Ariane Oliveira
D E VA N E I O S
D O
D E S E J O
DEVA NEIOS DO
ARIANE OLIVEIRA
DESE JO
AGORA
Este livro, escrito no tempo quase desconhecido, mas recuperado do agora, dedico ao acaso, às mulheres, em sua multiplicidade étnica, não-binária e não decifrável, sempre em devir e, principalmente, às minhas avós, que me inspiram a força e a fragilidade da delicadeza de ser o que se é.
“agradeço a cada apoiador(a) e a todo o corpo de trabalho que tornou esta publicação possível”.
SUMÁRIO uma APRESENTAÇÃO de LUCIANA TOMIC um PREFÁCIO de ERICA SARAIVA 1 CONCEITOS-DICIONÁRIO VISUAL DE PALAVRAS ou CADÊNCIA AFETIVA DAS POSSIBILIDADES IMAGÉTICAS 2 DESATINO: BUSCAR, ENCONTRAR E INVENTAR AS PALAVRAS 3 POSSIBILIDADES DE CRIAÇÃO DO CORPO feminismos, gênero e arte 4 TRABALHO EM arte FEMINISTA
9 devaneios
5 a escrita FEMINISTA COMO REGISTRO ÉTICOESTÉTICO: SOBRE POTENCIALIZAR O SILÊNCIO 6 REFERÊNCIAS
APRESENTAÇÃO por LUCIANA INÊS DOMSCHKE TOMIC
11 devaneios
A mulher jovem, moça feita, vê, dentro da mulher madura, a moça, ainda se fazendo. O encontro instantâneo entre nós, Ariane e eu, misturou nossas substâncias e veio o convite para eu escrever o prefácio de seu livro. Entrar nos devaneios de Ariane evocou meus passos passados e abriu um espaço na minha imaginação, antes mesmo de receber o livro pronto. Visitei, então, minha memória e encontrei uma juventude que ainda continua, sinto, querendo viver, como uma fonte que jorra, contínua, sem esforço. Meu universo interno, pletórico e barulhento, rolou em muitas direções no tempo privado de palavras que pudessem revelar minha alma. A arte, tantas vezes me salvou da vida e muitas vezes mais, fui salva dela - da arte, pela vida. Inventando com fragilidade e liberdade, um caminho. Percebo nesta narrativa em comum, o ajoelhar-se, colocando o ouvido sobre a terra, deixando a cabeça abaixo e o coração sempre mais alto, escutando-a, vendo de cima e entendendo tudo, à sua maneira, em silêncio acalorado.
12 devaneios
Foi assim que ouvi Ariane e sua fala incorporada: com meus ouvidos encostados no chão e deixando meu coração enxergar sua linguagem. Lendo, depois, com calma, suas imagens, ouvindo seus escritos, no livro-manifesto-revelação de Ariane me surpreendi com minha fala dita, com palavras criadas. Como se fossemos juntas, caçadoras de borboletas, com redes lançadas ao ar, buscando transparências e fragilidades numa linguagem que possa nos conceder espaço, um lugar arejado onde todos cabem, se entrelaçando e se tecendo, sendo vistos e nos vendo. Construindo uma existência interrelacionada e integrada com nossa morada. “Devaneios” tecidos com lucidez pelas linhas de Ariane, uma outra Ariadne, que borda com o invisível. Como o “vento invisível que se permite ser visto naquilo que é transformado por ele”, ela nos faz perceber a neblina que se faz água que voa e gera vida. A arte existe muito além da arte. Existe em cada respiração, no fluir do sangue, no suor do rosto, no deslizar das articulações, nas faíscas das sinapses, nas circunvoluções do cérebro, nas imperfeições, nas incapacidades, na queda dos cabelos e pelos, nas manchas da pele, e na fala da Terra, com seus terremotos e tsunamis, seu germinar e seu nutrir.
Meu caminho foi-se tecendo, silenciado passo a passo, na angústia e na dor da incerteza, sem preocupação em encontrar as palavras: alguém falaria por mim, com o passar inexorável do Tempo. E assim foi, Ariane “fala”. Sua geração fala. Que a vida com sua extraordinária força atravesse esse túnel cheio de dor da pandemia, apertado, trágico e triste e, com paciência e coragem nos mostre a luz do Sol e teça uma só geração de pessoas no aqui e agora, cuidando-se, uns aos outros. Daqui da Terra, com os pés no chão, olhar no céu, germinando um corpo coletivo de muita força, movido a amor incondicional.
13 devaneios
a Prof. Dra. LUCIANA INÊS DOMSCHKE TOMIC é médica, especialista em Cirurgia Geral, Doutora em Medicina. Possui além dessa formação, a de atriz. E atuou no Teatro Oficina.
PREFÁCIO por ÉRICA SARAIVA "Este livro permite a livre escolha do percurso de leitura por quem nele decide envolver os olhos e as mãos”
15 devaneios
Que paisagens preenchem meu silêncio? Essa era a pergunta orbitando meus pensamentos durante a leitura do livro que você tem em mãos. O olhar em retrospecto da autora para as experiências que constroem sua mirada como escritora, reafirma a insuficiência da palavra diante das imagens que incendeiam nosso imaginário. E enquanto o presente livro manifesta a vontade de transbordar os limites impostos por essas palavras – enquanto forma de expressão - aponta os limites da imagem - enquanto representação. Diante do impasse, como liberar palavras e imagens revelando a transitoriedade do corpo e das lacunas que habitamos? Se pudesse, como você romperia os limites do que já conhece em direção a paisagens outras? Que lembranças, sensações ou sonhos traz consigo dos lugares desconhecidos em que já esteve?
16 devaneios
Se a imagem estilhaça um silêncio trêmulo é por irromper quando já a julgávamos esquecida, superada, reprimida. Subestimamos a capacidade que nossos corpos tem de manifestar aquilo de que conscientemente já tentamos nos afastar. O apagamento é, nesse sentido, a garantia de seu retorno. “Língua que não falo, língua do não dito, linguagem sem palavra, palavra-luz, melancolia dourada. Inventar passagens, mundos através da linguagem do não dito; reconhecer-se nos outros e na paisagem, rasgar a razão do verso, reconciliar palavra e gesto.” Transitar entre vestígios de memórias, caminhos e sonhos. Tornar a esquecer. Permitir um sentido novo como testemunho da perseverança em resistir. Apesar de. Seguir criando raízes profundas nas frestas. Poesia enquanto modo de dar forma ao diálogo entre corpo, memória e imagens oníricas que surgem quando nos impelimos ao desconhecido. O diário de viagem que traz de volta a sensação de reconhecer-se no contato com outra topografia. Registro fotográfico que não pretende encerrar a memória de um instante, mas explodir o fluxo de imagens inconscientes que trazemos no corpo. Aqui, nenhuma dessas generalizações (enquadramentos) dá conta da expansão provocada pelo exercício de escutar-se e abrir passagem ao “erro”, ao amorfo que caracteriza o íntimo de cada um de nós. E nessa indefinição, que não é o mesmo que dimensão vazia de sentido, caminho junto com a ar-
17 devaneios
tista-escritora procurando aquilo que nos impele a escrever, desobedecer a linguagem, ressignificar. Ciente de que esse afeto possibilita romper com a lógica de dominação dos corpos feminizados. Desejante de um tempo que não se distingue de presença, que não é indicador de posse de um Outro sobre mim. Diante disso, não poderia tentar encerrar aqui os sentidos que se abriram com a leitura a seguir, mas cabia tentar despertar em cada uma, uma certa desobediência a palavra como nos foi dada. Com enorme satisfação encerro a presente apresentação para Ariane, pesquisadora, artista visual e mestra em poéticas visuais (PPGAV/UFRGS). Sua escrita reacende a chama das que vieram antes de nós. Daquelas que se comprometeram com o próprio olhar, inventaram novos modos de relacionar para, mais do que se encaixar nos parâmetros do que é arte, tecer laços entre nós. Contrapor um opaco autoritarismo teimoso em nos reduzir a modelos defasados. Sua escrita-pavio representa o testemunho indispensável do processo de construção de uma identidade política. Uma deriva que inspira a compreender nossas paisagens e tempo internos, e reforça nossa recusa em habitar um lugar unívoco desafiando o achatamento das nossas práticas políticas e poéticas. ÉRICA SARAIVA é Designer, artesã e Mestre em Arte e Cultura Visual (FAV-UFG), pesquisa artistas feministas desde 2013. Atualmente doutoranda em Artes Visuais pelo Instituto de Artes (UFRGS).
DEVANEIOS DO DESEJO
21 devaneios
1 CONCEITOSDICIONÁRIO VISUAL DE PALAVRAS ou CADÊNCIA AFETIVA DAS POSSIBILIDADES IMAGÉTICAS
23 devaneios
a. Contradição - a ambiguidade da vida e da poesia b. Cor - o que ainda não teve lugar como palavra c. Corpo - caminho d. Cura - carinho recriado e. Desenho - desejo- terra do indefinido plano do possível f. Envelhecer – envernescer - para as profundezas do tempo que atravessa um corpo g. Escuta - revelar outras narrativas h. Existência - dádiva da dúvida i. Frame - fogo j. Fronteira - reinventar os meios na indefinição do tempo k. História - memória- pés descalços l. Identidade - multiplicidade m. Imagem - pedra lançada na vidraça do silêncio n. Invenção - vontade de vida o. Letras da existência - estado intermitente de sonho que se faz presença p. Novo - palavra q. Palavra vento - o invisível que altera a paisagem r. Palavra terra - palavra cheia s. Realidade - materialidade que se desfaz t. Reminiscências - o que o tempo traz de volta u. Repetição – diferença - palavras outras v. Repressão - lembrança do passado - pergunta silenciada x. Solidão - ser um deslocado e conexo y. Tautologia - não evitar z. Traço - rastro dos sonhos encontrados na realidade
25 devaneios
2 DESATINO: BUSCAR, ENCONTRAR E INVENTAR AS PALAVRAS
26 devaneios
Procuro as letras da existência Dor é engano Quero evitar o esquecimento Habito a linha tênue Entre realidade e sonho Talvez um estado intermitente de sonho Escarlate
27 devaneios
As palavras se perdem no tempo O tempo não existe Nem as palavras Mas isso não evita que elas se percam Aquele texto que escrevi É tão ano passado 2015 foi explosão E nada do que explodi está lá Virei pedra peixe pássaro Um sabiá veio buscar alimento na minha mão Por cultivar proximidades tênues Passo os dias convencendo as pessoas sobre a vida Para convencer a mim mesma de que estar no agora Faz algum sentido Crio sentidos com o corpo Busco tuas mãos Às vezes a materialidade me sufoca Mas carrego muitos objetos na bolsa Talvez isso tudo seja sobre recriar Transformar Transpor o mar Chovi três semanas E fiz sol durante um mês Nesse inverno que foi verão Vou viver dois verões esse ano E falar com os olhos Habitar a lacuna de que as palavras não dão conta
28 devaneios
Conquistar folhas de papel Direitos fundamentais E espaços de poder Fazer objetos Constituídos de tempos Por onde se percorre A modulação dos afetos Deixa a profundidade emergir à superfície
29 devaneios
Vento Na pele da alma Sinto Lágrima una Em rio Felicidade em pranto confuso Nuvem de areia entre os dedos Rascunho de um teatro não ensaiado Há algo a se desvendar sempre Na palavra aparente Na face aparentemente vazia Há sempre algo de poesia Para gostar de poesia É preciso ler além do óbvio Mais do que isso É preciso saber que o óbvio Vai além do que se lê Para gostar de poesia
IRONIA DA COERÊNCIA Matem todos os bandidos Matem todos os corruptos Escondam a sujeita Incinerem as drogas Limpem todas as paredes Encarcerem os loucos Internem os drogados Não falem sobre sexo Vistam a mulher toda Acorrentem-se às coisas Prendam-se às moradias Digam a quem amar Calem todo o clamor
31 devaneios
Acabem com toda a humanidade Assim estará terminada toda a violência Porque não sofre quem faz sofrer
SUB(VERTER)
32 devaneios
Em diálogo com as paredes Externalizo Recolho as fotos Internalizo É tarde Penso O que há dentro quero ver
33 devaneios
34 devaneios
Rasgo a razão do verso Faço corpo espaço sem palavra
35 devaneios
Rascunhos da fala A ponta do lápis é a conexão inconsciente que a razão não alcança Criações do inútil Manoel de Barros disse que a palavra oral não tem rascunho E tinha razão! Ou não Para mim as imagens são rascunhos da fala Assim como a escrita é rascunho da imagem Manuel me ensinou a inventar minhas verdades
SILÊNCIO
36 devaneios
Escutar o que vem de dentro Um querer conjunto explícito mas não expresso
37 devaneios
Sempre me perguntei se corre sangue nas veias de quem segue a lei sem questioná-la
38 devaneios
O canto de um pássaro me trouxe uma lembrança qualquer E mesmo sem saber do quê Senti saudade Do futuro
REFERÊNCIAS It’s a long way Ir e voltar da eternidade Quando o dia insiste em nascer Apesar de você Ainda que suas prisões não permitam Mesmo que minhas prisões digam que é noite
39 devaneios
Quando chove na luz Os cavalos estão na margem do rio Ainda que você não veja
HÁ UMA FLORESTA AQUI DENTRO
40 devaneios
A floresta não tem dono Mas querem fazer crer que tem Acredito em lobo aranha serpente Acredito em gente que sabe que não é gente É bicho Protegemo-nos dos bichos e de nós mesmos O perigo está em nós e não nos outros Existe amor em cada canto escondido Onde ninguém olha Não tem banner cartaz outdoor Atrás dessa cortina de fumaça e de luz que cega Está o que não passa Nessa floresta sem natureza Alimento-me da substância etérea que vem dos sonhos Não há sentido Apenas construção
Escapes da existência Tempo há Em qualquer lugar Que não o agora
45 devaneios
Fronteira Reinventar os meios na indefinição do tempo
46 devaneios
Não evitar tautologia Uma antiga memória para uma situação desconhecida na cidade onde vivem os sonhos (a realidade) há uma memória antiga para cada nova situação
47 devaneios
Palavra vento O que se perde na palavra É como o vento que não se vê Mas altera a paisagem
48 devaneios
Palavra vento O que se perde na palavra É como o vento que não se vê Mas altera a paisagem
Palavra terra Palavra cheia
49 devaneios
Performance transe terra, Galeria Ecarta, Porto Alegre (2017), registro de Igor Sperotto.
