Philos v.3 n°.24 (2017)

Page 1

Philos

PORTUGUÊS CATALÀ ESPAÑOL FRANÇAIS ITALIANO ROMÂNĂ dezembro 2017 · REVISTA DE LITERATURA DE LA UNIÓN LATINA 24 diciembre 2017

REVISTA DE LITERATURA DA UNIÃO LATINA 24


Philos

PORTUGUÊS CATALÀ ESPAÑOL FRANÇAIS ITALIANO ROMÂNĂ dezembro 2017 · REVISTA DE LITERATURA DE LA UNIÓN LATINA 24 diciembre 2017

REVISTA DE LITERATURA DA UNIÃO LATINA 24

JULIANA FACHIN DANIELA BALESTRERO MUNIQUE DUARTE FRANCISCO CARVALHO SAMMIS REACHERS LUCAS APOTIGUARA CARLOS BARTH GLEIBER ALVAREZ CAIO LOBO LUIZZA MILCZANOWSKI VANESSA VASCOUTO TIAGO PORTSAN SOUZA PEREIRA LAURA TORRES KATIA GERLACH


PORTUGUÊS CATALÀ ESPAÑOL FRANÇAIS ITALIANO ROMÂNĂ dezembro 2017 · REVISTA DE LITERATURA DE LA UNIÓN LATINA 24 diciembre 2017

REVISTA DE LITERATURA DA UNIÃO LATINA 24

EXPEDIENTE

REVISTA DE LITERATURA DA UNIÃO LATINA REVISTA DE LITERATURA DE LA UNIÓN LATINA

Souza Pereira

EDITOR CHEFE | EDITOR EN JEFE

Sylvia de Montarroyos

COMITÊ EDITORIAL | COMITÉ EDITORIAL

Lucrecia Welter

REVISÃO DE TEXTOS | SUPERVISIÓN DE TEXTOS

Maus Hábitos

DESENHO E DIAGRAMAÇÃO | DISEGÑO Y DIAGRAMACIÓN

Rosa Alamo

ILUSTRADOR | DIBUJANTE

SOBRE A OBRA DESTA EDIÇÃO | SOBRE LA OBRA DE ESTA EDICIÓN

Publicado originalmente em dezembro de 2017 com o título Philos, Revista de literatura da União latina. Os textos desta edição são copyright © de seus respectivos autores. As opiniões expressas e o conteúdo dos textos são de exclusiva responsabilidade de seus autores. Todos os esforços foram realizados para a obtenção das autorizações dos autores das citações ou fotografias reproduzidas nesta revista. Entretanto, não foi possível obter informações que levassem a encontrar alguns titulares. Mas os direitos lhes foram reservados. Philos, Revista de Literatura da União Latina é registrada sob o número SNIIC AG-20883 no Sistema Nacional de Informações e Indicadores Culturais com Certificado de Reserva outorgado pelo Instituto Nacional de Direitos do Autor sob o registro: 10-2015-032213473700-121. ISSN em trâmite. Revista Philos © 2017 Todos os direitos reservados. | Publicado originalmente en diciembre de 2017 con el título Philos, Revista de literatura de la Unión latina. Los textos de esta edición son copyright © de sus respectivos autores. Todos los esfuerzos fueron hechos para la obtención de las autorizaciones de los autores de las citaciones o fotografías reproducidas en esta revista. Sin embargo, no fue posible obtener informaciones que llevaran a encontrar algunos titulares. Pero los derechos les fueron reservados. Philos, Revista de Literatura de la Unión Latina es registrada bajo el número SNIIC AG-20883 en el Sistema Nacional de Informaciones e Indicadores Culturales con Certificado de Reserva otorgado por el Instituto Nacional de Derechos del Autor bajo el registro: 10-2015-032213473700121. ISSN en trámite. Revista Philos © 2017 Todos los derechos reservados.

31

Philos, Revista Philos Revista de de Literatura Literatura da da União União Latina Latina | | Revista Revista de de Literatura Literatura de de lala Unión Unión Latina. Latina.


EDITORIAL

REVISTA DE LITERATURA DA UNIÃO LATINA REVISTA DE LITERATURA DE LA UNIÓN LATINA

O Natal é um dia especial de comemoração, reflexão e partilha para muitas pessoas do mundo todo. E não poderia ser diferente para a Revista Philos: É neste dia 25 de dezembro que completamos dois anos de existência. O ano editorial de 2017 foi um ano de muitos aprendizados, trocas e conquistas coletivas para todos nós. Lançamos a nossa primeira edição impressa com textos de nossos autores e colaboradores da Iberoamérica. Participamos de grandes eventos literários como a Flip – Festa Literária Internacional de Paraty e Bienal Internacional do Livro de Pernambuco. Realizamos, em parceria com a Academia de Letras de Toledo - ALT, o 1º Concurso de Haicai de Toledo - Kenzo Takemori. Fomos acolhidos por grandes e importantes redes de comunicação do país e, acima de tudo, acolhidos e reconhecidos pelo nosso povo, pela nossa gente, sob os olhares atentos de cada leitor. Apresentamos, nesta edição, as obras da artista visual Rosa Alamo, que, em suas pinceladas coloridas e delicadas, sintetiza tudo o que gostaríamos de expressar para cada um de vocês: a alegria em democratizar a literatura, as artes e o conhecimento. Um dos momentos mais importantes para a Philos consistiu nas trocas de olhares, de saberes, de experiências, de conhecimento e de amor ao longo da Latinité Tournée. Agradecemos imensamente a caminhada coletiva ao longo deste ano. Não existiria Philos sem a participação ativa de cada leitor, de cada colaborador, de cada colunista, editor associado, revisor, curador, crítico... Tudo é partilha, tudo é conquista mútua, são sonhos sonhados na coletividade. Finalizar um ano editorial como este é inspirador. Continuem conosco! Vamos juntos construir os caminhos de nossa latinidade, de nosso reconhecimento, de nossa história! Somos Philos, somos Amor; temos uma raiz e vozes diversas. A todos vocês, nosso muito obrigado! Desejamos uma ótima leitura, Souza Pereira

EDITOR CHEFE | EDITOR EN JEFE

4

Philos Revista de Literatura da União Latina | Revista de Literatura de la Unión Latina.


EDITORIAL

REVISTA DE LITERATURA DA UNIÃO LATINA REVISTA DE LITERATURA DE LA UNIÓN LATINA La Navidad es un día especial de conmemoración, reflexión y reparto para muchas personas del mundo todo. Y no podría ser diferente para la Revista Philos: Es este día 25 de diciembre que completamos dos años de existencia. El año editorial de 2017 fue un año de muchos aprendizados, cambios y conquistas colectivas para nosotros. Lanzamos nuestra primera edición impresa con textos de nuestros autores y colaboradores de Iberoamérica. Participamos de grandes eventos literarios como la Flip - Fiesta Literaria Internacional de Paraty y la Bienal Internacional del Libro de Pernambuco. Realizamos, en asociación con la Academia de Letras de Toledo - ALT, lo 1º Concurso de Haicai de Toledo - Kenzo Takemori. Fuimos acogidos por grandes e importantes redes comunicacionales del país y, por encima de todo, acogidos y reconocidos por nuestro pueblo, por nuestra gente, bajo mirarlos atentos de cada lector. Presentamos, en esta edición, las obras de la artista visual Rosa Alamo, que, en sus pinceladas coloreadas y delicadas, sintetiza todo lo que nos gustaría expresar para cada uno de vosotros: la alegría en democratizar la literatura, los artes y el conocimiento. Uno de los momentos más importantes para la Philos consistió en los cambios de saberes, de experiencias, de conocimiento y de amor al largo de la Latinité Tournée. Agradecemos inmensamente a caminada colectiva al largo de este año. No existiría Philos sin la participación activa de cada lector, de cada colaborador, de cada columnista, editor asociado, revisor, curador, crítico... Todo es reparto, todo es conquista mutua, son sueños soñados en la coletividad. Concluir un año editorial como este es inspirador. ¡Continuad con nosotros! Vamos juntos construir los caminos de nuestra latinidade, de nuestro reconocimiento, de nuestra historia. Somos Philos, somos Amor; tenemos una raíz y voces diversas. A todos vosotros, muchas gracias. Deseamos una óptima lectura, Souza Pereira

EDITOR CHEFE | EDITOR EN JEFE

5

Philos Revista de Literatura da União Latina | Revista de Literatura de la Unión Latina.


SUMÁRIO | SUMARIO CONTOS | COLUNAS | ARTIGOS CUENTOS | COLUMNAS | ARTÍCULOS

8 Anjos perdidos

,

por JULIANA FACHIN

12 Dentro la

scatola,

da DANIELA BALESTRERO

14 Jane Eyre em três atos,

por

MUNIQUE DUARTE

16 O vestido

verde musgo de Teresinha, por FRANCISCO CARVALHO

19 Sahhir, o

perscrutador, encontra-se com Deus, por SAMMIS REACHERS

21 A mulher,

por

LAURA TORRES

23 Carapaça das fachadas,

por LUCAS

APOTIGUARA

26 Sobre

memória, lembranças e devaneios, por

CARLOS BARTH

29 El encuentro,

por GLEIBER ALVAREZ

31 Volúpia,

por CAIO LOBO

34 A pintura do

quarto do silêncio, por LUIZZA MILCZANOWSKI

6

Philos Revista de Literatura da União Latina | Revista de Literatura de la Unión Latina.

37 Pequenos

retratos,

por VANESSA

VASCOUTO

40 Sobre

missas de sétimo dia, por TIAGO PORTSAN

42 Sobre

estômago, azia e má digestão, por

SOUZA PEREIRA

44 Liberdade,

por SOUZA PEREIRA

46 El Pepe

Panta,

por KATIA

GERLACH


Rosa Alamo (2017)


LITERATURA BRASILEIRA

RESENHA

Rotas da lusofonia

ANJOS PERDIDOS por

Juliana Fachin1

Lucinda Riley é irlandesa, radicada em Londres; além de escritora, foi atriz de teatro e televisão; suas obras foram traduzidas em trinta e dois idiomas. Em 2017, lança a obra titulada “arvore dos anjos”, traduzida em trinta e quatro línguas. Apresenta a história épica de uma jovem inglesa, Greta, vivendo no meio artístico de Londres, em 1945, período pósguerra. A obra foi dividida em oito capítulos e cinquenta e seis capítulos seções. Na obra, a autora faz retrospectivas entre um capítulo e outro, nos quais relata, em uma espécie de drama e suspense, toda trajetória de vida de Greta; uma jovem que saíra cedo de casa, trabalhava em um teatro, se envolveu com um soldado norte americano que estava de passagem pela cidade, acabou grávida e desamparada. O prólogo inicial “Véspera de Natal, 1985, Solar Marchmont, Monmouthshire, país de Gales”- é cheio de suspense e personagens enigmáticos; relata o início do desvendar da memória de Greta ao voltar para o lugar onde vivera muitas experiências. Já de início, apresenta várias personagens: a neta de vinte e três anos, Ava, gestante de oito meses, e Simon, seu marido; Mary, a empregada, e a namorada de “David” coprotagonista da história. Em um acidente, Greta fica em coma e perde sua memória por vinte e cinco anos; não lembrava nem dos gêmeos que tivera na juventude. O segundo capítulo “Greta, Londres, outubro de 1945”, introduz a vida de Greta. Fala da época em que trabalhou no teatro Windmill, em Londres, da relação com todos de lá, especialmente David, seu colega. Relata a infortuna paixão por Max, pai de seus filhos e de como acabou se casando com Owen, tio do David, um solteiro de cinquenta anos, sobrevivente da guerra. Greta teve os gêmeos: Jony e Cheska, com problemas de saúde; Jony faleceu após completar três anos, Cheska, aos três anos, se tornou uma estrela do cinema ao interpretar o papel de filha da atriz Shirley Temple em seu primeiro filme. O terceiro capítulo retoma a tarde de natal, no qual Greta havia emergido em suas lembranças em frente ao túmulo de Jony. O capítulo inteiro enreda a narrativa do amigo David ao lhe ajudar a preencher as lacunas de sua memória, a respeito da vida da amiga de longa data. Uma parte importante e bastante trabalhada na obra é sobre a filha de Greta, capítulo intitulado “Cheska, Londres, junho de 1956”. Constrói a imagem de boa menina, doce e angelical, e que ao mesmo tempo era uma criança doente e transtornada por traumas antigos. A menina nunca havia tido uma vida comum; com apenas dez anos, ela já era muito famosa e rica, estudava em casa e não brincava com outras crianças; seu tempo era inteiramente consumido por compromissos e trabalho. Introduz a transição e mudanças que a menina sofreu na puberdade, aos quinze anos, ela conhece o astro da música Bobby

8

Philos Revista de Literatura da União Latina | Revista de Literatura de la Unión Latina.

