Philos
PORTUGUÊS CATALÀ ESPAÑOL FRANÇAIS ITALIANO ROMÂNĂ novembro 2017 · REVISTA DE LITERATURA DE LA UNIÓN LATINA 22 noviembre 2017
REVISTA DE LITERATURA DA UNIÃO LATINA 22
Philos PORTUGUÊS CATALÀ ESPAÑOL FRANÇAIS ITALIANO ROMÂNĂ
REVISTA DE LITERATURA DA UNIÃO LATINA 22 novembro 2017 · REVISTA DE LITERATURA DE LA UNIÓN LATINA 22
ANA LUIZA CANALLI SANTOS CIDINHA DA SILVA AIDIL ARAUJO LIMA NINFA PARREIRAS PAULO SABINO THASSIO FERREIRA
noviembre
2017
PORTUGUÊS CATALÀ ESPAÑOL FRANÇAIS ITALIANO ROMÂNĂ
REVISTA DE LITERATURA DA UNIÃO LATINA 22 novembro 2017 · REVISTA DE LITERATURA DE LA UNIÓN LATINA 22
EXPEDIENTE
REVISTA DE LITERATURA DA UNIÃO LATINA REVISTA DE LITERATURA DE LA UNIÓN LATINA
Souza Pereira
EDITOR CHEFE | EDITOR EN JEFE
Sylvia de Montarroyos
COMITÊ EDITORIAL | COMITÉ EDITORIAL
Lucrecia Welter
REVISÃO DE TEXTOS | SUPERVISIÓN DE TEXTOS
Maus Hábitos
DESENHO E DIAGRAMAÇÃO | DISEGÑO Y DIAGRAMACIÓN
J.D. 'Okhai Ojeikere ILUSTRADOR | DIBUJANTE
SOBRE A OBRA DESTA EDIÇÃO | SOBRE LA OBRA DE ESTA EDICIÓN
Publicado originalmente em novembro de 2017 com o título Philos, Revista de literatura da União latina. Os textos desta edição são copyright © de seus respectivos autores. As opiniões expressas e o conteúdo dos textos são de exclusiva responsabilidade de seus autores. Todos os esforços foram realizados para a obtenção das autorizações dos autores das citações ou fotografias reproduzidas nesta revista. Entretanto, não foi possível obter informações que levassem a encontrar alguns titulares. Mas os direitos lhes foram reservados. Philos, Revista de Literatura da União Latina é registrada sob o número SNIIC AG-20883 no Sistema Nacional de Informações e Indicadores Culturais com Certificado de Reserva outorgado pelo Instituto Nacional de Direitos do Autor sob o registro: 10-2015-032213473700-121. ISSN em trâmite. Revista Philos © 2017 Todos os direitos reservados. | Publicado originalmente en noviembre de 2017 con el título Philos, Revista de literatura de la Unión latina. Los textos de esta edición son copyright © de sus respectivos autores. Todos los esfuerzos fueron hechos para la obtención de las autorizaciones de los autores de las citaciones o fotografías reproducidas en esta revista. Sin embargo, no fue posible obtener informaciones que llevaran a encontrar algunos titulares. Pero los derechos les fueron reservados. Philos, Revista de Literatura de la Unión Latina es registrada bajo el número SNIIC AG-20883 en el Sistema Nacional de Informaciones e Indicadores Culturales con Certificado de Reserva otorgado por el Instituto Nacional de Derechos del Autor bajo el registro: 10-2015-032213473700121. ISSN en trámite. Revista Philos © 2017 Todos los derechos reservados.
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Philos, Revista Philos Revista de de Literatura Literatura da da União União Latina Latina | | Revista Revista de de Literatura Literatura de de lala Unión Unión Latina. Latina.
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EDITORIAL
REVISTA DE LITERATURA DA UNIÃO LATINA REVISTA DE LITERATURA DE LA UNIÓN LATINA
Nesta semana da consciência negra, a Philos - Revista de Literatura da União Latina publica um caderno especial contemplando a literatura negra contemporânea. Aqui apresenta-se uma releitura de Souza Pereira para a obra fotográfica do nigeriano, J.D. 'Okhai Ojeikere, que desde a década de 1960 documentou a cultura de seu país em requintadas fotografias em preto e branco, capturando a elegância e a exuberância de sua gente. Da África ouvimos a voz de Ngongongo e o registro etnográfico de J.D. 'Okhai Ojeikere, que se comunicam com o som do coco camaragibense no ecoar das vozes da sambada do Mestre Zé Negão e sua música de resistência. Apresentamos a poesia e a prosa de grandes mulheres negras: Mariana de Matos, Alessandra Martins, Luna Vitrolira, Cristiane Sobral, Viviane Laprovita, Ana Luiza Canalli Santos, Cidinha da Silva, Aidil Araujo Lima; e da psicanalista e professora, Ninfa Parreiras, que nos apresenta um ensaio sobre a obra do angolano, Zetho Gonçalves. Thassio Ferreira e Paulo Sabino se unem para falar de outra grande mulher da literatura brasileira: Conceição Evaristo, que nos cedeu uma entrevista exclusiva na edição deste ano da Festa Literária Internacional de Paraty, a Flip 2017. Os textos da Philos, escritos por autores negros do Brasil e de países da África, descrevem a vida diária da população negra em um registro social, antropológico, etnográfico e artístico. Com um olhar penetrante e uma abertura necessária para fazer ecoar as vozes negras de nossa latinidade, a Philos se esforça para atingir um nível de pertinência adequado para estimular o debate sobre as questões raciais no Brasil e no mundo diante das relações e pensamentos que se formam ao avançar de nossas concepções quanto sociedade. Neste caderno especial traçamos o perfil dos novos autores afrodescendentes latinos e nos deparamos com os desafios dessa literatura autoral, que luta não apenas pelo reconhecimento devido mas para romper com as barreiras literárias do preconceito. Desejamos uma ótima leitura, Souza Pereira
EDITOR CHEFE | EDITOR EN JEFE
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Philos Revista de Literatura da União Latina | Revista de Literatura de la Unión Latina.
