaro, México, como convidado. Publica Pumaccaha e Yawar fiesta. Em 1941 volta à Lima para colaborar na reforma dos Programas de Educação Secundária. Em abril de 42 é nomeado Professor de Castelhano no colégio Nacional Alfonso Ugarte, no ano seguinte é nomeado Professor de Castelhano no colégio nacional de Nuestra Señora de Guadalupe. Sofre neste ano pela primeira vez o que ele chama de doença psíquica e fica sem escrever por vários anos. Em 1946 matricula-se no recém criado Instituto de Etnologia de San Marcos, no ano seguinte é nomeado Conservador de Folklore no Ministério da Educação e cinco anos depois torna-se chefe da Seção de Folklore. É nomeado em 1953 Chefe do Instituto de Estudos Etnológicos do Museo de la Cultura. Como Secretário do Comitê Interamericano de Folklore, funda a revista Folklore Americano, publica “Cuentos mágico-realistas y canciones de fiestas tradicionales. Foklores del Valle del Mantaro. Provincias de Jauja y Concepción.” Publica também o livro Diamantes y pedernales. Em janeiro de 1956 é nomeado Diretor de Cultura pelo General Odría; não aceita o Cargo. Neste mesmo ano publica “Puquio, una cultura en proceso de cambio”. Em 1957 torna-se Bacharel em Etnologia com a tese “Evolución de las comunidades indígenas. El Valle de Mantaro y la ciudad de Huancayo; un caso de fusión de culturas no comprometida por la acción de las instituciones de origen colonial.” Em 1958 publica o seu livro mais conhecido e considerado o melhor de sua produção ficcional, Los ríos profundos. Reside na Espanha com uma bolsa de estudos da Unesco, preparando sua tese de doutorado sobre a origem hispânica das comunidades indígenas. Volta à Lima e começa a lecionar em San Marcos, com o curso “Introducción a la Etnología”. Seguirá dando vários cursos em San Marcos e a partir de 1962 lecionará quechua na Universidad Nacional Agraria , La Molina. Publica, em 1962, El sexto, referindo-se à experiência de sua prisão em 1937. Publica uma coleção de contos e compilações de cantos quechuas, La agonía de Rasu Ñiti; Túpac
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Amaru Kamaq taytanchisman, hayllitaki (A nuestro padre creador Túpac Amaru, himno canción). Em 1963 apresenta sua tese de doutorado no Instituto de Etnologia da Universidad Nacional Mayor de San Marcos, que tem como título “Las comunidades de España y del Perú”. Em agosto do mesmo ano é nomeado Diretor da Casa de la Cultura del Perú. Funda a revista Cultura y Pueblo e o programa “Teatro para el pueblo”, reanima os prêmios “Fomento a la cultura”. Em novembro organiza a Mesa Redonda sobre el monolingüismo quechua y aymara y la educación en el Perú. Publica Todas las sangres, em 1964, e, hostilizado pelos APRA-UNO1, renuncia de seu cargo de Diretor da Casa de la Cultura. Em setembro é nomeado Diretor do Museo Nacional de Historia, funda a revista Historia y Cultura. Liga-se a Sybila Arredondo, com a qual se casará alguns anos depois. Esta sua segunda esposa trará mais instabilidade à sua vida emocional e criará consequências imprevistas ao destino futuro de sua obra. Publica El sueño del pongo, no ano seguinte. Em 1966, muito angustiado pelos cortes e demissões que é obrigado a fazer como diretor do Museo Nacional, tenta suicidar-se, renuncia ao cargo e pede aposentadoria. Publica Dioses y hombres de Huarochirí. Leciona na Universidad Agraria de La Molina, participa de um projeto de recompilação da literatura oral , existente entre a Universidade e o Ministério de Educação. Em 1967 publica Amor Mundo y todos los cuentos. É nomeado professor na Facultad de Ciencias Sociales de La Molina, casa-se com Sybila Arredondo. No ano seguinte viaja a Cuba como jurado do prêmio “Casa de las Américas”, em setembro pede afastamento temporário de La Molina; publica-se pela Universidad de San Marcos sua tese de doutorado, Las comunidades de España y del Perú. Em outubro de 1969, reintegra-se à Universidad Nacional Agraria de La Molina. Em 28 de novembro, dentro de um banheiro do departamento de Ciências Sociais, frente a um espelho, dispara duas balas na cabeça, morre em 2 de dezembro e é enterrado em Lima. Arguedas em alguns momentos de sua vida foi atormentado pelo fracasso, era tomado pelo sentimento de que tinha falhado no projeto de mostrar através de seus ensaios antropológicos e sua ficção, o quão complexo e rico era o mundo quechua.
A) El monolingüismo en algún idioma nativo, el uso del traje típico, la práctica de ritos y fiestas relacionadas con la religión y los dioses locales, la práctica de formas cooperativas tradicionales de trabajo como rasgos distintivos del indio y no los de tipo biológico. B) El mestizo descendiente de la casta mestiza colonial y las tradicionales ocupaciones artesanales de las villas. C) El nuevo comercio ( intermediarios, acaparadores de productos en menor escala, dueños de pequeñas tiendas, choferes dedicados al transporte, etc.) y la escolaridad recientemente difundida y factores que han hecho surgir el nuevo estrato denominado “cholo emergente”, del seno de la masa indígena y de la propia mestiza tradicional. D) Los antiguos grandes y pequeños terratenientes6, el personal de la adiministración estatal como estrato social en las pequeñas ciudades. Los apellidos y la ocupación. La actividad económica, el desarrollo del comercio, como factores modificantes de la antigua estructura de la estratificación social. E) La iniciación de la ruptura de las relaciones de tipo de castas o estratos cerrados entre indios, mestizos y “blancos”. Agudización de estas contradiciones en tanto que la ruptura de los límites de estratos cerrados ha hecho surgir nuevos estratos más dinámicos o ha convertido en más dinámicos a sectores de los propios estratos antes cerrados. F) Relativa modernización de la producción, su influencia en la movilidad espacial y social. Los grupos conservadores reacios tanto en el estrato “blancos” como en el indio. E. Modificaciones en la estructura social tradicional de la costa: a) La industrialización de la explotación de los grandes latifundios y el debilitamiento del vínculo de la oligarquía latifundista, con sus tradiciones nacionales criollas. Adopción creciente de los patrones norteamericanos en sus hábitos, formas de recreación, viviendas, etc. Desaparición de las “aristocracias” provincianas y su concentración en Lima. B) Relativa expansión de industrias ligeras no de transformación sino de confección: la industria farmacéutica, el montaje de automóviles, televisores, etc. El acaparamiento casi total por capitales norteamericanos de las pequeñas industrias nacionales, tales como la fabricación de aguas gaseosas, las desmotadoras de algodón, etc. C) Numérico incremento de la clase media en las ciudades, por la migración interna. Tendencia fomentada y dirigida por los grandes medios de propaganda y difusión, de esta clase media creciente hacia patrones de conducta norteamericana. D) Masivo crecimiento de la población inmigrada de la sierra. Las amorfas y gigantes barriadas marginales de Lima y otras ciudades de la costa. Los centenares de barrios
Olhando o conjunto de sua obra, ve-se anos de admirável constância de trabalho dedicado a uma variedade de áreas do conhecimento tocantes à arte popular, etnologia, evolução cultural e constituição de um projeto nacional; sem dúvida ele logra expressar com lucidez as potências criativas com que o homem andino contribuiu para a construção de um novo Peru. Uma sociedade de índios, senhores e mestiços. A organização social peruana é muito complexa, envolvendo vários estratos e teve uma evolução bastante peculiar nos séculos que se seguiram à colonização. Arguedas dedicou grande parte de sua obra à compreensão desta sociedade de cultura tão mesclada. Ele nunca teve uma visão dicotômica da sociedade peruana, ou seja, aquela em que uma grande massa indígena é explorada por patrões feudais, descendentes dos colonizados espanhóis. O título deste item, índios, mestiços e senhores, é o título de uma coletânea de artigos de Arguedas publicada em 1985, e que pode ser usado para representar os três grandes grupos que compõem a sociedade peruana. Mas estes grupos têm linhas de separação muito tênues, que se confundem em vários pontos. Em seu estudo intitulado “Etnologia del área andina”2, encomendado pelo Instituto de Etnologia de La Habana, Cuba, Arguedas faz um esboço de vários aspectos da sociedade andina, os principais itens são: economia, meio geográfico, religião, línguas. O que mais desperta interesse neste trabalho é a sua sistematização da estrutura social peruana da época. “II. Estructura social del grupo La estructura tradicional en crisis en el área serrana: 1. Comunidad indígena, villa de composición más compleja, ciudad. 2. Estratificación social en las comunidades indígenas tradicionales: edad y status. Grados y cantidad de cargos públicos y religiosos desempeñados y status. Grado de instrucción y status. Cuantía de tierras y ganado y status. Grado de instrucción y de experiencia urbana, grado y cuantía de servicios prestados a la comunidad y liderazgo. 3. Estratificación social en las villas asiento de vecinos, mistis3, wiraqochas4, mestizo y cholos5. (Vecino, misti, wiraqocha, amito, términos con que los índios nombran a los individuos pertenecientes al estrato impropiamente denominado blanco).
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marginales de Lima, clientela de fábricas y servicio doméstico barato pero al mismo tiempo fuertes centros de resistencia y difusión de la cultura tradicional. E) Tensiones aún contenidas entre las barriadas y la ciudad. Agudo problema, en un futuro muy próximo, de relaciones violentas entre las masas que habitan las barriadas y las clases medias y altas. F) Los millares de clubes distritales en que están organizados los migrantes provincianos, especialmente serranos a la capital. Estos clubes como centros de cohesión y defensa y de vinculación entre la gran masa de población emigrada a Lima y sus lugares de origen. G) La gran difusión alcanzada por la música y danza tradicional serrana en Lima y otras ciudades de la costa, donde este arte fue considerado como vergonzante. La música y la danza como elementos de cohesión social y de mantenimiento de la personalidad regional en las grandes ciudades.” Este estudo foi encomendado em 1968, quando Arguedas visitou Cuba como jurado de um concurso na Casa de Las Américas. Foi publicado em 1972, pelo Instituto de Etnologia de La Habana, três anos após a morte de Arguedas. No livro onde esse artigo foi publicado não se precisa a data em que ele foi enviado à Cuba. Supõe-se, pelo espaço de um ano da visita à Cuba e sua morte, que ele foi escrito no final de 1968 ou início de 1969, o que o situa na época de plena maturidade de Arguedas. Este artigo, de apenas seis páginas, trás um estudo detalhado de vários aspectos do cotidiano das populações andinas, e é de suma importância quando se pensa em fazer uma revisão de toda a teoria Arguediana de cultura quechua. Ele retoma vários pontos, corrige e enriquece visões anteriores. O ponto mais importante do estudo sem dúvida é sua análise detalhada da organização social da época. Arguedas separa em sua análise a estrutura social serrana da estrutura da costa, pois ele entende que o ambiente físico exerce uma grande influência sobre o comportamento dos grupos. Em outro artigo, La sierra en el proceso de la cultura peruana7, ele coloca: Era imprescindible, para los fines de este breve ensayo, determinar con la mayor claridad posible las relaciones que existen entre el habitat y el hombre; y es, además, igualmente importante establecer las relaciones que existen entre la raza, el habitat y la cultura; pues el conocimiento de esas relaciones nos dará la explicación más aproximada de las causas por las
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cuales se habla en el Perú de costa, sierra y montaña, no sólo con significación geográfica sino cultural. Y el difícil problema ha sido felizmente, uno de los temas mejor estudiados por la antropología moderna, pues, como para el caso del Perú, su esclarecimiento era necesario para el conocimiento real de cualquier cultura.” 8 Ele vê como determinante nas relações sociais essa influência que o entorno exerce sobre a vida cotidiana, e principalmente a força que ela tem sobre o imaginário dos indivíduos. Um exemplo disto é o culto às montanhas9, elas são consideradas entidades vivas, eternas, que tem muito a ensinar aos homens; por isso as relações sociais nestas áreas tomam uma dimensão diferente da região costeira, que também possui as suas peculiaridades. Tomando como partida o estudo de etnologia na região serrana, vê-se como ele separa os estratos sociais dentro da dimensão dos agrupamentos. Por exemplo dentro das comunidades indigenas tradicionais, vários são os fatores de determinação da posição social do indivíduo, como: a idade, o número de cargos públicos ocupados, grau de instrução, propriedades em terras ou bens. A raça não é um fator determinante pois dentro de uma comunidade indígena supostamente todos pertencem à mesma raça. Já nos pequenos povoados e vilas ele encontra um grande complicador das relações sociais. Nestes assentamentos o número de indivíduos pertencentes às diversas raças, mescla-se ao enquadramento pela posse de bens, instrução, influência social, grau de instrução. Este fenômeno faz surgir nomenclaturas estranhas, e que às vezes não retrata o nicho que o indivíduo realmente ocupa dentro da sociedade. Quando ele organiza os dados de um assentamento em uma pequena vila, Arguedas encontra a seguinte organização: vecinos, mistis, wiraqochas mestiços e cholos; dentro deste conjunto pode-se dizer que existem realmente três grandes grupos, pois os vecinos, mistis e wiraqochas são todos do estrato impropriamente denominado como branco ou criollo. Cada denominação misti, wiraqocha diz respeito as suas posses materiais e não à raça, pois um índio com grandes propriedades pode ser nomeado como misti e não mestiço ou índio, dentro destas vilas. Na costa ele encontra os seguintes fatores influindo nas relações sociais: industrialização; migração dentro da própria região e migração de pessoas da região serrana; desaparecimento das aristocracias e o crescimento da classe média.
A industrialização trouxe novos hábitos e costumes, muitas vezes estrangeiros, e minaram ou fizeram desaparecer antigas aristocracias. Isto somado à migração fez com que crescesse bastante a classe média urbana. A migração das populações serranas em direção à capital, Lima, fez com que a cidade crescesse desordenadamente, com bairros periféricos, sem nenhum tipo de saneamento e urbanização, constituindo as imensas favelas “barriadas” (foto), que fornecessem mão de obra barata para as fábricas e indústrias Dentro deste conjunto de fatores sociais tão complexos os estratos sociais perderam totalmente o seu antigo significado. Surgiram núcleos de divulgação da música índia, do folclore, dos costumes, mas estas manifestações estão dentro de um processo ainda hoje em evolução. Arguedas apontou para vários pontos fundamentais na compreensão da estrutura social, mas hoje existem outros, como por exemplo a influência da mídia na vida dessas pessoas. Falar quechua, participar de algum grupo de folclore na capital, muitas vezes funciona como fator de exclusão do indivíduo em círculos sociais mais elevados, onde o monilingüismo espanhol é predominante e desejado. Desde a publicação deste estudo de Arguedas a situação continuou em evolução. Deve-se ressaltar a importância dada por Arguedas ao mestiço:
Infere-se que Arguedas tem consciência de que a cultura quechua não é algo utópico, que visa preservar uma cultura original, pura, como entendem muitos de seus críticos. Ele tem uma visão muito dinâmica do complexo cultural no Peru, a cultura que ele procura preservar é a cultura atual que é uma cultura que surgiu dos ensinamentos e lendas ancestrais que interagiram com a cultura do invasor, uma cultura mestiça. Para muitos o mestiço no Peru não passa de “un borroso elemento de la clase media” (Luis E. Valcárcel em artigo no El Comercio), mas Arguedas mostrou em seus estudos como Evolución de las comunidades indígenas, que trata das comunidades do Vale do Montaro e da cidade de Huancayo (foto), que o mestiço constitui, como neste caso, a quase totalidade da população na maioria das cidades e povoados peruanos. No ensaio sobre “El complejo cultural en el Perú”11 ele acrescenta:
“El hombre asimilado a la cultura occidental constituye una minoría en las aldeas y pequeñas ciudades de la sierra. En la misma ciudad del Cuzco y en las otras ciudades serranas importantes como Ayacucho, Arequipa, Cajamarca, Huaraz, Puno, Jauja, Tarma, Huancayo, Cerro de Pasco y Huancavelica, ¿quiénes constituyen la mayoría de la población? ¿Los hombres de cultura occidental? ¿Los indios? No, los mestizos; pues muchos de los hombres pertenecientes a la clase denominada “alta”, por representar en tales ciudades a la civilización moderna y a causa de su poderío económico, tienen mayores vínculos de los que se supone, con valores característicos surgidos de la mezcla de lo occidental y lo indio: cantan en versos bilingües (quechua-español), bailan huaynos, beben “Durante siglos, las culturas europeas e india han chicha.” 12 convivido en un mismo territorio en incesante reacción mutua, influyendo la primera sobre la otra con los crecientes medios que su potente e incomparable dinámica le ofrece; y la india O Indigenismo como movimento: a teoria de defendiéndose y reaccionando gracias a que su ensamblaje José Carlos Mariátegui e a posição de José María interior no ha sido roto y gracias a que continúa en su medio Arguedas. nativo; en estos siglos, no sólo una ha intervenido sobre la otra, sino que como resultado de la incesante reacción nutua ha Dentro da literatura do Século XX o aparecido un personaje, un producto humano que está Indigenismo é um movimento político-social que se desplegando una actividad poderosísima, cada vez más desenvolveu nos anos vinte em alguns países da importante: el mestizo. Hablamos en términos de cultura; no América Latina. Esses países todos da região andina, tenemos en cuenta para nada el concepto de raza. Quienquiera como Bolívia, Equador e Peru tem grandes massas puede ver en el Perú indios de raza blanca y sujetos de piel indígenas, oprimidas pelo sistema semifeudal cobriza, occidentales por su conducta. (...) implantado desde a colonização. O movimento tem El conocimiento del mestizo es esencial para la buena como principal característica mostrar o índio a partir orientación de todas las actividades nacionales en el Perú: la de uma perspectiva mais realista e recuperar o valor e educación, la sanidad, la producción, los cálculos acerca de las a importância das culturas autóctones americanas. posibilidades y el destino del país.”10 O principal teórico do Indigenismo foi o
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peruano José Carlos Mariátegui e os seus principais representantes são: o boliviano Alcides Argüedas com obras como Wata Wara, Raza de bronce; o equatoriano Jorge Icaza com Huasipungo, Cholos; e os peruanos Ciro Alegria com El mundo es ancho y ajeno e José María Arguedas (foto) com Los ríos profundos, Todas las sangres, El zorro de arriba y el zorro de abajo. O critico uruguaio Ángel Rama, na introdução que faz à coletânea de ensaios de Arguedas Formación de una cultura indoamericana, por ele organizada, define o Indigenismo como:
antiga visão, sem fundamentação alguma, de que o índio atual do Peru é um sujeito degenerado pelo álcool, pela coca e pelo próprio estado de servidão a que foi submetido. Historiadores ligados ao movimento chamaram a atenção para as arbitrariedades cometidas contra este povo autóctone. Eles concluíram pelas crônicas e relatos que chegaram até nossa época que nas primeiras oito décadas da implantação colonial espanhola, mais ou menos 7 milhões de índios foram exterminados, de uma população estimada de 10 milhões. Esta revisão dos papéis sociais e o novo posicionamento destes intelectuais colocava a aristocracia criolla em uma posição bem desconfortável historicamente. A corrente dos hispanistas foi fundada e tinha como principais representantes José de la Riva Agüero e Víctor A. Balaúnde. Riva Agüero e Balaúnde pertenciam à aristocracia criolla; eles consideravam o período da colônia como a “Idade Média”, tempo em que se gestou um país, analisavam a história e reverenciavam a grandeza do Império Incaico, mas não se ocupavam do índio marginalizado. Arguedas caracteriza o hispanismo da seguinte maneira:
“Este término, indigenismo, quedó acuñado por la generación pos-modernista latinoamericana, siendo ella la que le confirió el significado con el cual fue aceptado en todo el continente. Como en los ejemplos paralelos y contemporáneos del “negrismo” antillano y del “revolucionarismo” mexicano, se trató de una formulación local, peculiar, referida a la problemática cultural de la región, de esa tendencia generalizada, regionalista, criollista, nativista, que se posesionó de América Latina con posterioridad al novecentismo modernista, desarrollándose en la década de los diez y los veinte: propuso una nueva apreciación de la realidad y del funcionamiento de las sociedades del continente que estaban modernizándose, a través de la óptica de los sectores de la baja clase media en ascenso, quienes El hispanismo se caracteriza por la afirmación de la entablaban su lucha contra las consolidadas estructuras del superioridad de la cultura hispánica, de cómo ella predomina en poder. el Perú contemporáneo y da valor a lo indígena en las formas mestizas. Proclama la grandeza del Imperio Incaico pero Este movimento vinha oferecer uma nova ignora, consciente o tendenciosamente o por falta de estética, o índio não era mais retratado como um ser información, los vínculos de la población nativa actual con el tal enigmático, impenetrável, que não merecia ser Imperio, las pervivencias dominantes en las comunidades valorizado; passou a ser retratado por escritores que indígenas, que forman, en la actualidad, no menos del 50% de conviveram diretamente com o grupo ou que faziam la población del Perú de la antigua cultura precolombina del parte dele. Foi um movimento de reação ao chamado país. En la política militante, los hispanistas son conservadores hispanismo, que pretendia elevar as características de extrema derecha y por eso, aunque de manera implícita européias, criollas, que foram introduzidas na época consagran el estado de servidumbre de los indios.” 13 da colonização e que teriam trazido ao Peru a modernização e ocidentalização necessária. O mérito do hispanismo foi fortalecer o Estranhamente os chamados hispanistas louvavam a movimento de reação às suas postulações históricas e grandeza do Império Incaico, mas não consideravam filosóficas, o indigenismo. Essa reação começou a ser o índio vivo, indivíduo do seu cotidiano, como dada pelo arqueólogo índio Julio C. Tello, que nunca descendente desta cultura que chegou a tão alta chegou a ser um ideólogo do movimento, mas especialização em campos com a arquitetura, trabalhou duramente para resgatar os restos cerâmica etc. arqueológicos da antigüidade peruana. Graças a ele Um dos pontos fundamentais do Indigenismo foi descoberto o excepcional trabalho têxtil do grupo é a de ter um valor não somente de documento Paracas. acusatório das opressões vividas pelo grupo, mas O papel de grande teórico do Indigenismo também revelador acerca da integridade das coube ao filósofo social José Carlos Mariátegui possibilidades humanas da população nativa. A (1895-1930), que nas páginas da revista Amauta14, literatura Indigenista mostra que é insustentável a
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fundada por ele em 1926 e que se tornou o principal instrumento de divulgação cultural do Perú, lançou os preceitos do movimento e reconheceu nos escritores da época quais eram seus representantes. No editorial do primeiro número da revista Mariátegui escreve: “Esta revista, en el campo intelectual, no representa un grupo. Representa, más bien, un movimiento, un espíritu. En el Perú se siente desde hace algún tiempo una corriente, cada día más vigorosa y definida, de renovación. A los fautores de esta renovación se les llama vanguardistas, socialistas, revolucionarios, etc. La historia no los ha bautizado definitivamente todavía. Existen entre ellos algunas discrepancias formales, algunas diferencias psicológicas. Pero por encima de lo que los diferencia, todos estos espíritus ponen lo que los aproxima y mancomuna: su voluntada de crear un Perú nuevo dentro del mundo nuevo. La inteligencia, la coordinación de los más volitivos de estos elementos, progresan gradualmente. El movimiento -intelectual y espiritual- adquiere poco a poco organicidad. Con la aparición de “Amauta” entra en una fase de definición.” E assim o foi, Amauta foi um aglutinador de inteligência. Os principais filósofos e escritores da época foram colaboradores da revista. Mariátegui instou através da revista que os escritores e artistas tomassem o Perú como tema. Todas as principais obras no campo da literatura deste final da década de 20 foram analisados, resenhados utilizando-se o que depois se convencionou a chamar como o “método Mariátegui”. O método Mariátegui consiste em ver a situação atual do indígena peruano como originário do sistema econômico existente no país. Mariátegui provavelmente nunca teve contado com a obra de Arguedas, já que ele morreu em 1930 e Arguedas teve seu primeiro livro Agua, publicado em 1935. Arguedas já havia publicado alguns artigos na revista estudantil Antorcha, de circulação restrita, durante o ano 1928. Arguedas sim foi assíduo leitor de Amauta. Teorizando sobre o indigenismo no seu ensaio Razón de ser del indigenismo en el Perú, de 1965, Arguedas vê o movimento dividido em dois períodos, dos anos 20 até a atualidade, e da atualidade em diante. Ele faz uma avaliação do primeiro período do movimento e chega às seguintes conclusões. “Balance del Primer período del indigenismo 1º El proprio nombre, sobreviviente aún, de indigenismo, demuestra que, por fin, la población marginada y la más vasta del país, el indio, que había permanecido durante
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Foto de José Maria Arguedas
varios siglos diferenciada de la criolla y en estado de inferioridad y servidumbre, se convierte en problema, o mejor, se advierte que constituye un problema, pues se comprueba que no puede, ni será posible que siga ocupando la posición social que los intereses del régimen colonial le habían obligado a ocupar. 2º La grandeza del Imperio incaico, indiscutida, y que había sido considerada por los hispanistas como un prodigio sin vinculación alguna con la población nativa superviviente, vuelve a ser considerada como una prueba objetiva de las virtualidades de esa población.(...) 3º La literatura indigenista logra demonstrar lo infundado de la interesada imagen del indio degenerado, a quien no le corresponde otro destino que el de la servidumbre, y de un tipo de servidumbre que resulta un “Privilegio”, pues ni siquiera como siervo es suficientemente eficaz.(...) Pero la literatura llamada indigenista no es ni podía ser una narrativa circunscrita al indio sino a todo el contexto social al que pertenece. Esta narrativa describe al indio en función del señor, es decir del criollo que tiene el dominio de la economía y ocupa el más alto status social, y del mestizo, individuo social y culturalmente intermedio que casi siempre está al servicio del señor, pero algunas veces aliado a la masa indígena. Finalmente, la narrativa peruana intenta, sobre las experiencias anteriores, abarcar todo el mundo humano del país, en sus conflictos y tensiones interiores, tan complejos como su estructura social y el de sus vinculaciones determinantes, en gran medida, de tales conflictos, con las implacables y poderosas fuerzas externas de los imperialismos que tratan de modelar la conducta de sus habitantes a través del control de su economía y de todas las agencias de difusión cultural y de dominio político.”16 Arguedas ao avaliar o movimento Indigenista, tem o o bom senso de perceber que um movimento ideológico passa por mudanças e deve ser repensado. Fixa parâmetros para que se entenda o desenvolvimento posterior do movimento. Mostra que o movimento Indigenista não podia entender como causa da atual situação da população indígena peruana, apenas a estrutura econômica desfavorável à este grupo implantando desde a colônia, como postulou Mariátegui a principios do movimento. Ele vê como causadores da atual situação de marginalização social destes grupos, a complexa relação entre os vários estratos sociais, somada às relações de detenção de bens e da produção econômica.
s tirada no final dos anos 60.