50 devaneios
É pela vida que resisto a toda aparente coerência Dor quando passa é esquecimento Esperança fantasia É pela vida que habito a contradição A ambiguidade da vida E da poesia
PARA NÃO ESGOTAR A EXISTÊNCIA A dádiva da dúvida E das lacunas da memória Apagamento e sobreposição Das camadas do tempo No desenho da infância Não há tolerância ao erro No desenho dos anos O erro se faz ternura
51 devaneios
No início o encanto do explícito Ao final o das profundezas do tempo que atravessa um corpo
52 devaneios
No caminho Não há sequer um passo Jogo Na terra do indefinido Não lido Retorno Rasgo o escrito Reescrevo Passo a viver No plano do possível E não do forjado Caminho a passos lentos E recebo um sorriso Aceito o carinho recriado
53 devaneios
Sobre terça no largo dos Açorianos Os cavalos estão na margem Refletidos no espelho d’água A repressão nos mantém à margem Estão em torno de cem Estão em roda Roda viva Que deveria estar morta Ser lembrança do passado Mas não é Está aqui agora Em todos os lados que a vista alcança Vem mais do outro lado da rua Tem mais atrás da árvore Para além da roda ameaça não há Estamos aqui para proteger vocês Diz o homem de farda e arma E quem nos protege de vocês? É a pergunta silenciada
54 devaneios
55 devaneios
Se viver é uma multiplicidade Por que escolher ser uma identidade única? Que de só já basta a solidão De ser um deslocado e conexo Preso ao próprio corpo Corpo liberto Ou liberto do corpo pelas palavras
FRAME FOGO
56 devaneios
Faço imagem de palavra Imagem é pedra Lançada na vidraça do silêncio
57 devaneios
A vida tem os limites do próprio corpo
58 devaneios
Traço é rastro dos sonhos encontrados na realidade
59 devaneios
Viver sem prazo Num cotidiano político poético Viver no agora Ser o agora Não fingir Não fugir Ser dor Sem máscaras Com máscaras Sinceras Fingir a sinceridade Para fugir do fingimento Dos que fingem não sentir dor Fingir a dor para revelar a dor Que existe em todos nós e se esconde no sorriso Fingir algo mais real do que dentes brancos Até chegar às vísceras Representar o fingimento Desmascará-lo Trazer à tona o que é mais humano A simplicidade das fraquezas Num eclipse noturno Sem lenço sem documento Fui rasgando cada referência de realidade Quebrei a lança Lancei no espaço Minha existência disforme Num vento de eterno retorno para o nada
60 devaneios
Mulher que fala Falo através de imagem Com minha máquina de reinventar o que é gênero
61 devaneios
Minha forma de dizer é analógica Anacrônica E disforme
62 devaneios
Para entender Trocar de olhos também é retornar
Casa Bebo do jarro de barro Com água filtrada pela infância Enquanto olho para as paredes douradas Do que me tornei ao entrar Pela porta da casa com perfume de sândalo Que fica na calçada de meus sonhos
63 devaneios
Vertigem das coisas paradas Dança a vista de verdade destruída Deformada reconstruída Mergulho em diferença próxima Quero ter vida Em cada rastro de memória
64 devaneios
65 devaneios
Viagem Irreversível Como cicatriz Uma bagagem de memórias É hora de encontrar a chave de casa na bolsa Ficou tanto tempo esquecida Que tenho a sensação de tê-la perdido Mas está sempre lá no fundo Esperando ser encontrada Abre o caminho conhecido Que já não tem a mesma textura Já não sou a mesma Não vejo as paredes de outra hora Há vestígios da noite anterior à viagem pela casa Mas já não reconheço quem fui A vida transbordou intensa nesses dias E agora outra pele me veste Corpo que sai do mar escama
66 devaneios
Uns para os outros Somos apenas rastros Rastros de memórias Rastros de caminhos Em movimentos De aproximação e afastamento Constituímos individuais trajetos Que são conjuntos Se vistos como numa dança
67 devaneios
Mãe mão linhas poço barro de jarro Tarkovsky Medeia medo de ir adiante cheiro de conforto pai e mãe ao mesmo tempo não é racional levaríamos uma vida para saber ou só uma noite Uruguai eu já estive lá em novo México tu já foi? vou voltar com outros olhos de moinhos mas quem tem coragem de ouvir estar aberto à experiência a grande roda da história caverna roda dos ratos chama como quiser hoje não para de escrever alguém desliga essa cachoeira chovendo nessa cama inunda mundo vasto no chão da figueira do poço do caminho.
68 devaneios
Um desejo de amor por todos que passam pela estrada do tempo salão misterioso
69 devaneios
Teu estranhamento me fez resgatar memórias de quando era não passar frio e só tento me fazer libertar memórias mas a cada passo um antes todo dia é recomeço e volto
70 devaneios
Suas pálpebras são pétalas A cada abrir de olhos Um desabrochar
71 devaneios
Quando olho Vejo mais que coisas Porque coisa é sempre uma ideia Um punhado de memórias
72 devaneios
Tirar a máscara das palavras Tirar as palavras da máscara Tirar as máscaras Materializar as máscaras para tirá-las Escolher as máscaras
73 devaneios
Só um gosto Rosto Traço Faço Resto Pode definir Um canto rosa Onde posso ser verde Meu corpo me rege E hoje me reconciliei com minhas mãos
74 devaneios
Se a saída é buscar expressão A palavra pode O olhar pode A não palavra pode E hoje é palavra e potência
Não devemos nada Nem ao deus E nem ao nada
75 devaneios
O mar é o vento das nuvens que caem do céu
76 devaneios
Habitar o nada Ter os pés como único ponto De partida e chegada Para a cartografia do teu cheiro Ponte de fuga Para esse sentimento sem Rasgo Risco Ruído Que fala para ser mais que teu
77 devaneios
Quantas formas encontro para te dizer o que ainda não teve lugar como palavra
A QUESTÃO DA LINGUAGEM Há tanto a dizer Que não lhe posso contar Momentos há Que não escuto o que está lá fora Porque o que está aqui dentro Grita O mar desfez-se O delírio não suportou E partiu-se ao meio A terra que a gente não pisa Um passo na terra desconhecida
78 devaneios
A gente vem daquilo que torna possível
79 devaneios
Invenção do tempo A vida sem filtros Atravessa a parede Escorre pelo silêncio Da tarde ensolarada Na casa escura Chega à noite da infância Onde ando pelo calor vaporoso Com cheiro de capim limão As reticências da existência são sinais de continuidade descontínua O que não se pode mudar pode ser transformado pelo pensamento Os símbolos que escolhemos para viver importam
80 devaneios
Não é porque as cartas estão abertas que se mostra o jogo
81 devaneios
Transbordo Transbordei o edifício Bordei infiltrações na vida Que deixou de ser alheia Na liquidez mais substancial Que o concreto Deixei ir um pouco de mim Pelo encanamento Levei à morada dos outros O que excede minha alma Desceu pela parede a vida dividida Dádiva dos sonhos Que querem ser sonhados juntos Nesse prédio de distâncias transpostas apenas pela água Nas calhas estragadas Encontram-se as histórias Que habitam o mesmo espaço Na manutenção dos espaços Encontram-se as histórias Que escorrem no tempo Escorrem no tempo As histórias que nos habitam
83 devaneios
83 devaneios
Poesia é tentar traduzir a alma Poesia é tentar traduzir o intraduzível
84 devaneios
Tentei escrever uma poesia Mas uma poesia não é escrita E sim escreve a si mesma E tem na poeta apenas o vetor de sua forma Porque a poesia é a vida da poeta Quando lhe escapa o controle Quando a transborda Como uma cascata llena
85 devaneios
Às vezes tenho a impressão de que a história que se constrói na vida é como o enredo de um livro, sendo o acaso um astuto e irônico escritor cujas palavras me são quase compreensíveis.
86 devaneios
Na curva que descrevem As lâmpadas na plataforma Vejo um universo em cada corpo Inacessível Nesse tempo de espera Passou Não passou Sinto algo se quebrando Dentro de mim
87 devaneios
O que falta no verso A imagem completa O que falta na imagem A palavra completa Não há completude Apenas vontade
88 devaneios
Primeira última hora Superfície de outra hora Espelha face nova Face velha em superfície nova Espelhará outra vida em boa hora?
89 devaneios
Tenho encontrado muitas portas Mas não consigo entrar Não sei se não tenho as chaves Ou se é meu corpo Que não está lá
LEMBRETE Entrei noite e saí dia Para quando eu não lembrar mais de mim Desenraizar Sou todas as coisas que deixei de ser Uma semente em cada lugar Saudade de ser o que não fui
90 devaneios
Viver aqui é como morar em um filme Dirigido por Tarkovsky Venta o cheiro da minha avó da lavanderia E todas as torneiras escorrem no tempo
91 devaneios
Acordei chovendo e desejando que fôssemos ano novo E fomos Consagramos a primavera em pleno outono O sagrado profano E as digitais de nossos dedos As folhas caindo lentamente No frio Desejo só o teu silêncio Falamos de outras formas Por teias de aranha Tão invisíveis quanto fortes Existe tanto entre o sim e o não Amar é habitar Escrevo Alimentada pelo amor que emana das palavras Quase inaudíveis Que reverberam das bocas Tua existência me inunda de palavras E eu as derramo
CARTOGRAFIA DOS AFETOS Por temporada Sinto os ventos E os tempos Me levando dali Preciso gerar movimento
92 devaneios
E no meu mapa pessoal O Rio de Janeiro fica ao lado do Uruguai
A contradição habita o ser A via da dúvida Veado Duto da vida Tranquila O tempo vivendo Uma outra vida Uma onda forte Fortaleza Estive no forte Tem um farol Em cima da minha cama Foi um artista que pintou Sonhar é muito forte Em todos os horários Uma casa de farinha Uma carta Um fuzil Não passa o movimento O quanto dói a vida Eu não tô achando esse lugar
93 devaneios
Um sentido segundo do inconsciente Um segundo universo Um segundo eternidade Pós-moderno é urinar na fonte de Duchamp Profanar o profano que foi levado ao templo Profanar o templo e o tempo Uma página em branco para continuar
94 devaneios
95 devaneios
Vertigem O resto do entardecer No entardecer do teu rosto O entardecer no teu rosto Encontro um livro para ter uma dedicatória E a cartografia do teu cheiro Dói admitir que te quero Deixar o tempo Um encontro com o acaso Um jorro Isso é sobre jorrar Sobre ganhar um desenho Do irônico escritor Uma chance de rever Tua presença enche uma sala E chove da caneta
Entendi tua mão Quando abri o livro Na hora certa Pintei o setembro Chegando em mim
96 devaneios
Gosto de falar das pessoas Como se fossem todas uma só E talvez sejamos mesmo As roupas que tu me trouxe de volta A caneta que esqueci Ou a vontade de deixar algo de mim Em que lapsos do tempo vamos Nossas vidas vão dobrar as equinas Será que ele já voltou? Hoje quase fui de novo Trazer para o agora
APAGAR ALGO QUE NÃO EXISTE Uns olhos grandes De onde vem um rosto O sol invade minha janela de improvisos todas as manhãs abaixo do sol não há nada Só uma linha cinza Acordo no céu E vou com as nuvens Aonde as palavras viram traços
97 devaneios
Dificuldade de guardar Preciso de tudo espalhado pelo quarto
FRAQUEZAS EXPOSTAS
98 devaneios
Não quero esconder nada Talvez só o explícito
Virar o corpo ao avesso Até que o óbvio passe a ser outra coisa Seguir em viagem Sem planejar
99 devaneios
Jogar sentimentos no papel E acolher o que vem
Em 6 semanas Como um rio no verão
100 devaneios
Dos sonhos diurnos Um poeta que transborda como a democracia acontecendo em praça pública
101 devaneios
Livrar é tornar livro
OS SONHOS NOS APONTAM CAMINHOS NA REALIDADE
102 devaneios
Segundo dia depois dos 25 E hoje me sinto sendo Que sonhos te despertaram essa manhã? Foram traços da mulher que me desenhou É homem e mora a meu lado Agora que sei disso Posso me reconciliar com meus joelhos É o que dizem minhas mãos e cores A vida imita o riso risco Rasguei Mas não deveria
103 devaneios
Quantas mulheres partidas ao meio Para que tu formes o que é homem Ainda sobre o tempo O tempo escolheu por nós E hoje faço anos E nem tu nem ninguém me alcançam Hoje nessa lacuna que habito Ando com uma estrangeira Que é com quem mais me identifico no agora Aquela casa de que não lembro a face
104 devaneios
O SONO É ONDE DESCANSO DOS MEUS SONHOS DIURNOS Um bom momento para lê-lo /paralelo Raios de sol Que me cegam Ou libertam Dependendo da posição das mãos Não sei o que é ainda Só sinto no trem Onde as pessoas passam sem perceber que casas estão sendo demolidas 41 anos desfeitos em alguns minutos Alguém pergunta por que Vila tronco cortado Aqui sentada Do lado da caixa de som Que não funciona Não sei conectar os cabos Nem as frases Que têm o mesmo compasso Dos passos do trem Artista não é adequado Para falar de urbanismo E tu não vives a cidade?