_________ Sobre a obra de Lucinda Riley, A árvore dos anjos, publicada pela editora Arqueiro (2017) com tradução de Vera Ribeiro.


Cross, por quem se apaixona e engravida. Relata o cenário que enredou o acidente de Greta, que a deixou em coma por dezoito meses, e Cheska em uma clínica psiquiátrica até o nascimento da filha Ava. A autora apresenta uma nova versão da personagem Cheska, uma jovem bonita, talentosa, vingativa e ambiciosa, que abandonou a filha recém-nascida e foi embora para os EUA trabalhar com o Carousel Picture, o que lhe trouxe muita fama e dinheiro. Nesse mesmo capítulo, a autora desvela a tragédia de vida do marido enfermo de Greta, um combatente de guerra cuja alma e corpo haviam sidos feridos; Owen vivia o rancor da paixão por Laura-Jane, mãe de Davis, que tivera na juventude. Relata os desencontros entre os dois e como isso o afetou até seu último dia de vida. Ao perceber que ia morrer, Owen contou em cartas todas as suas angústias, dividiu seus bens entre os antes queridos: Laura-Jane, Greta, Cheska, David e alguns funcionários. Nesta parte da história, a autora trabalha a questão dos sentimentos e ressentimentos, dos encontros e desencontros do amor. Entre meio à essas histórias, trabalha o desenvolvimento de Chescka quando menina, seus medos, fobias, traumas e doenças não tratadas, nem curadas, assim como o medo da mãe de que a filha fosse rotulada de louca ou algo parecido caso as mídias viessem a descobrir. O quinto capítulo retoma a data de “Dezembro de 1985, Solar Marchmont, Monmouthshire, país de Gales”, no qual David termina de narrar a história de vida de Greta, ajudando a amiga a recordar suas lembranças. Nesse capítulo, o foco é Greta, Ava, David e sua namorada Thor. Ao entrelaçar as personagens, que em partes ainda não faziam nexo na história, a autora faz as ligações entre o cenário principal e secundário de cada capítulo. “Ava, abril de 1980” é o sexto capítulo, também bastante trabalhado pela autora. Discorre sobre a vida de Ava, que aos dezoito anos almejava cursar a faculdade de medicina veterinária. Relata as festividades dos oitenta e cinco anos de Laura-Jane, no qual Ava conhece Simon, neto de um amigo de LJ. Retoma a personagem Cheska, relata a tragédia a que a vida da moça havia se tornado, falida e desmoralizada artisticamente pelos escândalos e promiscuidade que vivia. Descreve a figura protetora de David, sempre cuidando de Cheska e Greta; visitava as moças sempre que podia. O capítulo começa a desenrolar uma nova trama quando David encontra Cheska transtornada e à beira do suicídio, ao mesmo tempo em que explora a imagem do homem que buscou a vida inteira o amor de Greta; durante a longa espera namorou Tor, uma figura inteligente e aventureira; aventuraram-se nas trilhas do Himalaia, em uma viagem de três meses. Cruza as histórias com o retorno de Cheska a Gales duas semanas depois da festa de LJ. Retomando a imagem psicopática da moça, ao interpretar a imagem da mãe arrependida que quer corrigir os erros com a filha, presenteando a moça e agradando a todos com seu jeito meigo de ser, mas relata os motivos do oportuno regresso, a herança que havia recebido quando era criança e que havia ficado sob tutela de Laura-Jane. Como Cheska abandonou a filha com Laura-Jane, sua herança foi judicialmente passada para a menina; enfurecida, desencadeia uma séria de desastres, causa um derrame em Laura-Jame, assume as finanças da fazenda e, por vingança, ateia fogo na casa; assume a imagem de mãe arrependida para voltar a ter acesso ao meio artístico Britânico e gasta parte da herança, que foi destinada aos estudos de Ava, em compras, festas e custos da suíte do hotel Savoy, o mais caro de Londres. Nesse momento, a trama começa a se desenrolar e a psicose de Cheska começa a aparecer; confunde o namorado Simon de Ava com o velho amor da adolescência, Bobby Cross; tu-

9

Philos Revista de Literatura da União Latina | Revista de Literatura de la Unión Latina.


do vem à tona novamente, a obsessão, rancor, desejo e manipulação; pela primeira vez, a autora apresenta todas as facetas da personagem Cheska juntas; é o ápice da história. Apresenta a imagem da mulher bonita, talentosa, mas que era completamente transtornada, desiquilibrada, ao exibir uma série de ações cometidas pela moça. Começa pela internação de Laura-Jane, debilitada em uma casa de idosos clandestina. Atenta contra a própria filha Ava, empurrando-a à frente dos carros em uma noite nebulosa, como o ocorrido com Greta anos antes. Ataca violentamente o jovem Simon no teatro West End, pois o confundia com Bobby, atacado anos antes por Cheska no mesmo local. Demonstra o quanto a personagem era perturbada. Nessa parte, retoma a figura forte, paternal e equilibrada de David, ao regressar às pressas de suas férias para resolver a situação. David encontra Laura-Jane, salva Simon, protege Ava e interna Cheska no hospital Southwark, e depois em uma clínica psiquiátrica na Suíça. No último capítulo, desenrola-se toda história; a autora faz ligação com o primeiro “Dezembro de 1985, Solar Marchmont, Monmouthshire, país de Gales”, retorna à noite de natal, quando David fala para Greta sobre as consequências dos atos de Cheska, sobre a personalidade bipolar transtornada da menina que se tornou mulher e ninguém havia percebido, por saber esconder bem os sentimentos. Um dia depois de Greta retomar as lembranças e ouvir a versão de David sobre sua história, recebe a ligação da clínica onde Cheska estava hospitalizada e à beira da morte, por complicações da pneumonia que teve. Greta viaja para passar as últimas horas com a filha; ao retornar, decide seguir a vida, se aproxima da neta e, por fim, descobre que amou David a vida toda; com o término do noivado dele com Tor, decide contar a ele que, na noite de seu acidente, iria revelar que sempre fora apaixonada por ele, só não havia se dado conta. Então os dois decidem ficar juntos; Greta vai morar com a neta para ajudar a cuidar dos gêmeos que Ava teve, Jonathan e Laura. Por fim, uma nota da autora explica que o livro foi reescrito, em nova versão de “Não exatamente um anjo”. A obra norteia um cenário pós-guerra, cheio de moral, costumes e regionalismo; a figura da mulher em busca do sustento de seus filhos órfãos de pai; o cenário dos resquícios traumáticos da guerra, em que várias personagens protagonizaram. A preocupação com a imagem social. Da busca pela felicidade e realização financeira em tempos ruins, entre outras questões abordadas. Fato interessante da obra é que várias informações citadas como: perfume "Leichner” usado por Greta, a estação Abergavenny e a Paddington, o teatro Windmill, o senhor Van Damm, dono do Windmill, Shirley Temple, o hotel Savoy, Carousel Picture, hospital Maudsley em Southwark, realmente existiram, nem tudo é ficção. Diria que é uma boa trama e suspense. A autora sempre deixa um mistério no ar, desvendado apenas em capítulos adiante, o leitor precisa retomar suas lembranças e relacionar as novas informações. O diálogo de Greta e David conduz a história cheia de personagens, alguns mais presentes, outros com vaga menção. O diálogo são relatos, contados minuciosamente, que prende o leitor ávido por novas descobertas.

10

Philos Revista de Literatura da União Latina | Revista de Literatura de la Unión Latina.

1

Juliana Fachin

(Brasil, 1983) Bibliotecária e escritora por diversão. Escreve sobre Fluxo de Informação, Publicação e Comunicação Científica, Ciência da Informação.


Rosa Alamo (2017)


LETTERATURA ITALIANA Per una latinità plurale

DENTRO LA SCATOLA da

Daniela Balestrero1

La stanza impolverata chiedeva di essere aperta da molto molto tempo, ma Lavinia continuava a rimandare quel momento, fino a quel giorno. Lo scricchiolio della porta la fece sobbalzare, si era scordata di quel difettuccio che la impauriva fin da ragazzina, la aprì piano piano come se stesse entrando in un luogo segreto, di nascosto. Di nascosto dalle emozioni dei suoi ricordi. Era la casa delle vacanze ed era giunto il momento di una rinfrescata, pratica ed affettiva. Smistando ricordi e oggetti, tra un sospiro e l'altro, scatole e scatoline venivano ora, controllate, scelte e ripulite con cura. Parecchio sarebbe finito nella spazzatura, altro a qualche ente di beneficenza. Il più era fatto, ancora uno scatolone ed un baule, poi si sarebbe complimentata con sé stessa per il lavoro svolto. Il baule decise di tenerlo per ultimo, era il suo preferito, voleva controllarlo con più calma, assaporando ogni chincaglieria il tempo le aveva conservato. Sul fondo, una scatola di latta decorata con fiorellini rosa e blu, luccicava al sole di quel pomeriggio autunnale. La raccolse con delicatezza come se avesse paura di romperla, quasi fosse di cristallo. Un cristallo limpido, trasparente, fragile come i ricordi e le emozioni che racchiudeva. Le sue mani la strinsero per un attimo, una scossa calda le attraversò la mano bruciandole le dita: davanti ai suoi occhi il viso sofferente di sua madre. Lasciò cadere la scatola sul letto, chiuse gli occhi, ma il viso di lei continuava a fissarla. Si guardò le dita, erano arrossate e dolenti. Cercò di calmarsi, era solo immaginazione, pensò. Tornò a guardare la scatola gettata sul letto. La guardò meglio: era una comunissima scatola di latta. La sua forma ricordava un misto fra i contenitori dei biscotti delle nonne e un piccolo scrigno. Rosata come un tramonto, con piccoli disegni colorati che ricordavano a volte piccoli fiori a volte cuoricini. Da piccola la chiamava “la scatola delle sorprese”: ci nascondeva di tutto, spesso si dimenticava addirittura del contenuto, mentre la mamma e la nonna le lasciavano all'interno piccole sorprese, pietre colorate, caramelle o piccoli monili. La sfiorò ancora, appena un poco, e un dolce brivido la pervase, un'emozione profonda di gioia come nel giorno che Aldo le confessava di amarla teneramente da tempo. Era il suo passato, dolce e sofferente, racchiudeva le abitudini quotidiane, il profumo di viole, il dolore di sua madre, i primi amori. Non aveva sbagliato a voler riordinare quella stanza, perché era un po' come riordinare la 12

Philos Revista de Literatura da União Latina | Revista de Literatura de la Unión Latina.