EDITORIAL
REVISTA DE LITERATURA DA UNIÃO LATINA REVISTA DE LITERATURA DE LA UNIÓN LATINA Esta semana de la conciencia negra, la Philos - Revista de Literatura de la Unión Latina publica un cuaderno especial contemplando la literatura negra contemporánea. Aquí se presenta una releitura de Souza Pereira para la obra fotográfica del nigeriano, J.D. 'Okhai Ojeikere, que desde la década de 1960 documentó la cultura de su país en requintadas fotografías en negro y blanco, capturando la elegância y la exuberância de su gente. De África oímos la voz de Ngongongo y el registro etnográfico de J.D. 'Okhai Ojeikere, que se comunican con el sonido del coco camaragibense en el ecoar de las voces de la sambada del Maestro Zé Negão y su música de resistencia. Presentamos la poesía y la prosa de grandes mujeres negras: Mariana de Matos, Alessandra Martins, Luna Vitrolira, Cristiane Sobral, Viviane Laprovita, Ana Luiza Canalli Santos, Cidinha da Silva, Aidil Araujo Lima; y de la psicanalista y profesora, Ninfa Parreiras, que nos presenta un ensayo sobre la obra del angolano, Zetho Gonçalves. Thassio Ferreira y Paulo Sabino se unen para hablar de otra gran mujer de la literatura brasileña: Conceição Evaristo, que nos cedió una entrevista exclusiva en la edición de este año de la Fiesta Literaria Internacional de Paraty, la Flip 2017. Los textos de la Philos, escritos por autores negros de Brasil y de países de África, describen la vida diaria de la población negra en un registro social, antropológico, etnográfico y artístico. Con un mirar penetrante y una apertura necesaria para hacer ecoar las voces negras de nuestra latinidade, la Philos se esforza para alcanzar un nivel de pertinencia adecuado para estimular el debate sobre las cuestiones raciales en Brasil y en el mundo delante de las relaciones y pensamientos que se forman al avanzar de nuestras concepciones cuanto sociedad. En este cuaderno especial trazamos el perfil de los nuevos autores afrodescendentes latinos y en los deparamos con los desafíos de esa literatura autoral, que lucha no sólo por el reconocimiento debido pero para romper con las barreras literarias del prejuicio. Deseamos una óptima lectura, Souza Pereira
EDITOR CHEFE | EDITOR EN JEFE
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SUMÁRIO | SUMARIO CONTOS | COLUNAS | ARTIGOS CUENTOS | COLUMNAS | ARTÍCULOS
8 Diferentes pés
que sambam a mesma pisada, por
ANA LUIZA CANALLI SANTOS
12 O jet-ski e o
biscoito de repartição, por
CIDINHA DA SILVA
16 Tambores da
madrugada,
por AIDIL ARAUJO LIMA
19 Três marias,
21 De Huambo
para o mundo, da
por
NINFA PARREIRAS
AIDIL ARAUJO LIMA
26 Mulheres
negras: Conceição Evaristo, por PAULO SABINO
28 A
escrevivência de Conceição Evaristo, por THASSIO
FERREIRA
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Souza Pereira inspirado em J.D. 'Okhai Ojeikere (2017)
LITERATURA BRASILEIRA
ARTIGOS
Rotas da lusofonia
DIFERENTES PÉS QUE SAMBAM A MESMA PISADA: COCO DE SENZALA DE CAMARAGIBE (PE) E AS RELAÇÕES ENTRE GERAÇÕES. por
Ana Luiza Canalli Santos1
Neste artigo, escrevo um pouco da história do Coco de Senzala pernambucano e Mestre Zé Negão, relatando como o Coco se adaptou ao novo cenário da cultura popular pernambucana. Peça fundamental a essa adaptação é a figura da(o) jovem aprendiz de coco, través dela(e) a cultura popular encontra um diálogo entre a brincadeira (manifestação cultural, nesse caso, o Coco de Senzala) e a produção cultural, eventos, editais, entre outros elementos que se apresentam hoje à cultura popular. Há dois anos que acompanho de perto Mestre Zé Negão e o trabalho da Laia, pois meu mestrado em antropologia é justamente sobre as relações entre gerações na cultura popular. O Coco senzala de Mestre Zé Negão é um coco que traz como temática principal a escravidão nos canaviais, sendo composto por muitos cantos de trabalho e de lamento. O Mestre relata que seus instrumentos (feitos por ele mesmo), em sua maioria, são compostos de madeira, couros e sementes, se remetendo aos instrumentos da época da escravidão. Ele diz que o Coco de Senzala era praticado entre os escravos, no dia e hora que os senhores de engenho permitiam a festa. O ritmo é muito forte, embalado por tambores e chocalhos; e a dança é composta de pisadas e rodopios. Uma roda se forma e, dentro da roda, casais se revezam para sambar o coco. Assim, até hoje é dançado, sambado ou pisado o coco de senzala. A Laia (Laboratório de intervenção artística) tem dez anos. Formada por um grupo de jo8
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Resumo: Esse artigo aborda o contexto atual da cultura popular pernambucana, focando no caso do Coco de Senzala de Camaragibe-PE; demonstra-se de que maneiras o coco tem se adaptado a essa realidade, e como a relação entre mestre e aprendiz é essencial a essa adaptação.
vens, ela se uniu ao mestre e começou a fazer a Sambada da Laia. Seus integrantes começaram a ser aprendizes (aprendem com ele a filosofia do Coco de Senzala e também como tocá-lo, cantá-lo e dançá-lo) do Mestre Zé Negão, por isso se tornou “Sua Laia”. As sambadas e ensaios ocorrem na casa do Mestre, e contam com a participação de sua esposa, Mestra Fátima (Mestra em costura), e família para a organização da Sambada. Destaca-se aqui que sambada é a festa, diferente de ensaios. Há sambadas de coco, maracatu rural etc., é uma festa aberta, na qual as pessoas vão “sambar” coco. Diferente do ensaio, que é fechado. Os ensaios são para ajustar os cocos para a realização das sambadas. Tratarei agora do contexto atual no qual a cultura popular está inserida, no qual o Coco de Senzala não escapa. A globalização e capitalismo provocaram efeitos na cultura popular. No caso especifico dos cocos de sala e senzala, percebe-se que esses efeitos são sentidos há pouco tempo, pois nota-se que a geração mais nova é quem tem seus discursos e atitudes mais baseadas no sistema ocidental. Esse cenário implica no processo de mudança e adaptação às novas formas de vida e novas formas de viver a cultura popular, se assemelha ao processo ritual, escrito por Victor Turner em “Dramas sociais e metáforas rituais”. Fazendo uma analogia ao trabalho do autor, poderíamos dizer que o coco de senzala está passando por um momento de liminaridade, em que novos papeis, atores e situações estão surgindo, e os brincantes estão se remanejando para atender a essas novas demandas. Profissionalização, espetacularização, produção, políticas, classe e indústria cultural, são itens que vieram com a globalização e capitalismo e influenciam muito os cocos nesse momento liminar que estão passando, são peças de uma nova estrutura que se forma. Nova estrutura essa que parece ser mais facilmente lidada pela nova geração do que pela antiga, mas que também, se faz extremamente importante a figura do mestre como alheio e oposto a essa nova configuração, pois é exatamente seu modo de brincar e agir que dará ao coco sua característica de brinquedo e não de mais uma banda. Um aprendiz de outro Mestre coquista me disse certo dia que colocar o Mestre para participar de uma reunião com produtores seria uma covardia, pois é uma linguagem que ele não domina, cabendo aos aprendizes que o acompanham se encarregarem dessa parte, e não deixarem o mestre ser enganado por algum produtor mal intencionado. Aqui nota-se o quanto os mais jovens se acham mais aptos à nova realidade e como estão definindo seus novos papeis nessa nova estrutura, no caso, de produtores e guardiões dos mestres. Para Rita Segato, em “A Antropologia e a Crise Taxonômica da Cultura Popular”, essas mudanças estão relacionadas diretamente com os modos de produção. Cada modo de produção resulta numa determinada relação social e daí surgem diferentes respostas a essas relações; uma dessas respostas é a cultura popular ou folclore. Um exemplo claro disso é o coco de senzala, que, anteriormente, era feito durante os poucos intervalos entre o trabalho nos canaviais, trazendo para a música os temas da vida na senzala, escravidão e vida rural. A partir desse modo de produção, nasce o coco de senzala. Porém hoje, o Mestre Zé Negão não trabalha mais no canavial, muito menos seus aprendizes, então como se preserva esse coco? Não mais pela vida na senzala e na plantação de cana, mas por outros fatores que levam ao coco continuar. Agora o coco continua num sistema que seus brincantes estão inseridos no modo de produção capitalista, como grande parte do mundo. Para Segato, isso resulta num processo de homogeneização da cultura popular. E é justamente isso que a UNESCO, IPHAN e Fundarpe fazem, quando eles definem uma lista de critérios para que uma manifestação cultural possa ser considerada um patrimônio imaterial. O que, a princípio, vem a defender a diversidade acaba por padronizar. Como a autora relata, há uma homo9
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Ana Luiza
Canalli Santos (Jundiaí, 1992). Antropóloga graduada pela Universidade de São Paulo (USP) e mestranda na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).