1 APRA, sigla de Alianza Popular Revolucionaria Americana, organização político-cultural que gerou o movimento chadado aprismo.
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2 ARGUEDAS, José María. Nosotros los maestros. 14 Amauta: A escolha do nome da revista reflete em Lima, Editorial Horizonte, 1986, pp. 215-222. muito toda a ideologia de Mariátegui, o nome Amauta vem dos filósofos do império Inca. Eles tinham a seu 3 Misti ou Mistis: Nomeia às pessoas da classe cargo o conhecimento de toda a história imperial e dominante, qualquer que seja sua raça. tinham como missão conservar e difundir a tradição ancestral. Eram instrutores dos filhos da nobreza e 4 Wiraqocha: Epíteto de alguns heróis míticos são tidos como os criadores do Código Moral e das andinos que desapareceram no mar, depois de haver orientações filosóficas que regiam a vida social no organizado o mundo. Se denominou assim os Incanato. espanhóis por sua procedência oceânica, e porque foram , a principio confundidos com deuses. Por 15 Revista AMAUTA, Nº 1, Ano 1, Lima, Setembro extensão, membro dos setores rurais dominantes, de 1926. Biblioteca Nacional del Perú. grandes latifundiários brancos. 16 ARGUEDAS, José María. “Razón de ser del 5 Cholo ou cholito: Termo que designa ao indivíduo indigenismo en el Perú”. IN Formación de una de origem indígena que deixa, por sua migração à cultura indoamericana. Op. Cit., pp. 196-197. cidade, por sua prosperidade, por sua educação ou comportamento social, de ser considerado como “índio”. Nas classes sociais mais elevadas da costa o termo é utilizado como sinônimo de índio. Dentro das classes mais baixas o diminutivo, cholito, é utilizado em sentido afetivo, não pejorativo. 6 Terrateniente: Dono ou administrador de terras e fazendas. 7 ARGUEDAS, José María. Formación de una cultura nacional indoamericana. México. Siglo Veintiuno, 1989, p.14. 8 ARGUEDAS, José María. Formación de una cultura indoamericana. Op. cit., p. 14. 9 “Los wamanis (montanhas) son los segundos dioses. Ellos protegen al hombre. De ellos nace el agua que hace posible la vida.” Idem. p.175. 10 ARGUEDAS, José María. “El complejo cultural en el Perú” IN Formación de una cultura indoamericana. Op. Cit., pp. 2 e 3. 11 IBIDEM. p.4. 12 ARGUEDAS, José María. “El complejo cultural en el Perú.” IN Formación de una cultura indoamericana. Op. Cit., p. 4. 13 ARGUEDAS, José María. “Razón de ser del indigenismo en el Perú.” IN Formación de una cultura indoamericana. Op. Cit., p. 191.
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Jornal Este texto abre-se questionando alguns artigos de jornal – O Estado de São Paulo, Caderno 2, p. 46, de 14 de março de 2015 – apresentando a obra Isto é arte? de Will Gompertz, 2013, e outro, do mesmo jornal, também Caderno 2, p. 39, de 25 de julho de 2015 - enfocando a obra Sobre a arte brasileira: da préhistória aos anos 1960, de Fabiana W. Barcinski (org.), 2015. O jornalista do Estadão, Antonio Gonçalves Filho, trabalha com dois livros sobre arte em seus artigos: Guia para modernos (2013) e Arte virada ao avesso (2015). O primeiro, de acordo com ele, por inteiro é uma interrogação que busca leitura de quem o folheia, através de uma cartografia dos movimentos estéticoplásticos, onde Gaugin, van Gogh e Cézanne são os pilares geradores dos caminhos da arte moderna. Já o segundo, faz uma revisão dos movimentos artísticos do Brasil, da colônia aos tempos modernos.
Artes e crítica Por que Gompertz (2013) aponta para
aqueles pintores? Qual a contribuição de cada um? Por que os seus DNA cruzam-se, atravessam-se e vão mexendo no olhar, na composição, na poética plástica? O livro de Gompertz (2013) traz o encarte de um mapa da arte moderna, baseado na carta do metrô de Londres, que dá a chave visual para o leitor entender as linhas e ramificações da arte
moderna desde o seu início, em 1870, até o início do século XXI. Paul Gaugin (1848-1903) definiu o seu método como sintético-simbólico “usando o termo simbólico no sentido então carente para indicar que as formas e os padrões de suas pinturas destinavam-se a sugerir ideias e imagens mentais e não simplesmente a registrar a experiência visual” (SWEETMAN, 1998, p. 108). Rompe com o naturalismo impressionista, com reproduções científicas do expressionismo e com o código das cores ditados pela gramática estética. Assim, tange o Primitivismo, a Bauhaus. As cartas a Theo de Vincent van Gogh (1853-1890) transcendem as buscas pela linguagem como instrumento da expressão. O artista trabalha o valor simbólico das cores, busca-as como enunciasse seu pensamento, sua dor, sua angústia. Rejeita-as como mimese da natureza, das aparências visuais da atmosfera, da luz. Usa-as como expressões com vigor. Através dessa posição deixa o realismo impressionista pelos valores expressivos e simbólicos. O seu olhar, a sua escritura plástica, o seu código e linguagem sombrearam o Expressionismo, o Pontilhismo, o Neoplasticismo, o Expressionismo abstrato e a Arte Agora. Paul Cézanne (1839-1906), considerado por Picasso ‘o pai de todos nós’, é uma figura angular na Arte do século XX. Foi um analista estrutural da natureza e um admirador de Poussin, para quem a pintura é uma pintura e que nela lhe interessava era a estrutura subjacente, usando para tal a variação das tonalidades. Trabalhou uma “arte que não falasse
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superficialmente ao olhar, mas que definisse a mente” (GOMPERTZ, 2013, p.108). Cézanne prefigura o Cubismo, passa pelo Futurismo, Construtivismo, Pop Arte, Conceitualismo e o Pós-Moderno. [...] a arte era (e é) produzida quase exclusivamente como se vista através de uma lente única, estática. Esse, Cézanne deduziu, era o problema com a arte de seu tempo e do passado: ela não representava o modo como realmente vemos, que não é de uma única perspectiva, mas de pelo menos duas. A porta para o modernismo havia sido aberta. (GOMPERTZ, 2013, p.99) Os três pintores quase contemporâneos (1839, 1848 e 1853) abrem caminhos para a Arte Moderna com contribuições diferentes: um, prenuncia o sintético-simbólico; o outro, uma
nova linguagem das cores que buscam expressão; e por fim, Cézanne remonta a Poussin, mas discute uma nova perspectiva, indicando o Cubismo. Gaugin, van Gogh, Cézanne buscaram apresentar a natureza, objetos ou expressar ideias, sentimento, enfim, estados emocionais? Como o olhar falso de Magritte? Como o espelho mimético? Como linguagem que criasse por ela mesma, como se demiurgo ela fosse? Talvez tais indagações bailassem pelos
seus olhares, pelas suas mãos, pelos seus espaços pictóricos. O resultado daquela busca angustiante pela expressão, pela criação, marcava presença em toda forma de Arte que pesquisava novas linguagens, como as sonoras, as visuais, as gestuais; novos gêneros épicos, líricos, dramáticos, um novo olhar que garimpasse cenas com outros ângulos. Talvez Gaugin em contato com novas culturas, novos cenários com sol e luz intensos gerasse novos ritmos, novos movimentos, nova síntese com um olho na vida do outro; talvez van Gogh com seus “Comedores de batatas” (1885) compusesse um documentário social, trabalhasse novas combinações de cores, novas relações de planos e linhas, novos olhares; talvez Cézanne, ao pintar, tenha percebido que não se vê um objeto de uma maneira só, quem quiser vê-lo, move-se e passa a olhá-lo de diversos ângulos, isto a arte impressionista não discutia, porém ele pôs-se a ver a vida de maneira diferente da perspectiva única e global, mexeu com a composição, com a representação, com a criação. Assim, discute-se, fundamenta-se o procedimento estético. O segundo texto jornalístico aqui citado tem uma chamada instigante: A arte virada ao avesso e não menos incitante com este enunciado: “o Brasil não começou a pintar com a missão Francesa, mas com os índios”, dizem os
Figura 1: Encarte da obra Isto é Arte?
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ensaístas. Com o registro de gravuras rupestres e artefatos indígenas, é legítimo falar em arte Brasileira com características próprias e espaços definidos? A tais indagações no texto organizado por Barcinski (2015), soma-se a assertiva de que tampouco o concretismo ou a arte experimental dos anos 1960 são frutos da clonagem da arte estrangeira, nos artigos conjugados por períodos histórico-estéticos. É o que mostra o livro, que traz um capítulo sobre a arte popular, prova da riqueza e diversidade brasileira. Assim, a obra convida o leitor para uma reflexão sobre a importância do patrimônio cultural brasileiro e sua difusão. Trata-se de um novo olhar onde especialistas respondem estética-historicamente ao regarder sobre objetos artísticos, através de uma sequência linear, sob o ponto de vista de uma História Social da Arte Brasileira. Por ser uma publicação recentíssima – 2015 – julgamos viável pô-la ao lado de Isso é arte, de Gompertz (2013) que, igualmente, lança um novo olhar sobre a história da produção artística, cujo subtítulo é: “150 anos de arte moderna do impressionismo até hoje”, que se propõe a contar a história cronológica da arte moderna, enquanto Sobre a arte brasileira, de Barcinski (2015) ancora-se no contexto de produção político e social. Gompertz (2013) marca o início do século XIX com o Impressionismo ao iconizar Gaugin, Seurat, van Gogh e Cézanne, põe-se a marcar o caminho até o século XXI pelos movimentos estéticos assinalados por cores em um diagrama. É um estudo crítico da modernidade. Barcinski (2015) mergulha os textos artísticos organizados por ela na nossa préhistória da arte. Há um texto inicial fundamental para a leitura e posicionamento social da produção artística: “Para uma história (social) da arte brasileira” (ALAMBERT, p. 6-20). A partir desse, outros marcantes de períodos temporais político-econômicos alicerçam a historiografia da produção artística: “Arte pré-histórica no Brasil: da técnica ao objeto” (PESSIS; MARTIN, p. 2261); “O olhar estrangeiro e a representação do Brasil” (PICCOLI, p. 62-94); “Maneirismo, barroco e rococó na arte religiosa e seus antecedentes europeus” (OLIVEIRA, p. 96-135);
“Arte e academia entre política e natureza (1816 a 1857)” (DIAS, p. 136-173); “A arte no Brasil entre o segundo reinado e a belle époque” (MIGLIACCIO, p. 174-231); “Modernismo no Brasil: campo de disputas” (SIMIONI, p. 232263); “Concretismo” (VILLAS BÔAS, p. 264293); “Os anos 1960: descobrir o corpo” (BRAGA, p. 294-323); “Arte popular” (LIMA, p. 324-345). Porém, comparados períodos temporais de ambos os textos, qual serio o resultado: em Gompertz (2013), século XIX: o Impressionismo, Pontilhismo, Expressionismo, no Brasil; em Barcinski (2015), 1816 a 1857: arte e academia entre política e natureza, com a assistência da missão francesa e seus articuladores; já, a partir do segundo reinado têmse algumas alterações estéticas com a pintura de Vitor Meirelles “A primeira missa no Brasil” e “Moema”, de Pedro Américo “A batalha de Guararapes” e “Batalha do Avaí”; há, ainda, a considerar a fuga temática de Belmiro de Almeida “Arrufos”, de Agostinho José da Motta “Natureza morta com frutas”, de José Ferraz de Almeida Jr “Caipira picando fumo” e “O importuno”, de Rodolfo Amoedo “Marabá”. Os temas burgueses, indianistas e históricos corroboram os literários dos nossos poetas e romancistas do romantismo. Chegamos ao Modernismo, ao Concretismo, aos anos 1960, à arte popular que fecha o volume de Barcinski (2015), onde cada um deles é tratado em capítulos e analisados por autores diferentes. De certa forma, Barcinski (2015) é “a arte virada ao avesso” que revê, com outros olhares, a Arte Brasileira desde seus primeiros objetos estéticos até 1960, fundamentada na formação do estado brasileiro e nos cânones da Arte Ocidental e desmistifica seu nascimento com a vinda da missão francesa, em 1916. Gonçalves Filho, (2015, Caderno 2, p. 39), no último parágrafo de seu texto, sintetiza a proposta de Sobre a arte Brasileira: Seja como for, a arte Brasileira já existia antes de Debret e Taunay e da fundação da Academia. Da mesma forma, a arte moderna brasileira não nasceu na França, nem o concretismo ou a arte experimental dos anos 60 são fruto da clonagem da arte estrangeira.
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Che Guevara fez uma pausa na guerrilha boliviana
Os textos críticos do jornalista reforçam o para subir numa árvore e ler em paz (150). ponto de vista dos autores das publicações sobre artes plásticas e indicam aos leitores do matutino Considerações finais O Estado de São Paulo a buscá-las e fruí-las.
O leitor Entretanto, o leitor desse jornal deve ser um leitor que compreende a crítica. Aqui, recorremos à obra O último leitor, do escritor argentino Ricardo Piglia (2006) para entender quem é esse leitor, alvo dos artigos críticos do referido matutino, que vai fazer (ou não) a leitura dos livros indicados. Vejamos o que Piglia (2006) diz sobre o leitor: “Não qualquer leitor” (p. 30); nem “o distraído leitor de que falava Cervantes” (32); ou o “leitor médio que a indústria cultural criou” (31); mas “o leitor essencial, que se empenha de corpo e alma na tarefa de decifrar a própria escrita, no intervalo perigoso entre a ficção e a realidade” (p. 33); ou ainda, “Um leitor também é aquele que lê mal, distorce, percebe confusamente. Na clínica da arte de ler, nem sempre o que tem melhor visão lê melhor.” (p. 35). Podemos, ainda, destacar diversas definições de leitura, no texto de Píglia (2006): “A leitura é uma arte da réplica.” (Ezra Pound, (p. 10); “A leitura é um laboratório de provas.” (J. Joyce, p. 20); “A leitura é uma arte da distância e da escala, os signos na página quase invisíveis se abrem para universos múltiplos.” (J. L. Borges, p. 19); “A leitura é a arte de seguir um mapa.” (Ricardo Piglia, p. 25); “... presença do que se perdeu.” (Fotógrafo de Buenos Aires, p. 12). Como pensam a respeito de livros e sua leitura, alguns personagens que povoam as páginas de O último leitor, de Píglia (2006): Borges dizia orgulhar-se sobretudo dos livros que lera (p. 19); Cervantes, autorretratado nos primeiros capítulos do Quixote, lia tudo, até os papéis jogados pela rua (p. 32); Ana Karenina aproveitou a viagem de trem de Moscou a Petersburgo para ler comodamente “um romance inglês” (p. 84);
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Vimos que Gompertz (2013) mostrou a cartografia da Arte Ocidental, enquanto Barcinski (2015) dessolda a cortina que encobria a brasilidade artística. Todavia, somente leitores competentes poderão compreender o sentido das duas obras que tratam da arte: a de Gompertz, que analisa a arte a partir dos artefatos produzidos, pela cronologia; a de Barcinski, que discute a arte a partir de suas condições de produção, pela cultura.
Referências BARCINSKI, Fabiana Werneck (org.). Sobre a arte brasileira: da pré-história aos anos 1960. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2015. GOMPERTZ, Will. Isso é arte? Rio de Janeiro: Zahar, 2013. GONÇALVES FILHO, Antonio. Guia para modernos. O Estado de São Paulo, Caderno 2, p.46, 25 jul. 2013. Disponível em: <http://acervo.estadao.com.br/pagina/#!/20130725 -43745-spo-46-cd2-c3not/busca/WILL+GOMPERTZ>, acesso em 30 jul. 2015 PIGLIA, Ricardo. O último leitor. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. ________. Arte virada ao avesso. O Estado de São Paulo, Caderno 2, p.39, 14 mar. 2015. Disponível em: <http://acervo.estadao.com.br/pagina/#!/20150314 -44342-nac-39-cd2-c3-not>, acesso em 30 jul. 2015 SWEETMAN, David. Paul Gauguin: uma vida. Trad. Beatriz Horta. Rio de Janeiro: Record, 1998.
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Verdadeiro valor não dão à gente. Melhor é merecê-los sem os ter, Que possuí-los sem os merecer. Ou dai na paz as leis iguais, constantes, Que aos grandes não dem o dos pequenos, Ou vos vestis nas armas rutilantes, Contra a lei dos imigos Sarracenos: Fareis os Reinos grandes e possantes, E todos tereis mais e nenhum menos: Possuireis riquezas merecidas, Com as honras que ilustram tanto as vidas. (CAMÕES, 1963, p. 228-9, oitavas 93 e 94) 1. Introdução
Eis o excerto da Utopia com o qual se Neste artigo, objetivamos abordar a conjuga o supracitado texto camoniano: Utopia de Thomas Morus do ponto de vista da leitura, com suporte na Estética da Recepção Na Utopia a avareza é impossível, porque o dinheiro ali não (Iser, 1996), já que a obra estabelece uma relação tem uso algum, e, por isso mesmo, que abundante fonte de dialética entre texto, leitor e sua leitura. Assim, o males não estancou ela? Que enorme seara de crimes não cortou leitor é tido como a entidade não individualizada pela raiz? Quem não sabe, com efeito, que as querelas, as a quem se dirige o texto, já a leitura concretizasse sedições os assassínios, as traições, os envenenamentos, quem como ato resultante da troca de experiências não sabe, digo que todos esses crimes dos quais se vinga a entre texto e leitor, cujo efeito no destinatário sociedade com suplícios permanentes, sem, entretanto, poder denomina-se ‘experiência estética’, por sua vez, o preveni-los, seriam suprimidos no dia em que o dinheiro texto é encarado como um processo desaparecesse? Então, desapareceriam também o temor, a inquietude, os cuidados, as fadigas e as canseiras. A própria comunicativo, pois pobreza, que parece ser a única a carecer de dinheiro, diminuiria no instante mesmo, caso o dinheiro fosse [...] não pode ser fixado nem à reação do autor ao mundo, nem completamente abolido. (MORUS, 1966, p. 168) aos atos da seleção e da combinação, nem aos processos de formação de sentido que acontecem na elaboração e nem mesmo à experiência estética que se origina de seu caráter de Deste modo, no horizonte de expectativas, acontecimento; ao contrário, o texto é o processo integral, que que significa o enriquecimento de um primeiro abrange desde a reação do autor ao mundo até a sua público através de sucessivas recepções, a cada experiência pelo leitor. [...] não podemos captar exclusivamente nova leitura, a bagagem ou o repertório do leitor o efeito nem no texto, nem na conduta do leitor; o texto é um modifica-se, amplia-se e enriquece. potencial de efeitos que se atualiza no processo da leitura. Entretanto, a hermenêutica cristalizou que (ISER, 1996, p. 13-15)
O leitor, ao buscar um texto literário, como o canto nono de Os Lusíadas, “A ilha dos amores”, entra no jogo que metaforiza enunciados encontrados no segundo livro de A Utopia: E ponde na cobiça um freio duro, E na ambição também, que indignamente Tomais mil vêzes, e no torpe e escuro Vício da tirania infame e urgente; Porque essas honras vãs, êsse ouro puro,
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a interpretação do texto artístico cabe ao crítico, o qual, ao descobrir o sentido oculto do texto, decifra o enigma. É natural ao crítico utilizar-se de instrumentos da análise discursiva para encontrar o segredo escondido no texto. Pela análise do discurso, o crítico explica a significação que desvendou, e aí entram a sua subjetividade seu modo de perceber. Em geral, o crítico simplifica e referencializa o texto. Com isso, o autor sofre uma perda e o texto esvazia-se: o sentido é subtraído do texto.
Ainda com apoio em Iser (1996), embora seja o mais universal, o menor de todos os ‘jogos de linguagem’ se evidencia na divisão do significante, quando o movimento de jogo é verbalizado e começa a reorganizar funções básicas da linguagem. Esse jogo desdobra-se em possibilidades lúdicas, como as de abolir e produzir, de romper limites e realizar, de irrealizar e imaginar. É um jogo que não visa a um resultado, mas obter um acordo. O autor cria novos signos linguísticos ou toma-os livremente para novos usos. O significante é ficcionalizado, porque a designação é paralisada e aquilo que é significado não é verbalizado. Disso resulta um espaço de jogo, no qual o significante dividido indica o próprio jogo. O que deve ser alcançado pela desreferencialização permanece em aberto e só pode ser adquirido no âmbito do próprio jogo.
(do adv. de negação) + gr. topos,ou ‘lugar’; (HOUAISS; VILLAR, 2001, p. 2817).
2. O verbete utopia
Como toda criação, à sua leitura não cabe um perpassar de olhos linearmente, mas um ir e vir dialógico, como ocorre em De optimo reipublicae statu deque nova insula Utopia, ou simplesmente, A Utopia, de Thomas Morus, já que é construída em forma de silogismo: o livro primeiro, Da comunicação de Rafael Hitlodeu, corresponde à premissa primeira, onde o interlocutor comunica a sociedade identificada como a Inglaterra do século XVI; já o livro segundo, de mesmo subtítulo do primeiro, corresponde à premissa segunda, na qual o mesmo interlocutor descreve a sociedade utópica; então, Morus (1966, p. 171) representa como conclusão a seguinte relação de consequência lógica: “Praza a Deus que isto aconteça algum dia!”; com isso, o leitor implícito - nesse caso os autores deste texto - pode extrair a conclusão de que trata mais de uma aspiração de que uma esperança. Para demonstrar essa relação silogística, apontamos:
Tomemos um fragmento de O apanhador de desperdícios (BARROS, 2015, p. 149): Uso a palavra para compor meus silêncios. Não gosto das palavras fatigadas de informar. [...] Porque eu não sou da informática: eu sou da invencionática. Só uso a palavra para compor meus silêncios.