RACCONTO


sua vita. Un tempo che non riusciva a dimenticare e non riusciva a ricostruire. Le serviva un legame che diventasse presente e futuro, la sua vita racchiusa in una scatola che non la rendeva prigioniera, ma partecipe di sentimenti contrapposti che non accettava. La figlia Paoletta girava per casa con shorts cortissimi e una camicia dal taglio maschile. Non le era mai piaciuto quell'abbigliamento, ma stavolta sorrise e non disse nulla. Appoggiò la scatola sopra la mensola, dava un tocco “antico”alla cucina. «Carina...ma è vuota!» esclamò Paoletta, rigirandola tra le mani. «Non è vuota. C'è tutto il mio mondo lì dentro, quello che ora non c'è più.» stava per replicare Lavinia tutto d'un fiato. Ma non lo fece e si limitò ad un piccolo sorriso. «Mamma, allora, posso prenderla io? Ci metto tutte le mie “gioie”» concluse la ragazza. Lavinia conosceva bene le “gioie” della figlia quindicenne, bracciali di cuoio e metallo e ritagli di riviste con artisti rap e rock. «Si, certo» rispose con un filo di voce. Infondo, lì le sue gioie c'erano già state!

13

Philos Revista de Literatura da União Latina | Revista de Literatura de la Unión Latina.

Daniela Balestrero (Torino, Itália, 1960). Membro del Comitato editoriale della Rivista Philos. Dal 2015 collabora con un giornale locale web scrivendo articoli di spettacolo e attualità. Alcuni dei suoi scritti si possono trovare anche su il Blog di Ramingo.it. 1


LITERATURA BRASILEIRA Rotas da lusofonia

JANE EYRE EM TRÊS ATOS por

Munique Duarte1

Sim, eu sei que há muita coisa escrita por aí sobre o clássico Jane Eyre. E sei também que devemos fazer uma longa mesura às irmãs Brontë quando falamos de literatura inglesa do século XIX. Aliás, eu diria da literatura inglesa em geral. Por isso, serei passional. Relatarei a vocês minhas impressões personalíssimas sobre a obra. Um livro que classifico como um dos melhores que já li. Um livro que me fez ficar ansiosa pela hora de abri-lo novamente para conferir o que seria feito de cada personagem. Jane Eyre foi lançado em 1847 e, de cara, fez um sucesso estrondoso. Charlotte Brontë imprimiu na obra um pouco de si mesma na narrativa, usando técnicas primorosas de construção de texto. Conta-nos a história de Jane, uma menina órfã criada (e rejeitada) por sua tia que acaba enviando-a para estudar em uma instituição de caridade. De lá, ela sai querendo “conhecer o mundo” e começa a trabalhar como preceptora em uma mansão. Apaixona-se pelo patrão, Edward Rochester, descrito pela autora como feio e de personalidade forte. O relacionamento passa por turbulências até desembocar num final que, enfim, nos faz respirar novamente em ritmo normal. Resumindo, é isso. Lendo, é muito mais do que isso! Transmitirei aqui três momentos que me marcaram, descrevendoos com as palavras tristeza, pavor e aflição. Ainda no começo do livro, quando Jane Eyre parte para estudar em uma instituição de caridade, ela enfrenta a dura rotina de pouca comida, frio e castigos. Perdida em novos e terríveis hábitos, ela faz amizade com a franzina Helen Burns. Elas se ajudam entre tantas dificuldades. A pouca comida e as roupas finas que as alunas usavam fizeram com que muitas adquirissem tifo, em uma epidemia que varreu a escola. Jane foi poupada, mas Helen não. “Mas um ou dois dias depois fiquei sabendo que a Srta. Temple, voltando para o quarto ao amanhecer, me encontrara deitada na cama de Helen Burns, meu rosto em seu ombro, meu braço em torno de seu pescoço. Eu dormia – e Helen estava morta.” (p. 103). Fechei o livro por alguns minutos e me rompi em prantos. O segundo momento acontece quando Jane já está trabalhando na mansão do Sr. Rochester, Thornfield Hall. É a véspera do casamento dela com o patrão (e é depois disso que a história sofre uma grande reviravolta!). Deitada em sua cama, Jane, entre acordada e adormecida, vê uma mulher muito estranha entrar em seu quarto, descrita como uma “vampira”. Ela pega o véu da noiva no armário e o rasga ao meio. “– Então afastou a cortina da janela e olhou para fora. Talvez tenha visto que amanhecia porque pegou a vela

14

Philos Revista de Literatura da União Latina | Revista de Literatura de la Unión Latina.

COLUNAS


e desapareceu pela porta. Quando passava ao lado de minha cama, ainda parou. Aqueles olhos de fogo me olharam. Ela aproximou a vela do meu rosto e ali a soprou, apagando-a. E eu desmaiei. Pela segunda vez na vida, apenas pela segunda vez, eu perdi a consciência, por puro terror.” (p. 331). Fechei o livro por alguns minutos, com arrepios pelos braços. Imaginei aquela cena horripilante acontecendo comigo. Dormi com esse pensamento. Depois de muitos acontecimentos na narrativa, relato o terceiro momento. Jane já não trabalhava mais em Thornfield. Abandonou a mansão às pressas e tenta, outra vez, recomeçar a vida, sem nem um tostão no bolso. Para em uma aldeia distante e tenta pedir emprego, mas não conquista a confiança de ninguém. Dorme ao relento por alguns dias, inclusive na chuva, e passa fome ao ponto de pedir a uma menina um resto de mingau. Dias penosos para Jane. “Como antes, tentei encontrar trabalho. Como antes, fui repelida. Como antes, morri de fome. Somente uma vez passou algo de comer por mus lábios: foi na porta de um chalé, quando vi uma garotinha se preparando para atirar um resto de mingau aos porcos. (...) A menina esvaziou a vasilha na concha da minha mão e eu devorei o mingau com a maior voracidade.” (p. 383). Fechei o livro por alguns minutos. A esta altura, sentia, como Jane, seu frio, fome, solidão e humilhação. O que eu faria se estivesse no lugar dela? A narrativa em primeira pessoa de uma história com personagens tão intensos nos arrebata por completo. Charlotte Brontë era passional em sua escrita, muitas vezes imprimindo o seu autorretrato. A escritora inglesa Virginia Woolf (1882-1941) abordou as irmãs Brontë em alguns de seus ensaios, analisando-as em paralelo. Confere-se registrado no livro O valor do riso, que reúne textos da autora: “Quando escrevia, Charlotte dizia com eloqüência e esplendor e paixão: “Eu amo, eu odeio, eu sofro”. Sua experiência, apesar de mais intensa, acha-se no mesmo nível que a nossa.” (p. 161). É assim que Charlotte conquistou e conquista leitores fieis. Após encerrar a leitura de Jane Eyre, não li outro livro por quinze dias. Precisei de um tempo para acalmar as emoções e digerir a obra. Por fim, imaginei Charlotte recebendo a notícia que uma leitora do ano de 2016, residente no interior do Brasil, havia lido sua obra e se emocionado com ela. Uma obra escrita há mais de um século e meio. Charlotte e também Jane tornaram-se imortais.

15

Philos Revista de Literatura da União Latina | Revista de Literatura de la Unión Latina.

Munique Duarte (Santos Dumont, Brasil, 1979). É jornalista, formada pela Universidade Federal de Juiz de Fora. Lecionou língua espanhola por dez anos, tendo estudado no CELEC – Córdoba (Argentina). Tem textos publicados em diversos sites, revistas e jornais literários, como Jornal Relevo, Jornal Opção, Revista Diversos Afins e Livro&Café. É idealizadora e apresentadora do programa mensal Literatura na Rádio Cultura, em Santos Dumont-MG. Participou das antologias Escritos de Amor (Casa do Novo Autor Editora) e Poesia e Prosa no Rio de Janeiro (Taba Cultural). Desde 2010, mantém seu blog de contos e poemas, Textos Imperdoáveis. É colunista da Philos com a sessão “Não deixe de ler”. 1


LITERATURA BRASILEIRA

CONTOS

Rotas da lusofonia

O VESTIDO VERDE MUSGO DE TERESINHA Francisco Carvalho por

Tarde de sábado. Sentados na área de lazer do asilo, onde passam seus últimos anos, dois idosos conversam: - Celestino, lembra daquela sensação da juventude? - De qual sensação você está falando? - Daquela, da primeira namoradinha. - Acho que lembro, por quê? - Penso que ela voltou. - Agora? Como descobriu isso? - Estou com taquicardia, sinto calor e frio ao mesmo tempo, minhas mãos não param de suar, estou excitado e com medo, ou seja, eu estou me apaixonando de novo, Celestino. - Isso é a morte, Abílio! - Eu estou morrendo? - Está sim, velho! - Mas parece amor. - É a morte chegando. - Mas parece Teresinha. - Que Teresinha, Abílio? - O meu primeiro broto. - Broto? Eu vou pedir ajuda. - Não! deixa ela vir, Celestino. - Deixar quem vir, Abílio? - A morte, deixa ela vir. - Você enlouqueceu, velho! - Não, mas eu já vivi demais. - E isso lá é motivo para querer morrer? - É motivo para querer vê-la chegar, amigo! Há tempos nenhuma dama vem me ver, e essa, quando vem, me traz a sensação do primeiro amor. Deixa ela vir, Celestino! Quem sabe está usando o vestido verde musgo de Teresinha, aquele bonito que deixava o corpo dela querendo sair para me dizer "oi", deixa-a! Antes que Celestino pensasse qualquer boa razão para Abílio não se entregar à morte, o velho tombou a cabeça para o lado e, com um ar juvenil estampado no rosto cheio de rugas, morreu.

16

Philos Revista de Literatura da União Latina | Revista de Literatura de la Unión Latina.

1


Meses depois, sentado no mesmo lugar do asilo onde estava quando Abílio morreu, Celestino sentiu seu coração acelerar, calor e frio corriam por seu corpo, as mãos suadas não secavam, e uma excitação amedrontadora lhe acertava sem piedade. - É você, morte? Como você quer fazer isso? Posso lhe pedir um favor? Vêm no vestido de Teresinha! Quero ver teu corpo me dizendo "oi!", vem!

Francisco Carvalho 1

(Maceió, 1988). Escritor, poeta, professor de História, desempregado.

17

Philos Revista de Literatura da União Latina | Revista de Literatura de la Unión Latina.