geneização da cultura popular, mas também, ela pode ser resgatada, de forma pensada e racionalizada, como essência de uma nação que a diferencia de outras nações, processo muito análogo ao que as políticas de salvaguarda e instituições estão fazendo com a patrimonialização. A cultura popular foi inserida na indústria cultural, e acaba sendo dependente do dinheiro de shows e editais para manter seu brinquedo vivo, comprar materiais para confecção de instrumentos, adereços e vestimentas, manutenção do espaço em que acontece o brinquedo e da própria subsistência de seus brincantes. Aqui o papel dos produtores culturais é de extrema relevância, tratados também por José Jorge de Carvalho, eles são os que fazem a ponte entre a cultura popular e a indústria cultural. Como o autor revela “Colocados no palco, são objetificados pelo olhar desses sujeitos que se entretêm. Visto o processo mais de perto, porém, também os espectadores são objetificados pelos mesmos agentes que contratam os artistas populares. Afinal, brincantes, ainda que objetificados, são sujeitos que seduzem espectadores, que passam agora a ser objetos dessa sedução. Isso aponta para a estrutura subjacente de assujeitamento de artistas e de público, estrutura que é produzida e controlada pela indústria do entretenimento ou pela ordem política que contrata o espetáculo. Há um sujeito oculto (e hegemônico) nessa interação espetacularizada: trata-se do produtor cultural ou do político ou empresário contratante.” José Jorge de Carvalho coloca aqui o produtor cultural como se fosse de fora do grupo. Acontece nos grupos de coco de senzala, e que os jovens estão assumindo esse papel de produtores, sem se darem esse nome (pela carga, muitas vezes, negativa que ele acabou carregando). Aprendizes do Mestre Zé Negão dizem que todo mestre precisa de alguém honesto que o acompanhe, para não cair nas mãos de um produtor que o explora. Aprendizes assumem o papel do produtor ao se relacionarem com o Estado e instituições, escreverem projetos para editais, organizarem eventos e etc. Através do campo que fiz e continuo fazendo, noto que os aprendizes querem proteger os mestres da exploração financeira, porém, em alguns casos, eles acabam se beneficiando com a imagem e nome dos mestres em algumas ocasiões. Para oferecer oficinas a SESCs, por exemplo, levando o nome dos mestres, o cachê é maior, mesmo que o mestre não esteja presente. No caso do Coco de Senzala, noto como a figura da (o) jovem e aprendiz é de extrema importância a cultura popular, por ser ele um brincante, que estuda com o Mestre, que quer aprender a ciência do coco do mestre de forma oral, vivenciando e brincando com ele, mas que também dialoga com as novas imposições da sociedade. Há explicitamente não só uma transmissão de saberes unilateral (de mestre para aprendiz), mas uma troca de saberes, que se complementam e possibilita à cultura popular permanecer viva na sociedade atual. ___________ [1] Carvalho, José Jorge de, ‘Espetacularização’ e ‘canibalização’ das culturas populares na América Latina Revista ANTHROPOLÓGICAS, ano 14, vol.21 (1): 39-76 (2010). [2] Segato, Rita, “A Antropologia e a Crise Taxonômica da Cultura Popular », in Anuário Antropológico/88, Editora Universidade de Brasilia, pp. 81-94 (1991). [3] Turner, Victor, “Dramas sociais e metáforas rituais”, in Dramas, campos e metáforas. Ação simbólica na sociedade humana, Niteroi: Editora da Universidade Federal Fluminense, pp. 19-54.
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Souza Pereira inspirado em J.D. 'Okhai Ojeikere (2017)
LITERATURA BRASILEIRA
CONTOS
Rotas da lusofonia
O JET-SKI E O BISCOITO DE REPARTIÇÃO Cidinha da Silva por
Uma pessoa não pode se sentir um biscoito de repartição pública. Nem que seja para cumprir uma recomendação dos ministérios da saúde coletiva ou da saúde mental de cada vivente. O indivíduo vai tomar um café e o biscoito está lá, num estado de quase abandono, pedindo a companhia de uma boca úmida e quente. O cidadão atende ao pedido, quebra o biscoito em pedaços com a mão ou morde bocados pequenos. As mandíbulas transformam aquilo num placebo adocicado. Placebo que aplaca a ansiedade, a fome, enquanto o horário do almoço não chega. Representa a oportunidade de comer algo que está dando sopa. Que dribla a falta de companhia para jantar em casa. Esse tipo de biscoito é também consolo para quem não tem casa. Às vezes você tem a sensação de que ele anda sozinho e se enfia na bolsa do indivíduo à espera do momento mais solitário para ser devorado. Uma pessoa não pode ser um biscoito inerte na boca aberta do pacote. Não pode dormitar ao lado do café ralo, das caixinhas de chá mais baratas, das formigas que passeiam pelo açúcar. Não pode ser alimento à disposição de quem não quer nada ou não sabe o que quer e come para enganar o tempo. Melhor do que ser biscoito de repartição facebookiana, no qual se dá uma mordidinha quando aparece na tela, é ser Jet-ski (de pobre). Uma voltinha renovadora nas águas do fim de semana.
A primeira mulher Foi no Chile que ela olhou uma mulher pela primeira vez. Mirava aqueles lábios de tâmara e sentia arrepios na panturrilha. Contou isso a uma namorada, anos depois. A namorada respondeu candidamente que seu forte sempre fora criar belas imagens, além de usar a justaposição de palavras vazias para tentar impressionar a interlocutora.
Um padre pop A moça cheia de destreza burla a segurança desatenta e se joga nos braços do padre-galã. Chora desesperada. Ele a consola. A cabeça dela recosta-se no peito malhado do padre e umedece a camisa feita sob medida para destacar o peitoral maior. A música está terminando e ele precisa decidir como incorporar a moça à performance. Ele fala alguma 12
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coisa no ouvido dela. Ela responde outra no ouvido dele, mais calma. Então, ela pega o microfone, segura. Ele, com sorriso fraterno a incentiva a falar. A moça discursa entre soluços: “padre furustreco, não é justo o que o senhor faz conosco, mulheres de família, contrárias ao aborto, tementes a Deus, à espera de homem-príncipe, gentil e cavalheiro que nos retire a virgindade, tão cara para nós quanto o voto de castidade feito (e mantido) pelo senhor. Padre, o mundo precisa de homens como o senhor, íntegros, verdadeiros e bonitos! O senhor é lindo! É um desperdício que seja padre. O senhor me desculpe pela sinceridade e ousadia, é caso até para pedir perdão a Deus e eu peço; mas, como eu, muitas moças gostariam de ter a chance de desposá-lo, de ter filhos lindos como o senhor.” O padre sorri um riso premeditadamente tímido. A audiência divide-se nas reações. Muitos acham cômico o depoimento; outros acham inadequado; outros acham que a moça está histérica e precisa de internação ou de casamento. O padre, a princípio condescendente, silencia por alguns segundos, enquanto matuta o seguimento da performance. Resolve direcionar as mãos para o céu (um auxiliar de palco corre para acertar o microfone de boca) e aguarda alguns segundos enquanto a iluminação divina o toma e a plateia se harmoniza, depois exorta: “oh Deus-pai-todo-poderoso, conforte o coração dessa filha aflita para que ela entenda que Deus não escolhe apenas os feios e imperfeitos! Deus também precisa dos belos e perfeitos para realizar suas obras”. As ovelhas-ovelhas aplaudem em frenesi. Que presença de espírito! Que inteligência e perspicácia do padre-galã! As ovelhas negras, subsumidas no mundo convencional das ovelhas se perguntam, onde, gotas de sabedoria e compaixão no lamaçal do coração narcisicamente humano do padre best(a) seller?