A U. não é fuga para o irreal; é escavação por trazer à luz possibilidades objetivas presentes na realidade e luta pela sua realização (ABBAGNANO, 2012, p. 1174). A criação moreana de uma ilha imaginária, com sistema sociopolítico ideal leva o leitor a refletir sobre suas possibilidades e buscar uma ética, conforme a proposta de Ricoeur (1991, p. 211), “Viver a vida boa, com e para os outros, em instituições justas”. Destarte, no processo de leitura, pode-se caminhar pelas duas vertentes: num sentido, uma realidade idealizada; noutro, a luta pela sua realização, conforme veremos a seguir. 3. A Utopia moreana
Thomas Morus teve a necessidade de criar um novo verbete para nomear a ilha Utopia, na ficção destinada aos leitores e, nesse sentido, o poema de Manoel de Barros nos põe a refletir sobre a criação de novos termos que verbalizem nossos silêncios; destarte, o leitor também seguirá esse fluxo e será sempre o penúltimo, já que as camadas de leituras de um texto sempre abrem horizontes para novos sentidos. A respeito do verbete utopia, a) Livro um, “Em primeiro lugar, os príncipes encontramos nos dicionários os seguintes cuidam somente da guerra [...]” (p. 36), com seu contraponto no Livro dois, “[...] os utopianos não registros: fazem a guerra sem graves motivos.” (p. 139); ETIM lat. utopia, nome dado por Thomas Morus b) Livro um, “Uns se calam por inépcia [...] esses (humanista inglês, 1477-1535) a uma ilha imaginária, vis parasitas só têm uma finalidade: ganhar, por com um sistema sociopolítico ideal; formado com o gr. ou- baixa e criminosa lisonja, a proteção do primeiro
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favorito.” (p. 36) - no Livro dois, “Das relações pelo menos, três estágios: mútuas entre os cidadãos” (p. 95); Uma leitura linear, que o receptor realiza seguindo a c) Livro um, “Vi, em quase toda a parte, desses direccionalidade da cadeia sintagmática do texto [...] julgadores rabugentos, insensatos ou começando da primeira linha da primeira página e presunçosos.” (p. 37) - Livro dois, “Este perigo progredindo da direita para a esquerda. funesto da precipitação foi previsto, e aos senadores é dado tempo suficiente para refletir.” [...] a leitura retroactiva é sobretudo uma leitura in mente, um processo hermenêutico que se desenvolve (p. 86); concomitantemente com o processo heurístico da leitura d) Livro um, “O rei é o proprietário universal e linear. absoluto dos bens e das pessoas de todos os seus súditos; estes nada possuem senão como [...] a leitura tabular é constituída pela sobreposição de usufrutuários pelas boas graças do rei” (p. 61) - diversas leituras, é o resultado da leitura linear e da(s) Livro dois, “Na Utopia, tudo está tão bem leitura(s) que se lhe sucede(m). (AGUIAR E SILVA, previsto e organizado que raro é-se obrigado a 1984, p. 324-327) construir em novos terrenos.” (p. 92) Os significados não estão, simplesmente, Por essa estrutura narrativa, o livro no texto, mas na relação do leitor com o texto, no primeiro não tem sentido sem o livro segundo e, diálogo que o leitor estabelece ao formular as afinal, faz-se a hermenêutica do sentido do texto perguntas ao texto e nas respostas dada por esse texto. pela leitura. Assim, o leitor d’A Utopia deverá Com relação à estrutura do texto, parece indubitável que cada texto literário representa trabalhar com os três estágios da leitura: uma perspectiva pela qual o mundo é visto pelo autor. O texto, nesta perspectiva, não é uma a) a leitura linear, já que é uma primeira leitura simples cópia da realidade, mas produz um corrida de todo o texto; mundo do material que lhe é fornecido pela realidade. O texto é um mundo construído a b) a leitura retroativa, em que deverá fazer um ir e partir da perspectiva do autor, a qual pode ser vir entre o livro um e o livro dois, quando desdobrada em muitas outras: do narrador, das entenderá a construção de um silogismo personagens, da ficção, do leitor, de forma que o disjuntivo; leitor é obrigado a assumir um ponto de vista que leve à integração das perspectivas textuais. c) a leitura tabular é o momento que os detalhes Contudo, o leitor não pode escolher esse ponto constroem a “Constituição” da Utopia como de vista aleatoriamente, ele será guiado pela Estado: perspectiva interna do texto, pois convergem para um ponto comum. A interação do leitor com o texto efetiva- Das cidades de Utopia e particularmente da cidade de se, à medida que os vazios vão sendo preenchidos Amaurota pelas projeções do leitor que os conecta, Dos Magistrados seguindo um roteiro predeterminado pelo texto. Das artes e ofícios Esses vazios permitem ao leitor suposições e Das relações mútuas entre os cidadãos adivinhações baseadas numa combinação entre o Das viagens dos utopianos desejável e o apresentado na narrativa. Em Dos escravos consequência, o leitor progride além da Da guerra Das religiões da Utopia informação fornecida e dialoga com o texto. Para que o leitor atinja o objeto estético, (MORUS, 1966, Índice) decorrente da interação com o texto, tem de passar por uma leitura progressiva, constituída de,
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4. O papel do leitor Aqui, gostaríamos de discutir a condição de produção da leitura e seu efeito transformador. Para tanto, passemos a citar e refletir os conceitos do escritor argentino Piglia (2006) sobre o leitor. “Não qualquer leitor”, “o distraído leitor de que falava Cervantes” ou o “leitor médio que a indústria cultural criou”, mas “o leitor essencial, que se empenha de corpo e alma na tarefa de decifrar a própria escrita, no intervalo perigoso entre a ficção e a realidade”, ou seja, O último leitor, título de seu livro editado no Brasil pela Companhia das Letras. Na referida obra, o verdadeiro protagonista não é Piglia, nem como Piglia escreve, mas Piglia-leitor e, sobretudo, leitor das personagens que aparecem nos livros, as quais aproveitam o tempo que têm de estar “dentro” de suas respectivas narrativas para ler. Sim, para ler os livros. É através dessas leituras que Piglia (2006) apresenta alguns indicativos do que entende ser a leitura. Logo no prólogo apresenta a personagem do bairro de Flores que “esconde a réplica de uma cidade em que trabalha há anos”, a qual lhe permite fazer um paralelo com o ato de ler:
(2006, p. 13), “se refere ao modo de tornar visível o invisível e de fixar as imagens nítidas que já não vemos, mas que continuam insistindo como fantasmas e que vivem entre nós”. Deste modo, ao discutir “o que é o leitor”, Piglia (2006, p. 19), identifica a existência de uma imensa gama de leitores. Para Borges, “que perdeu a visão lendo”, o autor transcreve a constatação de sua condição: “Agora sou um leitor de páginas que meus olhos já não veem.” Com isso, pode-se perceber, claramente, que o ato de ler possui uma característica que vai além de transformar grafemas em fonemas. Então, se há bons leitores, como Borges, que continuou lendo mesmo tendo perdido a visão, o seu inverso também é verdadeiro na constatação do escritor argentino: “Um leitor também é aquele que lê mal, distorce, percebe confusamente. Na clínica da arte de ler, nem sempre o que tem melhor visão lê melhor.” Nessa linha de raciocínio, o escritor argentino situa o leitor:
[...] entendido como um decifrador, como intérprete, muitas vezes foi uma sinédoque ou uma alegoria do intelectual. A figura do sujeito que lê faz parte da construção da figura do intelectual no sentido moderno. Não só como letrado, mas como alguém que enfrenta o mundo numa relação que em princípio é O homem diz que se chama Russell e é fotógrafo, ou mediada por um tipo específico de saber. A leitura funciona ganha a vida como fotógrafo. como um modelo geral de construção do sentido. A indecisão do [...] intelectual é sempre a incerteza quanto à interpretação, quanto às múltiplas possibilidades de leitura. (PIGLIA, 2006, p. A construção só pode ser visitada por um espectador de 98)
cada vez. Essa atitude incompreensível para todos é, no entanto, clara para mim: o fotógrafo reproduz na Nota-se que há uma tensão entre o ato de contemplação da cidade o ato de ler. Aquele que contempla ler e a construção de significado, que só é é um leitor, portanto precisa estar sozinho. Essa aspiração atingida a partir de experiências através de leituras à intimidade e ao isolamento explica o sigilo que cercou subsequentes. seu projeto até hoje. (PIGLIA, 2006, p. 11-12) Para corroborar essa condição de isolamento e contemplação, em que Piglia (2006, p. 12) assere que o “real não é o objeto da representação, mas o espaço em que se dá um mundo fantástico”, traz a contribuição de Ezra Pound sobre a leitura, segundo a qual “é uma arte da réplica”, porque “às vezes os leitores vivem num mundo paralelo e às vezes imaginam que esse mundo entra na realidade.” Essa condição da leitura que a réplica explicita, ainda segundo Piglia
5. Considerações finais
Este artigo põe em pauta o texto de Morus, A Utopia, investigando um leitor que possa cumprir, por meio do ato de ler, o significado e a criação do verbete utopia em todas as línguas do mundo que, de maneira representativa, desenhou uma sociedade utópica: “Das relações mútuas entre os cidadãos” (cf. p.
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95). Decorre daí que o tempo ampliou o significado da palavra utopia, que deixou de ser o não-lugar, para representar o lugar bom e justo. Salientamos a importância da leitura da obra de Morus e a consequente ampliação de seu significado, não como o último leitor, de Piglia (2006), mas como o penúltimo leitor, pois sempre é possível descortinar novos horizontes pelo ato de ler. É por isso que buscamos suporte no ato de ler. O texto de A Utopia é uma narrativa, portanto, conta uma história ou um fato histórico que se desenvolve num tempo e num espaço. São três personagens que tecem a narrativa: um enviado do Rei Henrique VIII, casado com Catarina, filha de Espanha; outros dois portugueses com nomes definidos: Pedro Gil e Rafael Hitlodeu; e compõe-se de dois livros: o primeiro livro, a narrativa de Rafael; o segundo livro recebe o nome de Utopia. A sua leitura implica um tipo de leitor, bem como o ato de ler para que o sentido seja concretizado, quando os horizontes do texto se fundem com os do leitor. Só assim a leitura pode ser concretizada, por meio de um ato dialógico, onde o livro segundo é o contraditório do livro primeiro. O texto recepcionado pelo autor real Thomas Morus tem o nome de A Utopia, que é originário do segundo livro. O texto parece-nos uma constituição do Estado, preocupado com a estrutura social, com predominância do coletivo, para que seja bom para todos. Referências ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. (Tradução 1.ed. BOSI, Alfredo; e revisão da tradução e tradução de novos textos BENEDETTI, Ivone Castilho). 6.ed. São Paulo: Mestre Jou, 2012. CAMÕES, Luís de. Obra completa em um volume. Rio de Janeiro: Companhia Aguilar, 1963. AGUIAR E SILVA, Vítor Manuel de. Teoria da literatura. v. I. 6.ed. Coimbra: Almedina, 1984. BARROS, Manoel de. Meu quintal é maior do
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que o mundo. Rio de Janeiro: Objetiva, 2015. HOUAISS, Antônio; VILLAR, Mauro de Salles. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001. ISER, Wolfgang. O ato da leitura: uma teoria do efeito estético. (Tradução de KRETSCHMER, Johannes). v. 1. São Paulo: Editora 34, 1996. MORUS, Thomas. A Utopia. (Tradução de ANDRADE, Luís de). Rio de Janeiro: Edições de Ouro, 1966. PIGLIA, Ricardo. O último leitor. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. RICOEUR, Paul. O si-mesmo como um outro. (Tradução de CESAR, Luci Moreira). Campinas: Papirus, 1991.
Nelyse A. Melro SALZEDAS - Programa de PósGraduação em Comunicação da UNESP/BauruBRASIL nelysesalzedas@yahoo.com.br Rivaldo Alfredo PACCOLA - Faculdade Interdisciplinar em Humanidades da UFVJM/Diamantina-BRASIL rivapaccola@terra.com.br
Em 10 de dezembro de 1905, em Bad Oldesloe, na Alemanha, nasce Walter Lewy, filho único de um casal que se dedicava ao comércio de roupas. Seus pais têm como religião o judaísmo e Walter Lewy é iniciado na arte e nas questões judaicas desde garoto. Ele é o primeiro a se interessar por artes plásticas na família e tem também aulas de canto. No período do ensino médio, é o melhor desenhista de sua sala. Freqüenta a Escola de Artes e Ofícios de Dortmund entre 1923 e 1927, tem em torno de 20 anos de idade quando conhece a corrente do Realismo Mágico . Walter Lewy sempre foi envolvido com a botânica, desenvolvendo uma verdadeira fascinação por plantas. As formas orgânicas lhe deram uma base sistemática quanto à questão da renovação, indicando uma magia de transição e, portanto, uma abertura para o mundo do além, do surreal. Como relata o próprio Lewy: Do período em que estudei e integrei o grupo do realismo mágico, ficou-me a lembrança de ter conhecido os melhores pintores da minha terra natal e de ter travado contato com as artes plásticas de uma forma sistemática. Do realismo mágico, ficou-me como uma abertura para o surrealismo, uma espécie de transição... Acredito que o surrealismo tenha sido para mim, uma necessidade de renovação, não só adequada ao momento (de entre - guerras) que vivíamos, mas inclusive uma entrada num campo inesgotável, renova-se sempre e, pelo se próprio conteúdo permanece atual. (CRUZ, 2007, p.62)
1 Galerista, Doutor em Estética e História da Arte pelo Programa de Pós-Graduação Interunidades em Estética e História da Arte da Universidade de São Paulo. 2 Professor Titular do Museu de Arte Contemporânea e do Programa de Pós-Graduação Interunidades em Estética e História da Arte da Universidade de São Paulo.
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Em 1928, como membro da união dos Pintores da Vestfália, Lewy participa de várias exposições coletivas em Dotmund, Gelsenkirchen, entre outras cidades. Em 1929, com o advento da crise econômica, perde seu emprego de desenhista numa gráfica e vai viver com os pais no interior, em Bad Lippspringe, tornando-se ilustrador de anedotas em jornais. A primeira exposição individual de Lewy ocorre em Bad Lippspringe em 1932. Lewy encontra-se com 27 anos de idade e sua exposição é fechada quando a Câmara de Arte Alemã proíbe a participação de judeus na vida artística. O nazismo advém e o judeu é proibido de exercer qualquer atividade artística na Alemanha. A sensação de opressão aumenta, a vida torna-se uma sujeição imposta pela força e esta autoridade tirânica faz com que Lewy se mude para o Brasil em 1937, aos 32 anos de idade. Seus pais incentivam sua partida acreditando que estão estabelecidos, seguros, mas que Walter terá mais chances fora da Alemanha. Walter parte da Alemanha, realizando uma rota indireta e chega à cidade de Santos, no Brasil, e procura a estátua da Liberdade, pois pensava que havia chegado à Nova Iorque, mesmo tendo um primo no Brasil.
Neste momento, este desterrado, que traz em sua bagagem um cacto, na tentativa de estar ainda em sua terra natal, pensa que ao pisar em um novo continente terá a liberdade, mas não é bem isto que encontra. O nazismo estava caminhando pelo mundo, já havia chegado a América Latina e ao Brasil do governo Vargas. Desta forma, com um visto de turista, este refugiado vive na incerteza, mas parte para São Paulo. Lewy deixou centenas de trabalhos na Alemanha, esses trabalhos foram enviados para a Holanda em 1938 e foram perdidos durante os bombardeios da Segunda Grande Guerra. Em 1939, Walter Lewy tenta realizar uma “Chamada”, para seus pais, para que eles venham para o Brasil, mas, já é tarde. O destino do casal foi o mesmo que tiveram seis milhões de judeus sacrificados no holocausto nazista na câmara de gás dos campos de concentração. Walter Lewy no Brasil No novo mundo, Walter Lewy dedica-se inicialmente ao desenho publicitário e a ilustrações de livros para várias editoras. As figuras a seguir constituem dois exemplos de capas de livros assinadas por Walter Lewy:
Figura 1: Capa de Metamorfose de Figura 2: Capa de OHVALSALATEJANTE de Sérgio Millet, por Walter Lewy Kafka, por Walter Lewy
Fonte: CASTELLO, 1999, p. 181
Fonte: CRUZ, 2007, p. 61.
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A escolha de Lewy para estes trabalhos é sugestiva, no que faz associar Kafka e sua obra ao universo do realismo mágico, do fantástico e do surrealismo (CRUZ, 2007, p. 61), da mesma maneira que os poemas de Sergio Milliet. O estímulo da nova terra fez Lewy preocupar-se em retratar os tipos populares e costumes. Em 1939 Lewy relaciona-se com vários artistas brasileiros: Di Cavalcante, Pancetti, Bonadei, Tarsila, Graciano e Rebolo. De 1939 a 47, Walter Lewy participa de todos os salões patrocinados pelo Sindicato dos Artistas Plásticos. Onde foi muito bem aceito. Walter Lewy realizou uma grande quantidade de exposições individuais e em grupo, mas também foi um grande mestre. Como professor, dava aos alunos o que sabia, realmente nada guardava: suas técnicas, suas passagens, sua paleta de cores e principalmente sua experiência. Entre seus alunos estão o artista Siron Franco e o leiloeiro James Lisboa. Walter Lewy desenvolveu sua pintura surrealista no momento em que no Brasil estava em voga o nacionalismo nas artes plásticas. Tinha uma vida extremamente rigorosa como artista: levantava às oito horas, tomava seu café da manhã, regava seus cactos, que adorava, e caminhava direto para seu atelier. Após o almoço, tirava uma pequena soneca e logo voltava para o atelier, assim produziu milhares de obras e seus mais de trezentos cadernos de estudo. Durante a noite, ouvia música clássica. Lewy tomava seu chá preto com gelo e três gotas de adoçante, “para manter a linha”, e lia livros de ficção. Sua origem judaica não o fez um homem religioso, porém, seus questionamentos sobre a vida lhe fizeram um ser pensante quanto à questão de um universo surreal, onde suas fantasias cósmicas o exportavam para um momento político que desejava uma harmonia total. Em seu conjunto de especulações compartilhava a divisão da natureza, daí sua escolha política pelo socialismo. Seus procedimentos argumentativos, lógicos e dedutivos, lhe davam verdades primeiras quanto ao equilíbrio humano. Um homem de imensidão. Voltado para si, mas com respeito ao outro; este outro que está próximo. Sua analise psíquica forja um estado alterado de consciência que é claramente representado em suas obras. Suas telas representam valores intrínsecos
a sua vida, como tristeza, felicidade, busca da liberdade. Valores que às vezes só puderam ser encontrados no mundo onírico da arte surrealista que desenvolveu e que com a beleza plástica de seus desenhos e cores conduziam a um produto final que tocava o âmago do colecionador e do leigo. A obra de Walter Lewy A sensibilidade de Lewy na construção dos desenhos e suas formas através da cor chegam as suas “mulheres-cactos”. Esta execução apresenta a maestria das pinceladas deste artista de personalidade. Sua botânica liga o estranhamento nas inspiradas poéticas do absurdo, onde este surrealista tropical cria um hibridismo desclassificável. Suas telas de espaço reduzido, 60 x 80 cm em média, conseguem incomodar a mente limitada, modificando a condição humana, apresentando assim o surrealismo como o sempre cotidiano. A orientação de Lewy é de buscar a liberdade; suas obras vislumbram uma execução limpa e a harmonia consciente dos valores. As contradições e os dramas profundos da vida, do imaginário pictórico de Walter Lewy povoam mundos de uma imensa quietude em que está presente uma esperança apresentada com a luz em jogo. O mistério de suas paisagens está nas transparências, onde o ar brota como fonte de libertação. Cria caminhos antes inimaginados. Este mundo de interiores crescentes floresce na atuação das seqüências dos mundos do imaginário e as composições se tranqüilizam na afinação dos fenômenos sensuais que destacam uma sabedoria de viver na eterna busca da harmonia. Transmite uma arte simbólica de continuação infinita, dentro da sofisticação complexa que habita o absorver imaginativo das possibilidades infinitas do existir. O irreal nos trabalhos de Lewy é real, pois aguça a viagem do observador que como neste estado não mais observa, vive a obra. As suas estrelas se traduzem em luzes próprias, não apenas ‘iluminantes’ do caminho, mas o próprio lume. Walter Lewy nos revela o desdobrar da vida, nos mostra a passagem para um eterno presente impulsivo de emoções que na
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Figura 3: Walter Lewy – “Sem titulo”, 1973, gravura, 48 x 60 cm, São Paulo.
Fonte: acervo particular Guedes 2014.
composição dos mistérios do real e do irreal forjam o tempo, transformando sempre as dimensões, abrindo sendas nos abismos das almas. Esta magia do surpreender cria a liberdade dentro das opressões dos perdidos momentos de repetição que nos são impingidos. Walter Lewy é um homem de profunda busca interior e, em seu caminhar sobre o planeta, se viu sem terra, percebendo que sua terra, sua matéria, habitava dentro de si. Com isto repousou sua busca, na busca mais profunda do ser humano, a sabedoria. Sua sabedoria existe na possibilidade de expor seus conhecimentos nas respostas que obteve, a partir da materialidade de sua imaterialidade, ou seja, na arte.
misticismo judaico. Este conhecimento cabalístico tem aspectos diversos, incluindo correntes ortodoxas e místicas com intrincados caminhos, pois existe um significado oculto nas escrituras tradicionais. Segundo Sholem:
Apresentamos a seguir a análise interpretativa de algumas obras de Walter Lewy que datam de 1973 até 1994, uma referência do caminhar deste artista que viveu até os 90 anos de idade, vindo a falecer no Brasil. A análise que realizamos dessas obras é também baseada nos conhecimentos de Gershom Scholem (1989), um acadêmico especializado no
A Figura 3 apresenta um sacerdote que detém a luz da vida em suas mãos, simbolizando o encontrar a si mesmo, o estar presente consigo. No lugar do rosto, um movimento helicoidal, apresenta a imprevisibilidade, sendo, a complexidade do movimento do universo. O cubo com duas fechaduras representa a dúvida. Uma fechadura está vazia e a outra com a árvore,
(...) a Cabala não é um sistema único com princípios básicos que podem ser explicados de uma maneira simples e linear, mas, ao contrário, consiste de uma multiplicidade de abordagens diferentes, amplamente separadas umas das outras e às vezes completamente contraditórias. (SHOLEM, 1989, p. 79)
O estudo cabalístico foi profundamente desenvolvido no final do século XIX na França, onde surgem as vanguardas de arte. Vários grupos artísticos desenvolveram estes A interpretação cabalística de algumas obras conhecimentos ocultos, como os Simbolistas, os de Walter Lewy integrantes do Orfismo e os Surrealistas.
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o símbolo da vida e do conhecimento na tradição cabalista judaica e também o ser e sua sabedoria e, logo acima do cubo, uma mão ‘divina’ com seus cinco dedos, relacionado aos cinco sentidos, que aponta aos céus, significando o unificar do céu com a terra. A figura 4 mostra o caminho no deserto, cercado por montanhas e pedras. Os quarenta anos de exilio, em busca da terra prometida. As montanhas mostram as alturas, os altares da vida. As pedras as bases para o caminhar, o apoio da vida. Sobre as cinco pedras a serpente azul, da cor do céu, apresenta portanto, a união do réptil, ser rastejante, com a cor divina do ceú, o microcosmos unido ao macrocosmos. Sua cabeça é uma seta indicando um caminho que poderá ser diverso, mas o povo que caminha leva consigo em suas lanças significantes e significados, o mundo simbólico. É o povo do livro, o povo judeu. Seu signos se tranformam em símbolos. A nuvem é pequena, podemos ver o céu, o divino, e assim percebemos que a verdade esta presente. Na figura 5 observamos muitas nuvens escuras, a visão é turva. Vários mundos nos habitam. A natureza esta por toda parte, a árvore da vida e da sabedoria está no portal da atividade (vermelho), da criação onde a intempérie está
mais amena, as nuvens estão azuis. O lado feminino, o da companheira é retratado em azul (Dirce Pires), abalizando os desejos, os métodos, a mente. As colunas cabalísticas que sustentam os céus nos dão a baliza (balanças transparentes em forma de sephitots. Sephitots = recipientes de sabedoria da árvore cabalista) para viver na terra. Esta imagem indica a possibilidade de viver na transparência da verdade, afinal a balança é real. A figura número 6 apresenta nuvens que obliteram os saberes, muros que cercam e impedem a passagem para o mundo das sensações. A mente é transparente, a esfera é nítida e clara. Formas simbólicas indicam o caminho, simplesmente, temos que conhecer para poder Ser. A gravidade é protetora, manipulá-la é conhecer a si mesmo e o terno é o equilíbrio. Verdes e vermelhos nas formas simbólicas representam as cores antagônicas, do sangue e da natureza, lembrando a máxima: “como é em cima é em baixo, como é em baixo é em cima”. A figura 7 apresenta o horizonte à vista, a linha que nunca será alcançada, mas que é visível. As nuvens escuras cercam a busca pessoal, as dúvidas existem. Ascendendo a torre, a partir da porta em forma de fechadura, Lewy representa a vida e sua sabedoria. A árvore se apresenta após
Figura 4: Walter Lewy – “Procissão”, 1975, ost, 60 x 81 cm, São Paulo.
Fonte: acervo particular Guedes 2014.
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Figura 5: Walter Lewy – “Mulher e Paisagem”, 1976, ost, 71 x 90 cm, São Paulo.
Fonte: acervo particular Guedes 2014.
Figura 6: Walter Lewy – “Contrastes em Evolução”, 1979, ost, 39 x 49 cm, São Paulo.
Fonte: acervo particular Guedes 2014.
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Figura 7: Walter Lewy – “Torre”, 1981, ost, 59 x 79 cm, São Paulo.
Figura 8: Walter Lewy – “Folhas Caindo”, 1989, ost, 78 x 118 cm, São Paulo.
Fonte: acervo particular Guedes 2014.
Fonte: acervo particular Guedes 2014.
o conhecimento pessoal. A torre escura, estilizada, ajudará no conhecimento do desconhecido, como apontam os três (número da criação) círculos coloridos - verde, amarelo e vermelho. E o espelho reflete a natureza em equilíbrio. O sol está resguardado pelas nuvens, seu excesso de luz não nos cegará. Os cactos alcançarão os céus: a união do inferior com o superior. A figura número 8 nos revela que as montanhas estão próximas e o caminho é plano. Vemos o livro dos saberes e as folhas do conhecimento que são verdes (verdade) e que deixam passar as penas (das penalidades) do discurso e os oito caminhos (oito penas) a serem reconhecidos pelas seis folhas/páginas do divino
(natureza) que nos fazem chegar a nós mesmos. Estas seis folhas se transformam em 12 páginas, os doze meses, os doze signos do zodíaco, o caminhar da vida. A figura 9 apresenta uma coluna tecida por bustos, o busto feminino, a combustão, o fogo da vida. A forma de coluna, coluna infinita onde só vemos o meio, lembra que sua origem e seu fim nos são desconhecidos, o caminhar não revela o todo. A gota que nela está repercute as emoções de fazer o caminho. O ser que caminha não tem mais rosto, ele é Hum. O céu é limpo, nasce à lua e ela está próxima, a iluminação é possível, porém a luz da lua é refletida do sol. O ser poderá reconhecer seus mistérios, mas, seu horizonte não está presente.
Figura 9: Walter Lewy – “Sem Título”, 1991, ost, 78 x 98 cm, São Paulo.
Figura 10: Walter Lewy – “Círculo com Árvores”, 1994, ost, 65 x 80 cm, São Paulo.