Rosa Alamo (2017)


LITERATURA BRASILEIRA

CONTOS

Rotas da lusofonia

SAHHIR, O PERSCRUTADOR, ENCONTRA-SE COM DEUS Sammis Reachers por

1

Mercadejando metais e breves víveres nas plagas da Mesopotâmia, umbigo-que-nãocicatriza do mundo, gastava-se o árabe criado por judeus, órfão agregado a rebeldes, Sahhir. Ironicamente referido como “O Devorador de Papiros” ou “O Perscrutador” pelo rude populacho dos mercados a quem servia, em certa e ditosa feita, enveredando sozinho entre o deserto de Syn e a gloriosa Madinat as-Salam, dita Bagdá (Bag, "deus", e dād, "dado"; "dado-por-Deus", no persa médio, sexta das línguas de Sahhir), encontrou-se o curioso mercante com o Anjo do Senhor. Prostrando-se em terra, clamou por seus pecados. - Que desejas, pequeno barro, semelhança do Altíssimo? Sahhir, locupletado de luz e horror, não confabulou curas ou joias, palácios ou patentes: - Sou pó e do pó lhe adoro, Deus de meus benfeitores, e sei que morrerei por lhe contemplar. Sabes bem, ó Onisciente, que desejo, com humildade, saber e apenas saber. Conte-me, rogo, como e para que fizeste o Universo? - Tais questões fogem à capacidade que lhe dei, ó enxertado, como o voar está distante de Beemoth-a-baleia. No entanto, naquilo para o que a engendrei, vês como é deveras insuperável e poderosa? - Sei bem que não poderei entender, Senhor; a mim me basta o ser maravilhado.

19

Philos Revista de Literatura da União Latina | Revista de Literatura de la Unión Latina.

Sammis Reachers (Niterói, 1978). Poeta, escritor, antologista e editor. Autor de cinco livros de poesia e um de contos. 1


Rosa Alamo (2017)


LITERATURA BRASILEIRA

CONTOS

Rotas da lusofonia

A MULHER por

Laura Torres1

a mulher sente as mãos úmidas, como pequenos animais viscosos que não a obedecem.

“por ordem do juiz”. “por favor me acompanhe”. a mulher foi retirada do plenário do Júri, por ordem do juiz, por estar mexendo no celular. tinha sido avisada. mas é desobediente, sempre foi, e não imaginou que haveria fiscais. que absurda falta do que fazer, fiscalizar se a plateia mexe ou não no bendito aparelho, ou lê um livro, ou jornais. a mulher sai do fórum um pouco tonta, não identifica de onde vem a voz que diz seu nome. é um ex-professor que, muito simpático, pergunta por seus textos. a mulher diz, orgulhosa, que foram publicados em revista três - veja bem, três - deles, e que pretende mandar uns originais para publicação. já mandou para duas editoras, mas não obteve resposta. despedem-se, a mulher segue, as mãos ainda molhadas de pavor. a mulher está apavorada, não por ter sido retirada do plenário do júri, mas por esse primeiro confronto com a autoridade instituída. sempre foi uma rebelde e nunca sofrera maiores consequências. mas ali ela viu que o mundo que tinha escolhido para navegar era de outra sorte. por ordem do juiz, qualquer coisa. por ordem do juiz, não importa. a mulher segue até a Praça Raul Soares e é quase atropelada no cruzamento, distraída que está pensando nos protocolos e nas capas pretas dos atores daquele teatro, o júri. a mulher é péssima com protocolos. sua tardia escolha de profissão talvez esteja fadada ao insucesso. nunca quis, verdadeiramente, uma profissão. queria escrever, só sabe escrever, mais nada. escreve compulsivamente, mesmo quando sente que não muito com sangue e vísceras o que dizer. escreve e vai em voz alta lendo para si mesma, apaixonada pelo som da própria voz. a mulher é uma narcisista. a mulher é uma narcisista apavorada, que tem medo do mundo que escolheu para percorrer, que tem medo do fantasma da criança dourada que foi, que tem medo dos homens (e os adora), que tem medo. a mulher se basta em seu medo, o coração acelerado e a vista alerta, como um cão ameaçado. a mulher fareja inimigos imaginários, sendo ela mesma seu pior algoz. a mulher se sabota de uma forma perversa, com os requintes todos mais cruéis. e ela sabe disso, e observa de fora da cena e 3, 2, 1, voilà, a mulher se atira na lama novamente, debruçada com esmero, bebe, sorve a água imunda a grandes goles. suja embaixo das unhas ao arranhar o fundo da poça em que chafurda como uma piara de porcos, sôfrega, bêbada da vertigem da queda. ah, como a mulher cai, e com que graça, esse ballet tão sabido e bem executado desde sempre, ou quase. a mulher tem a sede do infortúnio, de atrair para si o vórtice e o naufrágio - que sentido faria o barco de papel que tem no antebraço direito, se não navegasse vórtices? a mulher que tem o barco de papel arranhado pelas garras de um gato demoníaco, um prenúncio de “não bastará” que tem as costelas marcadas por pequeninas constelações auto infligidas e manchas de sol, que adora, apesar de seu pendor para noturnos, que tem os calcanhares rachados por ter andado a vida descalça, tem a coragem dos apavorados. daí o medo. o não-medo. a fome. os olhos de não caber. a mulher, ela é bastante. 21

Philos Revista de Literatura da União Latina | Revista de Literatura de la Unión Latina.

1

Laura Torres

(Belo Horizonte, 1981). É escritora de gaveta e revisa textos alheios.


Rosa Alamo (2017)


LITERATURA BRASILEIRA Rotas da lusofonia

CARAPAÇA DAS FACHADAS por

Lucas Apotiguara1

Que é o mundo, senão fachada? O rapaz tocava algo lindo no piano. Demasiado lindo. Tão denso que quase chorei. Junto às árvores e ao belo dia lá fora, a música corrompia o barulho da cidade. Confesso que chorei, fazia tempo que uma bobagem tão cotidiana e séria não me tocava tão fundo. Faltava meia hora pro meu ônibus partir, mas juro que passaria a eternidade nesse outro mundo. O mesmo rapaz pianista, outrora, bem poderia estar na rua, com sua pele escura, observado por seguranças de lojas; outrora, poderia ser parado na rua e confundido com bandido. Bandida é a nossa ante paixão ao outro. Arre! Não sei expressar em palavras aquilo que só meus olhos e ouvidos poderiam falar por mim. Há coisas, no entanto, expressáveis somente pelas notas que coincidem com o ritmo leve do coração de cada um, de forma única. Há mistérios entre as notas e os hemisférios paralelos dos ouvidos, até que atinjam aquilo que poucos artistas atingem: o paralelo dos hemisférios verticais entre a razão cefálica e a emoção do músculo drenatório do sangue. Há um mistério largo: quanto do seu corpo conclui e quanto intui. Que notas, que DósRés-Mis, quantos são o suficiente pra furar a carapaça da pele e das aparências. Arre, é um desabafo sobre como homens se preocupam com as aparas dos bigodes e as mulheres tingem os cabelos cor gema-de-ovo. Gravatas e paletós e vestidos; eis a casca branca do ovo da qual se arroupa uniformemente. E seguimos esquecendo as aparas das notas soltas, das inúmeras formas e cores de cascas e vozes e gritos soltos no mundo; como propunha Amadeus Mozart, das infinitas tessituras coloridas capazes de tingir de gema-de-ovo os bigodes das cortinas que cobrem nossa ínfima visão. Uniformidade, sangue azul, tradição, ordem e progresso; eis as bobagens do século. Interpelei: "Ó irmão, aquele chapéu é pra te ajudar?" Com um sorriso simpático disse que sim. Parabenizei-o. Senti-me pequeno perto dele, tão pequeno quanto uma centopeia perdida na imensidão do banheiro; tão pequeno quanto um peixe no cardume do tártaro oceano; tão pequeno quanto uma nota solta nos satélites da subjetividade humana. Uma buzina soa ao fundo, o jornalista, pusilânime, pensou ser instrumento de preto; ledo engano: o preto inventou o afoxé, agogô, berimbau, atabaque, cuíca, gaita, ganzá, recoreco e outros 500. Mas a buzina não. Depois desse comentário, fiquei perplexo, com dúvida sobre em qual século resido. Doravante, o preto reinventou o piano. Mãos, mãos, mãos, mãos... muitas mãos em uma só, ao mesmo tempo que interpreta Bach

23

Philos Revista de Literatura da União Latina | Revista de Literatura de la Unión Latina.

CONTOS


ou Beethoven, suas mãos carregadas de ancestralidade anímica do sangue que flui sua raiz negra, ao mesmo modo que se torna o ventríloquo mais fiel dos gênios da música. Tocava em terceira pessoa, não, em primeira. Nunca vira arte em primeira pessoa tão bem executada diante dos meus marejados e petrificados olhos... Quantas e quantas mãos são necessárias pra se fazer um piano existir no espaço psicofísico ou na consciência psicogenética artística. Lancei mão de cinco conto por esse conto que vos recito. Por fim, daqueles dedos que fazem música, daquelas mãos que dão estofo à arte, não apertei uma mão de carne e ossos, não, não pense isso. Apertei o talento, balancei a cabeça umas três vezes, olhei nos olhos do rapaz, clamei bem baixinho comigo mesmo para um dia ser também artista; e fui-me embora.

24

Philos Revista de Literatura da União Latina | Revista de Literatura de la Unión Latina.

Lucas Apotiguara (São Paulo, 1993). Sociólogo em formação, poeta, cronista, ensaísta e ator. Publicou recentemente o seu livro de poemas, Tempo perdido, pela editora Kazuá. Na Philos, participou como artista convidado da Latinité Tournée em Recife, São Paulo e Rio de Janeiro. 1


Rosa Alamo (2017)


LITERATURA BRASILEIRA

CONTOS

Rotas da lusofonia

SOBRE MEMÓRIA, LEMBRANÇAS E DEVANEIOS Carlos Barth por

1

Sou capaz de lembrar, com riqueza de detalhes, eventos irrelevantes que aconteceram há muitos anos, ao mesmo tempo em que esqueço as coisas mais óbvias. “Em que ano estamos?”, pergunto à minha esposa que me olha como se estivesse frente a um estranho ou um louco. Mas, se me pedirem, canto sem titubear o tema da campanha de Ulysses Guimarães nas eleições de 89. Tenho a capacidade, também, de ficar impressionado com fatos que costumam passar despercebidos pela maioria das pessoas. E alguns desses fatos costumam me vir à memória de forma recorrente, provocando sensações como se tivessem acontecido há instantes. Tal qual uma noite, há cerca de quinze anos, quando voltava do trabalho e o ônibus parou no sinal vermelho. Desafortunadamente, logo ao lado de minha janela havia uma mulher caída no chão, morta. Havia sido atropelada. Era uma moça bonita, jovem, vestindo blusa branca e saia de algodão azul. Roupas humildes, simples. Era morena, tinha uma vasta cabeleira negra e crespa, pousada sobre uma poça de sangue que, não sei por qual razão, me lembrou o halo de uma santa. Um halo vermelho circundando sua bela cabeça. A bicicleta, com o guidão e roda dianteiros tortos, estava caída a seu lado. Um grupo de curiosos observava seu corpo. Quanto tempo fiquei parado naquele semáforo? Talvez uns 30 segundos. Pouco tempo, mas o suficiente para compor em minha mente toda uma narrativa sobre a vida daquela moça. Tive certeza absoluta que seu nome era Rita. Por quê? Não sei dizer. Talvez tenha me ocorrido o nome devido a impressão do halo vermelho ao redor da cabeça, que instintivamente associei a Santa Rita de Cássia, minha santa de devoção. Por momentos que duraram uma eternidade, pensei naquela desconhecida que teve a vida bruscamente interrompida. Teria namorado? Provavelmente. Tão bonita... Imaginei a casa simples onde era aguardada. A preocupação dos pais. Rita está demorando, e essa cidade está tão violenta. “Onde está essa menina que não chega? Estou começando a ficar preocupada...” diria sua mãe neste momento. Teria irmãos. Muitos, com os quais dividia a pequena casa na periferia. Por isso, desde muito jovem, Rita trabalhava como doméstica para ajudar na renda familiar. Também por isso havia abandonado a escola, onde aprendera somente o básico. Ia e voltava do trabalho de bicicleta, para economizar. O pai era alcoólatra, embora fosse um bom homem. A mãe fora bonita como ela quando jovem. Hoje é uma mulher triste e envelhecida pela vida di-