O zelador Chegava à casa apressada, louca para tirar a fantasia de funcionária pública e vestir a capa de escritora, quando o zelador me intercepta, como se tivesse um envelope dos correios a entregar. - O Dr. Amaurílio falou que os caras na internet vêm na segunda-feira - Ele insistia em chamar o patrão desse híbrido de Amauri e Maurílio. - Que bom! Já tem 10 dias que eles estão vindo e nunca chegam - Notando que não havia encomenda alguma, eu armava o passo para ir embora e ele solta essa. - A mulher foi embora. - Que mulher? - A minha, uai! Num segundo, recupero do escaninho mental do enfado a cara de infelicidade dela, mas fico calada, porque o assunto, para ser sincera, não me interessava. Jacaré, era o apelido dele, percebe que não vou dizer nada, mas não quer deixar escapar meu par de ouvidos e continua. - Pois é! Ela me largou e agora eu tô solteiro de novo. É, porque ela é a segunda mulher que me larga. Eu sou novo, mas já casei duas vezes. Eu tava solteiro quando arrumei ela. Daqui a pouco arrumo outra. Mulher é que nem banana, dá em penca. - Ui! Exclamei do fundo da garganta. - O que foi? Ele pergunta. Tá sentindo alguma coisa? - Não, nada, não. É que imaginei a penca de bananas caindo em cima da sua cabeça. Faria um estrago feio.
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- Olha, a senhora não brinca que a coisa é séria. Quando uma mulher me larga, larga uma vez só, aí “vá se lascar pra lá”! Tem quatro dias que ela foi embora. Levou a menina e tudo. Levou a geladeira, a cama nossa, a cama da menina, a poltrona e o guarda-roupas. O fogão eu não deixei levar, porque fui eu que comprei. Seis bocas! Era o sonho da vida dela. O resto ela já tinha do primeiro casamento mesmo. Sábado já me ligou, cinco vezes. Eu reconheci o número e não atendi. Não falo mais com ela. Procurando um jeito de encerrar a conversa, eu pergunto: - Mas, e se ela ligou para falar alguma coisa da menina? Vocês não têm uma filha juntos? Ela podia estar precisando de alguma coisa... - Ela que se dane, dona! - Mas, e a menina? - Que se dane, também! Preferiu ficar com a mãe, agora aguente! - Jacaré, a menina é aquela que eu via no pátio com o carrinho de boneca? - É. - Ela deve ter uns seis anos, não é? - Sete! Já tem sete. É pequenininha, mas já sabe o que quer. Tem vontade própria e resolveu seguir a mãe, não quis ficar comigo. - Sei. Ele me olha frustrado e pergunta: - A senhora tá apoiando as duas, é? Mulher é assim mesmo, tudo comparsa umas das outras. Pensei que a senhora, uma mulher estudada, pudesse me entender. Mas, não, nem conhece a mulher e já ficou do lado dela. - Oh, Jacaré, eu quase não te conheço também!... - Mas me conhece mais do que conhecia ela. E eu sou moreno, falta pouco para ser moreno como a senhora. Ela era desbotada, quase branca - diz isso emburrado, falta pouco para chorar. - Olha Jacaré, separação é um troço difícil mesmo! Eu acho que você devia procurar seus amigos para conversar, desabafar. - Que amigo, Dona? A senhora acha que eu vou chorar dor de corno com colega homem, pra depois todo mundo ficar mangando de mim? - E deu de chorar as pitangas comigo, Jacaré? Acha que eu tenho tempo? - É que a senhora é mulher, tá sempre aí, sozinha, parece que só tem a companhia dos livros. Ontem mesmo chegou mais um pacote que eu esqueci de entregar para a senhora. Eu agora tô solteiro... precisando de alguma coisa, é só chamar.
Boleros Na Vila Planalto, os vizinhos tocavam Fagner dos anos 1970 e a deixavam nostálgica nas tardes ensolaradas de domingo. Os de agora, do Politeama de Baixo, são mais cruéis. Têm vinis antigos, quase de 78 rotações, e tocam Altemar Dutra, o atemporal, que entre outras lembranças traz a mãe que o escutava aos domingos. Coitados, eles não têm culpa! Não podem imaginar o quanto os boleros, ainda mais no inverno, cutucam as tristezas de um coração escondido entre livros e um teclado.
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Cidinha da Silva (Belo 1
Horizonte, Minas Gerais). Prosadora e dramaturga. Autora de #Parem de nos matar! (crônicas, 2016) e Racismo no Brasil e afetos correlatos (crônicas, 2013), entre outros.
Souza Pereira inspirado em J.D. 'Okhai Ojeikere (2017)
LITERATURA BRASILEIRA Rotas da lusofonia
TAMBORES DA MADRUGADA por
Aidil Araujo Lima1
Entre as sacudidas do tempo, ela desarruma a memória, catando cacos da infância, abandonados na insubmissão silenciosa de ser ninguém, inexistida no olhar cotidiano daqueles de cor distinta. Enrosca os fios de cabelos crespos na ponta dos dedos num afago, a pálpebra se deita no carinho, um pouco da infância se desencolhe, lembra-se de ir chorando, por ordem da mãe, à casa de dona Raimunda alisar os fios aterrorizantes, era desse jeito que ela falava, do cheiro de coisa queimada, da imagem distorcida no espelho esfumaçado. Magra lembrança de menina, no espaço de guardar recordação, abarrotado de livros que consumia como se entrasse num casulo, aí dentro buscava esperança de ser gente respeitada. Seu pai era funcionário público, mentia ser feliz, salário exato mês a mês, aos domingos futebol, alegria forçada por bebida de álcool, piadas esquecedoras de submissão. A mãe, dona de casa conformada, anseios trancafiados, amedrontada. E Maria, com olhar cheio de rumor, ouvia o que não era dito, doía essa vida no escuro, queria tanta coisa, quis com muita vontade coroar Nossa Senhora, só as meninas de pele clara tinham esse privilégio. Murmurou no ouvido da mãe seu desejo. Essa se desesperou – chega de sofrimento, não vê que nossos representantes são brancos, quer desassossegar nossa vida? quer mudar o destino das coisas – disse sentenciosamente. Calou-se. Enxotou o mundo que a cercava e, meteu-se por dentro das palavras, alimentava-se das letras e dos sons de atabaques reverenciando divindades negras, nas madrugadas, vindos da ladeira, no entorno da casa, e de lá de dentro, de muito longe, de seus ancestrais. Ela tinha um olhar aguçado, enxergava o que muitos fingiam não ver, pode até ser que ficaram cegos; assim não sofriam as dores da discriminação. Depois de ver o olhar de pavor da mãe, só se manifestou mais uma vez, quando quis na escola participar da homenagem a Zumbi dos Palmares; a professora disse-lhe que era inadequada e pintou as meninas brancas de preto, ainda teve que assistir pateticamente a isso, forçada pela mãe. Continuou sendo amparada pelos livros e os sonhos. Certo dia, antes de realizar um concurso público, sonhou com uma santa negra de cabelos crespos e ela, linda, colocou a coroa. Era Oxum, divindade africana. Parecia aviso, ela se classificou em primeiro lugar, uma afronta – era a voz velada dos concorrentes da classe dominante. Que luta para tomar posse no cargo disputado pelos brancos. Ela sabia só haver uma forma de passar por essa barreira, capacitação; fez mestrado, doutorado em outros países, ocupando espaços, saiu do casulo. Viagens, pales16
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CONTOS
lestras, convites para eventos vedados para os de sua cor, sendo que sua apresentação era diferenciada, essa é doutora Maria, com curso disso, cursos daquilo, o seu curriculum completo justificava a presença em tais lugares. Não gostava de participar desse mundo em que os de sua raça eram os serviçais, andavam pela sala com andar imponente, roupas brancas, envergando uma bandeja na mão, pareciam equilibristas. Preferia o teatro, caprichava na roupa, assim evitava o olhar desconfiado do porteiro geralmente negro que sorria bobamente para os brancos e diante dela conferia documentos, mudava o semblante; tinha essa imagem descontruída de sua raça. Maria teve alguns romances, sonhou com casamento, filhos, mas não vingaram. Até que conheceu um escritor e professor. A vida ganhou cumplicidade no outro, respeito, diálogos pensados e esquecidos renasceram, acordando o encanto já quase desistido da vida. No início, o amou nas palavras; as defesas continuavam lá dentro escondidas, num canto secreto da infância. A sinceridade de seu amor diluiu os nós, o olhar de sentença da mãe, o cheiro de cabelo queimado, ressentimentos com a vida. Com ele voltou à terra natal e conheceu terreiros de candomblé. Perdeu o fôlego quando apareceu Oxum, a orixá do sonho, igualzinha, sem tirar nem pôr. Aproximou-se num abraço e, disse-lhe que naquela noite a protegeu da trama que havia contra a sua entrada na magistratura. – Acompanhei tudo minha filha e impedi que eles tirassem o seu direito de exercer o cargo. - Mais quá... Foi tanta coisa nessa vida, que a gente teve que engolir; fingir que não viu, nem ouviu, que terminou por acreditar no que eles diziam - disse dona Roxa, uma velha tia de Maria, que se inclinou para ela com olhar de coragem e resistência - estava escrito o encontro de você com Oxum, ela sempre esteve do seu lado, mesmo que você não soubesse. – Mas, me diga minha filha você nunca sentiu nada? A memória aconchegou-se rapidamente nas madrugadas ao som dos atabaques. Naquele instante, viu todos os sonhos à luz do dia. Desarmou-se. Sorriu verdadeiramente.