Fonte: acervo particular Guedes 2014.
Fonte: acervo particular Guedes 2014.
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Figura 11: Walter Lewy – “Lua”, 1994, ost, 48 x 59 cm, São Paulo.
Fonte: acervo particular Guedes 2014.
A figura 11 representa as dez esferas, como os dez sephirots da árvore da vida cabalista. Os caminhos da árvore da vida são três colunas: o bem, o mal e o equilíbrio. A lente circular, sem começo e sem fim, representa a coluna do meio. Sob esta lente vemos como símbolo iniciático a árvore, sem galhos no tronco, que apresenta o inferior e superior, sustentada na harmonia das águas diáfanas. A árvore floresce em campos verdes, onde a verdade habita e, com esta visão desperta, o iniciado. O observador poderá, mediante este saber, transformar as montanhas de ferro em montanhas verdejantes. Na figura número 11 a simbologia nos remete ao fato de não podemos ver o todo, mas somente uma fragmentação e o círculo no fragmento representa o eterno buscar. A terra esta plana, e vemos as montanhas verdes de criação. O monge andrógino azul oferece a sabedoria, sua túnica vermelha nos mostra o sangue para continuidade. O livro de cinco tomos, a Torá, mostra a verdade. A luz da lua brilha, de forma que não nos segará.
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Considerações Finais
A produção criativa de Walter Lewy tem origens em várias fontes. Sua família lidava com o comércio de roupas, portanto, os tecidos, as estampas e os desenhos fizeram parte de sua infância e o influenciaram de maneira marcante. Os cactos foram uma fonte de admiração e marcaram igualmente sua obra. A tradição judaica é marcante em seus trabalhos e demonstra um saber cabalístico simbólico apurado. A cada passo, Lewy se revela, demonstrando seus conhecimentos originais através do Realismo Fantástico – do Surrealismo. Como um típico surrealista, ele se caracterizava pela busca de um saber artístico e filosófico, que o lançava em busca de uma incoerência dentro da coerência, corroborado pela leitura de livros de ficção e pela audição da música clássica. Sua prevalência no mundo dos sonhos, deliberadamente incoerente proclamava a renovação dos valores: filosóficos, políticos, científicos e morais. Seu amor pela sabedoria se apresenta em suas obras o consciente de sua ignorância, no sentido original do termo. No âmbito das relações com o conhecimento científico, buscava um conjunto de princípios que fundamentavam suas contribuições para uma vida além desta. Walter Lewy, um judeu desterrado, fez de seu “não ter” um ato de criação e suas obras representam a união da terra como o céu, seus enormes zigurates. Os portais de suas obras habitam sua vontade de liberdade. Suas cores, fortes e verdadeiras, fazem sentir as melodias do canto de um novo dia. Sua alma encontra o equilíbrio entre ciência e o absurdo. Sua arte é realmente uma ponte para a irrealidade, que este despatriado encontra na amorosidade de seu suporte, um suporte para sua existência, suas telas. Este apátrida apresenta em seus pinceis a ligação como um momento sublime, e suas tintas o orgânico que enraíza seu estado de desenraizado. Em Walter Lewy, os conceitos, as paisagens fantásticas, uma visão cósmica e os seus mundos imaginários se ligam ao cotidiano através de suas relações naturais com o orgânico. Esta integração faz de Lewy um eterno contemporâneo. Os símbolos na obra de Walter Lewy criam,
enfim, referências para a unidade, a complementaridade de seu existir. Ao encontrar no Surrealismo a possibilidade de transbordar seus sentimentos e, portanto suas angustias, assim o fez. Com isto seus trabalhos existem em obras de arte que possibilitam ao observador mais profundo identificar a história da civilização humana e, se a consciência deste observador estiver com alterados estados de consciência, pode compreender a origem da formação do universo.
3 O realismo mágico é um gênero artístico e literário de mediados do século XX. O termo foi inicialmente usado por um crítico de arte, Franz Roh, para descrever uma pintura que demonstrava uma realidade alterada. (Realismo Mágico, jul. 2010. Disponível em: <http://pt.wikilingue.com/es/Realismo_mágico >. Acesso em: 24 de jul. de 2010).
Referências Bibliográficas CASTELLO, José Aderaldo. A Literatura Brasileira. São Paulo: Edusp, 1999. CRUZ, Celso. Metamorfoses de Kafka. São Paulo: Fapesp, 2007. Realismo Mágico, jul. 2010. Disponível em: <http://pt.wikilingue.com/es/Realismo_mágico>. Acesso em: 24 de jul. de 2010. SCHOLEM, Gershom. A cabala e seu simbolismo. São Paulo: Perspectiva, 1978.
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O artigo O beijo da mulher aranha: do livro ao filme e a participação imaginária do espectador de cinema foi apresentado junto ao II Colóquio Internacional de Cinema e Arte realizado no Memorial da América Latina, em agosto de 2014. A intenção era de estabelecer o diálogo com a obra literária de Juan Manuel Puig Delledonne, publicado em 1976 e a adaptação cinematográfica de Hector Babenco (1985), que teve como propósito conjugar várias categorias de linguagens para narrar a história de dois prisioneiros.
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O filme é considerado um clássico do cinema nacional que foi rodado em São Paulo e produzido no auge da repressão política na América Latina. Num filme carcerário é pertinente a discussão sobre a perda da liberdade como um ponto fundamental. Mas, para Molina, a liberdade adquirida não o impediu, em linhas gerais, de colocar um parêntese junto à realidade e continuar sonhando, numa situação de devaneio, como se estivesse assistindo o filme de sua própria vida. Nesta teia de acontecimentos criados pela própria personagem e como diria o
filósofo Jean Paul Sarte: “até a bala que o mata e vai acabar definitivamente com os seus sonhos” (Cabrera, 2006, p. 363). A história trata de dois prisioneiros, que foram presos por motivos distintos, na década de 1970. A personagem Valentín (Raul Julia) é um preso político e endurecido pelas lutas que tentou travar no seu caminho. Ele persegue o sonho de um futuro melhor por meio das ideias. Na sua visão de mundo só tem sentido viver se for partilhado em prol de um ideário político. A sua dor é ter que deixar a mulher amada por causa de seus ideais revolucionários. Ele também passa os dias pensando nos seus amigos de luta. As questões sociais se dão no âmbito da mente da personagem e são o que importa; ele nega o mundo das sensações, da fantasia e da imaginação. Segundo a personagem, o ócio foi criado pela burguesia com a finalidade de levar o indivíduo à alienação. Molina (William Hurt) também preso por pederastia e apaixonado por film noir. Ele é um homossexual assumido e completamente escapista, porque ele sonha e inventa cenas de filmes, como uma fuga de sua própria realidade. O mundo real e o imaginário se misturam o que acaba revelando as suas próprias subjetividades, as suas impressões, os seus valores, conceitos, preconceitos, etc. O prisioneiro guarda um segredo - a condição é que ele poderá ser libertado se obtiver do amigo de cela as informações que levem a polícia a localizar o grupo revolucionário do qual Valentín faz parte. Ele faz um acordo com o diretor da prisão em troca de proteção e comida. O mote de contato entre os prisioneiros eram as histórias contadas por Molina, que fazia o papel do narrador, enquanto Valentín ocupava o lugar do espectador. Molina se identificava com as personagens femininas dos próprios filmes que inventava, mas sempre inspirado nas atrizes de Hollywood e, por meio destas personagens, ele se fortificava contra a opressão do ambiente de carceragem e sonhava encontrar um grande amor. Ele incorporava a diva do cinema no momento em que contava uma história para Valentín, então mudava de roupa, ou usava uma toalha na cabeça, para imitar longos cabelos como o figurino criado por Patrício Bisso. A indumentária se insere no todo da personagem, como o penteado e a
maquiagem. A roupa usada por Molina servia para iludir o outro que o espreitava, aquele que o assistia. O romance e os outros gêneros da literatura, na atualidade, tornaram-se híbridos na medida em que estabelecem o diálogo com outras artes, como no teatro, no cinema e na televisão. Mas as histórias são contadas de diferentes formas e cada autor tem seu próprio estilo. O romancista escreve, enquanto o roteirista narra e escreve. No cinema, existem outros elementos como: o figurino da personagem, a localização, o cenário, a música, etc. O roteirista e o diretor têm a liberdade artística de escolher o tipo de adaptação que preferem realizar junto à obra original, que pode ser apenas uma adaptação parcial, uma recriação ou propriamente a adaptação fiel da obra. Mas o filme sempre se tornará outra obra artística independente da obra original. A obra deverá ser julgada dentro do próprio estilo, sem fazer cobranças, porque nenhum filme repete um livro, quer pelas diferenças de linguagem, quer pelo momento próprio de produção e circulação de cada um dos seus resultados. A literatura oferece muitos recursos formais que vêm das fábulas que alimentam o universo cinematográfico como o filme O Beijo da Mulher Aranha (Babenco, 1985): O argentino Juan Manuel Puig Delledonne publicou o livro, em 1976, e a obra literária, bem como a adaptação cinematográfica, de Hector Babenco, conjugou várias categorias de linguagem para narrar a história e de propiciar, ao espectador, transitar no espaço imaginário que os autores constroem para esta narrativa (Santos, 2009, p. 122) O autor do texto literário assim como o autor do texto cinematográfico está sempre presente na obra que cria como por exemplo, Manuel Puig se mascara da personagem - autor implícito e ficcional - porque se apresenta no discurso da personagem central. A participação imaginária do espectador junto ao filme provém das suas próprias projeções e identificações, aliadas à percepção fílmica: “A projeção é um processo universal e multiforme e as nossas necessidades, aspirações,
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desejos, obsessões, receios, projetam-se, não só no vácuo em sonhos e imaginação, mas também sobre todas as coisas e todos os seres” (Xavier, 1983, p. 145). Leni (Sonia Braga) uma das personagens inventadas de Molina era uma cantora de cabaré, que mantinha um romance com um oficial nazista durante a ocupação na França. A relação de Leni com Werner a torna a sua espiã. Mas ela não cumpre a missão e acaba morrendo pelos nazistas. Neste filme, a atriz Sonia Braga interpreta as personagens Leni, Marta e a Mulher Aranha. Valentín começa a sofrer, na prisão, com as torturas e a comida envenenada. Ele se mostrava cada vez mais frágil, necessitando dos cuidados de Molina, que por sua vez, por meio de seus truques e cuidados, vai tecendo uma armadinha, como uma aranha tece a sua teia para obter a sua presa. Molina o envolvia com mimos, chás e boa comida. A justificativa era que a sua mãe trazia as refeições. À medida que o tempo passava, Valentín revelava os seus segredos e a sua paixão por Marta (Sonia Braga). Ele a deixou para dar prioridade a sua causa, a luta revolucionária, enquanto Molina se apaixonava cada vez mais pelo amigo de cela. Nas histórias do narrador-personagem estão embutidas as narrativas do filme, que têm como propósito a plateia entender as personagens e seus conflitos. E a magia dos filmes estrutura o universo do cinema e da afetividade, que por sua vez, a estética transmuta magia em afetividade e afetividade em magia: “O cinema abriu todas as nossas necessidades subjetivas (...) a técnica ideal da satisfação afetiva é, efetivamente a todos os níveis de civilização e em todas as sociedades” (Xavier, 1983, p. 170/171). O discurso de Molina faz com que o espectador entenda o seu mundo real e ficcional, os quais, às vezes, confundem-se porque se misturam. A sua próxima narrativa é sobre a Mulher Aranha, que vive solitariamente numa ilha e, um dia, é salva por um náufrago, que acaba tornando-se o seu amante. A mulher criada pela personagem dá o título ao filme e possui um significado singular. Segundo o Dicionário de Símbolos a aranha é um
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animal lunar porque a lua por seu caráter passivo, de luz refletida, por suas fases, afirmativa e negativa (crescente e decrescente), corresponde à esfera da manifestação fenomênica relativo ao psíquico, à imaginação: “A lua tece todos os destinos aparecendo por isto em muitos mitos como uma imensa aranha” (Cirlot, 2005, p. 91). Na mitologia grega, quem cumpria este papel de cuidar do destino humano eram as Moiras para os gregos enquanto que, para os romanos, eles as chamam de as Parcas. Atualmente, as mudanças repentinas que ocorrem na vida são denominadas como um acaso, mas, para os gregos, era a obra das fiandeiras ou da fatalidade, aquela que corta o fio da vida. Moira significa parte, aquilo que cabe a cada um. Enquanto que, nas artes plásticas, as Moiras são representadas como lindas donzelas responsáveis pela tessitura do destino humano. Molina caiu na teia da aranha de suas próprias emoções e imaginação, ao se apaixonar por Valentín; após um acordo com o diretor da prisão, ele promete ao parceiro passar todas as informações necessárias ao grupo revolucionário o qual está ligado. Desta forma, o prisioneiro trai o diretor da prisão ao não cumprir a sua missão como a sua personagem Leni, que foi morta pelos próprios nazistas. Molina também nunca contou sobre o seu acordo com o diretor da prisão para ninguém. Ele dá uma falsa impressão de independência e liberdade, porque mentalmente ele continua a sua relação com Valentín. Molina poderia ter dito não ao parceiro para não ser cúmplice de seu crime. A hipótese aqui encontrada é que ele o fez por considerar esta oportunidade para viver um grande amor, até o fim, mesmo correndo o risco de ser morto, só para tornar-se uma grande heroína como as suas personagens fictícias. A sua inspiração, o film noir e suas estrelas, revela a sua paixão pelo cinema e as suas narrações eram como declarações de amor, mesmo encarcerado e desiludido. O cinema como uma via de escape era também a forma que ele encontrou de ‘ser’ no espaço prisional, ao construir as suas narrativas, as quais o libertavam da realidade. Desta forma, também somos todos Molina quando vivemos e sonhamos dentro do
nosso tempo de vida, antes que as senhoras do destino interfiram no nosso caminho. O cinema deixa de ser ficção ao transmutarmos para a nossa realidade e considerando nossa metamorfose cristalizamos a vontade de ser o outro.
FICHA TÉCNICA DO FILME: Título original: Kiss of the spider woman. Título no Brasil: O beijo da mulhe aranha. Direção: Hector Babenco. Roteiro: Leonard Schrader. Elenco: William Hurt, Raul Julia e Sônia Braga. Ano: 1985.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: 1) CABRERA, Julio. O cinema pensa: uma introdução à filosofia através dos filmes. Rio de Janeiro: Rocco, 2006. 2) CIRLOT, Juan-Eduardo. Dicionário de Símbolos. São Paulo: Centauro, 2005. 3) SANTOS FILHO, José Jacinto. O beijo da mulher aranha e o espaço na narrativa literária e fílmica. Ed. Universitária UFPE/Recife: 2009. 4) XAVIER, Ismail. A experiência do cinema. Rio de Janeiro: Edições Graal: Embrafilmes, 1983. DVD: O Beijo da Mulher Aranha. Direção de Hector Babenco. São Paulo: 1985. Autora: Rosângela Canassa – formada em Psicologia (São Marcos) e Mestrado em Artes Visuais (ênfase em análise fílmica), Doutorado em Educação, Arte e História da Cultura. Autora do livro: As mulheres no cinema de Pedro Almodóvar Caballero e a reinvenção do melodrama hollywoodiano. Pesquisadora do grupo de estudos do Laboratório de Pesquisa em Identidade e Diversidade Cultural do IA/UNESP. Blog: http://faroartesepsicologia.blogspot.com.br
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Inúmeras e significativas descobertas ocorridas no século XVIII e XIX impulsionaram consideravelmente o desenvolvimento no cenário mundial e avultada melhoria na qualidade de vida. A exemplo, novos produtos químicos, novos processos de produção do ferro, invenção da lâmpada, utilização da energia da água, o uso crescente de energia a vapor, a substituição da madeira e outros biocombustíveis pelo carvão, desenvolvimento de máquinas-ferramentas e outras tantas, impulsionando os campos da matemática, física, química e medicina. A esse fenômeno de transição do método de produção manufaturado à produção maquinaria é conhecido como Revolução Industrial que tem seu marco inicial na Inglaterra, por volta de 1780. Acaba por perdurar por longos anos e repercute, em poucas décadas, para a Europa Ocidental e Estados Unidos, onde, consequentemente, modifica quase todos os aspectos da vida cotidiana de época. Como resultado, numa tentativa de melhores condições de vida nas cidades, ocorre um intenso êxodo rural. No entanto, essas pessoas se deparam com uma realidade patogênica dos cortiços a cruel jornada de trabalho na indústria, com cerca de 80 horas semanais, onde trocam sua força de trabalho por salários baixíssimos.
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Assim sendo, a produção em massa se intensifica e acaba por distanciar cada vez mais o trabalhador do produto final e intelectual, uma vez que se passa à especialização das etapas de produção. Impondo sua nova cadência e impulsionando relações sociais cada vez mais complexas e significativas mudanças econômicas, desponta-se uma nova realidade social, rompendo com o modelo anterior à Guerra. Eis que, para alguns, surge uma inequívoca sociedade moderna. Logo após, no período após Segunda Guerra Mundial, todas as transformações tecnológicas, culturais e sociais ocorridas desde a Revolução Industrial são ainda mais intensificas. Corroborando, E. Ann Kaplan diz que em algum momento após a Segunda Guerra Mundial, começou a surgir um novo tipo de sociedade, descrita como sociedade pós-industrial ou sociedade de consumo, caracterizada por um ritmo cada vez mais acelerado de mudanças na moda, no estilo e nos meios de comunicação, assim como, também extasiada com o aparecimento da cultura do automóvel, marcando uma ruptura radical com a velha sociedade do pre -guerra… (HUTCHEON, 1991).
Para atender esse novo modelo social, absolutamente remodelado, a produção industrial passa a ser contemplada com expressivas pesquisas científicas e a apresentar significativa evoluções tecnológica, particularmente na comunicação. Esta, por sua vez, repercuti diretamente nas etapas de produção e difunde-se amplamente na organização do trabalho e em todos setores fabris. Ponderando estas mudanças, Tarsila do Amaral disse que “nenhum artista consegue escapar da influência do contexto, das ideias de seu tempo”. Assim, como movimento estético, a modernidade surge neste contexto, onde particularmente nas artes e cultura designa o que hoje chamamos de "modernismo". Neste mesmo sentido, Perry Anderson noticia que o termo “modernismo”, nasce na América hispânica, objetando qualquer circunstância dos grandes centros culturais da época, Europa e Estados Unidos. Ainda, para qualificá-lo, Rubén Darío, um poeta nicaraguense, por volta de 1890, inspirado em várias escolas francesas, escrevia num periódico guatemalteco sobre o embate literário no Peru e fomentava a “independência cultural” face a Espanha. Assim, dá-se início a uma tímida corrente que por ora vai espalhando-se pelo mundo: o modernismo. Da mesma forma, o termo pósmodernismo surge naquela mesma localidade, infundido por Frederic de Onís, que o usou para descrever um reflexo conservador existente dentro do próprio modernismo, o elevando a categoria de método, e o contrasta a um vigoroso impulso ultramoderno. Alicerçando-se nos anos 50 e 60, o termo pós-modernismo foi bastante usado por alguns escritores, no entanto, é nos anos 70 que este fenômeno ganha força, particularmente na primeira década, em algumas disciplinas acadêmicas e áreas culturais como a filosofia, arquitetura, cinema e teatro, assuntos literários e artes. Corroborando, Steven Connor conta que as disciplinas acadêmicas falavam cada vez mais sobre o tema, aproveitando suas próprias definições e descobertas, trazendo mudanças profundas e variadas uma vez que nos ajudam nesta difusão. O pós-modernismo chega, então,
aparentando um movimento de fácil compreensão e com a estratégia da não rejeição dos movimentos anteriores, trazendo em seu cerne uma multiplicidade de atitudes e abordagens, garantindo a liberdade na busca de inspiração. Nesta circunstância, a multiplicidade de técnicas e materiais é bastante operada, sem nenhuma restrição, assim como o uso de temas culturais diversos, sem hierarquização dos mesmos ou super valorização de algumas manifestações artísticas, numa evidente reconciliação com a cultura popular. Neste contexto, a citação é bastante pronunciada em sua compostura, plenamente identificável, aparecendo com uma roupagem remodelada, redefinindo fragmentos e a elas dando novas forma e significados. Inferindo suas ponderações, trazemos à baila Dr. João Eduardo Hidalgo, que nos brinda com seus ensinamentos do “uso da paródia, esclarecendo que o sentido abrangente do termo não se limita ao genericamente lembrado aspecto negativo de escárnio de uma obra ou autor, mas sim incorporado a nova obra, o elemento parodiado.” (HIDALGO, 2010, p. 81 – 95). Corroborando com a mesma abstração, Linda Hutcheon diz que: a parodia é, neste século, um dos modos maiores da construção formal e temática de texto. E, para além disto, uma função hermenêutica com implicações simultaneamente culturais e ideológicas. A parodia é uma das formas mais importantes da moderna auto-reflexidade; é uma forma de discurso interartístico…” (HUTCHEON, 1991).
Nesta perspectiva, conclui-se que a parodia, como uma das principais características do pósmodernismo, é entendida como material de inspiração e construção poética, onde arreda-se aos olhos do autor, interessantes elementos de uma obra artística que, com auto reflexão e conveniência, os reorganiza, criando algo próprio, em uma consciência reflexiva histórica-social. A ironia, com sua manifesta exuberância, também é apontada nas diversas expressões pósmodernas, expondo as metáforas altamente críticas no processo artístico, denunciando verdadeiras catástrofes e asperezas históricas. Contribuindo, Micheael Archer afirma que
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a citação poderia aparecer sob inúmeras formas, como cópia, pastiche, referência irônica, imitação, duplicação e assim por diante. Ainda, acresce-se ao indicado autor que, por mais que seu escopo seja atingido, jamais poderia ser postulada a originalidade da obra, vez que a integralidade das intenções da obra impulsionadora ficava requalificadas. Conclui-se assim que a parodia, como uma das principais características do pósmodernismo, é entendida como material de inspiração e construção poética, onde arreda-se, aos olhos do autor, interessantes elementos de uma obra artística que, com autorreflexão e conveniência, os reorganiza, criando algo próprio, em uma consciência reflexiva histórica-social. No entanto, é no âmbito da arquitetura que as modificações estéticas são mais evidentes e seus impasses teóricos mais intensos, onde a vaidade cede lugar à essencialidade e a funcionalidade. Nesta perspectiva, e em um esforço histórico, destacamos as primeiras manifestações pós-modernas que apareceram na arquitetura, particularmente na Europa, irradiando-se posteriormente mundo a fora, como resposta à massificação no padrão proposto nas reconstruções de cidades devassadas pela guerra, feitas em grande escala e sem identidade.
Dr Hidalgo , em aula ministrada no Instituto das Artes - UNESP- 2018, traz o exemplo clássico: o prédio da AT&T (hoje Sony), 550, da Madison Avenue, Nova York, projetado por Phil Johson, em 1978.
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É um arranha - céu de vidro comum no clássico estilo Louis Sullivan/Walter Gropius/ e algumas características não usuais, pósmodernistas.
Entrada do prédio da AT&T
No telhado, o edifício foi ornamentado com um frontão, decorando o topo da fachada principal ao invés do clássico e esperado telhado quadrado. Ainda, brincando com a base do edifício, ao invés de um portão retangular, existe uma imensa entrada arqueada que evoca o domo renascentista da Basílica di Santa Maria del Fiore, em Florença, na Itália. A fachada do prédio e o átrio são revestidos em granito rosa não polido, numa escolha particular do arquiteto. Steven Connor revela que, da mesma maneira que ocorre na arquitetura, é também bastante evidente a manifestação da pósmodernidade na pintura, onde essas abordagens tecem emergentes e intensos diálogos, com um grau considerável de confluência, visto que muitos arquitetos e artistas trabalhavam juntos, ou, mais ainda, alguns artistas esmeravam-se em ambos os campos. Caracterizando os anos 70, a tradição da pintura ressurge com predominância na arte mundial, assimilando as lições anteriores e
240X300 CM O DIA, 2012
Monumento com ossos queimados 1979 - Markus Lupertz ressignificando acontecimentos através de uma avaliação reflexiva das ideias, sentimentos, fatos e produções artísticas empreendidas. Exemplo bastante curioso é o “Monumento com ossos queimados”, 1979, onde Markus Lupertz, pintor e escultor alemão, com toda sua habilidade, expressava sua orientação e juízo crítico - político da história da alemã na guerra, através das suas produções. Ainda na pintura, recentemente São Paulo foi brindada com a exposição do renomado pintor paulista Paulo Pasta, no instituto Tomie Ohtake, no primeiro semestre de 2018, cuja exposição reuniu algumas obras com dimensões quase arquitetônicas, aproximadamente 2,4 metros de altura por 3 metros de comprimento, admiradas pelos amantes das artes, sob a curadoria de Paulo Miyada. Aludido curador, busca suas reflexão sobre as obras do consagrado artista, cotejando a a um ensaios do historiador italiano Giulio Carlo Argan, datado em 1964. Assim, infere que o artista italiano colecionava sinais inquietantes de que historia da civilização poderia estar à beira de um desenlace, quando então seria sucedida por uma vida sem discernimento de seu passado ou construção vindouras, questionando com isso, a expressão da arte nesse cenário. Assim, conclui que Pasta não pretende ser portador dessa solução, mas que, em sua prática artística, enfatiza os mesmos.