26

Philos Revista de Literatura da União Latina | Revista de Literatura de la Unión Latina.


fícil e pelos planos não realizados. Rita tinha muitos sonhos. Casar com um rapaz honesto e trabalhador, ter filhos, uma casinha. Todos sonhos abortados. Vieram-me à mente as palavras de Bukowski. “Às vezes, não há nenhum aviso. As coisas acontecem em segundos. Tudo muda. Você está vivo. Você está morto. E as coisas continuam.” O sinal abriu e o ônibus seguia seu caminho. Rita continuou lá, sem vida, estirada no asfalto; a cabeça pousada no halo de sangue. Continuou lá e na minha mente por alguns dias. Até que a imagem foi se desvanecendo, perdendo força ante os eventos cotidianos, até sumir por completo, voltando em cores vivas de tempos em tempos em meus devaneios. A vida continua.

27

Philos Revista de Literatura da União Latina | Revista de Literatura de la Unión Latina.

1

Carlos Barth

(São Leopoldo, Rio Grande do Sul, 1979). É engenheiro de profissão e escreve nas horas de folga. Teve trabalhos publicados nas revistas Philos, Subjetiva e Subversa.


Rosa Alamo (2017)


LITERATURA ESPAÑOLA

CUENTOS

Rutas Literarias de Iberoamerica

EL ENCUENTRO1 por

Gleiber Alvarez1

La primera vez contemplé mi cádaver como todos los hombres. Con los años, lo

encontré en el mismo lugar; yacía con la antigua lozanía al cielo, aunque a unos pasos de un bosque de olivos. Apenas vi unas escoriaciones en sus brazos y quise buscarle un mejor sitio antes de que cayese el sol. Una pira de varios días habría sido fácil con tanto pedernal en la tierra. También pensé: ´´Si ya cargo con este muerto, ¿para qué complicarlo?``. A los cuatro vientos sólo había llanura levantando polvo y la arboleda, toda presta a lo que quisiera hacerle al muerto. Cuando lo hube tomado, quise juntar la hojarasca para una yacija, pero lo recosté en uno de los troncos de la orilla. Y me pregunté, mirando a sus ojos, si lo trataba bien porque temía que se levantase y tentara en mi contra o porque –a pesar de las muchas estaciones desde la última vez que lo vi, de los olivos que habían crecido cerca de él– todavía se parece a mí. Sólo escuchaba la brisa. En la mancha que dejó en el polvo, unos destellos llamaron mi atención. Era una trinca de discos apenas más grandes que un dracma; no diré que eran iguales, porque unas líneas muy finas los diferenciaban, duros como piedras, al fondo de mis manos. Yo no entendía, siempre lo supe sin égida y ahora estas piezas arrojaban luz a mi cara. Acaso si lo hubiese levantado aquella vez... Como no había viso nada parecido, me apresuré a envolverlos en el retazo de cuero que había hallado a pocos pies. Dejé el muerto y partí. Al voltear, ya no distinguía a la arboleda del horizonte.

29

Philos Revista de Literatura da União Latina | Revista de Literatura de la Unión Latina.

Gleiber Alvarez (San 1

Carlos de Austria, 1994). Escritor. Licenciado en Educación Mención Castellano y Literatura por la UNELLEZ. Publicó ‘‘Poemas de la espera’’ en Letralia.


Rosa Alamo (2017)


LITERATURA BRASILEIRA Rotas da lusofonia

VOLÚPIA por

Caio Lobo1

Eu tenho uma creca de estimação. Está no topo de minha cabeça, soberana. Cultivo-a assim: a cada um ou dois dias, embora seja difícil aguentar tanto tempo, descasco-a com a unha, que mantenho propositadamente grande para facilitar a tarefa, bem como torná-la mais prazerosa. Não a arranco de uma vez (a creca); não faz sentido. Vou enfiando a unha lentamente em suas bases, cercando-a, levantando as beiradas da ferida e deixando o centro para o final. Às vezes observo meus dedos, que se avermelham nas pontas. Não sinto prazer à vista do sangue; confesso que me ataca até uma ligeira náusea. Nada, porém, que me faça desistir desta benéfica e milenar terapia. Isto já dura há algum tempo, o que me surpreende. Nunca havia cultivado uma ferida antes. Estranhamente, nasceu-me outra logo ao lado, menor, e que me serve para realizar uma espécie de revezamento. Posso cutucar indefinidamente a cabeça, dividindo o coçar segundo a metodologia fordista. Produzo cascas diariamente, e umas das maiores satisfações que o ser humano pode ter nesta vida é ver com habitualidade estas graúdas peles retorcidas e ásperas entre os dedos; contemplá-las com uma sensação de vitória indefinível; ser feliz em segredo, absolutamente. Ninguém sabe que elas existem, as crecas. Minha esposa por vezes pergunta: em que é que você tanto mexe nessa cabeça? Ao que eu respondo dissimulado: uma coceira, acho que piolho. E ela diz: eca! afastando-se, o que me permite continuar sendo feliz, egoística e transcendentalmente feliz, na minha solitária atividade. Mas preciso ter cuidado, tenho certeza de que em algum momento ela pedirá para ver o que tenho ali, assim que vencer o medo dos ameaçadores piolhos. O primeiro ataque já veio quando disse: vá ao médico, ora bolas, que mania terrível de ficar empurrando com a barriga seus problemas de saúde! Gritou um palavrão e deixou o quarto, onde agora hiberno, coçando a cabeça, ela achando mesmo, coitada, que começava a pegar meus pseudopiolhos. O cabelereiro deve ter visto pelo menos uma delas (das crecas) porque perguntou, antes de começar o corte: dói aqui? - e eu imediato: de jeito nenhum! – imaginando, o que se mostraria correto dali a um minuto, que a passagem do pente me proporcionaria um prazer ainda maior. Devo ser masoquista, não sei. Também não me preocupo, desde que não pretendam curá-las, as crecas. Sempre há desse tipo de energúmeno que deseja patologicamente ajudar os outros, sem perceber, claro, que sua necessidade é em si mesma uma doença. Revolucionários a mesma coisa. Todos esses defensores, em suma, de um dever ser qualquer me dão asco, com suas premissas condicionadas que eles não enxergam. Sobe-me ao peito uma revolta, juro! Felizmente, tenho as feridas – que nestes instantes

31

Philos Revista de Literatura da União Latina | Revista de Literatura de la Unión Latina.

COLUNAS


odiosos descasco sem pensar duas vezes. Como não poderia deixar de ser, tornei-me um sujeito melhor. A mulher notou-o e agora costuma enunciar: você está diferente, mais calmo, mais amoroso. E é verdade. O problema é que desconfia de algo, olha-me estranho; outro dia pegou meu telefone e olhava as mensagens – vi-o no reflexo da televisão. Reconheço seu mal: ciúmes. Pensa que tenho outra, afinal, não é verdade que os homens se tornam mais afetuosos quando têm amantes? Quando entendi sua suspeita, tive que me trancar no banheiro para rir, ininterruptamente, por dez minutos. Foi tão hilário que por um momento levei a mão à cabeça, preocupado, o olhar tenso no espelho da farmácia, mas ufa, elas continuavam lá. O cachorro agora lambe minha perna durante quinze minutos, como se eu fosse um Deus, e mamãe me observa indagadora quando vou almoçar aos domingos. O que está acontecendo? – pergunta - você nunca vem almoçar aos domingos. Olha meus cabelos, e tremo. Que bagunça é essa na sua cabeça, diz, avançando as mãos. Nada, mãe, preciso de um novo corte, esse é muito juvenil. A velha tem olhar de lince, mais um segundo e estou perdido. Até o próximo domingo, mãe! Ela insiste em me alisar a cabeça, como quem não quer nada, e eu a afasto beijando-lhe a testa. Mal entro no carro, para aliviar a tensão, ponho-me a gozar da volúpia, é sempre bom antes de dirigir. No trabalho, os colegas perguntam-me se estou fazendo Yoga. Digo que é meditação. Qual escola? Crecduyerva, respondo sem piscar. Deixam-me em paz. O chefe prometeume uma promoção se continuasse vendendo como nas últimas semanas. Olhe, está de parabéns, os clientes têm comentado! Ao voltar para casa, eu que habitualmente sou um chato antissocial, converso meia hora com o porteiro. Sem que me desse conta, um dia desses, dei esmola no sinal ao sujeito que – sempre contra minha vontade – joga água imunda no meu para-brisa a pretexto de limpá-lo. Acho que num reflexo inexplicável, um sorriso – meu! – acompanhou a moeda de um real. Ah, mas a felicidade é uma flor delicada! Vivi um período, cuja extensão sou incapaz de definir, nas nuvens, meus pés levitando no ar. E não é de hoje: quem se distrai assim, a vida atropela. Belo dia, levo a mão à cabeça, procuro entre os cabelos minha redenção diária e nada encontro, a não ser uma superfície lisa e irritante. Contenho a respiração, os dedos ágeis a farejar sinais de sangue. Nada. Vou ao espelho, tentando inutilmente ver algo num ângulo impossível. Bufo, não é possível. A esposa entra de súbito, deixei meu espelho aí, pergunta, e eu: não podia bater antes de entrar? Seu olhar é de espanto incrédulo. O cão, que a seguia, faz meia-volta e parte bocejando.

32

Philos Revista de Literatura da União Latina | Revista de Literatura de la Unión Latina.