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Aidil Araujo Lima (Bahia, 1
1958). Contista, com diversos textos premiados e publicados em Antologia. Participou da FLICA em 2016, no Mapa da Palavra pela Fundação Cultural do Estado da Bahia em roda de conversas com outros escritores. Publicação do livro - Mulheres Sagradas, agosto 2017.
Souza Pereira inspirado em J.D. 'Okhai Ojeikere (2017)
LITERATURA BRASILEIRA
CONTOS
Rotas da lusofonia
TRÊS MARIAS por
Aidil Araujo Lima1
Isabel dilui o peso na coragem das mãos impregnadas de vontade. Ao chegar a casa, põe as sacolas sobre a mesa solitária, filhos na escola, o marido partiu numa distância de abandono. Tira do armário a caneca esmaltada, encontrada no lixo, num dia que perambulava pelas ruas, buscando ânimo para tocar a vida com dois filhos, longe da família; foi quando, impelida por força não vista, chega ao objeto, o segura com muito cuidado, leva-o para casa, lava com água e sabão de coco. A caneca lhe abriu uma fenda no tempo: lembrou-se da vida na roça, da avó pilando o grão de café, do cheiro da bebida misturada à fumaça do fogão a lenha. Suspende a lembrança, coloca a chaleira no fogão a gás, coloca pó de café industrializado, bebe o líquido acalmando o desespero. De repente, arrepio no corpo: o cheiro do café já não era o mesmo, ficara igual ao de antigamente, com cheiro da roça; faz tempo não sente esse aconchego! Pega papel, caneta, faz lista de mantimentos; sai para a vizinhança, repartições, bancos, cobrando antes o almoço que faz com sabor do caminho de casa. As pessoas sentem essa saudade impregnada na lembrança: comer comida com gosto de família reunida sob a mangueira, brincadeira com os primos. Corre até o mercado. Em pouco tempo, um banquete está pronto, sem perceber a ajuda da avó, ligeira no fogão e no afago. Prontamente leva as marmitas de comida, voltando com o dinheiro para dia seguinte. Inesperadamente estava sem embaraços de dinheiro, tinha até reserva, para ocasião de importância. Um dia, a avó apareceu visível, nem se assustou; acostumada que estava com sua presença, conversava com ela e escutava a resposta no pensamento. Sabia que precisava deixá-la seguir seu caminho; abraçaram-se sem lágrimas e ela seguiu a luz. Isabel decidiu voltar para casa; os filhos, casados, moravam em outro país. Encontrou a casa da roça empoeirada; limpou, visitou os parentes; juntos prepararam um banquete de celebração à vida sob a mangueira na mesa de muitos anos. A alegria de menina acordou de repente, adormecida por tanto tempo; desde que se fora, aceitara um casamento, a contragosto da avó; queria conhecer outros lugares. Teve alegrias com os filhos; conquistas financeiras lhe deram equilíbrio para viver em segurança. Isso era diferente; rolar pela grama despreocupada das horas, sem pretensões de ir mais além; rir até a barriga doer, sem motivo que merecesse; olhar o amigo de longo tempo, acarinhar seu rosto, esperar as estrelas e procurarem pelas Três Marias como nos velhos tempos.
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Aidil Araujo Lima (Bahia, 1
1958). Contista, com diversos textos premiados e publicados em Antologia. Participou da FLICA em 2016, no Mapa da Palavra pela Fundação Cultural do Estado da Bahia em roda de conversas com outros escritores. Publicação do livro - Mulheres Sagradas, agosto 2017.
Souza Pereira inspirado em J.D. 'Okhai Ojeikere (2017)
LITERATURA BRASILEIRA
ARTIGO
Rotas da lusofonia
DE HUAMBO PARA O Ninfa Parreiras MUNDO por
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Vivemos um mundo sem fronteiras, de mercados e deslocamentos que podem, por um lado, favorecer as trocas culturais. A literatura vai de um país a outro, seja pelos livros, seja pela presença dos autores nos eventos, seja pela agilidade das mídias sociais em divulgar as postagens/as notícias. Por outro lado, o manancial histórico-artesanal de países do continente africano corre o risco de se perder diante das intolerâncias que temos enfrentado, por falta de esclarecimentos e por preconceitos de várias ordens. Da África, herdamos muito das nossas expressões, nas áreas da música, da dança, da literatura, da culinária, do artesanato, da religiosidade. Somos afro-descendentes no uso da língua e na apropriação de expressões artísticas. Se há tantos livros publicados, autores consagrados, textos reveladores da pluralidade, o que faltaria para ser uma literatura respeitada e conhecida? Por que as escolas não adotam rotineiramente as obras afro-brasileiras? E por que as livrarias não possuem seções especializadas nessa produção? Por que o professores se sentem inseguros e/ou desconhecem autores e livros de matrizes africanas? Caberia um programa de disseminação de livros, textos, escritores e tudo que diz respeito à África. Não bastam livros nas bibliotecas. Nem as pequenas tiragens que raramente entram nas livrarias. A formação dos professores, dos alunos e das famílias precisa ser mantida e fortalecida por cursos e oficinas, resenhas de livros, artigos e estudos. Aqueles que escrevem e produzem literatura devem seguir na resistência. Vamos acolher a obra de um autor africano e sua rica produção literária. Seus textos são artesania bordada do outro lado do oceano que respinga de cá. Angolano de Huambo (nascido em 1960), Zetho Cunha Gonçalves passou a infância e a adolescência no Cutato, na sua pátria inaugural da poesia (como ele mesmo costuma dizer) - uma povoação da Província do Kuando-Kubango. Isso certamente costurou delicadezas em sua criação literária. A vida no interior, o contato com a terra, a convivência com povos de culturas marcadas pela ancestralidade lhe emprestou um fazer manual aos seus versos. Poeta, autor de literatura para a infância, organizador de obras e antologias literárias, ele tem dezenas de livros publicados e textos traduzidos em outras línguas. Reside em Lisboa, onde vive de literatura, como um divulgador dos livros de língua portuguesa. É colunista da revista África 21 de Angola e colaborador de inúmeras publicações. Sua obra poética faz um passeio pela oralidade, ao resgatar modos de contar, de cantar das pessoas. Percebemos, logo, a aproximação da poesia com a música, pelos ritmos e melodias dos versos. Da obra Terra: sortilégios:
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Canto de nomeação Oh djana to djó djana to djó //koá //koá Tchala kolo djamba //kae//nalatula bala
//ka kwí kalu chikie djiha kwalá nangá chako tue dui !nani ta nandi Kala Kakolokota Mugwangwa