105 devaneios
Só um perito pode Vou virar pássaro Pena por pena Solicitando Só lhe chamando Sol incitando Sol ri dente Dente de leão Poeira e ventania Pena Proteção Leveza Sopro Vontade (im)permanência Abri um portal no meu braço A felicidade Sol dói Stay
Este dia tem 80 mundos Oi de um poeta Esperito O corretor cansou de trabalhar Patingas Mono Que pode ser um Ou macaco Depende do mundo que tu escolhe No instante do som O tempo do outro Preciso aprender alemão A ler mão A ler mãe A lei não escrita J.C. só que Julio Cortázar
106 devaneios
Eu quero é que esse risco torto feito água jorre a carne de vocês
107 devaneios
Jogo de cena Movimento de luz e sombra Acesso tua luz quando me fala das tuas sombras Como barco à vela e fogo As coisas me dizem do que derramo Minha boca me conta do que temo E hoje sinto em cores e números e desejo ser um fora Dividir paredes e ser abraços Perder-me nos outres Poros é pai de Eros Poros é pai do amor Amor é filho da pele
Nascer é migrar Deixar o corpo da outra E passar a habitar o próprio corpo barco Somos feitos matéria trama Ter maturidade suficiente para falar como uma criança
108 devaneios
Entreguei para o mar Ter asas nos olhos Partir quando tudo diz para ficar Ficar quando tudo diz para partir Ficar quando tudo diz para ficar Partir para poder ficar Ontem virei rosa verde Abriu os caminhos Verde e branco Silêncio É sempre silêncio Esse fim recomeço Sinto-te no estômago
A ESCRITA É O SOM DO SILÊNCIO A rosa do nome Desenhos de leão O peso de ver
109 devaneios
O cheiro da verdade O cheiro da saudade Quantas memórias Saem de caixas e seis cheiros Cheiro de arruda na orelha A América latina é um coração Para ver de uma cama de feno
SENTIR O SILÊNCIO VERBORRAGIA
110 devaneios
A vida só é um jogo na superfície não infiltrada A complexidade está submersa Esperando qualquer iminência de transborde São portas esperando para serem abertas
111 devaneios
Volar ao invés de voltar
A gente vai morrendo E para de fugir do que tem que fazer E hoje as coisas são só coisas E pessoas que enxergam pelos poros saem à rua Entrelaces de tempos
113 devaneios
Saber ser areia e água Para ficar e passar ao mesmo tempo Outro tempo vai chegar Os lugares cospem em nós Mas a vida pede outros A geografia veste os corpos
115 devaneios
Compartir ao invés de controlar Voltando do ano novo O ano novo é um lugar e distâncias podem ser transpostas pelo pensamento
DESBORDE O mapa da abundância Em uma flor deserta de ilha Uma poesia inteira de vida Um vento de transtorno Toque na pele 400 velas cheias de dentes Plástico e evasivo O que uma pessoa tem dentro é de muitas Multidão solitude Vai em frente
116 devaneios
Adelante Passos a mais no distante Não fui náufrago Horizonte
PELE TEM MEMÓRIA E TAMBÉM TEM OLHO Estamos metidos debaixo da terra Cavando tocas toras torres Somos subterrâneos E desérticos Precisamos emergir Conquistar a superfície Escoar e infiltrar Voltar, mas voltar a si mesma
117 devaneios
Uma amora colorida do dia Um jeito amável de dizer não E essas vidas vão todas passando Poissando por mim Sem nenhuma me deixar Sou eu o aquário Vão somando-se ao caminho Escrito no escuro Quem sou eu então Se não a luz do dia Silêncio que se vê
118 devaneios
PORVIR Imagem antes da palavra O que acesso antes Um barco procurando pelo mar Imagens do inconsciente desvendadas O que é o inconsciente então A materialidade Sonho com o depois
119 devaneios
Círculo vicioso Caetano Veloso Pavão misterioso O tamanho do toque O peso do tempo O cheiro da saudade A saudade do cheiro O cheiro do toque O tamanho do tempo O dançante de flamenco Escreve o destino com os pés Suas passadas são histórias Contadas desde o futuro
120 devaneios
MARIPOSA Amor recíproco É como uma borboleta Escrito em árabe Hoje vi um deus Na esquina de um labirinto Ele escrevia em árabe E me ensinou como se desenha o amor O quão grande foi esse instante eternidade Só minhas lágrimas podem dizer Água para correr da polícia Como quero viver Já não posso não ser o que sou Para isso Dar adeus ao que fui Minhas mãos vão ter que entender Olhos doem Pedem cura Curação
121 devaneios
Uma estrada sinuosa Que leva a um lugar desconhecido À abstração do que somos Não somos mais o que fomos Aqui ninguém chegou ainda Nem eu Nem meus fantasmas Muito menos tua ausência Se nossas paredes fossem de vidro Acho que tenho sido de vidro no rosto Madeira no peito E concreto no quadril Lágrimas choradas ao revés Andei en bicicleta pela calle vidrio Três voltas e mais Um labirinto Eu ainda não sei quem vocês são Mas sinto todos em mim
CORPO LABIRINTO IMERSIDÃO
122 devaneios
O toque quebra o espelho Porque define o contorno Definimo-nos no encontro Vago guidão da incompletude
123 devaneios
DESTRINCHAR As lacunas Fazer a pedra chorar Encontrar o entre dos pactos Os históricos de tentativas de ser Às vezes a gente quer ir adiante Mas os sapatos dizem que não O teclado A janela fechada A casa inteira grita Para ir mais devagar O acaso dando as cartas Três miradas antes de ir embora E a desmemória
124 devaneios
A expressão mais imediata Explicitar o óbvio que ninguém admite Essa língua que não falo A minha própria A língua do não dito
125 devaneios
LABIRINTO O inverno desse ano parece mais próximo do inverno do ano passado Do que do verão desse ano E assim seguem os anos Sempre cíclicos Apesar de todas as convenções Nessa terça-feira me descobri costureira de almas Costuro cicatrizes Quero bordar a pele feito tatuagem E curar as dores de passados borrados E tão vivos porque não lembrados Sou água Mesmo sem saber No uso de meus objetos desobjetificados Evoco vidas em cada toque-passo Sou o percurso de um rio E hoje minha enseada tem sinais de evaporação
LEMBRO DE UM DIA SABER Em minha cama soletrada Colocar os pés no chão de lodo Que caminhos são todos esses que abro Numa sociedade castrada Reprimida Vigiada A verdade pertence aos sonhos
126 devaneios
Renascer para uma linguagem sem palavra
Trabalho armadilha Na efemeridade do agora A realidade é absurda Fruto de vidas soterradas sem lembrança Recalcadas
127 devaneios
A verdade habita os sonhos E buscar decifrá-los é um ato político Que reivindica uma materialidade menos absurda Uma civilidade que não seja baseada em violência
128 devaneios
Narrativas de ciclos cotidianos Aprendo e invento táticas para sair desses lugares de inferioridade que ainda tentam impor Recorro ao fazer com as mãos Ainda que em tentativas irregulares E a gente tem que ser forte 20 vezes para ser o que é Tem que ser forte até para poder ser fraca Sem que todo mundo pise em cima
129 devaneios
Nasci vermelho sangue Como toda gente que nasce nessa terra Que para mim é água Renasci verde De segunda mãe céu Decompus e me descobri amarelo e azul Essas cores que me davam dor de estômago De culpa de ser o que sou Então sorri
PALAVRA LUZ
130 devaneios
Linguagem luminescente Invenção de linguagem Invenção de si Tenho um corpo sem palavra Um corpo silêncio Que fala sem dizer E por isso potente Porque diz sem pedir permissão Não é um corpo que nega a palavra A palavra apenas não é suficiente É um caminho Uma resposta Uma maneira de dizer Porque existem muitas formas Que só cabem numa linguagem expandida
Catedral da miséria humana Expansão e desmonte Sístole e diástole A diversidade é menos fácil de controlar O mapa do mundo numa xícara de café O comportamento da forma Um corpo escada Resistir ao tempo Organizar é uma forma de arte
131 devaneios
Criar conceitos de formas mais abrangentes de manutenção da vida Fazer o recorte mais abrangente possível Até que o espaço privado possa ser atravessado pela criação
ARTE É SOBRE ACESSAR UM ESPAÇO SEM DOMÍNIO
132 devaneios
A córnea é a esquina do corpo Trégua interminável Prolongada entregada Trajetória Quelícera Onde te vejo Capaz de amor
133 devaneios
Talvez se pudéssemos escrever da direita para a esquerda De cima para baixo De um lado para o outro Incluir símbolos Traços E desenhar no meio No entre No início E se o início fosse no meio O meio no fim E o fim não acabasse Talvez assim Seríamos mais livres de nós mesmos
São questões que a matemática não resolve Somos uma maioria numérica E uma minoria em espaços de poder Essa conta não fecha
134 devaneios
Repetidas situações de embate entre mulheres É possível um lugar onde não sejamos rivais? Reinventar o gênero e o amor
Não competir pelos homens que amamos Amá-los E amar-nos umas às outras Vão aumentando os tamanhos do mundo E às vezes desconfio do escrever Das dimensões totalizantes Como reescrever?
135 devaneios
Se desconfio do escrever Não desconfio do devanear Língua de abrir caminhos
3 POSSIBILIDADES DE CRIAÇÃO DO CORPO feminismos, gênero e arte
FIGURA 1 – Marcha das vadias. Fonte: arquivo pessoal, Ariane Oliveira, fotografia analógica 35 mm, dimensões 18cmx21cm, Porto Alegre, 2014.
Ao acaso e em tentativas de situar os pés no agora, procuro as letras de uma existência pequena, que não se via, mas que queria fazer-se vista. Essa existência aos poucos, cresce na direção da luz do sol em uma língua menor, trabalho menor, arte menor, que vai se fazendo grande em agenciamento de fluxos (ROLNIK, 2016). Desde o pequeno, desde uma existência invisível, imperceptível a olhos não atentos, vai fazendo-se forma, letra, palavra, pó e som. Dor é engano. Essas existências pequenas querem fazer ver afetos. Quero evitar o esquecimento. Só o que não pode ser lembrado é
inesquecível, me ensinou Agamben (2007). Habito a linha tênue entre realidade e sonho, procuro esse entre: o invisível nas coisas. Habito um estado intermitente de sonho escarlate. Escrevo em cores. As palavras se perdem no tempo. As palavras percorrem o tempo em que escolhem chegar ao meu corpo para fazerem-se gesto. A poesia me permite dizer que o tempo não existe. O tempo linear do relógio é uma ficção que organiza a produção capitalista. Procuro o tempo cíclico de uma sensibilidade sem dominação. O inverno de 2015 pareceu mais próximo do inverno de 2016 do que do verão daquele ano. Assim seguem os anos. Sempre cíclico, apesar de todas as convenções. As palavras também são inventadas, então que inventemos palavras férteis. Talvez a ficcionalidade e a reinvenção das palavras não evite que elas se percam. Para que as palavras encontrem onde pousar, perdidas, ou não, talvez apenas precisadas (de precisão, no sentido de um gesto certeiro e no de uma necessidade grande) de um papel em branco onde possam descansar, carrego sempre um caderno. Hábito que me permite coletar afetos quando eles me chegam em palavras.