Caio Lobo (Recife, 1979). Colunista da Philos, é formado em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco e Mestre em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília. Leitor compulsivo e romancista. Lançou recentemente o seu livro Liberdade , pela editora Kazuá. 1


Rosa Alamo (2017)


LITERATURA BRASILEIRA Rotas da lusofonia

A PINTURA DO QUARTO DO SILÊNCIO por

Luizza Milczanowski1

A pobre ninfa, sua figura lírica e transparente, talvez levemente diáfana. Seus tons são de azul e verde – mas são cores percebidas como percebemos a luz da manhã. Acorda, os olhos confusos, o cabelo no rosto. Ela está nua e seu corpo parece flutuar nos lençóis brancos. É como se pairasse, como se não pudesse encostar-se à superfície dos móveis. Ela pede, então, com o sobrolho, que se feche a janela. O dia a faz triste. Tem os movimentos suaves de angústia dos pesadelos vívidos. É tudo silêncio, senão pelo som dos passos daquele que fecha a janela – o leve gemido da madeira, um trinco preguiçoso e as cortinas suspirosas. A mão que toca as cortinas quase não as diferencia do contato com os cabelos da criatura. Os dedos sentem os fios, quase etéreos, quase irreais. Ela sorri um sorriso tímido e se afunda mais na cama, o rosto entre os travesseiros. Coluna, omoplatas, os ossos se destacam até suas ancas. Bracinhos idílicos puxam uma colcha e, como um pequeno animal, o corpo se enrosca e se aninha por debaixo dos lençóis. A mão não sabe se deve atravessar aqueles tons tão frágeis – a luz fria da manhã, a melancolia no piso de madeira, o odor do café e banho quente. É uma figura triste. Os atores se movimentam vagarosamente, à espera de um artista que possa capturá-los, tornálos eternos a carvão e óleo. Sentem que esses instantes se eternizam em algum ponto do universo. A mão tem medo de que, em um movimento insensato, tudo se evapore e suma com o rastro da manhã. Para sempre e nunca mais eram um só. E na calma jaz uma angústia que grita e acalenta o silêncio. A figura na cama é morta e viva, e a mão em pé é morta e viva – poderiam estar mortas. Dentro do silêncio, há luxúria; os pontos apagadiços do desejo, tons pálidos de perversidade e obsessão. A mão pertence a um homem, e o dono dessa mão puxa os lençóis. O corpo resmunga. Tons verdes, roxos e azuis, transparentes no branco da pele arrepiada. Ele segue o curso do máximo de veias que pode, cada artéria, os pulsos, a respiração que eleva e afunda naquele corpo entregue em si mesmo. Cílios longos se embaraçam nas pálpebras fechadas – falsamente fechadas. As sardas espalhadas nas bochechas, na lateral do rosto, quase não são notadas. A linha magra, que vai do pescoço ao fim do tronco, separa dois seios estrábicos. De negro há os pelos, quase invisíveis ao longo do corpo, mais espessos no topo da cabeça, naquilo que se esconde entre suas pernas, viradas de lado. A linha dos quadris passa das nádegas magras para coxas tímidas, em que se vislumbram finas linhas brancas. Pernas, pés, unhas curtas parcialmente pintadas. Mais um resmungo, o corpo estremece e se encolhe. A mão toca uma escápula e há mais um resmungo e a boca seca sorri um sorriso 34

Philos Revista de Literatura da União Latina | Revista de Literatura de la Unión Latina.

CONTOS


mínimo, contido. Ele não vê, mas pode visualizar seus dentes irregulares, olhos escuros. Pode avaliar cada dente numa contagem imaginária. Ela também poderia contar seus dentes, aquela figura que, esforçando-se um pouco, deixaria de existir. Os pés e as mãos também são pálidos, com pouca vida. Aquilo um dia vibrou? Aquilo um dia preencheu o ambiente, senão com cores frias, com silêncio? Choro, gritos. Tudo parece distante. Além do quarto, do pintor pairante, daqueles dois corpos, o que existe? O ambiente é preenchido por partes de um e de outro numa luta de tomar e ceder. É uma luta injusta, pois é em sua coreografia de homem que se dá e cede; e ela quase sempre com os segundos passos – e, tomando ou cedendo, os sentimentos sufocam-se em lágrimas quentes, em suor gélido, em saliva – e em explosões multicores. Os sabores, as cores, os sons, tudo parece se construir e desfazer. A culpa atolada em tantos pontos de tempo perdido, que escorrem e agitam, que se acumulam e dispersam. Ambos sentem que ela não existe. É uma ninfa, uma assombração de si, uma menina, uma coisa, algo que está e não está, que se faz e desfaz. Não há respostas. É a mão, esse braço, suas articulações, isso que se forma, isso que pode formar e desfigurar. Damos distância por um momento. Quem é quem naquele quarto, o pintor sabe? Suas figuras se metamorfoseiam, amorfas, fluidas. Um se estende na persona do outro. A figura do homem é a sombra que se alonga, se apropria da figura da criatura sem nome – mas quem é aquela sombra? Ela não tem nome, o pintor sabe? O pintor-espectro pinta, com vagarosidade, o pincel, a mistura de tintas, sua poesia, com suavidade, em cores. Os olhos do pintor choram. As lágrimas escorrem também em silêncio. Para quem ele chora, indaga-se o escritor. Mas isso pode ser coisa da cabeça dela. Ou talvez dele. É difícil diferenciar um do outro. Talvez ela não pense nisso. Talvez ele perceba claramente sua individualidade. Ela não pode. Não sabe quem é dentro de si, o que faz parte de si ou dele. Ele é sombra e se expande, ocultando-a. E alguém terá de acreditar nela ou nele, mas no silêncio não há em quem acreditar. Em que medida são além de si mesmos. A omissão do que são a sufoca. Em que medida precisam ser além de si mesmos. É ser para os outros esse estar no mundo? Ele não se indaga acerca dessas questões. O pintor chora ao trabalhar com a amorfia das cores frias do quarto branco, com a nudez daquele ser, com o rosto desalentador da menina translúcida. O escritor chora por não saber quem é quem, por trabalhar com a individualidade. O escritor chora pelo pintor. A ninfa, se pudesse chorar, choraria por ser. Ninguém sabe se ela realmente é. Talvez o homem saiba, mas seu rosto é indecifrável. Ele tece sua própria imagem do que eles são. Ela cria suas próprias cores com os olhos bem cerrados de cílios embaraçados. E essas criações não conversam, cada uma em seu silêncio. Sofrem pelo desconhecimento e pela solidão. Aquele instante se estende em todas as direções.

35

Philos Revista de Literatura da União Latina | Revista de Literatura de la Unión Latina.

Luizza Milczanowski 1

(Rio de Janeiro, 1998). Mora no Rio de Janeiro, estuda Direito e escreve.


Rosa Alamo (2017)


LITERATURA BRASILEIRA Rotas da lusofonia

PEQUENOS RETRATOS por

Vanessa Vascouto1

Tenho essa coisa com a aparência das minhas mãos porque são brancas demais, têm essas veias azuis saltadas e são brutalmente secas. Recentemente, pra piorar, apareceu aqui uma pinta que não é uma pinta, nem uma verruga, nem uma bolinha. É uma coisinha áspera e vermelha no deserto azul e branco da minha mão esquerda. Pouco mais dramáticas que a pele, que as veias e que as sardas, no entanto, são as unhas que trago aos dentes desde pequena. Nasci com as mãos na boca e nunca mais as tirei. Chupei os dedos até os 4 anos, quando grandes calos me cobriram as juntas. Depois, roí as unhas até que lhes passaram pimenta. Aí comecei a arrancar pequenas lascas com a mão oposta e usar a boca para tirar apenas os pedaços mais teimosos. Desde então as mantenho assim: pequenas, bobas e machucadas. Eu tinha quase dez anos e houve esse dia, quando Olga, amiga da minha mãe, veio nos visitar. Olga tinha sido Miss. Miss Joaçaba. Miss Joaçaba, Santa Catarina, Brasil. Era muito loira, a Olga. Olhos azuis, muito magra, muito alta e princesa. E as mãos de Olga eram um sonho. Naquela tarde de bolinho de chuva, Olga chamou a atenção para as minhas mãos. Disse que roer as unhas era coisa de criança e que aquilo não era mão de mocinha. “Veja as minhas. Agora veja as suas…”. Que diferença, Olga. Não tinha comparação. E ela ainda completou: “…as suas são feias”. Sempre foram. Hoje, em especial, são piores do que seriam se o problema fosse apenas a unha roída porque, além de pequenas e frias, de terem os dedos tortos e tantas sardas, ganharam rugas e uma tensão ansiosa que me retesa as articulações. Você as odiaria, mas talvez entendesse que estão assim porque são também ringue do tempo: pele de velha com unha de criança. As pessoas lutam contra o tempo de diferentes formas. Umas brigam contra os tornozelos inchados no calor dos 37°. Outras, contra pêlos em lugares indevidos ou um sistema de fígado/estômago que já não digere bem o alho. Eu luto contra as mãos porque em mim é nelas que o tempo corre mais rápido. É também com elas que luto para pegar os anos pela garganta — uma batalha perdida. De deserto branco, azul e vermelho ainda querem ser mar, teimosas contra o inevitável. Mas elas estão no caminho, Olga: ativas e satisfeitas na maior parte do tempo. Ganharam

37

Philos Revista de Literatura da União Latina | Revista de Literatura de la Unión Latina.

CONTOS


uma tendinite e continuam invejosas dos dedos longos e de unhas compridas que veem em outras mãos femininas. Reparo muito nisso, com foco em atendentes de banco ou supermercado que teclam com mãos hábeis, enfeitadas, esmaltadas e orgulhosas, iguais as suas. Talvez sintam-se, todas elas, tão pequenas, bobas e machucadas quanto eu e, mais espertas, escondam os indícios de suas dores em lugares menos evidentes. Nas minhas mãos, entretanto, contra a minha vontade, seguem expostos os anos, meus defeitos, medos e feridas. Dizem de mim e contra mim, mas só dizem verdades — nisso, alguma vantagem hão de ter. Não enganam ninguém. Talvez tenha sido isso o que você tenha tentado me dizer lá atrás: que ninguém deve se mostrar tanto em verdades inconscientes. Entendo, mas não evito. Sigo denúncia de mim mesma. Paciência, Olga. Paciência.

38

Philos Revista de Literatura da União Latina | Revista de Literatura de la Unión Latina.

Vanessa Vascouto 1

(Chapecó, 1983). Dramaturga, romancista e poeta, não venceu nenhum prêmio. Ainda.


Rosa Alamo (2017)


LITERATURA BRASILEIRA Rotas da lusofonia

SOBRE MISSAS DE SÉTIMO DIA por

Tiago Portsan1

É impressionante a quantidade de coisas que a gente descobre na casa das nossas avós. Parece um mundo paralelo onde tudo que você nunca viu acontece e, para a nossa sorte, existe alguém ali disposto a te explicar, com muita paciência, o sentido e o propósito de cada descoberta que você faz. Foi na casa da minha avó que eu descobri o que era uma videira. Ela morava em um sobrado enorme, com um quintal tão enorme quanto, onde havia, sobre armações de madeira, uma pequena floresta de caules e folhas entrelaçadas que, mais tarde, percebi que dava uvas roxas. Para mim, aquilo era um imenso pé de uva. Mas, quando levei uma amiga minha para apresentá-la àquele magnífico pé de uva, imaginando que ela não soubesse do que se tratava, perguntei do alto da minha soberba infantil: “você sabe o que é aquilo lá embaixo?”, indaguei, apontando da varanda para o matagal no quintal. Ela, sem compartilhar comigo a excitação do momento, respondeu: “É uma videira”. Eu ri, achando que minha amiga fosse a pessoa mais estúpida do mundo. “Não! É um pé de uva!”. Minha avó, que ouvia a conversa, sentada na varanda atrás da gente, emendou: “Ela está certa. É mesmo uma videira.” Foi assim que eu aprendi que pés de uva, na verdade, se chamam videiras. Foi lá, também, que eu descobri que, se a gente lixar o mármore encardido, ele volta a ficar branquinho feito novo. E que existe uma raquete – não dessas elétricas de hoje, mas uma de plástico – que é usada para afugentar moscas da cozinha, e ficava encaixada entre o rodapé de madeira e a parede. Vi, com assombro, pela primeira vez, um palito de fósforo muito grande, maior do que os convencionais, propositalmente longo para não queimar as pontas dos dedos na hora de acender o fogo. Foi o lugar onde eu vi uma extensão telefônica, e compreendi que, se alguém ligasse para o telefone fixo da casa da minha avó, ela poderia atender tanto na sala quanto na cozinha! Era extraordinário! A cozinha, por sinal, era o lugar mais fascinante de toda a casa. A fábrica mágica de onde saíam as pipocas carameladas em formato de bolas. Havia sempre alguma coisa no fogo. Geralmente doces, porque minha avó era uma doceira de mão cheia. Mas também dei de cara, dentro das panelas de alumínio, com coisas das quais nunca tinha ouvido falar. Naquela mesa longa no centro da cozinha, comi tatu e jiboia, e eu nem sabia que a gente podia comer cobra sem morrer envenenado – à época, o pequeno Tiago não tinha conhecimento suficiente para entender que jiboias não possuíam veneno, e, por isso, comeu receoso, mas comeu assim mesmo. Eu costumava passar tardes inteiras na casa da minha avó, ajudando no que era preciso, sempre que solicitado. Minha atividade favorita era passar as balas de mel no açúcar. 40

Philos Revista de Literatura da União Latina | Revista de Literatura de la Unión Latina.