!om !oa /nô !koe Oh djana to djó djana to djó //koá //koá (p. 37) Ele revela, em algumas obras, as tradições orais de cada poema, como vemos em Rio sem margem: poesia da tradição oral (2011), publicado aqui no Brasil pela editora Melhoramentos. E Rio sem margem: poesia da tradição oral, livro II (2011). A gênese, a linguagem, a musicalidade dos versos aparecem informadas pela localização geográfica, pelo povo ou pela língua. Uma riqueza de variantes culturais! De Rio sem margem: poesia da tradição oral, lemos: O céu, a terra e o mar [Tradição oral Cabinda, Angola] Tem uma mulher três filhos: dois com o juízo perfeito, o terceiro é demente - o Ceu, a Terra, e o Mar. (22.4.2011, p. 22) O autor tem livros publicados para a infância, belamente ilustrados, a exemplo de: Debaixo do arco-íris não passa ninguém (2006), poesia; Brincando, brincando não tem macaco troglodita (2011), poesia; A caçada real (2011), teatro; e A vassoura do ar encantado (2012), lenda africana. 22
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Ludicidade, jogos de palavras, irreverência e um jeito lírico de escrever sobre e para a criança revelam uma literatura comprometida com a estética (imagens e ritmos) e com a ética (respeito ao leitor e às abordagens). A obra A palavra exuberante (2004), anuncia um olhar pausado sobre a “Terra”. Alguns poemas são publicados posteriormente em Terra: sortilégios (2013). Terra? As queimadas da infância, as velhas árvores ardendo, castiçais na noite. (p.11) A natureza, as águas, a terra, as matas, os bichos, o fogo e tudo que faz parte da natureza estão nos versos. E ainda a abordagem metaliterária, em “A escrita será a amnésia criadora”: A escrita será a amnésia criadora, o pulso animal. Momento de mil sabores e nesta mão, a contenção do ar. Eis aqui os saberes iniciais, As iniciáticas figuras do fogo. Oh árvore de todo o horizonte! (p. 17) E também no já clássico poema “O aparo caligráfico dos sons”: Para o poema me debruço – ponto de interrogação, espaço do espanto. Encantamento, desilusão. (...) (p.19) No recente livro Noite vertical (2017), Zetho, além de trazer versos plantados na ancestralidade africana, presta tributos a artistas amigos que não estão mais por aqui, a exemplo de Herberto Helder e Eduardo White. E ainda homenageia os que seguem no fazer artístico, como Luandino Vieira e Roberto Chichorro. No prefácio, lemos: A Poesia é uma coisa demasiado séria e importante, para se confundir com literatura. Poucas palavras e uma discussão metaliterária sem fim. Um resgate do status da poesia, mãe da literatura na sua origem e grandeza. Se o que enaltece a obra de um poeta é o seu fazer metapoético, Zetho nos brinda com diversos poemas dessa natureza: No meu ombro Repousa no meu ombro a tua insónia: - A noite é o grande poema. e vai até de Madrugada. (p 44)Que essas palavras salpiquem desejo nos olhos de quem não conhece os livros desse autor angolano. E que sua poesia continue a encantar os de lá e os de cá do oceano. ______________ Gonçalves, Zetho Cunha. Rio sem margem: poesia da tradição oral. Vila Nova de Cerveira/Portugal: Nóssomos, 2011. --------------------. Rio sem margem: poesia da tradição oral, livro II. Vila Nova de Cerveira/Portugal: Nóssomos, 2011. -------------------. Debaixo do arco-íris não passa ninguém. Ilustrações Chichorro, Rio de Janeiro: Língua Geral, 2006. ------------------. Brincando, brincando não tem macaco troglodita . Ilustrações Chichorro, São Paulo: Matrix, 2011. 23
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Ninfa Parreiras
(Itaúna, Minas Gerais, 1970). Autora, psicanalista e professora.
______________ Gonçalves, Zetho Cunha. A caçada real. Ilustrações Chichorro, São Paulo: Matrix: 2011. ------------------. A vassoura do ar encantado. Ilustrações Andrea Ebert, Rio de Janeiro: Pallas, 2012. -----------------. Terra: sortilégios. Vila Nova de Cerveira/Portugal: Nóssomos, 2013. -----------------. Noite vertical. Lisboa: Língua Morta, 2017.
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Souza Pereira inspirado em J.D. 'Okhai Ojeikere (2017)
LITERATURA BRASILEIRA
RESENHA
Rotas da lusofonia
MULHERES NEGRAS: Paulo Sabino CONCEIÇÃO EVARISTO por
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Há cerca de dois anos, fui convidado a produzir, em novembro, mês da consciência
negra, um sarau de poesia no Centro Cultural Laurinda Santos Lobo, no bairro de Santa Teresa, Rio de Janeiro. Pelas razões mais óbvias, preparei um sarau todo de autores negros com poemas que tratassem da negritude sob diversos aspectos. Entre os autores, Nei Lopes, Éle Semog, Salgado Maranhão, Elaine Marcelina, Elisa Lucinda e Conceição Evaristo. Utilizei-me de outros poetas, mas os nomes citados não poderiam faltar à minha seleção. Conceição Evaristo integra a lista dos imprescindíveis no sarau voltado ao mês da consciência negra porque a sua poética relaciona-se diretamente com todas as discussões que envolvem gênero, cor e memória. No centro dos assuntos da poesia de Conceição Evaristo está a condição socioeconômica da população negra e, mais a fundo, a condição sociocultural da mulher negra numa sociedade machista e racista. O olhar da poeta não perde de foco o seu senso crítico ao versar sobre as tantas lágrimas por sob a pele feminina, geradas pela opressão e pela violência cotidiana a que são submetidas. Se um homem negro sofre uma série de violências causada pelo racismo, a mulher negra sofre a mesma série de violências mais a série de violências causada pelo machismo. Ou seja, sofre o dobro. É bom que tais questões, tão caras à condição de vida das mulheres negras, não sejam esquecidas nem que saiam de foco; tão importante quanto elas, é a preservação da história da população negra. Um povo sem memória, que desconheça a sua história, a história da sua ancestralidade, desconhece os caminhos históricos percorridos para que ele chegasse ao seu momento presente nas condições de vida apresentadas. Um povo sem memória, que desconhece a sua história, não sabe por que lutar nem que armas usar na luta. A poesia de Conceição Evaristo trata de reparar essa questão, poetizando a história da sua ancestralidade, a luta do seu povo negro – e das mulheres negras – para que nunca seja esquecido o que foi preciso fazer a fim de conquistar o respeito e o orgulho por sua condição de mulher negra – ainda que saibamos que há muito a conquistar. Num momento histórico de tantos retrocessos, de tantas crises, de tantas iminências de guerras, a poesia de Conceição Evaristo nos faz lembrar que arte e resistência política podem e devem unir-se em casamento de igualdade entre os pares, no intuito de que o “discurso político” não fique acima do “fazer poético” e vice-versa.
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Paulo Sabino (Rio de Janeiro, Brasil). Poeta, edita o site literário Prosa Em Poema. Coorde 1
na o projeto
Ocupação Poética, no
teatro Cândido Mendes de Ipanema, onde leva ao palco os mais importantes poetas da poesia contemprânea para a leitura de poemas autorais, inéditos e consagrados, e de outros autores. Organiza e promove o Sarau do
Largo das Neves, em Santa Teresa, que acontece na penúltima ou na última quintafeira de cada mês.