Figura 2 – Arcos do tempo ou pôr do sol nos cabelos. Fonte: arquivo pessoal, Ariane Oliveira, fotografia analógica 35 mm, dimensões 10cmx15cm. Salamanca, Espanha, 2015.
A primeira luta feminista talvez seja pelas próprias palavras e se dê nos seios ou nos peitos não censurados da multiplicidade subversiva do que é ou pode vir a ser (devir) mulher (BUTLER, 2017). Acessar folhas de papel como quem constitui um espaço de subjetividade pode ser a ação dos primeiros passos rumo a resistir à desumanização e a reconstruir o mundo como espaço de criatividade e de cuidado (FEDERICI, 2013). Esse é um longo caminho a ser percorrido. Percurso de gerações, que excede o tempo das vidas. Um trabalho contínuo de mulheres (DAVIS, 2017, apud LORDE, 1988).
Figura 3 – 8 de março de 2018. Fonte: arquivo pessoal, Ariane Oliveira, fotografia analógica 35 mm, dimensões 21cmx19cm, Porto Alegre, 2018.
Cecilia Almeida Salles, doutora em linguística aplicada e autora do livro Gesto Inacabado, que foi referência para as experimentações em escrita de si, junto à professora e atriz Mirna Spritzer, propõe a possibilidade de estudos genéticos como investigação que vê o trabalho de arte a partir de sua construção. Conforme a autora: O foco de atenção é, portanto, o processo por meio do qual algo que não existia antes, como tal, passa a existir, a partir de
determinadas características que alguém vai lhe oferecendo. Um artefato artístico surge ao longo de um processo complexo de apropriações, transformações e ajustes. O crítico genético procura entrar na complexidade desse processo. A grande questão que impulsiona os estudos genéticos é compreender a tessitura desse movimento. (SALLES, 1998, p. 13). Nesse momento, seguindo os passos da pesquisadora, proponho-me a fazer um estudo genético do trabalho para o qual me dedico desde que me inventei artista e fui inventada, no contexto de visibilidade das reivindicações feministas. Assim, investigo a escrita poética que gera imagens, gestos e objetos na tentativa de traduzir afetos que ainda não têm nome. Cecília Salles “opta por denominar o objeto de estudo do crítico genético documentos de processo” (SALLES, 1998, p. 17). Em suas palavras: Pode-se dizer que esses documentos, independentemente de sua materialidade, contêm sempre a ideia de registro. Há, por parte do artista, uma necessidade de reter alguns elementos, que podem ser possíveis concretizações da obra ou auxiliares dessa concretização (SALLES, 1998, p. 17). Estou tentando registrar o caos para organizá-lo e entregá-lo aos olhos de leitoras(es) outra vez como caos, para que elas(es) possam olhar para o seu próprio caos ou organização interna. “Um diário, por exemplo, lembra Klee (SALLES, 1998, p.20, apud KLEE, 1990, p. 74), não é uma obra da arte, mas uma obra do tempo”. Pode-se, portanto, afirmar que esses documentos guardam o tempo contínuo e não-linear da criação” (SALLES, 1998, p. 20).
Em aula, em meio à pandemia, Mirna Spritzer propôs a pergunta: “Como encontrar a própria voz? escrever é dar a ver-se mostrar ao outro o próprio rosto fazer aparecer o seu rosto perto do outro” (registro de aula que partiu das palavras de Spritzer, quando citava a escrita de si de Foucault...) E propôs outras perguntas: “Quem é que tá falando? De onde tá falando? O que tá falando?” Uma pesquisadora em artes visuais, mulher feminista (branca, cis), que fala, desde a Universidade Pública, sobre desejos e políticas dos corpos. Outra pergunta foi proposta: “Na minha escrita de si quem escreve comigo?”
Respondi em silêncio ao caderno: as outras que fui a linha e a agulha o pincel os pigmentos que encontro no cotidiano as minhas avós
a máquina de costura
Em um encontro do Grupo de Pesquisa Poéticas da Participação1, vinculado ao Programa de Pós-graduação em Artes Visuais na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, em que discutíamos lugar de fala (RIBEIRO, 2017), a professora Cláudia Vicari Zanatta perguntou: “O que a gente tá querendo?” —Fazer um lugar no discurso para reivindicar o acesso à vida digna pode ser uma primeira e necessária resposta. Este livro permite a livre escolha do percurso de leitura por quem nele decide envolver os olhos e as mãos. As palavras que aqui existem buscam fazer a profundidade da modulação dos afetos emergir à superfície de escrita em gesto de (sub)verter: verter de dentro para fora, sendo o dentro, dentro do corpo, e o fora, o corpo social (BUTLER, 2017). Buscar no indizível o dizível refeito e registrar o que antes não se podia dizer para aumentar as possibilidades do dizível, como o vento na pele da alma, onde sinto uma lágrima em rio, parte do transcurso da história. 1
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Há algo a se desvendar na palavra aparente. Essa escrita teve início com inquietações em relação às palavras. As palavras nem sempre me pareceram dizer o que realmente queriam dizer. Essa inquietação me atravessava quando notava a distância entre o que diziam as palavras e o que diziam os corpos. Faces vazias de palavra tantas vezes me despertaram poesia. Aprendi a ler expressões faciais mais do que a ouvir palavras e depois aprendi a escutar e não apenas a ouvir.
Figura 4 – Vertigem. Fonte: arquivo pessoal, Ariane Oliveira, fotografia analógica 120 mm, dimensões 6cmx6cm, Fortaleza de Santa Teresa, 2015.
Para algumas formas de existência, o primeiro significado das palavras e das coisas é o suficiente. Para essas vidas, a materialidade e sua correspondência em palavras basta e qualquer possibilidade que exceda essa correspondência tende ao ridículo. Essa escrita quer dar lugar às existências que ocupam linguagens abertas e se ocupam de inventá-las, porque para essas existências a materialidade pode ser poética. Foucault, no texto As palavras e as coisas, coloca que: O mundo é coberto de signos que é preciso decifrar, e estes signos, que revelam semelhanças e afinidades, não passam, eles próprios, de formas da similitude. Conhecer será, pois, interpretar: ir da marca visível ao que se diz através dela e, sem ela, permaneceria palavra muda, adormecida nas coisas. (FOUCAULT, 2000, p. 44). Michèle Petit, antropóloga e pesquisadora de nacionalidade francesa, muito atuante em projetos literários situados na América Latina, nos ensina sobre a importância da transmissão cultural: [...] evocando a maneira como a leitura podia reavivar a interioridade, impulsionar o pensamento, relançar uma atividade de construção de sentido, suscitar trocas; relembrando que a linguagem e a narrativa nos constituíam; mas também mostrando que uma dimensão tão essencial quanto “inútil” devia associar-se à vida de todos os dias; e celebrando o imaginário. (PETIT, 2019, p. 11). Pois comecemos pelo óbvio: um sujeito que vive sozinho é aquele que acredita que o que ele pensa e sente é óbvio e deve ser adivinhado, acatado e engolido pelos outros. Não por acaso esse sujeito está no masculino, porque é personificado pelo homem, branco, heterossexual, cisgênero, pertencente à elite. Persona que cola e gruda, nas palavras de Rolnilk (2016). “O falso herói, para se
persuadir de que foi muito longe, de que paira muito alto, olha sempre para trás, para os pés; despreza, acusa, oprime, persegue, tortura, extermina” (BEAUVOIR, 1970, p. 258). Gosto de pensar que a persona deste ser está em vias de desmaterialização, por mais que a macropolítica indique o oposto. A filósofa Simone de Beauvoir, no livro O segundo sexo: fatos e mitos , que teve sua primeira edição no ano de 1949, afirma sobre as mulheres que: Em quase nenhum país, seu estatuto legal é idêntico ao do homem e muitas vezes este último a prejudica consideravelmente. Mesmo quando os direitos lhe são abstratamente reconhecidos, um longo hábito impede que encontrem nos costumes uma expressão concreta. Economicamente, homens e mulheres constituem como que duas castas; em igualdade de condições, os primeiros têm situações mais vantajosas, salários mais altos, maiores possibilidades de êxito que suas concorrentes recémchegadas. Ocupam na indústria, na política etc, maior número de lugares e os postos mais importantes. Além dos poderes concretos que possuem, revestem-se de um prestígio cuja tradição e educação da criança mantém: o presente envolve o passado e no passado toda a história foi feita pelos homens. No momento em que as mulheres começam a tomar parte na elaboração do mundo, esse mundo é ainda um mundo que pertence aos homens. (BEAUVOIR, 1970, p. 14) Depois de 71 anos da publicação do livro, marco significativo para o feminismo, ainda que se tenha avançado muito no tocante às possibilidades do ser, do deixar de ser e do vir a ser mulher, e à teoria feminista, inclusive na problematização de sua base epistemológica europeia e branca, a condição legal desigual das mulheres e os
costumes sociais que limitam seus processos de construção subjetiva ainda são uma realidade. Deparar-se com as interdições do discurso é uma realidade cotidiana. Contudo, quando uma mulher passa a exercer o poder da fala, descobre que os homens (cisgêneros, heterossexuais, brancos, pertencentes à elite) também temem o poder e o sustentam por costumes violentos: vontade de manter seus privilégios e medo das instabilidades subjetivas que pensar sobre a performatividade do que se entende socialmente como masculinidade podem gerar. Os temas deste livro são a escrita feminista e o trabalho de arte feminista, a partir de uma prática poética pessoal, que se entende aqui como arte menor, porque historicamente os trabalhos de arte feitos por mulheres foram entendidos como arte menor, sendo classificados como amadores e de menor importância, sofrendo com apagamentos e dificuldades de legitimação no sistema da arte (VICENTE, 2012). Coloca Loponte: Não há uma “história da arte das mulheres”, há histórias, recortes, fragmentos descontínuos, silêncios, ausências, algumas veredas, “veredazinhas”. As mulheres artistas no Brasil habitam as margens e as notas de rodapé de uma história da arte oficial, herdeira de uma historiografia ocidental, carregada de cânones construídos a partir de um ponto de vista masculino. Que histórias são possíveis? Quem se interessa por uma história da arte das mulheres? Quem se importa? Quem escuta? E, mais ainda, quem quer narrar essa história? Vou lhe falar. Do que não sei. Ninguém ainda não sabe. (LOPONTE, 2008, p. 14) Roberta Barros, no livro elogio ao toque, tece considerações sobre como o trabalho The Dinner party, da artista norte-americana Judy Chicago foi capaz de suscitar questões de gênero ao colocar no museu o que seria entendido como arte inferior:
Colocar uma mesa de jantar no centro da sala de exposições foi subverter os valores da cultura Ocidental, concedendo importância vital ao serviço doméstico, ao espaço da casa, ao que era visto como o lugar do feminino. Desse modo, a obra tentou forçar a entrada da mulher no espaço público da estética, do museu, da instituição da arte, que, acreditava-se, os homens teriam dominado por meio da exclusão da cultura feminina, sob o rótulo de “arte inferior” ou artesanato. Ao dar protagonismo para a cerâmica, o bordado e a pintura chinesa, técnicas historicamente menosprezadas como “femininas”, a artista pretendia contaminar o domínio da arte erudita e acabou por colocar de forma explícita o debate sobre as questões de gênero em uma posição de evidência no cenário artístico norte-americano, o que, por exemplo, nunca se experimentou no nosso contexto artístico brasileiro. (BARROS, 2016, p. 67) Em conversa sobre a pesquisa em processo, a professora e historiadora da arte Daniela Kern2, que coordena o projeto de extensão Arte e Feminismo, junto à professora e artista, Lilian Maus; pontuou que este trabalho de Judy Chicago foi recebido por parte da crítica como sendo essencializante das divisões dos papéis de gênero, conforme os objetos atribuídos a um fazer definido como feminino. De outro modo, entendo que essencialista é a forma como a sociedade distribui desigualmente os papéis de gênero e atribui valores diferenciados às práticas atribuídas ao gênero. O que a artista realizou com o trabalho foi, por meio da ironia, deixar explícitos os objetos que historicamente não foram considerados arte por serem socialmente atribuídos a tarefas de responsabilidade das mulheres, não por uma escolha livre, mas atrelados à compulsoriedade cultural de tornar-se mulher, que implica na autorização do uso de 2