CONTOS


Minha avó enrolava as balas na mão numa velocidade impressionante, para não se queimar com a massa quente, e, depois, atirava-as dentro da assadeira cheia de açúcar, que era a minha praça; e lá ficava eu, com uma colher enorme, mexendo as balinhas de mel no açúcar com o máximo de cuidado para não colocar muita força e acabar deformando as esferas. Numa tarde dessas qualquer, minha avó me pediu que fosse até o quarto dela buscar, dentro da penteadeira, um creme. Diligente, fui. Achei o creme e, para a minha surpresa, uma quantidade enorme de santinhos de missa de sétimo dia, presos por um elástico – para quem não sabe, esses santinhos são distribuídos pela família do falecido na missa do sétimo dia de morte, geralmente, vêm com a foto da pessoa na parte da frente e, dentro, com uma oração ou algo do tipo. Minha avó estava sentada no sofá da sala, e levei até ela o creme que me pediu e todos os santinhos que achei. Perguntei o que eram. Ela, com muita paciência, abriu todos os santinhos sobre o sofá e foi me contando as histórias, uma por uma, de todas aquelas pessoas, que, incrivelmente, se cruzavam com a história da própria cidade. Um casal apaixonado que, depois de fugir de casa no meio da noite para ir a uma festa numa cidade vizinha, sofreu um acidente de carro fatal na estrada; o velório dos dois aconteceu em pontos distintos da cidade, mas, assustadoramente, os enterros foram marcados para o mesmo horário e os dois caixões se encontram na praça central, transformando, assim, o que eram dois enterros distintos num só. Uma linda mulher de cabelos longos e negros que tinha sido queimada viva dentro de casa por causa do ciúme doentio do namorado, que acabou ateando fogo nela e nele, incendiando também toda a casa para que ela não tivesse chance de fugir. Um duelo estilo bang-bang de faroeste na praça central em que os dois cavaleiros acabaram por se matar mutuamente. Minha avó conhecia cada uma daquelas histórias, e, com a naturalidade de quem fala sobre um assunto comum e até desimportante, foi contando para mim, que ouvia com atenção, imaginando como teria se dado o momento final daquelas pessoas. Ao final, ela me pediu que recolhesse os santinhos e devolvesse ao lugar onde pertenciam. Foi exatamente o que fiz. Mas, depois daquela tarde, minha vida nunca mais foi a mesma. Aquela foi a primeira vez que eu descobri a ideia de finitude. Entendi que tudo termina um dia, que as coisas acabam, que as pessoas morrem, e que tudo bem por isso. Minha avó também sabia que, um dia, iria morrer. Mas isso ela preferiu não me contar.

41

Philos Revista de Literatura da União Latina | Revista de Literatura de la Unión Latina.

1

Tiago Portsan

(Brasil, 1994). Romancista e dramaturgo baiano.


LITERATURA BRASILEIRA

CONTOS

Rotas da lusofonia

SOBRE ESTÔMAGO, AZIA E MÁ DIGESTÃO por

Souza Pereira1

São duas da tarde. Depois de um almoço em família recolho-me na biblioteca para concluir a leitura do livro Estômago, de Santigo Segundo publicado pela editora Kazuá. Nenhum desconforto gástrico me atormenta, nenhuma sensação de queimação estomacal ou refluxo, apenas a ânsia de concluir a leitura. Naturalmente todos que leem o livro querem ver chegar o final da narrativa para entender a série de paroxismos que o autor constrói. Em Estômago, a falta de um órgão é suprida pela capacidade narrativa do autor, que lança mão de uma abordagem estética desafiadora e, apesar de não ser apresentada em sua total completitude; nos serve de ferramenta para ultrapassar as barreiras da permanência e do tempo. Sobre o tempo, é preciso dizer que em qualquer atividade ele nos é irrecuperável, mas usá-lo para decifrar a inquietante narrativa experimental de Santiago Segundo é uma maneira de oferecer-lhe importância e valor relativo. Depois de ler Estômago, saímos vitoriosos. O assombro é palpável e por vezes cede espaço para o estranhamento. Talvez por isso o livro se torne uma obra incomum durante todo o período de leitura, onde o leitor e o eu lírico passam boa parte do tempo tendo consciência de dois sentimentos, um permitido, real e ético; e outro vedado, também real, mas socialmente inaceitável. Porém, apenas o segundo é que nos desperta uma reação (e uma relação) íntima com o texto: o questionamento do artifício pelo método. A acidez da obra consiste na informalidade da linguagem e narrativa em primeira pessoa, onde falas e pensamentos se confundem por entre as demais sentenças do texto e parecem renascer de maneira sólida em cada descobrimento psicológico de seus personagens, na completa ignorância dos gestos, das reflexões e das coisas. A falta de transparência entre uma abordagem e outra, a quebra temporal da construção narrativa e até mesmo a caracterização não caricata das relações humanas é o que dinamiza a obra e auxilia o leitor a digerir, fragmento por fragmento, as ideias e questionamento que autor quer fazer notar. Pedro Mirilli realiza com engenho uma mixagem entre as palavras fortes e o tom marcante do texto com uma composição de ilustrações acerca do nu, que nos servem de metatrechos bem ensaiados de tensão, clímax e resolução da história. Em Estômago os pequenos desconfortos gástricos vão coexistindo com as múltiplas interpretações ficcionais da obra. Penso que uma resenha crítica não é a melhor forma para avaliar a obra de Santiago Segundo. Seria melhor algum tipo de encenação visual, uma adaptação do texto ao teatro, por exemplo, uma vez que Estômago constantemente reencena e dramatiza aos olhos atentos uma luta contra as questões pessoais de seus personagens, ao passo que nos faz declinar sobre as nossas próprias escolhas e refletir sobre o papel que desempenhamos em nossas vidas e na coletividade. 42

Philos Revista de Literatura da União Latina | Revista de Literatura de la Unión Latina.

Souza Pereira (Recife, 1994) é mestre em Genética e editor-chefe da Revista Philos.


Rosa Alamo (2017)


LITERATURA BRASILEIRA

CONTOS

Rotas da lusofonia

LIBERDADE por

Souza Pereira1

A crítica de Liberdade é ávida, crédula, inquisidora, persistente e consciente. Não há uma só univocidade neste texto e, por isso, não somos totalmente poupados, mas, de alguma forma, atingidos pelo riso-escárnio do autor. Li e reli Liberdade por três vezes, não por quê fosse necessário para seu entendimento, mas para dar oportunidade ao meu subconsciente de assimilá-la por inteiro. Sociológico, político, humanístico e cotidiano. Assim poderia descrever o teor literário dessa epopeia social que nos convida ao desbravamento de enxergar o mundo além de nossas lentes cor-de-rosa. Nesta obra, Bruno Macêdo Mendonça é um explorador de limites sociais, um investigador das penumbras de nossos medos, de nossas angústias, das nossas corrupções, nossas delícias, desejos, anseios e esperanças. Todos esses elementos são ponto de partida para reflexões que nos causam uma certa indeterminação de sentidos por serem tratadas impudicamente, por nos servir de espelhos. E somente a audácia de um explorador pode criar a imagem real dos personagens desesperados, que descobrem mesmo que inconscientemente o seu fio condutor de vida, que percebem-se no contexto de suas realidades como pequenos seres que movem as engrenagens unidirecionais do meio social. Há dentro desse texto uma recusa explícita de se fazer uma crítica para que poucos entendam e um desejo libertador de falar a língua do povo. Na nossa frente desmorona imperceptível - aos olhos mais desatentos-, uma sociedade colapsada, confortável em suas próprias bolhas. Ao ler Liberdade por repetidas vezes, pareceu-me desafiador olhar para o meio social como se o fizesse pelas lentes de um caleidoscópio, ao mesmo tempo que me vi percebido e da mesma maneira lido pelos seus personagens. Sem manifestar piedade ou parecer caricato na construção de seus Joões e Marias, ou melhor, dos Lucas, das Terezinhas, dos Xis, dos Cabeças; em Liberdade, Bruno Macêdo Mendonça nos deixa íntimos de cada um de seus personagens, de suas ações, de suas reflexões, de suas realidades que por hora confundem-se com a nossa e por vezes misturam-se em uma só. São destinos entrelaçados – os dos personagens e dos leitores -, que compõem em conjunto uma das mais bem construídas crônicas sociais de nossos dias, de grande impacto sócio-crítico-emocional, e que retrata em delicadas pinceladas a atmosfera e a realidade em que vivemos. Liberdade é um dos livros do autor que certamente terá o devido reconhecimento e aclamação do público, o principal homenageado nesta obra.

44

Philos Revista de Literatura da União Latina | Revista de Literatura de la Unión Latina.

Souza Pereira (Recife, 1994) é mestre em Genética e editor-chefe da Revista Philos.