Souza Pereira inspirado em J.D. 'Okhai Ojeikere (2017)
LITERATURA BRASILEIRA
ENTREVISTA
Rotas da lusofonia
A ESCREVIVÊNCIA DE CONCEIÇÃO EVARISTO Thassio Ferreira por
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Essa Flip está sendo muito marcada pela presença das mulheres e também dos negros,
tanto como convidados, como pelo escritor homenageado que é o Lima Barreto. Qual seria o desejo da senhora para a próxima Flip? Qual é a cara que a senhora gostaria que a próxima Flip tivesse? Para mim a próxima Flip, ela tem que aprofundar. Por que eu acho que a Joselia [Aguiar] deu um passo fabuloso. A curadoria de agora feita por uma mulher deu um passo no sentido de democratizar essa Flip. Para mim foi uma marca bastante importante, inclusive o fato das publicações e conferências poderem ser assistidas pela internet. Então isso foi muito bom, porque ele é um evento [a Flip] caro, um evento que criava uma certa dificuldade para participação. O fato de hoje ser pela internet, as pessoas que não puderem vir terão acesso. E acredito que pode ir aumentando a participação dessa autoria negra, tanto brasileira quanto africana, ou de algum outro lugar. Como também incluir essa autoria indígena, que é uma autoria que está cada vez mais se afirmando na literatura brasileira. Mas eu acho que essa curadoria de agora foi muito corajosa, eu acho que ela deu um passo radical, eu diria que radical mesmo, e muito rápido. Do ano passado para cá, foi de uma diferença muito substanciosa. Então eu acredito que as próximas edições vão ser ampliadas. Hoje também há uma representação de grupos minorizados, como os homoafetivos que têm uma literatura muito forte. Aliás, tem uma escritora, a Natália [Polesso], que eu fiz parte do Prêmio Jabuti, eu fui uma das [pessoas] que li o texto dela… fui uma das juradas. E votei em um livro dela que eu gostei muito, muito mesmo, um livro com muita competência, que traz com muita dignidade uma narrativa homoafetiva. Eu acho que cada vez mais esses festivais literários vão aprofundar essa democratização. A senhora comentou justamente que agora a gente tem lido mais autores negros, inclusive africanos, mas eu particularmente tenho uma percepção de que a gente ainda lê menos os autores negros do que outros autores africanos brancos, como [José Eduardo] Agualusa e Mia Couto – que são muito bons -, mas o Ondjaki, por exemplo, nós lemos menos. Mesmo dentro do Brasil, o Cuti é um escritor não tão conhecido. Que autores negros a senhora recomendaria que o público lesse ainda mais? Para começarmos a ler cada vez mais literatura negra? Eu recomendo a Geni Guimarães, de São Paulo, o Cuti que você acabou de falar nele. Eu acho que o Cuti é um escritor que brevemente deve ser convidado. Precisa ser convidado, quer dizer, isso é um desejo meu… Lívia Natália que está aqui também lançando um livro de poemas dela. A senhora escreve mais prosa ou mais poesia? Eu acho que mais prosa, pelo menos tenho publicado mais prosa. Enquanto eu tenho dois romances e dois livros de contos já publicados, eu só tenho um livro de poemas. 28
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Na 15° Festa Literária Internacional de Paraty- Flip 2017, entrevistamos um dos símbolos da literatura negra e feminina contemporânea no Brasil, a escritora Conceição Evaristo. A autora nos contou sobre o papel social da literatura, democratização do conhecimento e coletividade. Além de nos revelar com exclusividade o título de seus próximos livros.
Mas e os guardados? A senhora tem escrito mais prosa ou poesia? Guardados eu tenho mais prosa. Mas na minha adolescência, na minha juventude, nos primeiros anos que eu cheguei no Rio de Janeiro, eu tenho muita poesia escrita que eu não mexi mais. Houve um momento em que eu escrevi mais poesia. E hoje o que a senhora lê mais? Mais prosa, poesia ou não-ficção? Não, é ficção! Hoje eu diria que eu leio tanto prosa quanto poesia. Principalmente de uma geração de escritoras e escritores negros que estão aí, e que me têm como referência, que me dão livros e me pedem para ler. Às vezes pedem para eu prefaciar, então hoje eu tenho lido tanto prosa como poesia. Especialmente esses autores que a senhora citou? Nesse momento estou lendo a Lívia Natália, ela reeditou agora um livro de poesia. E tem um dos livros dela que eu faço a introdução. A Elizandra Souza, uma menina de São Paulo, a Ana Cruz do Rio de Janeiro, a Lia Vieira também do Rio de Janeiro. Alan Rosa da Conceição é um “texto” que me dá um prazer imenso de leitura. O Alan traz uma linguagem muito marcada, muito urbana de São Paulo num linguajar da periferia extremamente poético. Ele escreveu um texto sobre um dos livros meus e eu gostei tanto que pedi para esse texto ser incorporado como prefácio desse meu último livro. A senhora comentou dessa prosa do Alan que vem da periferia. Eu vou estar numa mesa hoje à tarde sobre leitura e comunidade. Qual o impacto que essa vivência em espaços marginalizados – seja em favelas, em periferias, em comunidades indígenas marginalizadas – tem na sua literatura e na literatura de uma maneira geral? Essa vivência se torna tema, enquanto experiência que traduz a minha vivência pessoal, ou em experiência que traduz a vida de uma coletividade. Em pensar em termos de coletividade, a minha escrita é profundamente marcada pela minha condição de mulher negra na sociedade brasileira . Ela é marcada de maneira inconsciente e é marcada de maneira consciente. Conscientemente eu quero criar textos, quero criar uma ficção que nasça dessa experiência, dessa minha vivência. É o que eu vejo, por exemplo, de autores que eu conheço da periferia, como o próprio Alan Rosa da Conceição, o Sacolinha, de São Paulo; a própria Elizandra que eu acabei de falar nela. A gente percebe que essa criação é profundamente marcada pela vivência dessas pessoas, desses autores. Há um movimento que eu diria consciente de trazer essas experiências para a literatura, até para confrontar com a “outra literatura” que nos exclui. Quando a gente pensa na literatura indígena, que eu conheço pouco, de perto eu só conheço mesmo o Daniel Mundukuru, você vê que existe ali, existe na nossa criação, uma busca por espaço simbólico. É um embate simbólico que a gente tem enquanto sujeito, que temos outras experiências, que temos outras manifestações culturais, que temos outras maneiras de se postar no mundo, e que essas experiências não são levadas em consideração, ou quando são levadas, o são de maneiras folclóricas, perdendo todo o dinamismo que a gente tem no nosso dia-a-dia. Essas experiências não são consideradas, inclusive, como “material nobre” para se fazer literatura. E a gente faz justamente isso, a partir do nosso lugar de pertencimento, a partir do nosso lugar de gênero, no caso das mulheres e da literatura criada por pessoas trans, de nossa experiência social como sujeitos pobres dentro dessa nação, essas experiências são materiais que a gente traz para o nosso fazer literário. E eu me lembro muito de um poeta do Rio de Janeiro, [Éle] Semog, que ele fala mais ou menos isso: “É difícil criar uma rima com Carandiru”. E eu acho que dá para gente entender o que estamos falando… Escrever sobre o Carandiru é difícil, agora escrever sobre “eu tomei um whisky que chegou engarrafado de não sei quantos anos” é muito mais fácil. Você não está lidando com a dor, a gente lida com a dor
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1Conceição
Evaristo (Belo Horizonte, 1946). Escritora brasileira, Mestre em Literatura Brasileira pela PUC-Rio e Doutora em Literatura Comparada pela Universidade Fluminense. É militante do movimento negro, com grande participação e atividade em eventos relacionados a militância política-social. Estreou na literatura na década de 90 com obras publicadas na série Cadernos Negros, pelo grupo Quilombhoje.