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determinados objetos, em detrimento de outros, atrelados a funções atribuídas culturalmente ao que se entende como masculino. Um homem não pode bordar? Um homem não pode arrumar uma mesa de jantar? Um homem não pode existir em um corpo que carregue um órgão sexual não-fálico? Ou ele apenas também deve seguir uma série de normas, às vezes sutis e não escritas, muitas vezes impostas pelas violências física e psicológica, que o proíbem de praticar determinados gestos, e sempre os mesmos? Se a artista colocasse ferramentas sobre os pratos, seria alterado o sentido do trabalho? “[...] que é uma mulher?” (BEAUVOIR, 1970, p. 7), pergunta Beauvoir, na introdução de O segundo sexo. A autora afirma que “Se hoje não há mais feminilidade, é porque nunca houve” (BEAUVOIR, 1970, p. 8). Para tentar narrar a história das mulheres na arte, é preciso questionar as divisões do que se considera arte erudita e arte menor, e também buscar relacionar essas divisões aos papeis de gênero. No artigo Bordado e transgressão: questões de gênero na arte de Rosana Paulino e Rosana Palazyan, a socióloga Ana Paula Simioni, lembra que “Na tradição ocidental, as artes aplicadas ocupam um espaço inferior desde o início da montagem da história da arte enquanto disciplina” (SIMIONI, 2010, p. 3). Essa questão é referente ao período do Renascimento, especialmente aos estudos de Giorgio Vasari, que formulou as categorias da moderna história da arte. Vasari associou a atividade artística ao trabalho intelectual, diferenciando-o do trabalho manual vinculado ao artesanato, que passou a ter um sentido negativo em seu discurso. Simioni pontua que a diferenciação traçada por Vasari agravou-se com a criação das academias de arte, principalmente a partir do século XVIII. Conforme a autora: As artes aplicadas eram ainda associadas ao estigma do trabalho feminino. Em parte isso se explica pelo fato de as artistas terem sido excluídas das Academias. Em nome da
pudicícia, vetou-se às mulheres o acesso aos estudos de modelo vivo, que eram monopólio de tais instituições. Consequentemente, elas foram obstaculizadas de realizarem os gêneros artísticos superiores, como a pintura de história ou os retratos (NOCHLIN, 1973; CHADWICK, op.cit). Com isso, estavam aptas apenas a criarem o que então se convencionou denominar de gêneros “menores”: as miniaturas, as pinturas em porcelana, as pinturas decorativas (vãos, esmaltes etc), as aquarelas, as naturezas-mortas e, finalmente, toda a sorte de artes aplicadas, particularmente as tapeçarias e bordados. (SIMIONI, 2019, p. 5) Desse modo, propõe-se a ressignificação do termo arte menor para pensar a arte feita por mulheres e maiorias minorizadas como potência de questionamento do sistema da arte e do machismo estrutural na sociedade. A ressignificação do termo arte menor se dá em relação ao conceito de literatura menor, segundo o qual, nas palavras de Deleuze e Guattari (2014, p.35), “uma literatura menor não é a de uma língua menor, mas antes a que uma minoria faz em uma língua maior”. Segundo os autores: As três características da literatura menor são a desterritorialização da língua, a ligação do individual no imediato-político, o agenciamento coletivo de enunciação. É o mesmo que dizer que “menor” não qualifica mais certas literaturas, mas as condições revolucionárias de toda literatura no seio daquela que se chama grande. (DELEUZE; GUATTARI, 2014, P.39) Para isso, é preciso “achar seu próprio ponto de subdesenvolvimento, seu próprio dialeto, seu próprio terceiro mundo, seu próprio deserto” (DELEUZE; GUATTARI, 2014, p. 39). Assim, faz-se preciso pensar mulher como sujeito em (des)construção-devir, porque ao mesmo tempo em que são questionados os cânones da arte, também são questionados os papeis atribuídos ao gênero. Conforme Butler:
Se há algo de certo na afirmação de Beauvoir de que ninguém nasce e sim torna-se mulher decorre que mulher é um termo em processo, um devir, um construir de que não se pode dizer com acerto que tenha uma origem ou um fim. (BUTLER, 2017, p. 69) Os trabalhos de arte que realizei ao longo dos anos de 2015 a 2020 constituem-se como processos experimentais de invenção de linguagens de si e também de intervenção “naquilo que a linguagem constitui como o domínio imaginável do gênero” (BUTLER, 2017, p.30). A escrita articulada às fotografias e os trabalhos experimentais em desenho, pintura, bordado e instalação constituem matéria de expressão para a pesquisa sobre as possibilidades do desejo desde uma posição feminista. Espaço poético para um devir mulher fundado no desejo.
Figura 5 – Entre o passado e o futuro. Fonte: arquivo pessoal, Ariane Oliveira, fotografia analógica 35 mm, dimensões 18cmx21cm, Porto Alegre, 2014.
A questão que permeia o livro é a invenção de uma língua para articular a prática poética a questões concernentes às lutas feministas, como a reivindicação por condições dignas de trabalho e a possibilidades de inserção social do trabalho de escrita e de arte feito por mulheres. Do movimento operário que enfatiza a centralidade das lutas por autonomia dos trabalhadores dentro da relação capital-trabalho, aprendemos a importância política do salário como instrumento organizativo da sociedade e de sua necessidade como palanque para minar as hierarquias dentro da sociedade de classes (FEDERICI, 2013). Enquanto trabalhos feitos por mulheres continuarem a ser considerados amadores, seus temas continuarão sendo relegados a questões de menor importância ético estética, política e discursiva. Cabe situar que as palavras que agora tomam a forma de um livro, nesta pesquisa, começaram sua trajetória rumo à existência em 2009. São 12 anos de estações incertas do desejo e seu conflito com o óbvio, que deságua em poesia. O que são 12 anos na história recente dos povos? Quem são os povos? A academia se pintou de povo? O conhecimento não pode ficar restrito a uma pequena elite. Como fazer a academia sair de seus muros? Conforme Ferreira, Sito e Rodrigues: O processo de implementação de Ações Afirmativas no Ensino Superior intensificou-se no ano de 2001, com a participação dos Movimentos Sociais na III Conferência Mundial de Combate ao Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata, realizada entre 29 de agosto e 08 de setembro de 2001, em Durban, na África do Sul. O Brasil foi signatário do Plano de Ação de Durban, responsabilizando-se, assim, na realização de ações que diminuíssem a desigualdade racial no país. Desde essa conferência, houve uma grande mobilização para que as universidades brasileiras discutissem seu papel diante das
desigualdades sociais e étnico-raciais na sociedade. Em meio a essas discussões, questões como esta foram apontadas: pode continuar a universidade a questionar e criticar a sociedade quando ela mesma está assentada em números alarmantes de exclusão social e étnico-racial? (FERREIRA; RODRIGUES; SITO, 2008, p. 119). Para Kafka, “a literatura é a tarefa do povo ” (DELEUZE; GUATTARI, 2014, p.37, apud KAFKA, 1911, p.181). Proponho-me a escrever como Kafka, à maneira de uma mulher. Sobre as intensidades de Kafka, escrevem Deleuze e Guattari (2014, p. 16), “Acreditamos apenas em uma experimentação de Kafka, sem interpretação nem significância, mas somente protocolos de experiência: ‘eu não quero julgamento dos homens, só busco propagar conhecimentos, contento-me em relatar;’” A linguagem crítica perpassa o texto Kafka por uma literatura menor, de Deleuze e Guattari, mas ainda é o homem universal quem escreve, julga e fala. A escrita feminista não precisa renunciar ao que foi dito e escrito pelos homens, mas precisa reescrever com suas palavras e afetos. O que se constitui como caminho, processo e resultado destas inquietações se manifesta nesta pesquisa sob a forma de um livro de poesias em versos livres, afetos que encontraram rotas de saída. O livro constitui um corpo de trabalho, “corpo saturante que faz surgir o conjunto, e que quebra a estrutura simbólica [...]” (DELEUZE; GUATTARI, 2014, p.16).
Figura 6 – Estudo sobre o desejo. Fonte: arquivo pessoal, Ariane Oliveira, pintura em aquarela e café, dimensões 29,7cmx42cm, Porto Alegre, 2018.
Figura 7 – Pontes de dentro. Fonte: arquivo pessoal, Ariane Oliveira, fotografia analógica 35 mm, dimensões 10cmx15cm, São Francisco de Paula, 2015.
A vontade das palavras articuladas às imagens é encontrar saídas do mundo construído sobre preconceitos de gênero, raça e classe. Infiltrar suas cascas e peles. A escrita é atravessada por afetos e desejos, sem intervenções de uma racionalidade destituída de sensibilidade: uma fissura no que deve ser reto e perfeito para dar lugar ao que é, ao que germina quando uma pessoa se coloca em estado de permissão e experimentação com o corpo e com as palavras para encontrar as palavras do corpo e fazer corpo de palavras. Dar-se às existências imateriais, da não utopia do corpo à utopia de um corpo imaterial para chegar ao corpo utópico. Meu corpo é o lugar sem recurso ao qual estou condenado. Penso afinal, que é contra ele e como que para apagá-lo que fizemos nascer todas as utopias. A que se deve o prestígio da utopia, a beleza, o deslumbramento da utopia? A utopia é um lugar fora de todos os lugares, mas um lugar onde eu teria um corpo sem corpo, um corpo que seria belo, límpido, transparente, luminoso, veloz, colossal na sua potência, infinito na sua duração, solto, invisível, protegido, sempre transfigurado; pode bem ser que a utopia primeira, a mais inextirpável no coração dos homes (das pessoas, grifo meu), consista precisamente na utopia de um corpo incorporal. (FOUCAULT, p. 8, 2013). Busco percorrer o corpo para encontrar a vida que o habita. A vida é uma escada infinita, um livro infinito, um universo de estrelas perdidas, o amor. Se viver é uma multiplicidade, por que escolher ser uma identidade única? Porque de só já basta a solidão de ser uma(e/o) deslocada(e/o) e conexa(e/o). Preso(a/e) ao próprio corpo. Corpo liberto ou liberta(e/o) do corpo pelas palavras? E se o lugar é o corpo? Como cartografar os afetos? Todos os corpos perecem, então a saída pode ser encontrar beleza no perecimento. Recuperar o envelhecer como forma de manter-se viva(e/o).
Construir pontes entre imagens e palavras e também entre campos diversos do conhecimento. Recuperar o gesto para lembrar que palavra também é trabalho manual.
Figura 8 – Palavra é um material poroso. Fonte: arquivo pessoal, Ariane Oliveira, estudo em nanquim e grafite sobre papel, dimensões 59,4cmx84,1cm, Porto Alegre, 2018.
Em 2013, pensava sobre a ironia da coerência dos discursos conservadores. A ideia de destruir, matar, exterminar grupos e formas de existência para proteger a família, o cidadão de bem, os bons costumes de um senso comum antidemocrático. Pensava também sobre como a estrutura dominante penetra os corpos e seus inconscientes. Passei a percorrer meus sonhos para tentar subverter lógicas opressoras. Recuperei uma câmera analógica para falar com imagens. Esse processo de decidir posicionar o olhar sobre o mundo é atravessado por medos e inseguranças. Sinto meu corpo vulnerável às forças do
mundo. Assim me reconheço na escrita de Suely Rolnik, no texto Cartografia Sentimental (ROLNIK, 2016). O poder do olhar ainda é privilégio dos homens, brancos, cisgêneros, pertencentes às elites. Operar nos regimes do discurso e do olhar, enquanto mulher feminista, que busca analisar as relações de poder que perpassam as tecnologias do discurso e da visualidade é tentar desestabilizar, por dentro da linguagem, os papéis de sexo e gênero construídos socialmente, como sugere Judith Butler, em Problemas de Gênero (BUTLER, 2017).
Figura 9 – O mundo e suas falsas metades. Fonte: arquivo pessoal, Ariane Oliveira, fotografia analógica 35 mm, dimensões 10cmx15cm, Porto Alegre, 2013.
4 TRABALHO EM arte FEMINISTA
Figura 10 – Imanência e Transcendência. Fonte: Exposição Corpo Caminho, Ariane Oliveira, desenho em aguada, 84,1cmx59,4cm, Fotogaleria Virgilio Calegari, Casa de Cultura Mario Quintana, Instituto Estadual de Artes Visuais (IEAVi), Porto Alegre, 2017-2018.