Para o artista Jean-Michel Basquiat (Nova Iorque, 1960-1988), a expressão da arte se dá com a aproximação da cultura popular, característica também bastante presente no pósmodernismo. Da arte de rua traz sua inspiração e a leva para as galerias e, destas, aos museus, onde seus Impulsos artísticos são facilmente percebidos através da repetição de letras e palavras que refletem ritmos, sons e a vida na cidade. Figuras poderosas também dominam a cena de muitas obras de Basquiat, levando críticos a vislumbrar em suas produções uma incrível combinação de imagens das culturas erudita e popular, subvertendo qualquer hierarquia convencionada. Basquiat é um dos poucos afro-americanos num mundo artístico predominantemente de brancos que com suas obras revela uma evocação da rua à uma profunda narrativa sobre a experiência de ser negro e as conquistas culturais como tal. No início de 2017 expôs no Brasil, no Cento Cultural Banco do Brasil (CCBB), sob a curadoria de Pieter Tajabbes, no coração da cidade de São Paulo, onde, com suas obras, personifica o caráter de Nova Iorque dos anos 1970 e 1980, num dinamismo que marca sua criatividade e talento. Em 2019, parte considerável de seu acervo encontra-se permanentemente exposto no The Broad, Museu de Arte Contemporânea de Los
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Angeles, California, EUA, trazendo a narra com seu subjetivismo, o dinamismo que possibilidade de mais uma proximidade de suas desafia a natureza estática da pintura. obras com o público, ainda que postumamente, sob a direção de seu amigo Schnabel. Suas obras ainda são consideradas muito impactantes à artistas contemporâneos e, não raro, são disputadas em leilões de arte sob altíssima cotação.
Igualmente na pintura contemporânea, a artista Cecily Browne expõe no Instituto Tomie Ohtake, em 2018, sua mostra " Se o paraíso fosse assim tão bom”, sob a curadoria também de Paulo Miyada, enunciando sua reflexão sobre o assunto que a fascina: o paraíso. Neste ensaio
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Numa grande exploração de todo o espaço pictórico, Browne transforma, em suas obras repletas de cores e formas, tudo em um dinâmico movimento, como produto da complexa relação entre a expressão e a abstração, irrompendo significações conformadas sobretudo de plantas, animais e humanos. Nesta mesma diligência, também é possível deixar de enxergar tais delineamentos e experimentar apenas manchas e campos de cores intensas retratadas. Aludida característica surge como reflexão maior de seu trabalho inspirado nas abordagens do Olimpo, oportunizada por artistas consagrados como Hieronymus Bosch, Michelangelo Buonarroti e Jan Breughel, que pintaram cenas paradisíacas, nas quais humanos e bestas coexistem em uma irrealidade profusa. Na fotografia, como expressão de arte pósmoderna, Barbara Kruguer, inicia seu percurso na década de 60 e adentra nos anos 70, engajando-se no mundo artístico e assumindo - o como propósito de reflexão dos códigos culturais. Assim, Kruguer dá início a sua carreira como designer gráfica e revela sua história de vida, escolhendo sempre grandes posters, geralmente em preto-e-branco, sobrepostos com frases, normalmente escritas na fonte futura ou helvética, numa representação metafórica e slogans reflexivos e politizados, denunciando formas visíveis do fetichismo contemporâneo, das mercadoria às mulheres, a serem consumidas como mercadorias. Para tanto, reproduz insanamente relógios, rótulos e imagens de propaganda, mulheres, pessoas e outros mais.
Essa obra é chamada de Have Me Feed Me Hug Me Love Me Need Me, de 1988, e encontrase atualmente entre o acervo permanente do The Broad, Museu de Arte Contemporânea de Los Angeles, Califórnia, EUA. Cada uma dessas fotografias contém imagens de lindos bebês e trazendo fortes apelos emocionais a ponto de ensejar a maternidade num ínfimo tempo de visualização e numa demanda posta em primeira pessoa que diz: Tem que me alimentar, me abrace, me ame e eu preciso de você! Com o recurso de justaposição textual, os rótulos transmudam-se trazendo mensagens de distúrbios psicológicos como a paranóia, chamando a atenção à pressão social que as mulheres sofrem para engravidarem. Numa maior ponderação, Barbara Kruger denúncia as mensagens publicitárias assimiladas ao subconsciente das pessoas, delineando suas percepções e propósitos através de apelos comoventes, e em última análise, nos dizendo o que podemos e o que não podemos ser, numa “construção" de papéis sociais pré-definidos. Dentre as múltiplas abordagens do pósmodernismo, exponencia-se também as artes cênicas, trazendo em sua trajetória histórias clássicas como Dom Quixote de La Mancha, obra de Miguel de Cervantes, estreada na da Broadway, em 1605. Em 2017 esta obra é parodiada para um musical inédito, dirigido por Miguel Falabella, que decidiu ambientar o texto original de Dom Quixote de La Mancha, o transpondo dos calabouços da Inquisição espanhola, na Idade Média, à um hospício brasileiro na década de 1930, contando a história do ator e coletor de impostos, Miguel de Cervantes, internado em um hospício junto ao seu criado, Sancho, cujo diagnóstico era de idealista. Com o intuito de convencer o líder dos internos a lhe devolver seu manuscrito por ele usurpado, propõe aos pacientes e funcionários do manicômio, uma imersão ao lúdico, montando com eles uma peça teatral. Para tal propósito, dá um toque particular aos figurinos e cenários, incorporando a estética do artista plástico Arthur Bispo do Rosário, cuja boa parte da existência, coincidentemente, passou em um centro psiquiátrico. A obra dialoga o tempo todo conosco,
falando da vida e seus impasses, adversidades, loucuras, sonhos, utopias, angústias e da violência, nos convidando à arte como reflexão da nossa sociedade atual. O cinema é fruto do projeto da modernidade e muitas transformações tecnológicas desenvolvidas na passagem do século XIX para o século XX, contribuíram para sua criação enquanto linguagem. Ainda que a princípio os filmes fossem feitos com câmera fixa, numa única tomada, com os atores entrando e saindo de cena pela lateral do cenário, como num teatro filmado, Machado (2011) aponta que os novos meios de transporte e comunicação - como as estradas de ferro, a navegação a vapor, viagens de balão, fotografias aéreas, o telégrafo e a comunicação pelo rádio - trouxeram para o homem uma nova perspectiva de tempo e espaço, o que acabou por influenciar também as narrativas visuais, convergindo “para o discurso visual e para a velocidade do cinema” (MACHADO, 2011, p.17). Assim, aos poucos o cinema desenvolveria suas próprias técnicas narrativas, estruturadas a partir da nova percepção de mundo que se formava. Mais tarde, o advento da pós-modernidade ocasionaria uma nova mudança nas narrativas cinematográficas. A paródia, a citação e o pastiche, elementos presentes no pós-modernismo, também são utilizados pelo cinema contemporâneo para revisitar estéticas anteriores e dialogar com elas, gerando um ecletismo de forma e estilo. É o caso, por exemplo, da obra de diretores como David Lynch, Quentin Tarantino e Pedro Almodóvar. David Lynch é notadamente conhecido pelo caráter surrealista de seus filmes, porém Ferraraz (1998), autor que pesquisa a obra de Lynch, traz considerações importantes sobre isso. O movimento Surrealista tem início no começo da década de 1920, culminando com a publicação do Manifesto Surrealista de André Breton em 1924. Pretendia-se colocar em evidência os mistérios do inconsciente humano e, ao mesmo tempo, fazer uma crítica à sociedade burguesa. Temáticas como o sonho, o inconsciente e a loucura passaram a ser trabalhadas a partir de novos valores estéticos, negando os modelos estabelecidos pela burguesia. Lynch retoma essas temáticas, porém em um outro tempo histórico, por isso elas assumem preocupações e significações diferentes. Ferraraz
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Have Me Feed Me Hug Me Love Me Need Me, 1988
O Homem de La Mancha, 2017
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considera Lynch como um neo-surrealista, e não surrealista de fato, pois Lynch é um artista contemporâneo. Sua obra só pode ser entendida pelo diálogo e revalorização das características do movimento original.
Cena do filme Veludo Azul (1986), de David Lynch. Neste filme, o jovem Jeffrey Beaumont descobre uma orelha humana atirada no gramado e, obcecado pelo mistério, fica determinado a investigar o que houve. A situação inusitada insinua os aspectos bizarros e surreais presentes na filmografia do diretor.
Quentin Tarantino, por sua vez, é um cinéfilo assumido que utiliza todo o seu conhecimento sobre a história do cinema na realização de seus filmes, fazendo inúmeras citações a gêneros e estilos anteriores. Na definição de Mauro Baptista (2010), “Tarantino faz cinema de gênero pós-moderno, não clássico” (p. 25). Como explica Baptista, o cinema de gênero foi uma característica fundamental para a indústria hollywoodiana, pois permitia oferecer ao público uma produção diversificada - onde destacavam-se gêneros como western, musical, comédia e filmes de crime, ao mesmo tempo em que se mantinham padrões reconhecíveis – todos os gêneros recorriam às estruturas narrativas do cinema clássico. Ao enfatizar que o cinema de Tarantino é um cinema de gênero, porém não clássico, Baptista refere-se ao fato de que o diretor não se atém exclusivamente à essas estruturas; tampouco realiza um cinema exclusivamente moderno. E a mistura de técnicas narrativas, gêneros e estilos o consagram como um cineasta pós-moderno. “Ele incorpora estratégias narrativas do filme noir e do cinema moderno, a paródia de filmes de gênero e a diversidade de estilos que se inicia na década de 1960. É um autor cinéfilo e eclético que parte da tradição pulp e se
nutre de um amplo leque de formas de fazer cinema, de Howard Hawks a Sergio Leone, dos exploitation films estadunidenses dos anos 1970 ao primeiro Jean-Luc Godard (1959 – 1965)” (Baptista, 2010, p. 25). O referido autor lembra ainda que a obra de Tarantino poderia ser facilmente confundida com um simples pastiche. O que o diferencia de outros diretores pós-modernos, nesse caso, é que ele não faz citações simplificadas, apenas relembrando a história do cinema. Complexos e criativos, os filmes de Tarantino funcionam mesmo sem as citações, que, quando aparecem, estabelecem um diálogo com o passado cinematográfico. Ainda como exemplo de cineasta pósmoderno, temos Pedro Almodóvar. O diretor, que vivia em pequenas províncias da Espanha e teve formação religiosa, mudou para Madri aos 16 anos, em busca do sonho de estudar cinema. Como salienta o pesquisador João Eduardo Hidalgo (2010), o então adolescente não possuía recursos para tanto e, na época, o ditador Franco havia fechado a Escuela Oficial de Cine, o que dificultou o início de sua trajetória. Ainda assim, Almodóvar se manteve na capital. Em contato com a cena cultural underground, ele passa a escrever, fazer teatro, performances musicais e, quando finalmente consegue comprar uma câmera super 8, começa também a realizar curtasmetragens. Lançou seu primeiro filme comercial, Pepi, Luci, Bom e outras garotas de montão, em 1980 e, apesar de ser autodidata como cineasta, Almodóvar construiu uma carreira prolífica e internacionalmente premiada ao longo dos anos. Suas obras também são marcadas por citações, que não advém apenas do próprio cinema, mas também de outras expressões artísticas. Em uma breve análise da obra de Almodóvar, o crítico e diretor Kleber Mendonça Filho (2011) aponta alguns momentos notáveis em que a arte é citada em seus filmes, como quando um filme de Buñuel passa em uma TV, em Carne Trêmula; os personagens cantando num carro no final de Atame!; uma montagem de Um bonde chamado desejo em Tudo sobre minha mãe e a coreografia de Pina Bausch na abertura de Fale com ela. Ele ainda destaca a importância que a arte tem nessas narrativas. Para os que acompanham a trajetória do
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Cena de Bastardos Inglórios (2008), de Quentin Tarantino, em paralelo com a passagem de Rastros de Ódio (John Ford, 1956). Em ambas as narrativas, as portas, filmadas de dentro para fora da casa, representam um lugar ao qual os personagens não podem ou não se sentem pertencentes.
A pele que habito (2011), filme de Pedro Almodóvar, e Vênus com organista e cupido, quadro de Tiziano Vecellio, que data de 1548. Além de ter inspirado a composição da cena, esta pintura também aparce no cenário do filme, assim como outros quadros do próprio Tiziano e de outros artistas.
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diretor Pedro Almodóvar, um ponto claro de atração para a sua obra é o seu interesse pelos mecanismos da arte inserida nos seus filmes, incidindo sobre seus personagens. [...] Abrindo “Fale com ela” com uma coreografia da alemã Pina Bausch, vemos, em um plano de reação, o rosto banhado de lágrimas de um homem. Almodóvar, sem nenhum interesse em ser lacônico, apresenta de imediato o poder que a arte tem sobre os que sentem. Fica a sensação de que essa idéia foi apenas ensaiada no seu filme anterior, “Tudo sobre minha mãe” (1999), quando sentíamos a carga emocional que uma montagem de “Um bonde chamado desejo” trazia para uma das personagens. Em “Fale com ela”, a arte é não apenas reflexo, mas também refúgio e uma alavanca para sentimentos e ações. (FILHO, Kléber Mendonça, 2011, p. 142) Cinema, música, teatro, dança...além disso, artes visuais e literatura. As citações nos filmes de Almodóvar não só estabelecem relações entre os personagens e ampliam a significação de suas histórias, mas também refletem sua formação como um artista multidisciplinar. Mas o que mais chama atenção no cinema de Almodóvar é o fato de que, ao longo dos anos, o diretor passou a referenciar a si mesmo, resgatando histórias secundárias de seus primeiros filmes para construir a narrativa principal dos atuais. Hidalgo (2010) classifica isso como autocitação paródica. A citação e a paródia sempre foram elementos fundamentais no processo de criação de Pedro Almodóvar, mas, segundo o autor, quando ele passa a revistar sua própria obra, traz à tona uma característica importante do pós-modernismo, em que a arte não busca mais validação no mundo exterior, mas sim em si mesma. Ainda, na década de 60, a expressão do pós-modernismo na música brasileira se exponencia na voz de Gilberto Gil, Caetano Velozo, Chico Buarque de Holanda, Maria Betânia e outros representantes do movimento cultural da época, o Tropicália, que surge como resultado da forte influência das correntes artísticas da vanguarda e cultura pop, nacional e estrangeira , revertendo-se numa hibridação estética na música e inserindo a percussão e a guitarra elétrica nas composições.
Na performance da dança, Anna Halprin e outros artistas trazem uma nova proposta que surge da combinação dos métodos de improvisação de movimentos “naturais” e dos impulsos do próprio corpo, sem o uso de qualquer técnica. Assim, a questão do corpo e de como ele se apresenta em cena é reorganizado, tendo como parâmetro a leitura do cotidiano, trazendo movimentos corriqueiros como expressão da dança.
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Considerações
Multimeios), Instituto de Artes da Unicamp, Campinas, 1998.
Para Linda Hutcheon (1991), o pósmodernismo é contraditório, pois reflete muito do próprio contexto em que se localiza, o mundo ocidental contemporâneo, plural e fragmentado. Esta contrariedade constitui a própria poética da arte pós-moderna. Submetido a uma lógica capitalista, tendo inclusive sua origem na arquitetura, o pós-modernismo não deixa de ser crítico aos sistemas dos quais faz parte. Além disso, sua preocupação com o passado histórico divide espaço com expressões autorreflexivas e paródicas, de onde sobressai a ironia em detrimento da nostalgia. Assim, tentamos elucidar como essas características do pós-modernismo se manifestam através de diferentes linguagens artísticas, como nas artes visuais, no teatro, no cinema e na dança, entre outras, localizando alguns exemplos de obras que deixam ver como o pós-modernismo se apropria de personagens e acontecimentos históricos para criar narrativas particulares e originais, ao mesmo tempo em que utiliza ferramentas como a intertextualidade e a citação como uma forma de resgate da história e da história da arte. Referências Aulas Dr João Eduardo Hidalgo UNESP, 2018. ANDERSON, Perry. As Origens da PósModenidade, SP: Jorge Zahar Editor, 1998. BAPTISTA, Mauro. O cinema de Quentin Tarantino. Campinas, SP: Papirus, 2010. 2ª ed. COMPERTZ, Will. Isso é arte? 150 anos de arte moderna do impressionismo até hoje. Rio de Janeiro: Zahar, 2013. CONNOR, Steven. Cultura Pós-Moderna Introdução às Teorias do Contemporâneo, SP:Loyola, 1992. FERRARAZ, Rogério. O veludo selvagem de David Lynch: a estética contemporânea do surrealismo no cinema ou o cinema neosurrealista. 1998. Dissertação (Mestrado em
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FILHO, Kléber Mendonça. A arte como reflexo e refúgio. In: El Deseo: o apaixonante cinema de Pedro Almodóvar. Coutinho, Angélica; Lira Gomes, Breno (orgs.), 2011, p. 142 – 144. HIDALGO, João Eduardo. A autocitação paródica em Pedro Almodóvar: uma poética da pós-modernidade. Revista Poéticas Visuais, n. 01, 2010, p. 81 – 95. HUTCHEON, Linda. Poética do modernismo. Rio de Janeiro: Imago,1991.
pós-
LEONARD, Emmerling. Jean - Michel Basquiat . EUA, 1960-1988. MACHADO, Ludmila Ayres. Design e linguagem cinematográfica: narrativa visual e projeto. São Paulo: Blucher, 2011. ARCHER, Michael. Arte Contemporanea - Uma Historia Concisa , Rio de Janeiro, 2012.
Maurício andava feliz pelas calçadas naquela terça-feira. De mãos dadas com sua mãe, Martha, ele subia a Avenida sob um sol primaveril escaldante a caminho da Matriz para o encontro catequético semanal. Mas, naquela terça-feira, sua mãe tinha deixado ele comprar doces na venda do seu Luís depois da catequese e nada, nem mesmo a madre brava ou o sol terrível, poderiam tirar o sorriso do rosto do menino. Passados três quarteirões de sua casa, Martha pediu para que ele trocasse de lado com ela na calçada e que eles atravessassem a rua. A criança entendeu a mensagem e obedeceu depressa com medo de perder seu doce se fosse mal-criado. Acontece que sua mãe tinha medo do senhor que morava na casa 102 e, sempre que eles passavam por lá, Maurício tinha que atravessar a rua e andar um quarteirão do lado em que bate o sol. Para ele, a mãe temia o senhor porque ele era feio: com um nariz torto e deformado, ele era tratado como um monstro. - Mamãe, a senhora tem medo da casa 102 porque o dono de lá é feio? - Pergunta o garoto que se arrepende logo que abre a boca. A mãe pareceu ofendida com a questão. - Não, não. Sua mãe só não gosta de passar por lá porque ele é um desgraçado - ela fala virando depressa a face. - Mas, mamãe, como ele pode não ter a graça divina se a Madre Branca insiste em dizer que o Senhor é o bom Pai de todos? - Ele é um lazarento, oras! Fez tantos pecados sem nunca se confessar que hoje passa
pelo castigo antes mesmo de chegar no Fogo Ardente. Para Maurício, esse castigo continuava não fazendo sentido. O que o senhorzinho entristecido poderia ter feito de tão mau para ser tratado daquela forma por todos? Em sua inocência infantil, ele não compreendia o preconceito estúpido dos adultos e também não compreenderia a história de Mario Coppola residente da 102 - se lhe contassem. Fazia algum tempo, mas para Mario, era como ontem. Aos 16 anos ele conheceu uma garota diferente: Edwiges Ruschel era filha de Joseph Ruschel, um alemão alto que veio ao Brasil durante a Primeira Grande Guerra e se apaixonou por uma formosa italiana chamada Elena Conte a qual vivia numa Vila Operária e trabalhava na tecelagem da Brasital, a maior fábrica da cidade. Quando os dois se casaram e a menina nasceu, Joseph quis abrir seu próprio negócio, abrindo as portas da primeira farmácia da cidade e fazendo com que a pequena família se tornasse popular. Porém, só aos 16 anos Mario teve dinheiro suficiente para comprar um remédio contra a anemia de seu irmão Mariano, e, só então, pode ser atendido por Edwiges que sempre esteve por trás do balcão. Talvez fosse porque ela usava um um vestido verde que realçava seus olhos naquele dia, ou porque ela soubesse o nome difícil de todos os remédios daquelas prateleiras, mas, mesmo sendo tão comum como qualquer outra menina de quatorze anos, o garoto a achou simplesmente
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espetacular e quis convidá-la para ir algum dia com ele e seus amigos à praça da Igreja. Talvez fosse porque ele nunca tinha convidado uma garota para nada, ou porque ele se considerava um tanto inferior àquela, que ele quase caiu de joelhos quando ela respondeu “Vou perguntar para os meus pais, mas acho que posso ir na quinta, depois da crisma”. De fato ela apareceu naquela quinta. E em todas as outras quintas-feiras depois daquela. Certamente, a educação, humildade e bom-humor de Mario a deixavam alegre. E depois que a crisma acabou, ela pediu que o moço continuasse se encontrando com ela por mais quintas-feiras. Ademais, depois de alguns meses, ele foi chamado para um almoço de domingo com a família Ruschel e pedi-la em namoro era inevitável. Apesar do pai alemão bravo da garota e de sua família não possuir tantos dotes como a dela, ele fez de tudo para ser bem aceito e manter um relacionamento afetuoso com sua Eddie. Outrossim, namorando-a seriamente desde os 17 anos, ele pretendia casar-se com o amor de sua vida quando completasse seus 18 anos. Infelizmente, nem sempre se tem o que deseja. Alguns acreditam em destino, outros acreditam em seres religiosos, e outros ainda não acreditam em nada. Em 1942, ano em que Mario completou seus 18 anos, a maioria dos residentes da cidade eram cristãos católicos, logo, acreditavam em Deus e na forma como Ele provê seus filhos. Portanto, nesse ano, Deus não queria que Mario e Edwiges estivessem juntos para se casar. Nesse ano, Mario sentiu a dormência de suas mãos e pés, viu manchas aparecerem por seu corpo. E, nesse ano, Mario foi levado para longe de sua família, amigos e amada para o exílio total em sua desgraça. Sem nem ter sido diagnosticado por um médico, ele foi considerado leproso por aqueles que estavam à sua volta. Assim, o próprio pai de Eddie, contactou o leprosário da cidade vizinha e logo a polícia parava em frente a casa dos Coppola para retirar o jovem do convívio social e ser apartado para a pequena vila de Pirapitingui, em Itu. De algum modo, a internação do pobre garoto pareceu conveniente a Joseph. Ele logo
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apresentou à filha Aurélio Gomes, um português muito mais velho que a menina mas que tinha terras de gado em Elias Fausto e que complementaria o dinheiro que ele precisava para completar sua farmácia com os novos cosméticos que as senhoras de posse traziam do exterior. O pai praticamente forçou a menina a se encontrar com Aurélio durante um longo ano até que acertasse uma parceria entre seus negócios e o senhor se sentisse confortável para pedi-la em casamento. Para a garota, foi como uma encruzilhada na qual ela estava totalmente perdida: ela ainda amava Mario, ele fora seu primeiro amor e a fizera conhecer novas facetas do mundo e de si mesma, porém, ela sabia que seria impossível se unir a ele visto que ele estava em uma situação delicada com sua saúde e que essa situação poderia comprometer a vida dela também. Ela não queria se ver atada a uma enfermidade, a uma pessoa incapaz de viver conforme ela desejava, impossibilitada de lhe oferecer o futuro que ela planejara com a formação de uma família. Claro que ela continuaria o amando independente de sua escolha, mas ela via que a “penitência” pelos próprios pecados que ele estava cumprindo poderia ser fatal e decidiu escolher a si mesma ao invés de escolher o amor que eles haviam construído. Para concretizar isso, ela aceitou a proposta de casamento de Aurélio, realizando a cerimonia no dia 17 de janeiro de 1944, num dia tão quente que quase fez os convidados derreterem sob seus ternos e, de noite, caiu uma chuva torrencial durante a festa que uma parte da cauda do vestido da noiva ficou para trás. Um ano depois, em março de 1945, nasceu João Aurélio, uma criança rechonchuda e chorona para completar o ideal de família de Edwiges. Ela aprendeu a ficar mais tempo em casa do que na farmácia para cuidar de seu bebê e da casa. Também aprendeu a conviver em paz com o marido que gostava de vê-la bem e seguiu com seu dias de conforto e tranquilidade quase se esquecendo das aventuras que tinha vivido com seu amor jovem. De certa forma, ela aceitou a falta dele e sua vida limitada e um tanto mesquinha pela falta de emoção. Em contraponto, Mario Coppola não tocava seus dias nem com o mínimo de
serenidade que pudesse ser oferecida a um ser humano: por mais que o leprosário funcionasse como um cidade contendo casas, lojas, igrejas, escolas, cinemas, clubes esportivos, bailes, tudo o que é necessário em uma vila e - é óbvio - o hospital, sua casinha era pequena e vazia, bem diferente da casa na qual estava acostumado a viver com seus cinco irmãos e a mãe, Graziela; seu pai havia morrido há muito tempo, por isso, na casa da família ninguém ficava parado para que tudo estivesse sempre em ordem. O irmão muito mais velho que ele, Martino, era padre e saiu de casa muito jovem, a mãe cuidava do lar e dos filhos, Matteo, Marco e Massimo eram os filhos do meio e adoravam estudar, mas nunca conseguiram dinheiro suficiente para estudar as Leis ou a Medicina, eles, junto dos outros três mais jovens - Mariano, Mazzaroti e, claro, Mario -, trabalhavam na fábrica de tecidos como animais para dar uma condição digna à família. Agora, preso a uma vila para doentes submetidos àquele “castigo divino”, Mario sofria com a pior doença de todas. A solidão. Vivia seus dias com um pingo de ânimo e trabalhava num posto de gasolina - apesar de nem terem muitos carros lá - para passar seu tempo e ganhar dinheiro para sobrevivência e remédios. Entretanto, nenhum remédio capaz de curar a Hanseníase era capaz de curar também as feridas de estar só e as feridas que o preconceito lhe deixava. Por mais que já vivessem no século XX há um bom tempo, não sabiam muito sobre a doença, o que facilitava sua propagação e o julgamento negativo empregado às pessoas que a carregassem - principalmente os advindos dos mais fanaticamente religiosos. Para muitos, era mais confortável conviver com o cabresto de sua normalidade do que batalhar por outros seres humanos que estavam sofrendo. Era mais confortável culpá-los do que se esforçar na busca de explicações plausíveis para sua condição infeliz. Sempre é mais fácil abandonar os problemas do que sair de seu conforto para resolvê-los. Naquela época, as pessoas - leprosas - eram o problema. Logo, eram abandonadas. É difícil de admitir, no entanto, Mario sempre soube que Edwiges tinha construído uma história sem ele. Ela também sabia que sua família continuava a mesma, e agora batalhava
sem ele, com um soldado a menos. “Um condenado!” era o que as amigas de sua mãe deveriam exclamar sempre que perguntavam dele. E ele, pobrezinho, vivia com as migalhas de informação que Martino lhe trazia; por ser o único irmão sacerdote e por isso estar isento das “condenações” dele, era o único que se arriscava na aventura de visitá-lo e trazer-lhe uma miséria de sua antiga paz. Ele tinha apenas um amigo, o Doutor Enzo Sala, responsável pelos cuidados dele. Por ser estudado na área da saúde, o médico sabia que Mario não era culpado por nada do que os demais afirmavam que ele fosse e, assim, dava-lhe ânimo para continuar insistindo no tratamento e continuar tentando tocar seus anos como se nada além do “normal” estivesse acontecendo: como se trabalhar no posto, viver longe da família e da amada em uma pequena casa só para ele e ir confessar-se ao Padre Honório todos os dias fossem escolhas que ele tivesse feito para sua vida, e não ações que ele foi forçado a atender para provar que aceita sua enfermidade e que estava disposto a viver isolado e redimido. Todavia, as coisas deveriam mudar alguma hora. Essa hora foi em 1948, quando, numa tarde, Mario estava varrendo a calçada de sua casa e esbarrou acidentalmente com alguém. “Desculpa” disse ela baixinho e continuou andando. “Não foi nada...” ele estava respondendo no momento no qual levantava a cabeça e fitava assombrado a figura em que havia esbarrado. Só ao ouvir a voz dele em resposta que ela parou e o encarou. Pareciam fantasmas um ao outro e estavam desacreditados em como o mundo dava voltas e tinha um senso de humor terrível. Mario e Edwiges se olharam por muito tempo antes de falar algo; talvez estivessem medindo suas palavras ou estivessem com medo de como o tempo havia mudado aquela pessoa a qual representava momentos tão singulares em suas histórias. “Eddie?”, foi Mario quem falou primeiro “O que faz aqui? Como veio parar em um lugar como esse?”. “Eu acabei de chegar, ainda nem consegui digerir o que está acontecendo direito”, ela respondeu parecendo chateada. E esse foi o começo da primeira conversa que eles tiveram em anos, e também o começo de uma nova fase.
