Philos v.2 n°.9 (2016)

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Philos

PORTUGUÊS CATALÀ ESPAÑOL FRANÇAIS ITALIANO ROMÂNĂ REVISTA DE LITERATURA DA UNIÃO LATINA 9 outubro 2016 · REVISTA DE LITERATURA DE LA UNIÓN LATINA 9 octubre 2016

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Philos

PORTUGUÊS CATALÀ ESPAÑOL FRANÇAIS ITALIANO ROMÂNĂ REVISTA DE LITERATURA DA UNIÃO LATINA 9 outubro 2016 · REVISTA DE LITERATURA DE LA UNIÓN LATINA 9 octubre 2016

RODRIGO DO PRADO BITTENCOURT ROGELMA SOUSA CAIO LOBO NATHALIE LOURENÇO MAGNO MELLO MARCELA SAYURI RÂNDYNA DA CUNHA GUSTAVO SOUZA

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PORTUGUÊS CATALÀ ESPAÑOL FRANÇAIS ITALIANO ROMÂNĂ REVISTA DE LITERATURA DA UNIÃO LATINA 9 outubro 2016 · REVISTA DE LITERATURA DE LA UNIÓN LATINA 9 octubre 2016

EXPEDIENTE

REVISTA DE LITERATURA DA UNIÃO LATINA REVISTA DE LITERATURA DE LA UNIÓN LATINA

Souza Pereira

EDITOR CHEFE | EDITOR EN JEFE

Sylvia de Montarroyos

COMITÊ EDITORIAL | COMITÉ EDITORIAL

Lucrecia Welter

REVISÃO DE TEXTOS | SUPERVISIÓN DE TEXTOS

Maus Hábitos

DESENHO E DIAGRAMAÇÃO | DISEGÑO Y DIAGRAMACIÓN

Martiniano Ferraz

ILUSTRADOR | DIBUJANTE

SOBRE A OBRA DESTA EDIÇÃO | SOBRE LA OBRA DE ESTA EDICIÓN

Publicado originalmente em outubro de 2016 com o título Philos, Revista de literatura da União latina. Os textos desta edição são copyright © de seus respectivos autores. As opiniões expressas e o conteúdo dos textos são de exclusiva responsabilidade de seus autores. Todos os esforços foram realizados para a obtenção das autorizações dos autores das citações ou fotografias reproduzidas nesta revista. Entretanto, não foi possível obter informações que levassem a encontrar alguns titulares. Mas os direitos lhes foram reservados. Philos, Revista de Literatura da União Latina é registrada sob o número SNIIC AG-20883 no Sistema Nacional de Informações e Indicadores Culturais com Certificado de Reserva outorgado pelo Instituto Nacional de Direitos do Autor sob o registro: 10-2015-032213473700-121. ISSN 2527-113X. Revista Philos © 2017 Todos os direitos reservados. | Publicado originalmente en octubre de 2016 con el título Philos, Revista de literatura de la Unión latina. Los textos de esta edición son copyright © de sus respectivos autores. Todos los esfuerzos fueron hechos para la obtención de las autorizaciones de los autores de las citaciones o fotografías reproducidas en esta revista. Sin embargo, no fue posible obtener informaciones que llevaran a encontrar algunos titulares. Pero los derechos les fueron reservados. Philos, Revista de Literatura de la Unión Latina es registrada bajo el número SNIIC AG-20883 en el Sistema Nacional de Informaciones e Indicadores Culturales con Certificado de Reserva otorgado por el Instituto Nacional de Derechos del Autor bajo el registro: 10-2015-032213473700-121. ISSN 2527113X. Revista Philos © 2017 Todos los derechos reservados.

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Philos, Revista Philos Revista de de Literatura Literatura da da União União Latina Latina | | Revista Revista de de Literatura Literatura de de lala Unión Unión Latina. Latina.


EDITORIAL

REVISTA DE LITERATURA DA UNIÃO LATINA REVISTA DE LITERATURA DE LA UNIÓN LATINA Fotografias são diálogos da identidade que reconfiguram a humanidade desde os primeiros passos da invenção deste meio de comunicação. Dialogando com uma série complexa de interações entre a estética, a antropologia, culturas filosóficas, sociais e ideológicas, descrevendo o meio social através desse fenômeno de massa (a fotografia), apresentamos as obras do arquiteto e fotógrafo pernambucano, Martiniano Ferraz. Suas construções em fine art são amplas e diversificadas, permitindo-nos sobrepujar olhares sobre os traços naturais e aqueles construídos pelo homem, visualizando as cidades através de lentes humanizadas, onde cada monumento transforma-se naturalmente em arte. Para além das capturas das lentes do fotógrafo, nossos autores expõem as suas experiências poéticas, dramáticas, originais e fazem uma conexão fundamental para manutenção do diálogo da arte e da literatura. Na nona edição da Philos, textos e fotografias comunicamse intimamente em suas práticas diversas. Esta publicação é parte do Philos Reposter, um projeto de republicação de todo o material lançado pela editora Camará Cartonera em novo formato gráfico, com colaborações de novos ilustradores, fotógrafos e artistas visuais. Desejamos uma ótima leitura, Souza Pereira