Partindo da vontade de pensar com o corpo, busco retomar a potência da imagem dos corpos lidos como mulheres em suas múltiplas possibilidades (TIBURI, 2010). Teço linhas dentro de um labirinto de memórias e mergulho. Submerjo em outros corpos para construir paredes e bordas, encontrar as margens do que sou. Construí um refúgio entre fotografias, desenhos, pinturas e bordados livres. Figuras-barco para labirintos inundados.
Na vontade de trançar sentidos com os fios que encontro pelo caminho, é que busco registrar memórias de quem encontro. Aprendemos o cuidado com o outro e o derramamos inteiro sem guardá-lo para nós mesmas. Entre linhas tênues, fios de lã, de bordado e de costura, é possível fazer crescer o cuidado distribuído entre as possibilidades do gênero?
Figura 11 – Sobre o não querer falar. Fonte: arquivo pessoal, Ariane Oliveira, Tenerife, fotografia analógica 35 mm, dimensões 10cmx15cm, 2016.
Cortar o fio do ressentimento e passar a tecer fios de desejo no trabalho labiríntico de não retorno – transformação e transbordamento das novas linhas vitais e libidinais (GAGNEBIN, 2009). Deixar o caminho do outro e tecer o próprio caminho miragem, tendo no outro um encontro de possibilidade de costuras de caminhos e travessias. Paul Preciado, no prefácio do livro Esferas da Insurreição: notas para uma vida não cafetinada , afirma que:
A revolução não se reduz a uma apropriação dos meios de produção, mas inclui e baseia-se em uma reapropriação dos meios de reprodução- reapropriação, portanto, do “saber-docorpo”, da sexualidade, dos afetos, da linguagem, da imaginação e do desejo. (PRECIADO, 2018, p. 15). Rasgo a razão do verso. Faço corpo espaço sem palavra para poder despir o corpo das palavras que já existem. Entre escritos, fotografias e tentativas tridimensionais, o que mais fiz nesses anos de experimentações em artes visuais foi desenhar corpos em sua nudez, entre o sofrimento e o desejo. Gesto contínuo de vontade de superação do horror. Palavras e figuras que dão forma ao esquecimento de um passado que não se quer mais ressentido (GAGNEBIN, 2009). Para o filósofo francês, Jacques Rancière (RANCIÉRE, 2012, p. 136), “a experiência extrema do inumano não conhece impossibilidade de representação nem língua própria. Não há uma língua própria do testemunho”. As línguas existentes são mais afeitas ao inumano do que ao humano. Dessa constatação surge a necessidade de reinventar as línguas e inventar línguas. “Dentre as múltiplas direções que se oferecem generosamente para nós, a experiência criativa é uma âncora possível” (DERDYK, 2001, p.15). Como nos recorda a artista visual Edith Derdyk, na escrita Ponto de chegada, ponto de partida: A necessidade de apropriação e tradução das experiências que habitam o nosso corpo, vivências ainda incomunicáveis, buscando incessantemente a sua língua e a sua forma, sua matéria e significado, se apresenta como uma plataforma para o salto e o mergulho em nosso espectro criativo. (DERDYK, 2001, p. 15). Do discurso à vontade de dizer, a insuficiência da palavra me faz buscar no corpo o impulso da fala, como asa da língua que não cala frente às interdições do discurso. Palavra que vira gesto e
movimento de corpo, que dispara o obturador, conduz o lápis e o pincel. Corpo renascido da ausência, que pode então encontrar seu desejo na construção de um labirinto de memórias refeitas para fazer do processo criativo território de invenção de real social ao realizar inserções no sistema da arte. “Ao invés de tomar a palavra, gostaria de ser envolvido por ela e levado bem além de todo começo possível” (FOUCAULT, 2014, p. 5).
Figura 12 – Ofélia desperta. Fonte: acervo público da UNIPAMPA, Ariane Oliveira, gravura em metal impressa em papel algodão, dimensões 15cmx25cm, Bagé, 2018.
Figura 13 – Registo afetivo. Fonte: arquivo pessoal, Ariane Oliveira, aquarela sobre papel, dimensões 29,7cmx21cm, Porto Alegre, 2015.
Figura 14 – Inconsciente é matéria vulcânica. Fonte: arquivo pessoal, Ariane Oliveira, pintura acrílica em tela, 54cmx85cm Porto Alegre, 2018.
Figura 15 – Tatuagem. Fonte: arquivo pessoal, Ariane Oliveira, Porto Alegre, pintura com pigmento de catuaba sobre tela e sobreposição de desenho em nanquim sobre tecido transparente, 50cmx80cm, 2018.
Figura 16 – Ofélia aterra. Fonte: composição de pinturas em aquarela, gravuras em metal impressas em tecido e sobrepostas, fotografia analógica 35 mm 10cmx15cm e poesia, dimensões variáveis, Ariane Oliveira, Exposição Corpo Caminho, Fotogaleria Virgilio Calegari, Casa de Cultura Mario Quintana, 5º Prêmio IEAVi, Porto Alegre, 2017-2018.
O movimento feminista na arte teve forte expressão nos EUA, a partir da reação das artistas à falta de espaço para mulheres nesse sistema da arte. Artistas como Gina Pane, Yoko Ono, Marina Abramovic e Ana Mendieta insurgiram contra a predominância de homens brancos no circuito das galerias. Busco em Ana Mendieta a palavra que vem do corpo e germina na terra. Mendieta é uma artista cubana, nascida em 1948 e exilada nos EUA. Situada entre duas culturas, explora as questões que eclodem da desterritorialização e do deslocamento. Participou da revolução feminista na arte, que acompanhou os movimentos de contracultura nos Estados Unidos, nos anos 60 e 70. Fez de seu corpo seu principal meio artístico. A artista situa-se no movimento feminista na arte, enquanto potência de experimentação de um corpo livre e criativo. Por meio da performance, expressão artística que possibilita o acesso a pulsões
reprimidas, a artista inscreve-se em rituais de recomposição de memórias pela experimentação corporal ritualística. A performance é um meio artístico capaz de instaurar um espaço-tempo de liberação do corpo, em novos modos de subjetivação, comumente reprimidos pelos limites do gênero construídos na cultura (BUTLER, 2017). No interim de duração desse suporte criativo, abre-se a possibilidade de desvinculação das amarras comportamentais e psicológicas impostas pela sociedade, sendo possível a investigação do que é ser mulher a partir do corpo e além dele. A produção de Ana Mendieta inclui escultura, pintura, vídeo e fotografia e abrange um período de treze anos (1972-1985) (CARVALHO, 2016). Em Havana, onde nasceu, Mendieta pertencia a uma família aristocrática de origem europeia, porém, por questões políticas em que seu pai estava envolvido, ela e sua irmã foram exiladas nos EUA, onde viveram em casas de adoção. Nesse deslocamento, Mendieta passou a enfrentar preconceitos com relação a sua cor e ao seu gênero.A artista se formou pela Universidade de Iowa. Um de seus primeiros trabalhos foi o Rape Scene, feito em resposta ao estupro e assassinato de uma estudante da universidade. Mendieta convidou seus colegas a irem até seu quarto, onde estava desnuda, presa a uma mesa e coberta de sangue.
Figura 17 – Rape Scene, 1973, Ana Mendieta. Fonte: GIUNTA, Andrea, FAJARDO-HILL, Cecilia. Radical women: latin american art, 1960-1985. Los Angeles: Hammer Museum, 2017.
Outro importante trabalho da artista é o Silueta Series, em que “criou séries de silhuetas diversas: suspensas, escavadas na terra, submergidas na água, esculpidas na areia onde o mar podia preenchê-las, e assim por diante” (CARVALHO, 2016, p. 290). Concebidas em movimentos ritualísticos, Mendieta tanto acolhia como resistia às intervenções vindas da natureza no processo. A artista criou para seu trabalho o termo earth-body work. Este trabalho teve início em suas viagens ao México, numa vontade de entrar em contato com os resquícios da cultura pré-colombiana. Seu trabalho trata sobre mitologias individuais e coletivas, que ela recupera por meio do corpo. Nas palavras da artista sobre seus trabalhos:
A través de ellas asciende la savia ancestral, las creencias originales, la acumulación primordial, los pensamientos inconscientes que animan el mundo. No existe un pasado original que se deba redimir: existe el vacío, la orfandad, la tierra sin bautizo de los inicios, el tiempo que nos observa desde el interior de la tierra. Existe por encima de todo, la búsqueda del origen. (CARVALHO, p. 291, apud MENDIETA, p. 216, 1999).
Figura 18 – Silueta Series, 1973-1980, Ana Mendieta. Fonte: www.medium.com/@thaiannec/ana-mendieta-o-corpo-como-obrad4937178775f. Acesso em 07 set. 2020.
A performance é uma maneira de resgatar a partir do corpo a pulsão reprimida, numa busca da memória por meio dos pés, liberar uma fala que transcende a palavra. Ana Mendieta, em sua série Silueta, situa o próprio corpo como lugar do recalcado pela cultura hegemônica, numa proposição feminista e pós-colonialista de reverter uma condição de opressão e silenciamento da mulher latina, por meio do ritual, que pode ser entendido como a realização de necessidades coletivas (FRADE, 2010). Observa-se nesses trabalhos, um posicionamento político nômade através de uma subjetividade que busca desconstruir hierarquias e lugares de poder.
Apesar de participar do movimento feminista norte-americano de artistas, Mendieta estava consciente de suas diferenças em relação a essas mulheres, em sua maioria, brancas de classe média. Posicionando-se junto aos exilados, Ana Mendieta abarcava um movimento cultural mais amplo ao alinhar-se aos mitos da América Pré-colombiana. A artista morreu muito jovem, com apenas 37 anos de idade, em circunstâncias de violência. A perícia policial indicou suicídio, porém, apesar da absolvição do artista Carl Andre, que foi seu companheiro, no processo que investigou o fato, a comunidade de artistas feministas insurgiu-se contra a situação, chegando a ocupar a abertura de uma exposição de Carl Andre no museu Guggenheim, em Nova York, sob os escritos de Onde está Ana Mendieta? O protesto das artistas norte-americanas diante da morte de Mendieta é retratado no documentário Women Art Revolution3. Diante de sua vida e de seu trabalho, cabe a reflexão sobre a atualidade das questões suscitadas pela artista, que evocava o transbordamento das fronteiras entre arte e vida. A complexidade e a diversidade de seu trabalho seguem sendo referência para artistas da atualidade que, como ela, buscam resgatar a memória da história das mulheres e dos povos silenciados e apagados pela cultura hegemônica, tornando possível o rompimento do silêncio dos tempos por meio do trabalho de arte. No Brasil, a organização do movimento feminista aconteceu em plena ditadura militar, conforme afirma a intelectual e especialista em literatura, Heloisa Buarque de Hollanda, na introdução do livro Pensamento Feminista Brasileiro: formação e contexto: A luta contra a discriminação sexual e racial no acesso e na vida acadêmicas, a organização profissional nas universidades, a composição do cânone teórico e literário, o conservadorismo dos fundamentos das ciências sociais são 3
Disponível em www.youtu.be/fjikMGTeyjc. Acesso em: 12 nov. 2016.