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Em Pirapitingui, desde o início do século XX já havia tabueiros, moradias construídas para os portadores de hanseníase, como este retratado em fotografia de 1945. Imagem retirada do site da Paróquia Sagrada Família de Itu, disponível em <http://sagradafamiliaitu.com.br/index.php/historia-do-hospital-do-pirapitingui/>
Mario se encarregou por mostrar a vila à Edwiges e se ofereceu para acompanhá-la em muitas experiências inéditas a ela, como as consultas frequentes ao médico, as confissões diárias, as idas à Igreja, ao mercado e sempre iam juntos ao baile aos sábados a noite. Ele ficou internamente entristecido por ela, pois, mesmo que fosse maravilhoso tê-la ali como companhia, ele ouviu a história dela de como ela tinha se casado por querer possuir uma família e de como tinha conseguido alcançar esse sonho com o nascimento de João Aurélio e ele sabia que agora isso seria destruído pela ideia que as pessoas desenvolveriam dela: “uma pecadora desmerecedora de compaixão”. Ele sabia que o marido dela provavelmente arranjaria outra esposa, e que a criança teria que crescer sem sua mãe e que a diriam que a culpa era da mãe por não ter se “comprometido com Deus” como deveria. E ele também se entristeceu com a situação da saúde dela, claro. Mas ele sabia que a
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doença tinha cura e que, por mais que pudesse deixá-la deformada em algumas extremidades do corpo ou até deixá-la com algumas feições faltando, nada a deixaria mais em pedaços do que a segregação que sofreria. E assim ele decidiu que, por amor, seria para ela o refugiu dessas ideias negativas e a companhia que, por anos, ele não teve. Eles se curaram juntos, porém, foi difícil aprender a viver num mundo que os odiava e mesmo tendo se livrado da hanseníse, não puderam sair de Pirapitingui e voltar para sua cidade e suas vidas de antes. Então, aproveitando a conveniência de estar longe das convenções morais, decidiram “casar-se”. Fizeram uma pequena reunião com alguns amigos que Eddie ajudou Mario a fazer, entre eles estava o doutor Enzo Sala, a enfermeira Conceição Alves e a costureira Carmem Rodrigues a qual fez o vestido que Edwiges estava usando, um evasê verde musgo da cor que ela usava no dia em que se conheceram. Depois disso, passaram a morar
juntos como se sempre tivesse sido assim. Talvez devesse ter sido assim desde o começo. Por anos, eles viveram ainda na vila, como tantas outras pessoas que não podiam deixar aquele lugar, ou por falta de dinheiro ou por não poderem deixar sem levar o estigma da lepra consigo. Só em 1967, ano em que foi decretado o fim da internação e segregação compulsória no estado de São Paulo, eles saíram de lá e se mudaram para a 102 na Avenida e lá ficaram por muito tempo. Assim que voltaram para a cidade, Edwiges descobriu que seu marido, Aurélio, tinha falecido e que seu filho, já com 22 anos, havia estado aos cuidados de uma tia. Logo, ela reatou o contato com ele e decidiu que se casaria oficialmente com sua primeira e verdadeira paixão. No dia 13 de outubro de 1967, Martino casou na Igreja Matriz seu irmão Mario com Edwiges num dia feliz e florido de primavera. Tiveram direito a chuva de pétala e arroz. Na saída, todos os convidados diziam “Deus sempre quis que esse casal estivesse junto”, para eles, Edwiges teve que passar por todo o transtorno da doença apenas para voltar a estar com seu namorado de tantos anos. Entretanto, nem tudo foram bênçãos, eles tinham dificuldade de sair na rua juntos porque todos os encaravam para aplicar seu julgamento sobre as sequelas que ostentavam: o nariz dele, que tinha “caído”, e as orelhas dela, que ficaram deformadas. Com o tempo, só ela saía na rua já que podia cobrir as orelhas com o cabelo, para que não a vissem com ele, eles passaram a viver quase secretamente a fim de abafar as críticas preconceituosas. Apesar de felizes, carregavam esse peso. Dois anos depois de terem aderido a essa nova vida e se acostumado com a situação discreta deles, Maurício passava com sua mãe pela 102 naquela terça-feira. Ele foi para a catequese e lá perguntou à Madre Branca: - Madre, por que algumas pessoas são desgraçadas? - Menino, algumas coisas do projeto de Deus são incompreensíveis e não cabe a nós questionar. Não sei ao certo qual é a desgraça mas tenho certeza que a pessoa não é, de fato, desgraçada ela é apenas mal afortunada e os outros a catalogam assim por saberem que tudo
tem seu preço, principalmente as más ações. Por isso, crianças, nunca desobedeçam os mandamentos e... - ela aproveitou para emendar uma lição e o garoto parou de ouvir pensando no que tinha ouvido: talvez o senhorzinho da 102 não fosse, na verdade, mau. Talvez as pessoas só pensassem isso pelas coisas que tivessem acontecido em sua vida. Ele gostaria de saber para poder evitar fazê-las quando estivesse mais velho. Na volta para casa, ele perguntaria a sua mãe sobre a vida de Mario, mas como ele tinha comprado seu doce e estava comendo enquanto voltava para casa, esqueceu de perguntar e nunca mais tocou no assunto. Maurício, com o tempo, se esqueceu não só da pergunta, mas também de toda história, crescendo e tornando-se alheio ao sofrimento daquelas pessoas as quais, como tantas outras, viviam a sombra da exclusão. Além deles, havia pessoas que ficaram em situação pior: nunca tiveram dinheiro suficiente para sair de Pirapitingui e lá vivem até bem depois do fim do século XX. O governo se esqueceu de leprosários como esse, desse modo, eles foram definhando aos poucos, assim como as condições de vida das pessoas que ficaram por aquelas bandas. Ninguém se importou. Como trataram Mario e Edwiges, também trataram todos os demais que passaram pela experiência de serem internados forçadamente após a mera suspeita de hanseníase. Talvez ainda vivam pessoas em vilas, talvez ainda vivam pessoas escondidas como o casal viveu, talvez até a própria família tenha abandonado alguns deles por preconceito. Um preconceito gerado por falta de informação e alienação, como tantos outros, e não quiseram aprender sobre isso para mudar esse quadro. Não quiseram lutar por eles, apenas culparam as vítimas. E, depois de toda a tribulação e dos boatos morrerem, fizeram como o pequeno Maurício e se esqueceram de tudo. De todas as histórias, de todos os humanos, de todos os pedaços que o julgamento fez faltar neles. De certo, o esquecimento sempre é conveniente. Ele apaga também a culpa. Porventura, ele só deixa para trás as cicatrizes nos que tentaram se reconstruir.
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Ao trazer a linguagem para o centro da
“A necessidade do pensamento é o que nos faz pensar”. reflexão e perseguir a multiplicidade das relações (Theodor W. Adorno)
Talvez o aforismo do sociólogo alemão Theodor Adorno seja um bom mote para iniciar esta reflexão, sobre a máxima que Adorno faz da tão decantada relação entre o ato de pensar e as constrições sociais que lhe são inerentes. Nele é feito alusão à impossibilidade de se erigir um pensamento descomprometido, posto que se encontra inextricavelmente ligado às condições da sua formulação. Mas, quando apreendida independentemente do conjunto do seu pensamento, a frase adorniana pode levar a interpretações sobre a total imanência da prática reflexiva, aprisionada pela identificação acrítica com o seu objeto, construída por uma relação sincrônica e submissa ao universo fenomênico. Se fosse possível, no entanto, formular uma concepção sucinta dos princípios que ordenaram a reflexão adorniana, poder-se-ia encerrá-la na busca incessante do não idêntico, isto é, da negação de todo e qualquer movimento de identificação, tornando-o um autor comprometido com o manejo crítico das próprias formulações, requisito da crítica da própria sociedade, como se percebe em outra frase lapidar presente no seu livro Dialética Negativa, publicado em 1966: “A identidade é a forma originária da ideologia” . Ou, em outro ensaio, quando escreveu: “A resistência à sociedade é resistência à sua linguagem” .
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que se desenvolvem no processo da sua modelagem, Adorno fez da análise da cultura dimensão privilegiada ao entendimento da sociedade moderna. Em outra obra lapidar, a densa Teoria Estética, considerou que a análise da arte moderna oferece acesso privilegiado à compreensão e elucidação das formas de manifestação do capitalismo, a partir do tratamento vistas da linguagem da criação . Na obra Dialética do Iluminismo , escrita em conjunto com Max Horkheimer, os autores, segundo o filósofo Habermas, “querem fazer o iluminismo iluminar-se radicalmente a si próprio” , revelando o caráter central da linguagem na crítica da sociedade moderna. Por essa razão, as reflexões de Adorno são perturbadoras, posto que construídas na ótica do exame das obras culturais, da própria concepção corrente de cultura, da recusa em pensá-la como epifenômeno, tampouco tratá-la como uma entidade, uma esfera isolada da existência social, finalmente, rejeita cristalizá-la em conceitos, ou substantivá-la em concepções imutáveis. Coerente com essas posições, afirmou: “A arte é um instante” . Isto é, um fragmento do todo situado no tempo, o que a torna resistente à fixidez conceitual. Teoria Estética – cujo título poderia dar impressão de afastamento da sua crítica da sociedade – é, contrariamente, um exame impiedoso das interpretações baseadas na afirmação da autonomia da arte, no princípio da
autorreferência do fazer artístico, capaz de ser analisado segundo concepções invariantes, nublando os componentes sociais inerentes a todo ato criativo. Buscar inspiração em um autor tão fecundo, como Adorno, permite que se construa problemas de envergadura analítica, capazes de iluminar os caminhos do pensamento latino-americano, apreendido, especialmente, no prisma sociológico e referida ao caso brasileiro, que me é mais familiar. Nesse passo, cabe retornar ao aforismo adorniano utilizado como sugestão. As concepções de Adorno revelam procedimentos profícuos à compreensão dos fenômenos afeitos à cultura, à vida intelectual e às artes em geral, expressos em posturas que indagam sobre os fundamentos simbólicos da vida coletiva, perseguindo o modo como a experiência social impregna a obra, transfigurada no desenvolvimento das ideias, nas dimensões formais, sejam elas diretamente intelectuais ou essencialmente artísticas. Em sentido estrito, nenhuma reflexão pode estar desapegada do desafio de enfrentar, simultaneamente, a singularidade da produção cultural e os condicionamentos de vária ordem, devendo romper, portanto, a conhecida disjuntiva entre análise interna ou externa, crítica imanente ou transcendente, pois se traduzem em falso problema. A rejeição a concepções sobre a substância irredutível da cultura e da arte, pensadas como esfera independente do social, fundamenta a própria reflexão sociológica, legitimando os seus procedimentos analíticos. A teoria crítica inscreve-se nesse registro, na qual Adorno pode ser considerado o mais denso, complexo e desafiador representante. Por ser crítica da cultura no capitalismo tardio, a teoria crítica é, em essência, exame do processo civilizatório moderno, esquadrinhamento dos limites da sua realização. Este problema central orientou as pesquisas realizadas no Instituto de Investigação Social, desde a sua fundação, em 1923, sendo explorado, sobretudo, nas reflexões de Adorno e Horkheimer, nos decênios seguintes. Posteriormente, retornou nas formulações habermasianas da teoria da ação comunicativa que, não obstante a preservação do pensamento crítico, afastaram-se do pessimismo visceral que
regia as análises dos primeiros. Habermas opôs ao ceticismo avassalador de Adorno e Horkheimer a respeito da razão iluminista, presa dos mecanismos regressivos, a exploração do potencial racional da ação comunicativa, assinalando que os próprios autores resguardavam ainda a “esperança mesmo que há muito tempo revogada de conciliação” . Os questionamentos de Adorno sobre a real possibilidade de liberação são coerentes com a perspectiva apontada, como se percebe nas suas indagações a respeito do estatuto da cultura e da arte, entendidas por ele como fontes exclusivas de canalização de energias autônomas. Embora a constatação possa encerrar certo travo substancialista, filiada à tradição filosófica alemã, Adorno, de outro lado, foi crítico do pensamento de Kant e de Hegel nos domínios dos fenômenos estéticos. Permeiam as suas idéias princípios da sociologia de Max Weber, que considerou a arte, o amor erótico e o carisma esferas capazes de romper o domínio imperioso da racionalidade moderna. Em Adorno, a expressão desenvolvida da racionalização sufocante manifesta-se na burocratização crescente, contemplada na noção de sociedade administrada e no caráter dominante de produção dos bens simbólicos, presente na categoria de indústria cultural. O diagnóstico sombrio que permeou as suas reflexões, dado o caráter virtualmente dominante do sistema de indústria cultural, combinado à imposição da lógica burocrática a submeter os fenômenos da cultura, antecipou posições de sociólogos que perseguiram a neutralidade axiológica, requisito de uma ciência social não normativa, como é o caso de Pierre Bourdieu. Mais de cinqüenta anos após as primeiras formulações de Adorno e Horkheimer sobre a indústria cultural, o eminente sociólogo francês escreveu: “Quando, como dizia Gombrich, as condições ecológicas da arte’ são destruídas, a arte não tarda em morrer. A cultura está ameaçada porque as condições econômicas e sociais, nas quais ela pode se desenvolver, estão profundamente afetadas pela lógica do lucro nos países avançados, onde o capital acumulado, condição da autonomia, já é importante, e, a fortiori, nos outros países” . A referência, no caso, diz respeito à mercantilização plena da cultura e ao domínio da racionalidade
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econômico-burocrática sobre ela. O propósito do texto de Pierre Bourdieu – A Cultura está em Perigo –, do qual se retirou as frases citadas, é escrever um libelo contra a ameaça à autonomia da produção cultural, em função da tendência dominante das normas econômicas que se espraiam em direção ao conjunto. No caso da cultura, a ameaça é crucial, uma vez que põe em risco a sua própria condição, ou seja, de formular as suas regras. “A intrusão da lógica comercial em todos os estágios da produção e da circulação dos bens culturais” , segundo palavras de Bourdieu, guarda certa analogia com o princípio adorniano a respeito do aprisionamento da arte pela lógica dos efeitos. É interessante perceber, insistindo em prosseguir na aproximação entre os dois autores, como o livro La Misère du Monde, organizado por Bourdieu e publicado em 1993 , é profundamente crítico dos processos sociais contemporâneos, similar ao diagnóstico de Adorno sobre o mundo que emergiu após a experiência da Segunda Guerra Mundial. Especialmente Minima Moralia, publicado em 1951, e que contém o sugestivo subtítulo reflexões a partir da vida danificada , espelha a própria miséria do mundo, irremediavelmente marcado pela barbárie nazista, fazendo da obra uma espécie de testemunho da perda indelével das promessas civilizatórias. Os escritos por aforismos, em si mesmos representações da dificuldade de se construir uma reflexão orgânica a respeito do mundo estilhaçado, pretende reproduzir a contaminação da narrativa pela irracionalidade instalada. Do mesmo modo em que Adorno sempre defendeu a forma ensaio como expressão apropriada da crítica, as suas máximas transpiram forte sentimento de desesperança. Igualmente em A Miséria do Mundo, transparece desalento: “Ser consciente dos mecanismos que fazem com que a vida seja dolorosa, quase invisível, não significa neutralizálos; iluminar as contradições não significa resolvê-las” . Estranhos são os caminhos capazes de pavimentar aproximações entre autores radicalmente diversos. Mas é tempo de expor os argumentos sugeridos nesse já longo escorço e que ainda permanecem esboçados, para examinar, com mais atenção, as possibilidades inscritas nas análises
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sociológicas da cultura, bem como a sua fecundidade ao entendimento da vida intelectual em realizações históricas não típicas, como dos países latino-americanos. Preliminarmente, parto de uma platitude, revisitando o conhecido: a sociologia da cultura trata, primordialmente, do modernismo cultural, embora não exclusivamente. E se essa questão possa parecer trivial, uma vez que o pensamento sociológico é produto da moderna sociedade capitalista e constituiu-se na esteira das transformações sociais, propondo instrumentos de correção, nem sempre se exploram as implicações da sua origem embebida no ideário reformista. Naturalmente, a possibilidade de criação da figura do sociólogo como capaz de propor medidas corretivas já pressupõe a laicização da cultura, o desencantamento do mundo, a independência das esferas da realidade, submetidas a legalidades próprias, tal como se encontram formuladas na sociologia de Max Weber. A teia de ações orientadas pelo sentido põe no próprio centro da sociologia compreensiva o problema da significação, o que tem permitido a autores como Clifford Geertz anunciar a sua filiação ao conceito weberiano de cultura . Na conclusão de as Formas Elementares da Vida Religiosa, Durkheim alertou sobre o risco de relacionar, de modo mecânico, a classificação das coisas e a classificação dos homens, afirmando a dimensão específica da consciência coletiva que não é simples epifenômeno de sua base morfológica, uma vez que “as categorias do pensamento não são jamais fixadas sob uma forma definida” . Especialmente nessa obra, Durkheim assentou a sua teoria do simbólico que se transformou em referência necessária quando se pretende indagar sobre os fundamentos culturais da vida social. Em Marx, a construção do fetiche da mercadoria, para permanecer no registro dos clássicos, baseia-se na autonomização da forma em relação ao seu referente, resultando numa trama de significações produtora da condição alienada dos sujeitos no capitalismo. Com a análise do fetiche, Marx elucidou a espessura desse universo simbólico, fábrica de uma subjetividade heterônoma e de uma cultura que se dissolveu na inconsistência concreta dos objetos-mercadorias que assumiram a condição
de significação, adquirindo caráter de pura linguagem. A reflexão de Marx sobre a espessura cultural capitalista antecipou correntes analiticamente frágeis, surgidas um século depois, mas que julgaram apresentar grande novidade por caracterizarem o social como “redes flexíveis de jogos de linguagem” . Dessa forma, a tradição disciplinar da Sociologia formulou e contemplou, embora segundo perspectivas diversas, as questões pertinentes aos fenômenos da cultura na sociedade moderna, ao mesmo tempo em que instituiu os procedimentos de análise. Pelo menos desde então, sistematizou-se a identidade entre a experiência histórica da modernidade e os fenômenos da cultura, cujas implicações permitem desdobramentos e inspiram análises sobre contextos diversos daqueles sobre os quais se assentaram. A rigor, se as concepções de moderno pressupuseram a autofundamentação e a autocriação, isto é, a ruptura radical com o passado e a construção dos próprios critérios de reconhecimento, ou segundo palavras de Blumenberg, a busca da sua “legitimidade histórica”, no âmbito da cultura, a identificação se estabeleceu com as expressões do modernismo . Como assinalou Habermas, foi “no domínio da crítica estética que tomamos consciência do problema de uma fundamentação da modernidade a partir de si própria, e isso torna-se claro quando se traça a história do conceito de ‘moderno’” . Para Baudelaire, a modernidade confundia-se com a experiência estética do modernismo. Virgínia Woolf escreveu, em 1911, que o modernismo “promoveu profunda transformação na nossa concepção do real”, a partir dele, “o caráter humano mudou” . Posto o problema nesses termos, o vínculo entre modernismo e modernidade estabelecido leva, necessariamente, a que a consideração de um e de outro fique preestabelecida; de um lado, a volatilidade das vanguardas modernistas questionou a modernidade; de outro, a crítica do modernismo passou a estar ligada ao julgamento da modernidade; finalmente, a reflexão a respeito das dimensões interna e externa da obra tornouse crucial, colocando o problema da “representação da realidade”, da questão da mimesis, contemplada na obra magistral de Erich
Auerbach . O problema da representação manifestou-se, aliás, já na época clássica do Ocidente, quando ocorreu, como analisou Foucault, a ruptura com o universo das similitudes. Segundo o filósofo, “D. Quixote é a primeira das obras modernas, pois nela se vê a razão cruel das identidades e das diferenças zombar incessantemente dos signos e das similitudes; pois a sua linguagem rompe a velha intimidade com as coisas, para entrar nessa soberania solitária de ser abrupto, donde só sairá convertida em literatura” . Ou, para buscar novamente inspiração em Adorno, no modernismo, a desarmonia da arte atingiu a sociedade, ao mesmo tempo, a desarmonia interna da obra pode ser tomada como expressão de alienação . Apresento, nesse passo, o segundo problema de reflexão presente no desafio de evitar a relação redutora entre modernismo e modernidade, preservando o seu caráter particular de linguagem, mas recusando considerá-la associal. Vale dizer, não se trata de aderir à escrita branca, pensar o “grau zero da escrita”, como Barthes ; tampouco desconhecer a presença de elaborações originais das obras. Subjazem, naturalmente nessas afirmações, outros argumentos: a permanente renovação da linguagem inerente às vanguardas, ao mesmo tempo em que desafia a interpretação, nubla a relação pressuposta entre modernidade e modernismo, base de muitas polêmicas em torno do sociologismo e do formalismo; a posterior cristalização da linguagem modernista, expressa no cânon, provoca a “ironia”, para citar Raymond Williams, da anulação da história, uma vez que o “modernismo é o fim, qualquer coisa ulterior é considerada fora do desenvolvimento”, passa a ser vista como “posterior, estacionada no pós” . O movimento de integração do modernismo no movimento do capital internacional, a partir, sobretudo, de meados do século XX, isto é, a sua assimilação pela dinâmica do mercado, destruiu a sua força contraditória em relação ao mundo burguês, repercutindo no universo da vida intelectual, questão crucial ao entendimento da cultura contemporânea. Na América Latina, como se sabe, a emergência das vanguardas modernas ocorreu nos primeiros decênios do século XX, realizando-
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se no compasso das propostas em ebulição. Apesar disso, combinou as bandeiras culturalmente arrojadas com profunda reflexão sobre os dilemas do continente. Como salientou Richard Morse, “com respeito especificamente aos pensadores, observamos que suas afirmações de uma identidade europeia anterior foram no último século demasiado problemáticas, e sua confiança num contínuo intercâmbio crítico com ideologias do Ocidente industrial demasiado insegura, para favorecer uma absorção das correntes internacionais. Concordaram com as receitas vigentes de ‘progresso’ e reconheceram com pesar o atraso de seus países na questão”. Nesse sentido, o modernismo do continente não se configurou como uma cultura de transplante; apesar das fundas relações com a matriz, não era mera cópia, em função do seu compromisso com a problemática específica à sua realidade. Isto é, as ideias externas eram submetidas a uma torção, posto que engolfadas nas vagas de contextos iniludíveis. “Em sua fase áurea (1910-1930), o modernismo, sobretudo a partir de sua arena parisiense, acabou por causar impacto sobre a América Latina, mas não como mero papel de tutor. É que na época a Europa sofria de uma crise de nervos associada com a tecnificação, a comoditização, a alienação e a crescente violência, tal como eram expressas nas contradições marxistas, na decadência splengleriana, nas invasões freudianas do subconsciente e, é claro, na industrialização e na Primeira Guerra Mundial... Agora a Europa não oferecia apenas modelos, mas patologias. O desencanto no centro deu ensejo à reabilitação na periferia”. A desvantagem relativa, fruto da própria condição, produziu “cosmopolitas excêntricos” , ou, para lembrar Carlos Fuentes, o intelectual latinoamericano deve reconhecer “que a sua excentricidade está centrada hoje num mundo sem eixos culturais”. A vida intelectual latino-americana teve que enfrentar, todavia, ao menos três desafios: absorver propostas forâneas e já em questionamento; construir os seus próprios caminhos reflexivos, enleando o autoconhecimento das suas realidades com profunda meditação sobre a efetiva possibilidade das suas sociedades palmilharem a aventura moderna; por fim, conciliar os ditames