o tempo todo. A gente lida com a busca de local de pertencimento, essa luta de nos apropriarmos da leitura e da escrita e do fazer literário como algo de nossa pertença. Por que a literatura só pode ser considerada e só pode ser feita se ela nascer do macho branco? Heterossexual e cis gênero. Existe uma reafirmação dupla do direito de fala de outros grupos e da validade da experiência desses grupos na literatura. Isso. E toda vez que grupos minorizados pelo poder partem para a busca do direito de fala, do direito de representatividade, há uma tendência de não acreditar na validade desses objetos. Se a gente for pensar, por exemplo, na história do samba. O samba quando nasceu era coisa de preto, era quase criminoso! A própria história da capoeira…. Desvalorizar essas nossas experiências enquanto produtos, nos desvalorizar enquanto sujeitos criativos é uma maneira também de criminalizar as nossas produções. A gente assistiu ao longo da história da literatura brasileira casos de embranquecimento seja de autores negros, seja de personagens negros para que eles pudessem ser “melhor aceitos” pelo circuito literário. Vimos isso com Machado de Assis, com o Lima Barreto… Ou as pessoas não se identificavam como negras ou elas embranqueciam personagens para que eles tivessem maior projeção literária. Como a senhora vê isso hoje? A senhora acha que melhorou, a senhora ainda enxerga isso acontecendo? Como a senhora analisa esse tipo de situação nos dias de hoje? Olha, eu não sei se melhorou. Mas pelo menos é muito mais discutido. Mas quando você vê por exemplo a novela Escrava Isaura, a gente vê que ela segue a mesma linha de quando o texto foi escrito. A Escrava Isaura era uma mestiça, mas era uma mestiça embranquecida. Quando a gente por exemplo, pensa em Gabriela Cravo e Canela, com todas as críticas que eu tenho ao texto, mas quando virou novela, vimos que a primeira atriz – que foi a Sônia Braga -, disse que teve que fazer escurecimento na pele. E a segunda atriz, cujo nome eu esqueci [eu intervenho, em ajuda à memória de Conceição: Dira Paes, que é do Norte, já tem um biotipo mais próximo], isso,mas mesmo assim não seria ainda; se a gente fosse pensar em Gabriela Cravo e Canela, a gente pensaria em um personagem com tom de pele mais negro, mais escuro. A gente vê essas obras literárias sendo ainda apresentadas com esse embranquecimento, em termos de personagens. Em termos de autoria nós temos o Machado de Assis que em estudos mais recentes é apontado como sujeito negro. Aliás, tem um livro muito interessante do professor Eduardo de Assis Duarte – que estava aqui agora mesmo - que é o Machado de Assis afrodescendente [escritos de caramujo]; que eu não sei nem como que a crítica recebeu esse estudo de Machado de Assis afrodescendente. Quando a gente pensa em Cruz de Souza, maior poeta simbolista brasileiro, que é um sujeito do meu tom de pele ou mais, que não dá para embranquecer esse tom de pele, nós vamos ter uma crítica literária que só trabalha com os poemas do Cruz e Souza onde ele utiliza exaustivamente a metáfora do branco. E o Cruz e Souza passa a ser chamado “o poeta perseguidor das formas brancas” o “poeta que nunca falou da escravidão”. Mas a crítica literária, por exemplo, não apresenta o texto dele “O emparedado”, que virou filme estrelado por dois atores negros, Norton Nascimento e Maria Ceiça. É um texto que não há sombra de dúvidas de um Cruz e Souza negro falando. Um poema dele, Núbia, que ele faz para uma noiva, a crítica literária não trabalha com esse texto. Então os textos em que o Cruz e Souza vai falar do cativeiro e da escravidão, a crítica literária não os apresenta. É uma maneira de embranquecer o sujeito através da forma literária dele. Hoje eu acho que é mais discutido e há uma autoria negra que se afirma como negra.E tem um trabalho muito interessante desse professor [Eduardo de Assis Duarte] que é Literatura e Afrodescendência no Brasil, são três volumes em que ele mapeia essa autoria negra dentro da formação da literatura brasileira. Então hoje, como 30
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tem uma plêiade de escritoras e escritores negros que afirmam essa negritude através de suas falas e de seus textos, está mais discutido. Teve algum livro ou autor que tenha impactado a senhora, especialmente em sua formação, ou ao longo da sua vida? A minha formação literária é feita dentro de uma academia que trabalha com autores brancos. Às vezes traziam o Lima Barreto, mas en passant. O que me impactou em termos de literatura de autores negros, não foi dentro da academia, foi na minha própria vivência dentro do movimento social. Então um dos livros que me impactou dentro de movimento social, isso nos anos 60, foi quando eu li Quarto de despejo da Carolina Maria de Jesus. Foi a primeira autora negra que eu conheci. Depois foi se dando através de pesquisa própria. Quando eu entrei para o curso de graduação eu já tinha lido tudo ou quase tudo de Lima Barreto. Há muito que eu leio Lima Barreto. O movimento negro tem o Lima Barreto como um dos precursores da literatura negra brasileira. Luiz Gama, eu vou conhecê-lo dentro do movimento social, ele que é considerado o primeiro jornalista negro na história da imprensa brasileira. Eu vou descobrir a autoria africana de língua portuguesa também dentro do movimento social, o primeiro poeta africano que eu fui conhecer foi o Agostinho Neto, com os Poemas da liberdade. Então esses livros que me impactaram. A Geni Guimarães, leia dela Leite de peito e se não encontrar leia A cor da ternura, é o mesmo livro, mas com alguns contos que não aparecem no segundo. Esses autores que me impactam são autores que eu descobri não na minha formação literária acadêmica, mas sim fora. Um bom título de livro é? O que você tem desejo de ler a partir do título. Um verso de outro escritor que a senhora gostaria de ter escrito? Mahin amanhã, de Miriam Alves [Conceição preferiu citar um poema inteiro]. Quais são os próximos planos da senhora? Terminar os romances “Flores de mulungu” e “Canção para ninar menino grande”, terminar um livro de contos, que talvez se chame “Os silenciosos prantos dos homens”, e um livro de crítica, mas esse livro de crítica só está na minha cabeça. Mas essa crítica se debruça sobre algum autor específico, algum período? O meu desejo é ler e escrever sobre textos de autoria de mulheres contemporâneas. Porque tem uma meninada – eu tenho 70 anos, eu posso te chamar de menino, entende?! – escritoras bem jovens que estão produzindo bastante. Eu fico lendo e fico com muita vontade por que eu sei que, se eu me debruçar sobre esses textos, e falar sobre esses textos também, para elas vai ser muito bom, um reconhecimento do trabalho delas. E para a cena literária vai ser muito importante ter a sua visão, a voz da senhora falando sobre a produção de outras escritoras contemporâneas. É, eu quero muito fazer isso. Um conselho aos jovens escritores? Especialmente os da periferia. Continuem escrevendo, produzam e não caiam na ilusão de pensar a literatura como forma de subsistência. Não pense que está escrevendo, que vai vender muitos livros e que vai ficar rico. Esse é um outro lado. No momento o essencial é escrever e ler outros. E ler! Porque a gente precisar entrar em contato também com outras pessoas, para que você possa dialogar o texto, que possam te inspirar. É ler e escrever.
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1Thássio
Ferreira (Rio de Janeiro, 1982). É poeta e contista, autor do livro de poemas (DES)NU(DO) (Íbis Libris, 2016) e de contos publicados nas antologias Prêmio VIP de Literatura 2016 (A.R. Publisher, 2016) e “Entre Amigos” (Sinna, 2016). Recentemente, seu livro inédito de contos “Cartografias” foi um dos préselecionados ao Prêmio Sesc de Literatura 2017. Tem poemas e contos publicados em revistas diversas como Philos, Germina, Mallarmargens, Revista Semeadura e Avessa.
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REVISTA DE LITERATURA DA UNIÃO LATINA 22 novembro 2017 · REVISTA DE LITERATURA DE LA UNIÓN LATINA 22
noviembre
2017