pautas de primeira grandeza nesse contexto do feminismo acadêmico dos anos 1960-70. (HOLLANDA, 2019, p. 11) No texto Epistemologia feminista, gênero e história , escrito em 1998, que compõe o livro organizado por Hollanda, a historiadora Margareth Rago, traça a importância da construção de uma teoria feminista do conhecimento, problema epistemológico. Segundo a autora: Afinal, se considerarmos que a epistemologia define um campo e uma forma de produção do conhecimento- o campo conceitual a partir do qual operamos ao produzir o conhecimento científico-, a maneira pela qual estabelecemos a relação sujeito-objeto do conhecimento e a própria representação de conhecimento como verdade com que operamos, deveríamos prestar mais atenção ao movimento de construção de uma (ou seriam várias?) epistemologia feminista, ou mesmo de um projeto feminista de ciência. (RAGO, 2019, p. 373). A historiadora aponta a participação do feminismo “na ampla crítica cultural, teórica, epistemológica em curso, ao lado da psicanálise, da hermenêutica, da teoria crítica marxista, do desconstrutivismo e do pós-modernismo.” (RAGO, 2019, p. 374). No ponto em que o feminismo desestabiliza a lógica da identidade para pensar a diferença, ele “se encontra especialmente com o pensamento pós-moderno, com a crítica do sujeito, com as formulações de Derrida e Foucault, entre outas” (RAGO, 2019, 374). Isso configura um “projeto feminista de ciência alternativa, que se quer potencialmente emancipador” (RAGO, 2019, 374). As teóricas feministas propuseram que a sujeita (sujeite/sujeito) da pesquisa fosse entendida no âmbito das determinações culturais, inseridas “em um campo de complexas relações sociais, sexuais e étnicas” (RAGO, 2019, p. 376). Rago também coloca a questão do
perigo “da reafirmação do sujeito ‘mulher’ e de todas as cargas constitutivas dessa identidade no imaginário social” (RAGO, 2019, p. 377). A autora lembra que a questão da mulher surge nas lutas por sua emancipação, por meio da conquista e ampliação dos seus direitos específicos. Assim, é “a partir de uma luta política que nasce uma linguagem feminista” (RAGO, 2019, p.377). O avanço do campo teórico coloca a categoria relacional do gênero como ferramenta de análise e contradiscurso que possibilita uma construção ampla do que pode ser gênero, no contrapelo das limitações impostas pelo imaginário social e cultural. A historiadora também coloca a questão sobre se pensar uma epistemologia feminista não faria com que a teoria sobre gênero reproduzisse a relação saber-poder que critica. Nesse ponto de questionamento, a autora coloca que “é possível dizer que as mulheres estão construindo uma linguagem nova, criando seus argumentos a partir de suas próprias premissas” (RAGO, 2019, p. 379). Uma ferramenta importante para a vida, para a saúde, para o trabalho e para o corpo das mulheres é a possibilidade de ressignificação. A constatação de que historicamente foram destinados às mulheres, por meio de construções culturais opressoras, lugares e trabalhos considerados inferiores, gera a necessidade da existência da possibilidade de ressignificação destes lugares e trabalhos, que possam dar entrada às mulheres aos lugares e trabalhos de relevância cultural e de poder. O machismo, o racismo e o preconceito de classe, tem como uma de suas bases a inferiorização de trabalhos essenciais para a manutenção da vida, como o trabalho reprodutivo, o trabalho doméstico e o trabalho de manutenção do espaço urbano. A estratégia dos ativismos feministas tem sido unificar o pessoal e o coletivo, manifestando-se pelo direito ao corpo. Conforme afirma a professora Heloisa Buarque de Hollanda, se quisermos construir um feminismo decolonial o primeiro passo é entendermos que
significados as mulheres moradoras da periferia e das áreas rurais associam a um feminismo elitizado para que as ações políticas feministas possam ser repensadas (HOLLANDA, 2020). A filósofa Marcia Tiburi propõe um direito feminista: o direito ao próprio corpo (TIBURI, 2010). Segundo ela, “[...] é importantíssimo que as mulheres sejam donas da própria sexualidade e do todo do seu corpo, elas devem ser donas de seu corpo reprodutivo” (TIBURI, 2018, p. 37). Como pesquisadora e artista visual, entendo que uma forma de exercer o direito ao corpo é se colocar sem restrição no campo da linguagem. Falar com o corpo e desde o corpo traçar a própria localização no mundo para se colocar como agente ativa nas ações feministas de reivindicação pela vida digna, o que se dá pela distribuição de renda e de bens culturais, pela superação das distâncias entre teoria e prática, trabalho manual e trabalho intelectual. Além de possibilidades de experienciar o corpo com autogestão e respaldo de políticas públicas voltadas ao direito de decisão sobre direitos reprodutivos e sexuais.
Figura 19 – Distribuição. Fonte: arquivo pessoal, Ariane Oliveira, proposição tridimensional, dimensões variáveis, 2020.
Cecilia Almeida Salles interpela que “muitos aspectos da criação artística aparecem a seus fruidores envoltos em uma aura que mais mitifica do que explica esse engenhoso labirinto da mente humana” (SALLES, 1998, p. 12). Escrevo para destrinchar o ato criativo. Encontro na palavra a desmistificação do trabalho de arte – arte esta que é trabalho, ainda que o senso comum não o aceite enquanto trabalho formal. A reivindicação por lugares de expressão para grupos historicamente apagados na história da arte é uma realidade crescente. A investigação das possibilidades do ser mulher faz-se necessária para pensar o processo histórico de distribuição de bens culturais (CANCLINI, 2012). Nesse sentido, o trabalho artístico se faz meio para pesquisar o que é ser mulher, o que é ser mulher e artista e quais os lugares permitidos e negados aos corpos marcados na história da arte e da humanidade. O trabalho e a pesquisa são sobre a vida das mulheres. Pensar o corpo e os afetos que o atravessam é um gesto necessário para situar
a construção do saber. Segundo Agamben (AGAMBEN, 2007, p.63), “uma subjetividade produz-se onde o ser vivo, ao encontrar a linguagem e pondo-se nela em jogo sem reservas, exibe em um gesto a própria irredutibilidade a ela”. Situar o saber no corpo para pensar sobre as especificidades dos sujeitos dos feminismos: somos uma maioria numérica, mas uma minoria em termos de poder, de cargos ocupados no legislativo e de trabalhos exposto em museus. Na escrita A virada iconográfica: a desnormalização de corpos e sensibilidades na obra de mulheres artistas latino-americanas 4, presente no catálogo Mulheres Radicais: Arte Latino-americana, 1960-1985 , a pesquisadora e curadora Andrea Giunta afirma que a exposição investiga a historicidade que, por meio de imagens, tornou possível conceber novas formas de endereçar representações de corpos, em suas complexidades afetivas, realizadas por mulheres artistas (GIUNTA, 2017). A curadora coloca que pensar o que perdemos ao não experienciar os trabalhos escondidos dos espaços expositivos inaugura um novo conhecimento que tem um efeito emancipatório no público e nas(es/os) artistas. Os trabalhos apresentados na exposição, em sua maioria performativos, transformam a relação de identidade dos corpos, o que dá acesso a um conhecimento capaz de gerar autonomia a pessoas e grupos a quem a subjetividade foi negada por políticas autoritárias. No texto, Arte Feminista e “Artivismo” na América-latina: um diálogo em três vozes5, a autora Julia Antivilo Peña, afirma que arte feminista implica em uma relação entre ativismo e criação artística. Para ela, existem duas categorias: “políticas estéticas feministas 6”, que se refere a artistas ou artivistas engajadas em correntes feministas cujas criações e ações implicam na realização de arte política e socialmente comprometida, em que o feminismo é entendido como uma forma de pensamento e ação. De outro modo, a expressão “estética de 4 5 6
Tradução da autora. Idem 3. Idem 4.
gênero7” pode ser empregada por historiadoras(es) para se referir a artistas que não falam diretamente sobre feminismo, mas cujo trabalho pode ser analisado em termos feministas na medida em que torna visível problemas como injustiça, violência e vulnerabilidade econômica a que muitas mulheres estão sujeitas (MAYER; PEÑA; ROSA, 2017, p. 38). Mónica Mayer e Maria Laura Rosa, coautoras do referido texto, afirmam que o feminismo na arte latino-americana tem forte relação com os movimentos de esquerda nos anos 1970 pelo compromisso contra a repressão e as ditaduras na região. Rosa cita o caso brasileiro, em que grupos feministas juntaram forças com grupos de esquerda para combater o autoritarismo da ditadura militar, que aboliu direitos civis e políticos. Segundo Peña, a arte feminista se move entre o sagrado e o profano, de maneira transdisciplinar, refutando a disciplina e combinando diversas mídias e campos do conhecimento. No dia 8 de março de 2017 fui selecionada pelo edital da Galeria Ecarta para realizar a exposição A delicadeza como última casa da revolta. A exposição foi parte da pesquisa que buscou traçar pontes entre arte, como possibilidade de cuidado, e reivindicação de direitos fundamentais, desde um posicionamento ético-estético-político feminista. O espaço expositivo fez-se lugar de memória e de recuperação de afetos. Escutar e falar sobre violências traz a consciência de que abusos são banais e cotidianos porque o inconsciente colonial capitalista se alimenta deles (ROLNIK, 1993). Por isso, falar sobre violência ė implicar-se em agenciamentos coletivos de cura (ROLNIK, 2017).
7
Idem 5.
Figura 20 – Fronteira. Fonte: desenhos em aquarela e grafite sobre papeis sobrepostos, Ariane Oliveira, Exposição a delicadeza como última casa da revolta, selecionada no edital da Galeria Ecarta, Porto Alegre, 2017.
O ato de desenhar é um modo de relação ativa com o tempo. Cada vez que olho para os desenhos, vejo nos traços o registro dos gestos que revelam as alterações realizadas pelo tempo. Quando um desenho é finalizado, já sou outra que desenha e deseja. A visualidade do trabalho é uma repetição de desenhos de corpos, mas é também um registro de afetos que atravessam corpos. Percorro técnicas diversas da prática artística para tentar costurar lacunas da memória ou ao menos para fazê-las visíveis em ações de apagamento e sobreposição de camadas. O gesto carrega algo de infância, enquanto denuncia a passagem do tempo num ato político-poético de inserção social do trabalho artístico. “O que essa potência quer é sempre agir nas fronteiras, ultrapassar seus próprios limites, suas próprias formas, inventando novas multiplicidades, novas maneiras de ser numa superfície em devir, distendendo sempre mais o arco tenso do passado-futuro” (FONSECA, REGIS, 2012, p.279). Zonas de intensidades liberadas – não uma reprodução de figuras, mas sim uma descoberta pelo avesso, que forja uma outra sensibilidade capaz de colocar em tela possibilidades mais abrangentes de manutenção da vida através do cuidado para abordar os feminismos pela perspectiva da potência das lutas das mulheres. O desejo reivindica possibilidades de trabalho e de experiência estética não alienados. A partir dessa reivindicação, que parte do corpo, a experiência ético-estética se apresenta como intensidade emancipatória de potência instauradora de formas dignas do ser artista, enquanto profissão. Nesse caminho, fazer do espaço expositivo um lugar de transformação é uma necessidade para que o pensamento possa percorrer novos trajetos. Quando faço pintura, faço também pesquisa. São palavras que viram terra, registro de sensações que não encontram veículo no mundo existente e passam a existir autonomamente a partir de uma materialidade própria: tomam corpo em matéria de expressão (ROLNIK, 2016). Teoria e prática em relações de revezamento.
Todo fazer implica um saber e saber é potência que leva “[...] as micropolíticas do desejo a se porem em adjacência às microfísicas do poder [...] (GUATTARI, 1985, documento não paginado).
Figura 21 – Tempo suspenso. Fonte: instalação, dimensões variáveis, Ariane Oliveira, Exposição A delicadeza como última casa da revolta, Galeria Ecarta, Porto Alegre, 2017.
Figura 22 – Semeadura. Fonte: instalação composta por cadeira, ramo de macela, ramo de alecrim, caderno de artista, babosa, gravura em metal mergulhada em suporte de vidro com água, vaso de cerâmica e saco de terra, Exposição A delicadeza como última casa da revolta, Galeria Ecarta, Porto Alegre, 2017.
Marcia Tiburi, no texto Ofélia Morta- do discurso à imagem, atenta para o fato de que a imagem da mulher morta está ligada à ideia de beleza na história da arte, sendo Ofélia e sua morte trágica um dos temas mais representados por pintores ao longo dos séculos. É preciso alterar a política representacional das mulheres na cultura e na construção do conhecimento para que a vida das mulheres não seja pautada pela violência. engulo seu nome e regurgito todo racionalismo se a morte fosse mulher não estaríamos em ruínas (ROMÃO, 2017, documento não paginado)
Figura 23 – Desejo. Fonte: arquivo pessoal, pintura com terra, cachaça de catuaba e caneta posca, dimensões 150cmx82cm, Ariane Oliveira, 2018, Porto Alegre, RS.
Percorro o labirinto da vida nos encontros, onde teço fios guiada por uma bússola ética para, em vez de representar, ensaiar tentativas de ser. Destruo, reconstruo e costuro objetos de maneira intuitiva, nem sempre com um significado pré-definido, como faz Lia Menna Barreto com suas bonecas (MAUS, WAQUIL, BARRETO, 2014). No livro A palavra está com elas: diálogos sobre a inserção da mulher nas artes visuais, quando questionada pela entrevistadora, Isabel Waquil, sobre a associação de seu trabalho com a perversidade, a artista responde que não gosta dessa associação, porque não o faz pensando nisso. Nas palavras da artista: A criança quando desmonta a boneca, é considerada “malvada”, mas ela está só pesquisando, ela está curiosa. Ela não faz aquilo porque tem a intenção de machucar, de arrancar um braço. Ela está explorando um objeto em mutação. Eu nunca fiz isso na minha infância, porque eu era muito caprichosa. Às vezes, eu fico pensando sobre isso, sobre nunca ter feito e agora trabalhar com isso. (BARRETO, 2014, p. 16)
Figura 24 – Jardins. Fonte: www.lia-mennabarreto.blogspot.com/ 2011/01/jardins.html. Acesso em 26 jan. 2021.