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modernistas de desconhecimento do passado com a reflexão sobre as origens das suas sociedades, sem a qual não se poderia pensar os dilemas do presente. Daí, os intelectuais não puderam se descomprometer do destino da nação; tampouco afirmar o caráter de pura experimentação vanguardista. Os modernistas da América Latina, a despeito das suas diferenças, construíram retratos comprometidos das suas sociedades, mesclando aos seus diagnósticos projetos de nação, indiferenciando ser e dever ser. A inescapável normatividade presente, não elidiu a real elucidação das realidades consideradas, pois a vida do espírito não se guia por pressupostos estritos de neutralidade. Particularmente na Sociologia, como bem assinalou Pierre Bourdieu, não se aplica a famosa distinção estabelecida por Wilhelm Dilthey que separa explicação e compreensão: “... é preciso ser dito que compreender e explicar são a mesma coisa” . E é por essa razão que é possível explicar sem excluir a compreensão crítica, fundamento da distinção entre as disciplinas humanas e as disciplinas da natureza, sendo inescapável certa atitude normativa, mesclando perspectivas científicas com atitudes de cunho valorativo. Cabe reconhecer, todavia, a dificuldade de se distinguir os dois planos, quando se trata de obras mais diretamente comprometidas, problema já formulado pelos autores clássicos, sintetizado na formulação weberiana sobre o “valor do conhecimento” , ou na frase lapidar do sociólogo Hans Freyer: “Só vê algo sociologicamente quem quer algo socialmente” . Essa condição, no entanto, não é sinônimo de incapacidade de formular, compreender e explicar os fenômenos; tampouco de produzir uma cultura criativa e original. Nas palavras polidas de Pascale Casanova: “ é entre os excêntricos literários que se fomentam as maiores revoluções específicas, as que contribuem para mudar a própria medida do tempo e da modernidade literária”. ______________________________________ A América Latina no seu conjunto é exemplo paradigmático de vida intelectual marcada pelo caráter empenhado, comum em sociedades que escapam à tipicidade, situação característica do Brasil. Parafraseando Marx, a propósito da sua análise sobre os neo-hegelianos
em A Ideologia Alemã, o lugar para apreciar melhor o pensamento situa-se a partir de um ponto de vista descentrado, condição a que estava relegado em função do exílio, produtor de uma vivência de perda de raízes . Daí, a máxima de Adorno em Mínima Moralia: “Todo intelectual emigrado, sem exceção, está mutilado” . Ou a conhecida frase de Thomas Mann, quando do seu exílio nos Estados Unidos, admitindo tornar-se mais alemão distante da Alemanha. Para Marx, a melhor avaliação da vida intelectual do seu país exigia o afastamento, o que não deixa de ser uma confissão de profundas ligações com a origem. Para Adorno e Thomas Mann, a distância reforçava o reconhecimento primordial. Em realidades como a nossa, o problema parece redefinido na vivência do desterro “em nossa terra”, para retomar a conhecida frase na abertura de Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda, que alude, na verdade, ao drama dos intelectuais nos países de modernização tardia . O problema intelectual recorta, então, questão de outra natureza, equacionada no ensaio de Paulo Arantes, Providências de um Crítico Literário na Periferia do Capitalismo, a propósito da análise dos ensaios recorrentes sobre a formação, “noção a um tempo descritiva e normativa” . Um tipo de avatar do intelectual na periferia do mundo, o primado do ideal de formação permite que se contorne o sentimento de artificialidade da nossa cultura, a ausência de linha evolutiva, inexistência de seriação nas idéias, a persistência da nossa “indiferença”, segundo Sílvio Romero, constante domínio da importação externa sobre a tradição local . O problema da formação como questão decisiva de ordem intelectual, fundamentou o florescimento de uma cultura enraizada, na medida em que conferiu organicidade à sociedade brasileira, estabelecendo o lastro para a expressão da intelectualidade nativa. Foi a publicação de Formação da Literatura Brasileira, de Antonio Candido, que se desatou, segundo Arantes, este “nó histórico” , quando o princípio da formação converteu-se em método, permitindo o tratamento do sistema literário, “processo cumulativo de articulação” . A formação como “acumulação literária” é anulação da descontinuidade, simultaneamente atividade intelectual criativa na periferia, ou, recuperando o preceito construído por Antonio Candido para
balizar a reflexão no Brasil, é condensação equilibrada de “localismo” e “cosmopolitismo”. Enquanto problema de fundo intelectual, o tratamento da formação permite contornar a origem da “torção” da vida intelectual brasileira, expressa em As Ideias fora de Lugar, de Roberto Schwarz, uma vez que o nascimento da economia moderna, baseada no trabalho livre, punha o Brasil “fora do sistema da ciência” . Para desdobrar essa questão, retorno a Antonio Candido, intelectual decisivo na formulação do cânone da cultura no Brasil. Construído o sistema literário, nutrido no compromisso dos escritores brasileiros em “nos exprimir”, a derivação passa a exigir que se situe o momento em que o processo expressivo se completa. Para Candido, os anos trinta são decisivos, uma vez que às transformações de vulto implementadas na área da cultura, aduziu-se a rotinização e expansão do modernismo, gerando “um movimento de unificação cultural, projetando na escala da nação fatos que antes ocorriam no âmbito das regiões” . Sem que se descure da qualidade artística e intelectual das obras plasmadas pela estética modernista, a visão de Candido estabelece analogia com as concepções sobre a ruptura introduzida pelo modernismo, patente “numa maior consciência a respeito das contradições da própria sociedade, podendo-se dizer que sob este aspecto os anos 30 abrem a fase moderna das concepções de cultura no Brasil” . Antonio Candido estabelece, assim, relação entre linguagem inovadora e engajamento intelectual, mas que teria provocado, segundo o crítico João Lafetá, tendência ao esfriamento da experimentação, acompanhada da acentuação do “projeto ideológico” frente ao “projeto estético” . As análises de Candido estão ancoradas em dois critérios complementares – estético e político – sugerindo que o modernismo só se completou de fato, quando realizou seu lado engajado, no momento em que os intelectuais assumiram um compromisso com o país moderno no seu conjunto. A abordagem do autor sobre esse período é tributária do tratamento que conferiu à formação da literatura brasileira no seu livro clássico; o cumprimento do processo formativo pressupôs a “tomada de consciência” e o “aspecto empenhado das obras”. . Por conseguinte, a própria formação do pensamento
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brasileiro passa a coincidir com a intelectualidade modernista, dedicada a participar da construção da sociedade moderna nesse lado do mundo, vista como uma geração voltada para o futuro. Talvez a sua resistência à análise de Sérgio Miceli sobre a participação dos modernistas na elaboração da política cultural do Governo Getúlio Vargas, resulte do desconforto em aceitar a intimidade desses intelectuais com o Estado Autoritário. Paradoxalmente, Antonio Candido escreveu o prefácio na edição da obra, mas considerou a proposta fruto de um “olhar sem paixão e quem sabe sem piedade” . O juízo restritivo que elaborou foi, no entanto, nuançado em outro texto, distinguindo a inserção profissional do “artista e escritor aparentemente cooptados” da realização efetiva da obra, mas não deixou de sublinhar tanto o caráter pioneiro do livro de Miceli quanto a análise notável sobre a “expansão do mercado do livro e à gênese de um grupo de romancistas profissionais” (Candido, A. 2000, p195). Nos termos da sociologia de Pierre Bourdieu, a profissionalização é dimensão essencial à constituição do campo intelectual moderno . Em suma, a classificação elaborada por Antonio Candido que considerou os três ensaístas do decênio de trinta, Gilberto Freyre, Caio Prado Jr. e Sérgio Buarque de Holanda, Intérpretes do Brasil, obscurecendo o lugar dos pensadores precedentes, naturalizou, em certa medida, a tradição intelectual brasileira. O “eixo catalisador”, dos trinta, foi um marco histórico, pois revelou a ruptura entre o “antes” e o “depois”, para retomar Antonio Candido. Essas “operações sociais de nomeação” exprimem posições intelectuais, permitindo desnaturalizar as classificações. A tradição firmada provém do modernismo, visto como expressão mais genuína da nossa cultura. Naturalmente, nenhum cânone resulta de construções arbitrárias. Mestre Candido expressa uma visão normativa que, como se vê, parece inescapável. Para sumarizar, há, de fato, grande transformação no pensamento intelectual, quando a linguagem modernista chega ao ensaio, sincronizando o problema da reflexão – a viabilidade de inserção na modernidade de um país cuja formação histórica escapa do padrão – com a forma da expressão – a ruptura com a norma culta portuguesa, por meio da
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incorporação da oralidade da língua falada no Brasil, cuja tradição se imporá, inspirando, inclusive, a moderna literatura africana de língua portuguesa. Os chamados intérpretes, de outro lado, inseriram-se no caldo do modernismo ao ajustarem a visão orientada para as nossas particularidades, apoiada na aceitação da diversidade e não no espelhamento nas experiências da modernidade hegemônica. Deixamos a condição de sociedade faltosa, incompleta, carente dos atributos civilizados, como aparecia em muitos dos predecessores, para a afirmação das nossas qualidades nem sempre positivamente valoradas, como se vê especialmente em Raízes do Brasil. Ensaio notável de interpretação da formação do Brasil, Raízes é obra característica da tensão que distingue esses textos, sobretudo daqueles de inspiração modernista. Publicado em 1936, o livro enfrenta o dilema de refletir sobre as possibilidades de conciliar patriarcalismo com liberalismo, cordialidade com racionalismo. Em suma, de como aliar valores modernos e existência de uma cultura cujos traços psicossociais foram marcados pelo ruralismo, patriarcalismo e personalismo, produtores do culto à personalidade. Daí a consequente tensão, uma vez que a cordialidade não é substituída pela civilidade, produzindo um descompasso entre o movimento de modernização e o substrato cultural existente, cuja sombra projetada pelo passado acaba por impedir que se vislumbre um futuro seguro. O ceticismo resultante é derivado da recusa de formular qualquer solução para o impasse, produzindo uma espécie de suspensão do juízo. Ou melhor, a insistência em copiar os modelos forâneos poderia produzir novo desterro, aprofundado a nossa condição de países fadados a abrigar tendências e criações exteriores, como se vê já nas primeiras frases do livro: “Trazendo dos países distantes nossas formas de convívio, nossas instituições, nossas ideias e timbrando em manter tudo isso em ambiente muitas vezes desfavorável e hostil, somos ainda hoje uns desterrados em nossa terra”. Esse período lapidar e que formula o problema central a percorrer todo o livro, a despeito das inúmeras digressões, aliás, de origem modernista, é retomado nas frases de encerramento: “Podemos
ensaiar a organização de nossa desordem segundo esquemas sábios e de virtude comprovada, mas há de restar um mundo de essências mais íntimas que, esse, permanecerá sempre intato, irredutível e desdenhoso das invenções humanas. Querer ignorar esse mundo será renunciar ao nosso próprio ritmo espontâneo, à lei do fluxo e do refluxo, por um compasso mecânico e uma harmonia falsa”. Tendo em vista que a cordialidade não cria princípios civilizatórios modernos, a ambiguidade cultural tenderá a ser a marca do Brasil moderno, produzindo novo desterro e reforçando o mal estar da vida intelectual. Raízes do Brasil encerra-se com uma alusão ao pacto fáustico, que, todavia, não leva a mais iluminação, tampouco mais sabedoria, como no impulso que moveu a personagem da literatura germânica. As frases de encerramento são decisivas: “Há, porém, um demônio pérfido e pretensioso, que se ocupa em obscurecer aos nossos olhos estas verdades singelas. Inspirados por ele, os homens se veem diversos do que são e criam novas preferências e repugnâncias. É raro que sejam das boas” . Construção ensaística exemplar, pois parte de um problema e a ele retorna, mas transformado pelos argumentos desfiados ao longo do texto, Raízes segue um percurso circular, expressando na forma o dilema das sociedades latino-americanas, fruto do transplante da cultura europeia adventícia, combinado às culturas nativas e àquelas dos povos aportados. É também expressiva contribuição crítica da assimilação das ideias forâneas, exercício sisifista e exigente em busca de resposta da primeira submissão, da violação ancestral, cujo “símbolo da entrega é a dona Malinche, a amante de Cortés”. Não por casualidade, ainda segundo Otávio Paz, “o adjetivo despectivo ‘malinchista’,... [foi] posto em circulação pelos jornais para denunciar a todos os contagiados por tendências estrangeiradas” . A problemática das ideias importadas firmou tradição na América Latina, ainda que com gradações diversas entre os países e intensidades variáveis em função do momento. O crítico brasileiro Roberto Schwarz é representante de frutífera tradição reflexiva sobre o problema; para o mexicano Paz, “a história do México desde a Conquista até a Revolução, pode ser vista como
uma busca de nós mesmos, deformados ou mascarados por instituições estranhas, e de uma Forma que nos expresse”. Evidencia-se, nessas passagens, a fusão entre a ao cânone modernista, mas, simultaneamente aceitação do compromisso de responder ao problema desafiante da identidade da América Ibérica. Embora originários da mesma dinâmica de expansão da Europa na Época Moderna e, a despeito da existência de similitudes, México e Brasil são países bastante diversos, pois foram produtos de formações históricas particulares, criando um mundo de diferenças que se manifestaram no movimento moderno. A comparação entre o modernismo brasileiro e o mexicano revela, de saída, que o primeiro emergiu de uma conjuntura de expansão econômica e de mudança social profunda; o mesmo ocorreu no aparecimento do fenômeno das vanguardas na Argentina. Segundo Richard Morse, no México, “o momento modernista coincidiu com uma revolução”... No país, “o programa modernista não foi a cognição de São Paulo, nem a decifração de Buenos Aires, mas um esforço de propaganda no sentido original, do dever de espalhar as ‘boas novas’” . Tais distinções manifestaram-se na literatura dos dois países ao longo do século XX. Tomando como exemplo dois livros exemplares da melhor ficção produzida no Brasil e no México: Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa publicado em 1956; Pedro Páramo de Juan Rulfo, editado em 1955, percebe-se a distância entre eles. Obras contemporâneas reproduziram a mesma andança por regiões inóspitas, esquecidas da civilização e submetidas ao arbítrio dos poderosos locais, o sertão rosiano e o mundo perdido de Rulfo. Porém, a profusão sertaneja de Guimarães Rosa, expressa no rememorar barroco do jagunço Riobaldo, discrepa da seca expressão da personagem de Rulfo, cuja única identidade é ser o filho de Doloritas. Em busca do pai inexistente, Pedro Páramo, antigo potentado local, há muito falecido, o filho só encontra desolação. Personagem insondável, Páramo, tal como Medeiros Vaz, que tinha sido “rei das Gerais”, vivia da lenda que deixara. O imaginário criado por figuras como Medeiros Vaz perseguiu o jagunço Riobaldo, que “queria ficar sendo” mesmo a custa de fazer pacto com o Demônio; já
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a personagem de Rulfo nada pode ou espera, é filho de uma mulher submetida, “inimiga de retratar-se”, detentora, por isso, de certo afastamento em relação ao destino cruel de Malinche. Em ambos os escritores encontramos o retrato vivo da realidade de seus países, daqueles contextos oriundos de histórias à margem do centro civilizado. Raízes do Brasil, obra nascida da mais fértil reflexão buarquiana, pode ser entendida no bojo das preocupações do autor em categorizar as nossas singularidades: Segundo Arnoni Prado, “quem olha o conjunto da obra crítica de Sérgio, anterior a 1930, nota, já no período que antecede a semana de 1922, uma impressão difusa de que a nossa produção intelectual inscrevia-se num quadro típico de cultura de periferia sem eixo próprio” . Construída a nomeação da nossa cultura, como um tipo periférico, Sérgio Buarque afasta-se da tradição do pensamento brasileiro, anterior ao modernismo, que pensava o Brasil como o avesso da Europa, como ausência de atributos próprios, como formação incaracterística. O tema da formação, especial legado da tradição modernista, permitiu que se construísse uma visão do Brasil, comprometida com a compreensão dos problemas provocados no curso do trânsito para o moderno. Por essa razão, a crítica de Abel Barros Baptista, para quem a noção de formação, “neste sentido não é modernista, ou seja, é modernista sem o ser” , redunda em exercício estéril, pois está ancorada numa concepção forjada pelos próprios modernos, que não se reconheciam como frutos de uma dinâmica histórica anteriormente iniciada. Talvez resida aí a explicação para a tendência dos intelectuais no Brasil escreveram profusamente a respeito de si próprios, sobretudo sobre os chamados Intérpretes do Brasil, que é um modo de revisitar o modernismo e pensar a nossa modernidade. Uma vez que a linguagem das vanguardas vicejou entre nós, afirmando as nossas particularidades, em sincronia com os projetos de modernização, os ligamentos entre eles destacaram as nossas singularidades. A reflexão sobre as relações entre modernismo, modernidade e modernização construiu uma espécie de tradição do pensamento latinoamericano evidente na realização concomitante
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da formação da moderna nação e da criação da linguagem modernista, identificada com a expressão nativa. Por essa razão, a análise dos meandros da vida intelectual elucida a história brasileira, tendo em vista, como observou Élide Rugai Bastos, que “sem compreender tanto as ideias como o lugar social desses intelectuais é impossível entender o movimento geral da sociedade brasileira” . No que se refere aos chamados Intérpretes, os praticantes do ensaismo crítico, a condição de “explicadores do Brasil moderno” permitiu-lhes auferir dicção própria, uma vez que nessa modalidade “o nome próprio de quem assina o ensaio é um dos elementos chave do gênero” . A recorrência de estudos a respeito da obra dos ensaístas é, no nosso tempo, tendência marcante no Brasil, revelando a correção da frase lapidar do sociólogo Roger Bastide, para pensar a sociologia da cultura: “Pensar o que se faz, é saber o que se pensa”. Em conseqüência, a renovação das reflexões sobre a obra dos chamados Intérpretes, aviva a apreciação das hesitações da nossa modernidade, fruto de algum desconforto frente ao presente, pelo menos de certo ceticismo da análise. Em contrapartida, a iluminação de experiências que escapam às realizações típicas reverte para a própria teoria, como sublinhou Florestan Fernandes, para quem o confronto do pensamento clássico com a história da chamada periferia moderna permite equacionar pontos obscuros da tradição e preencher vazios não contemplados. Mesmo porque “a necessidade do pensamento é o que nos faz pensar”, para voltar ao aforismo de Adorno. Os pensadores latino-americanos foram impelidos a refletir sobre a sensação de vida desconcertada, sobre seu próprio desterro intelectual, expresso na frase antológica do jagunço Riobaldo em Grande Sertão: Veredas: “O que é isso, que a desordem do mundo podia bem mais do que a gente”? Muito obrigada.
Miguel de Cervantes Saavedra (1547-1616), filho de um médico prático, Rodrigo Cervantes e de Leonor de Cortinas, filha de proprietários rurais, passou sua infância mudando de cidades de acordo com a sorte de seus pais, com um livro e algumas obras de teatro publicadas vinte anos antes, escreve aos 58 anos a primeira parte de uma obra que muda os destinos do romance moderno. El Ingenioso Hidalgo Don Quijote de La Mancha, o protagonista não é um herói clássico como Hércules, Ulisses ou o Rei Arthur, mas um homem comum com suas mazelas, desejos, inseguranças e percepção não mais ubíqua da realidade. E faz muito mais nos próximos anos escreverá outras obras importantes, e aos 68 anos lançará a segunda parte do Quijote, agora El Ingenioso Caballero Don Quijote de la Mancha. Cervantes lança a segunda e última parte; em resposta aos muito imitadores e da pretensa segunda parte do Quixote, publicada por um desconhecido Alonso Férnandez de Avellaneda, figura até hoje desconhecida e muito debatida. No prólogo este Avellaneda disserta: “Como casi es comedia toda la ‘Historia de Don Quijote de la Mancha’, no puede ni debe ir sin prólogo; y asi sale al principio desta ‘Segunda parte’ de sus hazañas este, menos cacareado y agresor de sus lectores que el que a su ‘Primera parte’ puso Miguel de Cervantes Saavedra, y más humilde que el que segundo en sus novelas, más satíricas que ejemplares, si bien no por ingeniosas.”
Era um crime outro autor continuar uma obra de grande êxito como o Quixote? Não. O procedimento era comum no século XVII, por exemplo, Lazarillo de Tormes é um livro anônimo de 1554, que introduz o pícaro, o gatuno na literatura espanhola. Ele teve uma continuação anônima e depois uma escrita por Juan de Luna, recuperando o espírito inicial da obra. A novela de
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cavalaria mãe do gênero Amadis de Gaula de 1496, que já circulava anonimamente na Península Ibéria desde o início do século XV, teve várias continuações com títulos e autores variados como Amadis de Grécia de Páez de Ribera e Lisuarte de Grecia de Juan Díez. Para o cinema a ideia é seminal, filmes de sucesso ganham continuação, nem sempre feita pelo mesmo diretor ou roteirista. O período cultural em que é gerado e publicado o Quixote é conhecido como Siglo de Oro, que engloba a manifestação do Renascimento e do Barroco na Espanha, pegando parte do Século XVI e XVII. Um período de manifestações diversas, muitas vezes ainda ligada ao humanismo, mas com maiores manifestações do homem barroco com obras como, o Quixote e Guzmán de Alfarache, romance picaresco de Mateo Alemán de 1599. Neste Siglo de Oro o mecenato era muito forte, principalmente na Corte em Madri, Lope de Veja (arquiinimigo de Cervantes) era ligado ao Duque de Sessa e Francisco Quevedo ao Duque de Osuna. O hispanista francês Jean Canavaggio esclarece: “Considerando desde este ángulo, el siglo XVII español inaugura su recorrido con tres proezas: en primer lugar, la invención de la novela moderna, cuyos dos arquétipos están representados por el Guzmán de Alfarache (15991604) y Don Quijote (1605-1615); luego, el triunfo de la comedia nueva, previsible desde la última década del siglo XVI, pero cuya fórmula Lope de Veja no impone, codifica hasta los primeiros años del reinado de FelipeIII, en el momento en que la reapertura de los corrales y la creación de compañías titulares aseguran el auge de la indústria del espectáculo; finalmente, el advenimiento de una ‘nueva poesía’, calificada por los contemporâneos de cultista, y que para nosostros resume el nombre y la obra de Góngora, el incomparable poeta del Polifemo y las Soledades (1612-1614)”
A crítica que Miguel de Cervantes faz as novelas de cavalaria é contundente, ele as retrata como um gênero que aliena as pessoas, que carrega valores distorcidos, pois são representantes da alta e anacrônica burguesia, que vem se perpetuando na condução do destino de toda a Europa Ocidental, desde as lendas do Ciclo Arturiano. Cervantes subverte todo o modelo, Alonso Quijano não tem procedência nobre relevante, é um fidalgo com poucas posses, tem mais de cinqüenta anos, não tem habilidades com as armas, tem a mania da leitura e sua donzela (sem saber) é apenas uma agricultora do povoado de Toboso, na região de La Mancha. E brinca com a ideia de autoria, já que o Quixote seria um manuscrito do sábio árabe Cid Hamete Benengeli, um dos autores do Quixote, pois fica claro que não é o único.
luta contra monstros imaginários, cavalga multiplicado e visto de vários ângulos, com vários planos, como uma sequência cinematográfica. A litografia abaixo do enfrentamento com os moinhos de vento tem uma profundidade não muito notada; temos um Plano Geral da paisagem com o moinho de vento com suas pás em x e três Planos Médios da sequência de aproximação de Dom Quixote com o moinho (inferior direita) e sua queda final ao ser golpeado pela pá/braço do moinho/gigante (inferior esquerda).