Rosa Alamo (2017)


LITERATURA BRASILEIRA

CONTOS

Rotas da lusofonia

EL PEPE PANTA por

Katia Gerlach1

Sobre um banco de três pernas, está Jose de la Luz Maldonado. Homem de terno

escovado. Com a distinção de um trapaceiro frio como um pepino. Raspa a lápis o dinheiro miúdo recebido par excellence. Os cãezinhos Zamor das ruas sinuosas roçam em suas pernas e lambem as galochas russas que aquecem os pés embrulhados em pares duplos de meias, meias de lã sobrepostas a meias de compressão. O inchamento das pernas evitando-se. Por cinco décadas, Jose de la Luz empregou-se no circo onde um crocodilo o engolia pelas mandíbulas para, ato contínuo, expelir a cabeça humana e depois o resto, de espetáculo em espetáculo. Quando a lona caiu, o sujeito logrou em sublocar o camarote de engraxate de número cento e oitenta e três na praça Alfred Jarry. Naquele camarote, Jose de la Luz se escondia detrás do cortinado durante a sesta que perdurava noite e dia. A convivência com os outros limpa-botas e a clientela se regia por afinidades tão superficiais que, na maior parte do tempo, relegava-o à solidão conhecida por aqueles provenientes dos Pampas. Uma vez por mês, Jose de la Luz Maldonado se dirigia à barbearia de Jacobo Martinez para aparar o cabelo, trocar duas ou três palavras e tratar-se com o Junta-Dentes que operava naquelas instalações um consultório dentário e terminava de arrancar o último dente de Maldonado, cuja língua passeava pela gengiva, recapitulando a presença de pedacinhos que foram apodrecendo com o tempo, infeccionando, causando dor. “Sem mulheres e dentes, sou livre!”, comemorou Maldonado com cachaça e água nos copos. Preguiçoso e bêbado até se esquecera da unha encravada no pé! Para o almoço, devorava uns restos no prato de comida apoiado sobre a caixa de querosene e observava os engraxates vizinhos ocupando-se dos fregueses. Os olhos abarcavam o seu camarote vazio, sem alguém sentado na poltrona de couro suíno vermelho rasgado, o estofamento puído a queimar-se nos dias de quentura solar. A miséria roía na profundidade dos sulcos da testa e em torno das maçãs do rosto de Jose de la Luz Maldonado descendo até a boca. Não fora Poe a dizer que Adão teria sido o primeiro dos trapaceiros? Havendo pulado a cerca do paraíso, os homens estavam predestinados a sobreviverem de seus truques e falcatruas. Que injusto para Maldonado padecer em seu porvir quando do silêncio dos manés engraxates nos camarotes vizinhos, do rechaço das quinceañeras carrancudas em sua direção, dos bolsos furados, da fartura que não o alcançava. Jose de la Luz incompreendera a antipatia gerada ao insistir vender seus serviços com graxa usada por soldados de Hitler na segunda guerra mundial. Quis aproveitar-se da fórmula exclusiva em latas extraviadas de um carregamento rumo a capital e qual não foi o muxoxo espiritual diante do fracasso comercial. O sorriso pousou longe, a querer fabricar humor 46

Philos Revista de Literatura da União Latina | Revista de Literatura de la Unión Latina.

“Foi nesse dia que nasceu o nosso herói. O pai lhe deu o nome Pantagruel porque, em grego, Panta quer dizer todo e Gruel significa sedento em língua agarena. Pretendeu Gargantua que estando o mundo a morrer de sede, seu filho estava fadado para ser o dominadormor dos sequiosos.


do mundo, mirabolar outro golpe de meia tigela. Com descaramento, Maldonado insistira, sem convencer, que a graxa teutônica colocava o par de sapatos e seu desgrenhado dono na linha de frente. Acabava que as guerras no povoado não exigiam soldados com sapatos lustrados ou bocas desdentadas e encerrava-se ali o esforço de Maldonado, a quem coube lamentar o prejuízo quando a pasta de graxa secou e restou-lhe cozinhar a lama escura do mangue para encher as latas enferrujadas por décadas de desuso. Aquilo era mais difícil do que a missão de um livreiro em terra de iletrados. - “Aos diabos com eles!”, vociferou Maldonado. Um homem que goza a infância nas entranhas de um crocodilo, instigado pelos próprios pais a se dedicar a entrar e sair de um anfíbio comprido e ameaçador não desenvolve o raciocínio do homem mediano embora guarde a expectativa de que outros ao seu redor enxerguem a realidade como ele. Neste ponto dorido confluíam as frustrações de Maldonado e ele pressentia a necessidade de um parceiro, alguém que o acompanhasse nos atos, à semelhança do crocodilo. Certa feita, ao caminhar pela Travessa das Goiabeiras, Maldonado surpreendeu-se com um empurrão seguido pelo tombo de um objeto a um passo da pisada pela sola descolada da galocha russa. A princípio, pensou estar diante de uma fada, logo percebendo que o fruto possuía a silhueta de um ogro com dois furos como olhos sinistros, assustando-o. Uma rachadura recordou-o dos beiços de sua avó, de quem herdara a vontade de exibir as partes pudendas em horas impróprias e nos cantos da igreja para aprovação divina. Olhos giraram como bolas! Maldonado colocou o pequeno monstro no bolso da sobrecasaca e correu para o seu camarote de engraxate. Retirou de uma das gavetas o holograma surrupiado dos fundos da catedral, um furto do qual se orgulhava por havê-lo batizado com a água benta abundante das fontes do padre. O religioso controlava as horas pelos sinos enquanto as mãos leves de Maldonado desapareciam com as máquinas usadas para luzir o fantasma da Nossa Senhora nas quermesses. Soltando o nó de ansiedade da sua garganta, o mandrião empolgava-se com a montagem de um aparato. Por detrás de um pano, o mané ofereceria a preço módico a visão do ogro, um negócio start-up que o permitiria largar as preocupações com as ceras clandestinas e os calçados da gentinha em busca de se alimentar dos deuses. - Glutões, aos diabos com eles! A ópera bufa se instalava. Duas mil pessoas em dois dias. Filas que cobriam a praça Alfred Jarry e ruas adjacentes. Camelôs instalaram-se para vender água e churros aos peregrinos. Ambulantes ofertavam velas e lenços para os chorosos, criando concorrência aos cegos da igreja exímios comerciantes de velas. Peregrinos brotavam das aldeias e lugarejos, pontos de distribuição dos pãezinhos a base de esporão de centeio. Alguns haviam visto no passado a fada de látex quando Maldonado fora apelidado de “El Pepe Hada”, outros de nada sabiam. Os boatos circulavam sobre a impossibilidade de se tocar no ogro, uma frustração para os afeitos ao tato. No entanto, Maldonado permitia que cutucassem o monstro com uma vareta e até mesmo fazer-lhe cócegas. Francisco Degas, um dos milhares de peregrinos, pediu ao ogro que aumentasse a sua inteligência e fosse capaz de criar a piada, o chiste mais cômico da história da humanidade, uma piada que inevitavelmente provocasse o riso de qualquer ouvinte. O ogro sussurrou algo de tão estarrecedor que Degas ria sem controle a ponto de não conseguir difundir a graça. Anedotas sobre o ogro espalhavam-se e peregrinos empurravam-se para ganharem uma senha e garantirem a chance lotérica da interlocução.

47

Philos Revista de Literatura da União Latina | Revista de Literatura de la Unión Latina.

“Maravilha das maravilhas, não haveria pelo mundo pimpolho mais rechonchudo. Uma das comadres pronunciou em tom profético, depois de lhe ter bem remirado a moleirinha: -O anjinho nasceu com cabelo!... É sinal de que há-de obrar grandes e prodigiosas coisas!” Pantagruel, Rabelais, versão portuguesa por Jorge Reis.


Laurita Morales, ao cruzar a praça, em seu caminho diário reparou na fila que se avultava e na excitação do momento que tomava os de boa vontade de Jalisco. A investigadora comprometera-se a chegar cedo na agência de detetives Morales y Morales onde marcara encontro com Landratov sobre o programa de búzios estelares (o agente russo não desistia de enviar idosos pela Via Láctea em missões one way) e uma conversa com Apolônio, escritor de patafísica que resolvera estudar astronomia, tornar-se detetive particular e, após uma intoxicação por “ergot”, vadiava no espaço ocioso entre a pensão e a praça. Dois casos em aberto a aguardavam: o sequestro do barítono Pietro Paolini, denunciado pelo engraxate Escobar, noivo de Rosina, e a presença crescente de agentes russos, inclusive cirurgiões, no povoado. Sem intenção de atrasar-se, Laurita deu de costas à romaria e aos olhares amedrontados dos mendigos diante das portas entreabertas das igrejas. Seguiu caminho com a bengala em punho. Já era o terceiro dia desde que a fila se formara e os romeiros deliravam em febre. Alimentados pelos pãezinhos contaminados por ergot, homens e mulheres estavam sequiosos pela chegada do Panta, guardado em uma incubadora sob os cuidados de Jose de la Luz. A incubadora propiciava a noção de que o ogro estava por crescer embora o monstro pronunciasse obscenidades inverossímeis e impropérios de grande maturidade. Era inegável que atraía a curiosidade dos transeuntes, das senhoras da alta sociedade, dos engraxates, dos sapateiros de remendões, dos guardas municipais, dos pastores e, principalmente, dos mandriões como Maldonado sem intenção alguma de pagar pela conversa com o ogro. Acariciando o seu pequeno monstro, Pepe Panta pensava: - Este animal pode causar reviravoltas! A gentinha pudica disposta a fazer qualquer coisa pela fé, com pedras na mão para atacar o próximo não resiste à conversa com este ogro feíssimo que os instiga a meter as mãos pelos segredos até os cotovelos. A castidade se esvai a olhos vistos. Maria, uma criada que ia vender ovos ao mercado e mãe de cinco filhos executados na guerra tropical, foi uma das primeiras a pagar uns trocados ao Pepe Panta por uma visão e conselhos do ogro que se remexia. Com lágrimas brotando dos olhos, Maria saíra do camarote do engraxate em estado de êxtase. Havendo caído no golpe da fada de látex cinco anos antes, a mulher se deixava persuadir pela voz que demandava que largasse os cultos e os esforços para eliminar o demônio. O ogro sugeria que se entregasse aos prazeres mundanos, crucificando a culpa que carregava pelas mortes dos filhos, safados cabeludos que fizeram por merecer os tiros nas nucas. Maria passou a experimentar dias de emoção sem igual e foi dar cambalhotas com o pai de Rosina, recém enviuvado de dona Candinha. Pepe Panta aterrorizou-se quando um cãozinho Zamor quase derrubou a armação com o holograma que transformava o fruto podre em nobre mito. Expulsou o animal a pontapés. Entretanto, o que impressionava Pepe Panta era não precisar emular uma voz para o monstro. Os peregrinos aproximavam-se do bicho esquisito e, posteriormente, confessavam haver escutado mensagens obscenas, receitas de xarope para a tosse, dicas de números lotéricos, a interpretação de sonhos ou pesadelos, previsões astrais e planos de vingança odiosa. Como de praxe, Maldonado acendeu um fósforo na sola da botina. Ajeitou-se da melhor maneira possível sobre o banco de três pernas, contava o dinheiro miúdo, desfrutando cada nota que preenchia o seu destino de trapaceiro em meio a carência de um continente de fiéis. Francisco Degas, um fiel, ri sem parar (e estará a rir depois que o leitor terminar este capítulo). 48

Philos Revista de Literatura da União Latina | Revista de Literatura de la Unión Latina.

Kátia Bandeira de MelloGerlach (Rio de Janeiro, Brasil, 1980). Natural do Rio de Janeiro e radicada em Nova York, formou-se em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). É mestre em Direito Internacional Privado pela Universidade de Londres e pela NYU School of Law, e professora de Direito na Fundação Getúlio Vargas. Corpo docente da Universidad Desconocida do Brooklyn sob a reitoria de Enrique VillaMatas. Publica no Jornal Rascunho. 1


Philos

PORTUGUÊS CATALÀ ESPAÑOL FRANÇAIS ITALIANO ROMÂNĂ dezembro 2017 · REVISTA DE LITERATURA DE LA UNIÓN LATINA 24 diciembre 2017

REVISTA DE LITERATURA DA UNIÃO LATINA 24


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.