Sobre o trabalho Diário de uma boneca, em que a artista se propôs a fazer uma boneca por dia com retalhos de tecidos, ela conta que as bonecas ficavam conforme seu estado, seu ânimo. “Às vezes, eram umas bonecas mal feitas. Outras vezes, as bonecas eram quase um “nada”. Já outras, eram super caprichosas! Quando vi, passou um mês, dois meses, três meses… No meio disso, aconteceram várias coisas e as bonecas foram ficando um diário mesmo” (BARRETO, 2014, p. 17).
Figura 25 – Diário de uma boneca 1998. Fonte: https://liamennabarreto.blogspot.com/2011/01/jardins.html. Acesso em 26 jan. 2021.
Pesquiso a substância plástica dos afetos. Busco situar o fazer artístico e a pesquisa no debate contemporâneo a partir de sua potência política e poética para pensar o que é o desejo desde uma abordagem feminista. No livro Esferas da Insurreição: notas para uma vida não cafetinada, Suely Rolnik afirma que: Em sua nova versão, é da própria vida que o capital se apropria; mais precisamente, de sua potência de criação e transformação em seu nascedouro – ou seja, sua essência
germinativa-, bem como da cooperação da qual tal potência depende para que se efetue em sua singularidade. (ROLNIK, 2018, p. 32). O trabalho de arte é terra para a reapropriação da pulsão. Lugar para a sensibilidade e para a criatividade que tem passagem pelo saber do corpo – destino ético da pulsão a tramar novas políticas de desejo não mais submetidas ao domínio patriarcal, senão na potência das vidas que querem-se autônomas e implicam-se em possibilidades coletivas de acesso a novas formas de existência (ROLNIK, 2018).
5 a escrita FEMINISTA COMO REGISTRO ÉTICOESTÉTICO: SOBRE POTENCIALIZAR O SILÊNCIO Há algum tempo, as palavras me tomam para além do espaçotempo. Quantas palavras cabem em um quarto, numa sala, num minuto, em duas horas ou em cinco dias? E eu que passei os últimos anos morando em um corpo afundado na linguagem, ao reparar a insuficiência da palavra, redescobri o corpo. Pretensa criação, experiência, materialização sensorial de um lugar em que se possa falar de corpo e de sangue, de poeira e de política com linha e agulha, tecido, vidro e o que mais aparecer no caminho para me ajudar a (des)dizer, até criar um corpo outro, coletivo e público (vestível, afetivo e afetado) que possa se mostrar na praça, na rua e no museu. Admitir a escrita é um trabalho de viver no plano do possível – assumir o que se é. Encontrar as palavras que evitem a situação de ser tratada como coisa. O acesso aos afetos é a chave para restituir aos corpos a sua humanidade. Encontrei o desejo e alguns rastros de verdade entre sujeiras e delicadezas não intencionais. Busco situarme como uma expressão entre as que me tocam. Começo o dia com linha e agulha. Está faltando azul no pano. É com essa cor que vou costurar os pequenos rasgos da pele imaterial. Quero com minha agulha costurar memórias. Ser ativa no tempo. Levo o bordado na bolsa para estabelecer
um centro. Bordo com a vontade da agulha e da linha. É mais um deixar ir, do que ponto e vírgula. O gesto é resultado do tempo que sai do corpo. Cada ponto como um passo no trajeto. Quero descobrir quanto tempo cabe em um metro de pano (Dia 08 de setembro de 2016, escrito no caderno, documento não paginado).
Figura 26 – Registro. Fonte: Exposição Corpo Caminho, Ariane Oliveira, Fotogaleria Virgilio Calegari, Casa de Cultura Mario Quintana, Instituto Estadual de Artes Visuais (IEAVi), Porto Alegre, 2017-2018.
O pé de maracujá subiu na árvore mais alta E para comer maracujás Minha vó espera o vento tocá-los Para colhê-los do chão (Notas escritas no meio do livro A arte de ler (PETIT, 2019)). Por algum tempo, trilhei os caminhos da pesquisa nos passos da ausência e do silêncio. Escrevia e falava em palavras que contavam de suas perdas. Com o caminhar dos dias, comecei a germinar a palavra
na terra: uma palavra não mais testemunha de sua ausência e sim capaz de dar passagem ao desejo como forma de resistir à vida nua. Na apresentação do livro Profanações, de autoria do filósofo italiano Giorgio Agamben, o filósofo brasileiro Selvino Assman escreve que a profanação é uma forma de resistir à vida nua. Segundo o autor (ASSMAN, 2007, p.38-39): É isso a biopolítica que se consolidou como domínio sobre a vida. E é com a profanação que se pode resistir a tudo isso, e que se pode tentar uma nova política, um novo ser humano, uma nova comunidade, pensando e promovendo o avesso da vida nua, a potência da vida, e a vida humana como potência de ser e de não ser. Assman afirma ainda que Agamben dedica “sua análise filosófica, filológica, histórica, estética, a profanar o sagrado, ou melhor, a procurar devolver à comunidade humana aquilo que historicamente foi subtraído ao uso comum através da sacralização” (2007, p. 10). Desse modo, profanar significa tirar do templo (ASSMAN, 2007). Nas palavras de Agamben, no texto Elogio da profanação (AGAMBEN, 2007, p. 65), “Esse consagrar (sacrare) era o termo que designava a saídas das coisas da esfera do direito humano, profanar, por sua vez, significava restituí-las ao livre uso dos homens” (da humanidade, grifo meu). Profanar é uma ação política que desativa os dispositivos do poder. Nas artes visuais, a profanação é um método conhecido, no sentido de destituir objetos de seu uso sagrado. Contudo, esses objetos, ou até mesmo as desmaterializações da arte, passam a integrar um outro templo, o sistema da arte, o templo do profano. Estudo como habitar o sistema da arte como campo de trabalho. Busco restituir a arte ao uso comum como possibilidade de democratização da sensibilidade e da vida digna.
Figura 27 – Palavra vento. Fonte: Arquivo pessoal, Ariane Oliveira, fotografia analógica, 35 mm, 2016.
Figura 28 – Palavra terra. Fonte: Exposição A delicadeza como última casa da revolta, Galeria Ecarta, Porto Alegre, 2017.
No início de 2016, semeei algumas palavras na terra. Palavras que havia recortado de um livro para a ação Transe terra, que aconteceria na Casa de Cultura Mario Quintana, pelo projeto – Laboratório de diálogos artísticos em processo, com orientação da professora Maria Ivone dos Santos. Essa terra ficou guardada por um tempo. Um dia precisei da terra para adubar as plantas de casa e as palavras já não existiam, se não como terra. A ação gerou a decomposição das palavras.
Figura 29 – Calmaria. Fonte: fotografia de Flávia de Quadros para o Espaço de Montagem — Diálogos artísticos em processo, projeto contemplado no edital de ocupação da Casa de Cultura Mario Quintana, 2016, Porto Alegre.
Evitar tautologia é uma expressão comum nos processos em direito, que, apesar de estarem sempre habitados por essa advertência de que se deve evitar a repetição, são prolixos. Estão escritos em uma língua que se arrasta. Na contramão disso, queria inventar uma língua fluida e pensava que para isso deveria parar de evitar a repetição, porque é na repetição que se faz o novo como lugar para realizar o corte no real e ativar a diferença (ROLNIK, 2018). O novo não como ideia espetacular, mas como expressão espontânea da vida que
quer ir adiante. Preenchi de luz muitos frames nesse caminho para fazer imagens fagulhas, queimar algumas molduras e desfazer silêncios, como um vidro que se quebra.
Figura 30 – Sobre molduras. Fonte: arquivo pessoal, Ariane Oliveira, colagem digital de fotografias analógicas, 10cmx30cm Porto Alegre, 2014-2017.
Habito o silêncio como tempo necessário de elaboração não-verbal. Faço-o gesto, ofereço-o aos outres, que me devolvem seus silêncios verborrágicos. Escuto silêncios, sinto-os no corpo. Escuto o que vem de dentro do corpo para me insurgir contra a “[...] descorporificação do sujeito epistemológico masculino abstrato” (BUTLER, 2017, p. 34). Reconciliar palavra e gesto é uma maneira de superar a separação entre corpo e mente ao lembrar que trabalho intelectual também é trabalho manual. Tal procedimento se faz necessário para desconstruir as associações culturais entre mente e masculinidade e corpo e feminilidade (BUTLER, 2017). O gesto é uma ação política afetiva de efetivação da alteridade. “Só há presença do outro se o outro é ele próprio presente a si; isso significa que a verdadeira alteridade é a de uma consciência separada da minha idêntica a ela’ (BEAUVOIR, 1970, p. 179). O artigo 1º da Constituição Federal Brasileira de 1988, marco significativo da retomada democrática, ainda recente e frágil, prevê, como fundamento do Estado Democrático de Direito, a dignidade da pessoa humana (inciso III). Butler afirma que no discurso
filosófico a noção de pessoa tem sido elaborada de forma a permanecer externamente “[...] relacionada à estrutura definidora de pessoa, seja esta a consciência, a capacidade de linguagem ou a deliberação moral” (BUTLER, 2017, p. 43). Nesta pesquisa, existe uma preocupação com uma construção de pessoa que respeite a diversidade cultural, étnica, sexual e de gênero. A teórica feminista e antropóloga social afro-dominicana Ochy Curiel afirma que as propostas decoloniais possibilitam um pensamento crítico para a compreensão da especificidade histórica e política das sociedades ao mostrar a relação entre modernidade ocidental, colonialismo e capitalismo que estabelecem as hierarquias sociais. O feminismo decolonial traz uma nova perspectiva de análise para entendermos de forma mais complexa os atravessamentos de raça, sexo, sexualidade, classe e política para que o racismo, o classismo e o heterossexismo não sejam reproduzidos dentro do feminismo (CURIEL, 2020). Em 2014, no Fórum Social Temático de Porto Alegre, Boa Ventura de Souza Santos falou sobre a importância de descolonizar a subjetividade. Desde lá, muito se avançou no tocante à teoria decolonial. Hoje pautada pela diversidade de autoras/es de diferentes localizações globais, com visibilidade para o sul global e regiões não-ocidentais. Curiel pontua que: A América é um produto da modernidade na construção de um sistema-mundo; a Europa, para constituir-se como centro do mundo, a produziu como sua periferia desde 1492, quando o capitalismo se faz mundial, através do colonialismo. (CURIEL, 2020, p. 126). A pesquisa tem como metodologia uma prática teórico-artística não linear. Busco encontrar o tempo subjetivo por meio das coisas para pensar crítica e praticamente sobre a questão do gênero na divisão do trabalho. Em 2013, comecei a fotografar por sentir que as palavras
pediam outros meios para se fazerem potência. Processo que se desdobrou em desenhos, pinturas e instalações, que são meio para a investigação sobre o que pode ser mulher e sobre o desejo que atravessa os corpos marcados, não universais (BEAUVOIR, 1970). A socióloga boliviana, Silvia Rivera Cusicanqui propõe que: Las imágenes tienen la fuerza de construir una narrativa crítica, capaz de desenmascarar las distintas formas del colonialismo contemporáneo. Son las imágenes más que las palabras, en el contexto de un devenir histórico que jerarquizo lo textual en detrimento de las culturas visuales, las que permiten captar los sentidos bloqueados y olvidados por la lengua oficial. (CUSICANQUI, 2010, p.5). Assim, bordo com o conhecimento que carrego nos bolsos. Entendo o ato como expressão de uma trajetória. A mulher é uma mascarada? (BUTLER, 2017) A performance é cotidiana. Performance é uma maneira de estar no agora e de escolher as máscaras com sinceridade. Performance é quando a dor já foi elaborada a ponto de ser interpretada para que a coletividade possa parar de fingir não sentir dor, para que possa acolher suas fraquezas (PETIT, 2010). É preciso liberar-se das dores das(os) antepassadas(os) para escrever futuros, sem, contudo, esquecê-las.
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DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Oliveira, Ariane Devaneios do Desejo/ Ariane Oliveira; fotografias Ariane Oliveira. -- 1. ed. -- Rio de Janeiro : Jorge Pereira, 2021. 1. Poesia brasileira II. Ensaios III. Fotografia IV. Artes visuais II. Título. Índices para catálogo sistemático: 1. Poesia : Literatura brasileira B869.1 Aline Graziele Benitez - Bibliotecária - CRB-1/3129
—acabou-se de imprimir DEVANEIOS DO DESEJO um livro de ARIANE OLIVEIRA editado por JORGE PEREIRA pelo selo editorial da CASA PHILOS no verão de 2021 na cidade do Rio de Janeiro.