Falando de Hamete Benegeli aproveitamos para colocar as sábias palavras de Miguel de Unamuno para chamar atenção para o aspecto visual do Quixote, que para o cinema é algo primordial, já dado. Unamuno teoriza: “Los datos para pintar a Don Quijote hay que ir a buscar en la obra de Cide Hamete Benengeli, dentro de ella y fuera de ella tambíen; en la obra de Cide Hamete por haber éste sido su biógrafo; dentro de ella se descubren honduras que el buen biógrafo no caló siquiera; y fuera de ella, porque fuera de ella vivió y vive el ingenioso Hidalgo. (...) ‘Frisaba la edad de nuestro hidalgo com los cincuenta años; era de complexión recia, seco de carnes, enjuto de rostro, gran madrugador y amigo de la caza’ Part. I, cap.I. ‘Por outro nombre se llama El caballero de la triste figura... verdaderamente tiene vuestra merced la más mala figura de poco acá que jamás he visto’ Part. I, cap XXXVII.” O Quixote de Cervantes já nasce bastante pictórico com enfatiza Unamuno, sendo uma fonte inesgotável para as Artes Visuais e para o Cinema, como temos visto nos seus 400 anos de existência. Nem todos os autores que se aproximam do Quixote para dialogar, inspirar-se nele tem a mesma habilidade. Picasso fez uma única gravura para uma revista francesa em 1955, o original está desaparecido ou não existe, a representação diz mais sobre Picasso que sobre o Quixote, muita fama, pouca ligação com a obra. Gustave Doré fez as conhecidas gravuras que ilustram a maioria das edições do último século, são competentes, mas falta também uma ligação de significado com a obra de Cervantes. A ilustração mais contundente e que entende o personagem de Cervantes foi a feita em 1955 por Salvador Dalí, seu Quixote tem o corpo constituído por espirais de vento,
Figura 1: Litografia de Salvador Dalí para o Quixote, 1956. O cinema inspirou-se na narrativa do romance do final do século XIX (e em sua tradição) para desenvolver sua linguagem, e sempre teve nele um repertório inesgotável para suas adaptações. Dentro da criação da arte cinematográfica, já nos seus primórdios, o fazer artístico criou regras e um sistema de organização, chamado gramática cinematográfica. O número de adaptações cinematográficas de Don Quijote já atingiu 40 títulos conhecidos. Muitas delas só temos referências em documentos da literatura da área, são filmes perdidos ou dados como. A mais recente, e a mais polêmica, dirigida por Terry Gillian, terminada em 2018, tem cenários, direção de arte feita por espanhóis e a participação de atores castelhanos no elenco, não nos papéis principais (Quixote e Sancho), mas que determinam as escolhas da encenação. Na época de Cervantes, a população vivia sob uma mão divina e ditatorial e devia a este regente obediência e muitos impostos, as classes sociais eram muito fechadas e a única opção de progresso era ingressar na máquina real, coisa que a maioria da população não conseguia. Fundamentais na caracterização desta época são dois livros: Tirant lo Blanc escrita em catalão pelo cavaleiro Joanot Martorell em 1490, e Lazarillo de Tormes,
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livro anônimo de 1554. Martorell mostra a saga do cavaleiro Tirant (o branco), já que o perfeito cavaleiro catalão deveria ser branco, nunca mouro ou judeu, que lutou contra os árabes e semitas nas terras bizantinas. Tirant já mostra falta de sintonia com a realidade e com os novos tempos, a sua recepção na Catalunha foi muito boa, mas ele já continha os sinais da morte do gênero das novelas de cavalaria. O segundo livro Lazarillo de Tormes conta as peripécias e um jovem gatuno que faz tudo para sobreviver, não morrer de fome e tentar ascender socialmente. O livro escrito cinqüenta anos antes do Quijote possui um realismo atroz, critica mortalmente a igreja e os nobres falidos, mostrando de maneira exemplar os vícios e hipocrisias da sociedade de então. Miguel de Cervantes, herdeiro desta tradição, transformará esta crítica escrachada em uma análise sutil e acurada da sociedade espanhola de seu tempo, convertendo seu personagem principal, Alonso Quijano, em um representante do sonhador e do idealista que já não tem mais lugar no chamado mundo moderno. O personagem Alonso Quijano vive num mundo de fantasia, lendo sem parar livros de cavalaria, acaba tendo problemas em separar a realidade da ficção, o sentimento mais moderno que um personagem pode ter. O grande instrumento inequivocamente do mundo contemporâneo é o uso da paródia, no sentido abrangente do termo, não se limitando ao genericamente lembrado aspecto negativo de escárnio de uma obra ou autor, mas sim incorporando à nova obra, o elemento parodiado. Como foi definido por Linda Hutcheon: “A paródia é, neste século, um dos modos maiores da construção formal e temática de textos. E, para, além disto, tem uma função hermenêutica com implicações simultaneamente culturais e ideológicas. A paródia é uma das formas mais importantes da moderna auto reflexividade; é uma forma de discurso interartístico.” O mundo moderno ou pós-moderno criou uma rica gama de referenciais e, com o desenvolvimento dos meios de comunicação, que se difundiram pelo planeta, quase todo o Ocidente tem os mesmos ícones como referência. A marca do sabão em pó; o refrigerante que está em cartazes, revistas; as estrelas de cinema cheias de glamour; os grandes milionários; as personalidades do mundo da música; príncipes, reis, nobres, conteúdos simbólicos, pura matéria de construção poética. Elementos que aparecem em obras que retomam, modificam, acrescentam significados, constroem, segundo Linda Hutcheon, o hipertexto, que abrange as técnicas da citação,
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citação em abismo (mise-en-abyme), referência. O hipertexto paródico incorpora os sentidos do referencial e os transforma em outro elemento cognitivo. El ingenioso hidalgo Don Quijote de la Mancha é um grande exemplo disto, sendo uma paródia das novelas de cavalaria, ela as supera magnificamente, e transcende a significação a um outro patamar. Cervantes cria sua obra maestra a partir de uma nova maneira de retratar um personagem, que é inserir na ficção a realidade cotidiana sem perturbar a verossimilhança do gênero, criando o nosso cavaleiro pósmoderno. Como inferi Jordi Gracia: “En poco más de diez años, hasta su muerte en 1616, escribe de nueva planta dos obras maestras y las Novelas ejemplares, que es otra obra maestra, como si se instalase fuera de su tempo y se adelantase al nuestro. El mistério aumenta cuando el lector intuye que en esos años Cervantes descubre el modo de injertar en la ficción de asalto de la realidad vivida, el acoso de una experiencia que empapa cada página sin que nada de ese asalto rompa la campana neumática de la ficción ni desde luego disuelva el mecanismo irónico fundamental del Quijote al imaginar a un hombre inequivocamente loco e inequivocamente cuerdo.” Como uma das formas de comunicação mais eficientes do século XX, o cinema também suscitou o aparecimento do hipertexto paródico. Depois dos pioneiros que criaram o veículo e desenvolveram, nas primeiras décadas do século, a sua linguagem, a partir dos anos 50 nasceram os autores que podiam, através de uma cultura de preservação e resgate das obras inicias nas recém-criadas cinematecas, dialogar com obras que faziam parte do imaginário da cultura ocidental, como faz Terry Gillian em seu filme de 2018. Dentro da história da cultura alguns livros são considerados marcos no entendimento do que é a humanidade e são representantes de seus máximos valores e são fontes de inspiração permanente. Entre um número de dez livros citados em muitas pesquisas, de valor internacional, o Quijote costuma estar em primeiro lugar seguido por Homero com a Ilíada ou a Odisseia, A divina comédia de Dante Alighieri, Em busca do tempo perdido de Marcel Proust, Guerra e paz de Leon Tostói, Ulisses de James Joyce, Romancero Gitano de Federico García Lorca, Mensagem de Fernando Pessoa, O lobo da estepe de Hermann Hesse, Vinte poemas de amor e uma canção desesperada de Pablo Neruda.
Figura 3: Diego de Velázquez, a rendição de Breda, 1634.
Figura 2: Gustave Doré, gravura para um excessivo Dom Quixote.
Nos 150 anos posteriores a sua publicação o Quixote de Cervantes foi sendo traduzido e publicado pelo mundo, até receber o reconhecimento merecido em terras castelhanas. Um dos primeiros ilustradores do Quixote foi Gustave Doré (1832-1883), este prolífico ilustrador realiza um trabalho marcado pelo romantismo francês no Quixote, as paisagens, vestuário tem um ar francês de século XVIII. As paisagens do Quixote lembram as de Gustave Courbet, e alguns ambientes tem paralelismo com Eugène Delacroix e seu exotismo árabe. O Quixote é tratado ou com excesso, com uma espada em riste dentro de um castelo com livros de cavalaria na mão, ou com traços realistas com a sua bacia de barbeiro. As adaptações para o cinema bebem nas fontes mais óbvias para a construção de cenário, vestuário e iluminação que são: Diego de Velázquez e Francisco de Goya. Os retratos de Velázquez de nobres e dos guerreiros são em si um vestuário pronto para um filme do século XVII e Goya acrescenta a visão do povo e dos delírios e mistérios da Espanha profunda. A rendição de Breda de Velázquez é um registro do vestuário da época com muitos detalhes.
Vale a pena destacar que uma das sempre lembradas adaptações pela crítica é a russa, dirigida por Grigori Kozintsev, em 1957. O Quixote é feito pelo ator Nicolai Tcherkassov, que tem uma interpretação muito misteriosa, deixando muitas intenções ocultas, como se estivesse em uma obra de Anton Tchecov, com sua ‘vida submersa no texto’. Tcherkassov anda pela aldeia, um cenário fantástico construído na planície russa, com uma capa negra, escondendo-se com gestos muito teatrais. É uma boa versão, mas falta a vida e a solaridade manchega.
Figura 4: Dom Quixote no palácio dos Duques, Velázquez é a inspiração de vestuário, cenário e iluminação, versão 1957.
A primeira adaptação realmente feita na Espanha é a de 1947, bem avaliada até hoje. O filme é dirigido por Rafael Gil, diretor criativo e tem como Quixote Rafael Rivelles, que tem a presença destrambelhada necessária para o personagem. O filme tem adaptação de Rafael Gil, sobre síntese literária de Antonio Abad Ojuel e
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participação de Armando Cotarelo, da Real Academia Española. Ele é filmado no cenário real, La Mancha, e sobra talento aos intérpretes. Sobre a obra e o diretor o Diccionario del cine español comenta: “Nadie, en efecto , se surtió del acervo literário español con tanta avidez. (...) Don Quijote de La Mancha (1947), una de sus mejores películas y, quizá, una de las versiones más prudentes que se han hecho del libro.”
adaptação para a Rede de TV americana CBS, o Quixote dessa versão foi vivido por Boris Karloff, que eternizou o monstro Frankstein no clássico de 1931. Sophia Loren foi a Dulcinea mais famosa, no filme Man of la Mancha, em 1973. Orson Welles dirigiu uma versão em 1955 na Espanha, que ficou incompleta e sem montagem, como alguns de seus trabalhos, ela foi finalizada pelo cineasta espanhol Jesus Franco somente em 1992, com um fraco resultado. O reconhecido cineasta austríaco Georg Wilhelm Pabst fez uma versão em 1933, um musical, bem ao gosto da época, com resultado irregular. O cantor de ópera de origem russo Feodor Chaliapin faz um Quixote bastante teatral, com o gestual exagerado que pede o gênero, seu vestuário é muito carnavalesco, com plumas e acessórios vistosos, mas fora de época.
Figura 5: Francisco de Goya El aquelarre (festa de bruxas), óleo sobre parede transferido à tela, 1823, os monstros de Goya servem muito bem para os delírios do Quixote. A primeira versão do cinema é francesa do início do cinema, feita em 1898, lembremos que o cinema nasceu em 1895. O grande criador da ficção no cinema, o francês Georges Méliès, fez uma versão em 1909. Temos uma inusitada versão feita por um diretor dinamarquês, Lau Lauritzen. O filme de 1926, uma coprodução entre a Dinamarca e a Espanha, é o primeiro realizado em solo espanhol e com alguma participação de atores do país. No elenco está listada a atriz Carmen Villa ou Carmen Capvilla, que teria nascido em 1876 e morrido em data desconhecida e trabalhado em alguns filmes do cinema mudo, da década de 1910, este filme é o último de sua filmografia. O filme é um veículo de promoção para os protagonistas, Carl Schenstrom, que encarna Don Quixote e Harold Madsen a Sancho Pança. Eles formavam uma dupla cômica chamada Pat & Patachon, na linha o gordo e o magro (Laurel & Hardy) e Abbott & Costello. Eram conhecidos em toda a Europa, tendo feito espetáculos na Inglaterra, Itália, França, Alemanha e Estados Unidos. A bela Grace Kelly, antes de tornar-se princesa em Mônaco, foi a Dulcinea em uma
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Figura 6. Feodor Chaliapin como Quixote, 1933. A mais conhecida de todas as versões é a espanhola feita em 1991, da primeira parte, com roteiro de Camilo José Cela, escritor ganhador do Prêmio Nobel de Literatura em 1989, com Fernando Rey, acompanhado pelo conhecido comediante Alfredo Landa, que faz um impagável Sancho. A segunda parte deste Quixote não foi realizada, pois Fernando Rey morreu em 1994, uma pena. Em 2002 a Televisión Española apoiou a nova versão feita pelo mesmo diretor, Manuel Gutiérrez Aragón, que teve o título de El caballero Don Quijote.
Lembremos: 1933 Don Quixote. França/Inglaterra. Direção de Wilhelm Pabst 1947 Don Quijote de la Mancha. Espanha. Direção de Rafael Gil 1955 (1992) Don Quijote. EUA/Espanha. Direção de Orson Welles 1957 Don Kikhot. URSS. Direção de Gregori Kozintsev 1991 El Quijote de Miguel de Cervantes. Espanha. Minissérie para TVE. Direção de Manuel Gutiérrez Aragón 2002 El Caballero Don Quijote. Espanha. Direção: Manuel Gutiérrez Aragón 2006 Honor de cavallería. Espanha. Direção de Albert Serra 2018 The man who killed Espanha/Inglaterra/Itália/Portugal/ Terry Gillian
Don França.
Quixote. Direção:
Os filmes realizados sobre o clássico de Miguel de Cervantes na Espanha, com participação de atores, produtores, técnicos tem uma característica distinta das outras adaptações. A referência cultural do Quixote é uma marca da Espanha como nação e como patrimônio imaterial tem peso na produção de uma obra cultural, como um filme. Concordo com Jorge Luis Borges quando ele infere: “Otro caso aún más curioso es el de España. España podría haber sido representada por Lope, por Calderón, por Quevedo. Pues no, España está representada por Miguel de Cervantes. Cervantes es un hombre contemporâneo de la Inquisición, pero es tolerante, es un hombre que no tiene ni las virtudes ni los vícios españoles.” Sendo Cervantes e seu personagem, o Quixote,
espanhol e ao mesmo tempo sem marcas limitantes desta procedência, tornam-se universais ontologicamente. E parodiando Tostói podemos dizer que o Quixote é universal por cantar a sua aldeia e seu entorno, La Mancha. Para o audiovisual o título do livro já é cinematográfico, para mostrar uma paisagem como La Mancha, precisamos utilizar o recurso do plano geral, que equivale às paisagens na pintura, e para mostrar todo o ambiente usamos uma panorâmica, que imita a visão de uma pessoa girando o pescoço e olhando para o infinito. Um filme realiza-se através de seu argumento presente no roteiro, de seus quadros e imagens (planos, enquadramento, ângulo de câmera, mise-en-scène) e a narrativa se organiza através da edição, montagem de som, continuidade e organização do espaço fílmico. “Mise-en-scène é um termo francês derivado do teatro que significa literalmente ‘colocar no quadro’. Tudo o que vemos dentro do quadro da câmera vem com o apoio da mise-en-scène: atores e suas performances, iluminação, figurinos, cenários, efeitos de lentes coloridas, objetos de cena e didascália (organização dos atores no espaço). Tudo isso se combina para dar ao espectador uma imagem do espaço cinematográfico.” Em uma análise coerente de uma obra, seja ele um livro, uma pintura, ou neste caso uma obra audiovisual, é vital a escolha do instrumento de análise utilizado. Não podemos usar a teoria literária para analisar um filme, pois fundamentalmente o romance El ingenioso hidalgo Don Quijote de La Mancha é um texto impresso em um livro, organiza-se em frases, parágrafos, páginas e volumes. O filme Don Quijote de La Mancha, de 1947, para dar um exemplo, é um conjunto de imagens e de sons (e silêncios), organizados segundo uma gramática própria, a cinematográfica, nela não valem as regras da literatura, fazer resumos do que acontece em um filme, ou com um personagem, ou grupos de, não é analisar, é fazer uma redução de uma obra complexa. As adaptações de Dom Quixote são categorizadas como drama, em sua maioria, ou no máximo como uma comédia dramática, pela própria trajetória e características do personagem central, que passa o tempo quase total dos filmes com um comportamento alucinado, sonhador, desajustado da realidade, sendo ridicularizado pelos outros personagens e recobra a sanidade no final. As escolhas de cenário, figurino, iluminação e principalmente direção e interpretação de atores tem características bastante específicas dentro do gênero. Não só em uma ficção como o Quixote, mas na quase totalidade dos gêneros
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cinematográficos prevalece a relação do corpo humano, e principalmente o rosto humano, enquadrado, iluminado e registrado em 24 fotogramas por segundo. Como esclarece Aumont: “No entanto, a encenação permanece, e permanecerá, na raiz de toda a arte cinematográfica imaginável, pelo menos enquanto o cinema consistir em filmar corpos humanos a exprimirem-se, a representarem a sentirem, a viverem num quadro, num meio, num espaço e num tempo.” Quando os Irmãos Lumière fizeram a primeira sessão pública do cinematógrafo, no porão do Grand-Café do Boulevard des Capucines, em Paris, no dia 28 de dezembro de 1895, não tinham a mínima ideia que estivessem criando um novo tipo de arte. Para eles o cinema era só uma curiosidade científica, opinião da qual discordou um dos espectadores, o mágico George Méliès; os irmãos não se interessaram nem em discutir o assunto e muito menos em vender uma de suas câmeras para o impressionado senhor. A nova expressão artística nasceu registro científico, um processo químico, portanto racional e Méliès mostrou a todos que ele poderia ser uma técnica de fabulação. Os franceses e americanos foram os primeiros a interessarem-se pelo dispositivo que permitia colocar pessoas e objetos na frente de uma lente e criar uma narrativa. Depois de muitas tentativas e suposições, a linguagem cinematográfica já estava estabelecida antes do final da segunda década do século XX. Acreditar na veracidade da trama do romance El ingenioso Hidalgo Don Quijote de La Mancha e do filme Don Quijote de La mancha de Rafael Gil, ou do conto Las babas del diablo de Cortázar e do filme Blow-up de Antonioni é mais simples que acreditar na verdade dos documentários Triunfo da vontade (1935) e Olympia (1938) de Leni Riefenstahl (cineasta protegida de Hitler). Os dois últimos apresentam aspectos da vida nunca vistos ou nunca pensados, por sua crueza e novidade. A supra realidade que a ficção cinematográfica apresenta é muito mais convincente (e verossímil) para o público, pois faz parte de seu repertorio cultural. E como na literatura e no teatro, de onde os gêneros vem, a definição dos mesmos (no audiovisual) é um terreno pantanoso e depende muito da intenção de seus criadores e do resultado alcançado pelas suas obras. O personagem Alonso Quijano vive num mundo de fantasia, lendo sem parar livros de cavalaria, acaba
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tendo problemas em separar a realidade da ficção; o sentimento mais moderno que um personagem pode ter, como exemplo lembremos qual é o problema de Neo (Keanu Reeves) no filme Matrix (1999), um devedor da obra de Miguel de Cervantes. O cinema inspirou-se na narrativa do romance do final do século XIX (e em sua tradição) para desenvolver sua linguagem, e sempre teve nele um repertório inesgotável para suas adaptações. Dentro da criação da arte cinematográfica, já nos seus primórdios, o fazer artístico criou regras e um sistema de organização, chamado gramática cinematográfica. Um conjunto de procedimentos que resultavam orgânicos na construção para este meio. Um ‘plano geral’ serve para mostrar um contexto, um close ou ‘primeiro plano’, seleciona o personagem central da trama e um ‘plano de detalhes’ mostra, por exemplo, que ele tem nas mãos, uma arma para atirar diretamente na câmera, como em The great train robbery de Edwin Porter, de 1903.
Figura 7: Fotografa do filme de Terry Gilliam, onde vemos a projeção da figura de Sancho sobre o diretor, que acaba sendo confundido com o próprio. A versão de Terry Gilliam rodada aos tropeções durante 25 anos é a mais recente feita do livro de Miguel de Cervantes. Ela entende perfeitamente o jogo de autoria, ficção e realidade dentro de uma narrativa livre e aberta. No fotograma acima o diretor de uma adaptação Toby (Adam Drive) convenceu um sapateiro a ser o Quixote. Dez anos depois ele está na Espanha rodando um comercial com a figura de Dom Quixote, já são dois, e resolve visitar o povoado onde realizou sua obra, depois de comprar de um vendedor ambulante um DVD pirata de seu próprio filme. Acaba sendo envolvido por este sapateiro/Quixote e para fugir de problemas acaba saindo por La Mancha com ele. Durante as andanças da dupla, num determinado momento Dom Quixote abre o livro de Dom Quixote, em inglês, e diz para Toby/Sancho que ele pode ver as figuras, pois ele é um agricultor analfabeto, um jogo de espelhismos sem fim. No episódio na Corte dos Duques, cicerones de Dom Quixote os convidados também estão lendo Dom Quixote, todos com o livro na mão. Gilliam entendeu a estratégia primordial do Quixote, o jogo de autorias. Neste
encontro
de
Toby
o
diretor
que
transformou o sapateiro no Quixote uma cena que remonta aos primórdios do cinema é chave para a compreensão da obra de Gilliam. O sapateiro Quixote está sentado com o livro Dom Quixote nas mãos ao lado de um projetor, que está apontado em nossa direção, atrás dele um quadro de Goya, El Coloso, que em 2008 deixou de lhe ser atribuído. A ambientação da cena é de Velázquez presente em Las meninas, que é um quadro com 360 graus e muito cinematográfico. Como nos ensinou Unamuno o aspecto pictórico, e cinematográfico, em Dom Quixote é primordial, mas nem sempre nas versões e adaptações os autores tem isto claro. O diretor austríaco Georg Wilhelm Pabst radicado na França fez um Quixote ligado ao Vaudeville, um Quixote cantor e emplumado difícil de enquadrar. O diretor russo Grigori Mikhailovich Kozintsev usou a
referência visual de Velázquez, mas errou na escolha de atores, com seu método Stanislavski, que não serve para o Quixote e o roteiro tomou muitas liberdades, colocando Dulcinea dentro da casa do Quixote. Orson Welles filmou durante muito tempo, mas não conseguiu lidar com o material, misturou passado e presente sem um elo entre eles, não o concluiu e coube a outro finalizar o material, que não chega a organizar-se como uma obra completa. As duas melhores versões do Quixote são as espanholas, a de 1947 feita para o cinema e a de 1992 feita pela Televisión Española com orçamento grande e com o roteiro de Camilo José Cela, Premio Nobel de Literatura em 1989.
Figura 8: Jonathan Pryce como o Quixote
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Figura 9: Rafael Rivelles, um Quixote digno de Cervantes, adaptação de 1947. A adaptação de Rafael Gil respeita todas as nuances do personagem é feita com ajuda de especialistas da Real Academia Española, e tem como destaque a performance de Rafael Rivelles como Dom Quixote, louco e são ao mesmo tempo, como deve ser o Quixote. Interessante notar que Fernando Rey faz Sansón Carrasco, um dos antagonistas do Quixote e em 1992 faz o próprio, com elegância, naturalidade e loucura. No início da década de 1990 a onda de prosperidade espanhola que já durava mais de uma década animou o Estado a financiar a maior aventura de sua televisão pública, a série El Quijote de Cervantes, com um elenco estelar e um roteirista premiado. Como já disse o experiente ator Fernando Rey (1917-1994) é escalado aos 74 anos para ser Dom Quixote, escolha muito acertada, pois não podemos ter hoje um ator de 50 anos fazendo um homem desta idade no século XVII. Rey que passou por duas guerras mundiais, uma civil e 40 anos de Franquismo sabia como entender o Quixote em cada movimento. Como Sancho a escolha recaiu sobre o maior comediante do cinema espanhol Alfredo Landa (19332013), que de tão famoso criou um gênero próprio o Landismo, comédia ligeira e com pitadas de nus femininos.
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Figura 10: Don Quixote, de Orson Welles Finalmente quando falamos em Cervantes e no Quixote devemos atentar que as descrições que Cervantes faz de seu personagem, de seu contemporâneos e dele mesmo tem uma naturalidade moderna e sem filtros, mas que constrói imagens permanentes. Como ele faz no prólogo de suas Novelas Ejemplares, lançadas em 1613. “Este que veis aqui, de rostro aguileño, de cabelo castaño, frente lisa y desembarazada, de alegres ojos y de nariz corva, aunque bien proporcionada; las barbas de plata, que no hace veinte años que fueron de oro, los bigotes grandes, la boca pequena, los dientes ni menudos ni crecidos, porque no tiene sino seis, y esos mal acondicionados y peor puestos, porque no tienen correspondência los unos con los otros; el cuerpo entre dos extremos, ni grande, ni pequeno, la color viva, antes blanca que morena, algo cargado de espaldas y no muy ligero de pies.” Descrição contundente original que os pavões de seu grupo acadêmicos nunca fizeram de si mesmo, até nisto Cervantes é inovador. E é nesta narrativa que é ao mesmo tempo real e obra de ficção que devemos procurar a visualidade do Quixote, um dos elementos que o fez continuar contemporâneo e experimental 400 anos depois de seu lançamento.
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