EDITOR CHEFE | EDITOR EN JEFE

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EDITORIAL

REVISTA DE LITERATURA DA UNIÃO LATINA REVISTA DE LITERATURA DE LA UNIÓN LATINA Fotografías son diálogos de la identidad que reconfiguram la humanidad desde los primeros pasos de la invención de este medio comunicacional. Dialogando con una serie compleja de interacciones entre la estética, la antropología, culturas filosóficas, sociales y ideológicas, describiendo el medio social a través de ese fenómeno de masa (la fotografía), presentamos las obras del arquitecto y fotógrafo pernambucano, Martiniano Ferraz. Sus construcciones en fine art son amplias y diversificadas, permitiéndonos sobrepujar mires sobre los trazos naturales y aquellos construidos por el hombre, visualizando las ciudades a través de lentes humanizadas, donde cada monumento se transforma naturalmente en arte. Más allá de las capturas de las lentes del fotógrafo, nuestros autores exponen sus experiencias poéticas, dramáticas, originales y hacen una conexión fundamental para mantenimiento del diálogo del arte y de la literatura. En la novena edición de la Philos, textos y fotografías se comunican íntimamente en sus prácticas diversas. Esta publicación es parte del Philos Reposter, un proyecto de republicación de todo el material lanzado por la editora Camará Cartonera en nuevo formato gráfico, con colaboraciones de nuevos ilustradores, fotógrafos y artistas visuales. Deseamos una óptima lectura, Souza Pereira

EDITOR CHEFE | EDITOR EN JEFE

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SUMÁRIO | SUMARIO CONTOS | COLUNAS | EXPERIMENTAIS CUENTOS | COLUMNAS | EXPERIMENTALES

8 Doce de cidra, por RODRIGO DO PRADO BITTENCOURT

12 Amor à

primeira vista,

17 Arqueologia,

por NATHALIE LOURENÇO

por

20 A

ROGELMA SOUSA

15 Da voz que

apelidei Sidarta, por CAIO LOBO

legitimação da homoafetividade, por MAGNO MELLO

22 Nunca fomos nós,

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por MARCELA SAYURI

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25 Mãos de

papel crepom,

por

RÂNDYNA DA CUNHA

28 Os poetas

mortos,

por GUSTAVO SOUZA


Martiniano Ferraz (2017)


LITERATURA BRASILEIRA Rotas da lusofonia

DOCE DE CIDRA por

Rodrigo do Prado Bittencourt1

Depois de vinte anos, retorno à minha cidade, em Minas, com meus filhos. Ela tem um

nome esquisito - Caxereamuçu - e é um ovo, mas é a minha cidade. Ah! Saudade! Infância, amigos, doces, alegria, brincadeiras... A vida às vezes é cruel em nos permitir relembrar o que passou. Eu sempre ia ver meus pais quando eles ainda moravam lá. Depois que eles se mudaram e minha irmã os trouxe para morar com ela em São Paulo, nunca mais voltei. Faz vinte anos que meu pai morreu - morreu de desgosto de ter que deixar sua terra. Ninguém me tira isso da cabeça. Sua doença foi mais da alma que do corpo. Os meninos ainda eram crianças, quando meus pais vieram de lá: o mais novo tinha uns dez ou onze anos e o mais velho uns treze. Foi muito triste e me desanimei. Não sou orgulhoso. Não é isso. A questão é: fazer o que lá, se todos que conheci estão mortos ou se mudaram também? Toda vez que volto sinto-me como uma múmia. Fico lembrando da infância, vendo tudo que mudou e isso só me faz mal. Há coisas do passado que, por melhor que tenham sido... Aliás, justamente por terem sido tão boas, precisam ser esquecidas. Não viria sozinho. Não faz sentido. Ou melhor, faria todo sentido do mundo. Disso é que tenho medo. Estou na idade para enfrentar o juízo final? Isso é para crianças de catequese: os velhos não têm forças para isso. Por que acha que há tantos velhos nas igrejas? Falta do que fazer, com certeza, mas também medo. Quanto mais velho, mais frágil a gente fica. Aquela historia de sabedoria é conversa para boi dormir; ou então sabedoria é outra coisa; é não se preocupar com as bobeiras e se preocupar apenas com o que importa: seus próprios medos. Isso lá é vantagem? Preferia ser um moleque aproveitando a vida e pensando que o mundo se resume a jogar bola e comer doce que a Mãe faz. Ah! Os doces que minha mãe fazia: que delicia! Gosto de inocência e de descoberta. O doce de cidra, então... maravilhoso! Nunca comi um doce como aquele. Que saudade! Minha mãe morreu faz onze anos e, até hoje sempre que vejo um doce de cidra de um lugar que ainda não experimentei, compro para saber se acho um tão gostoso quando o da Mãe. Nunca achei e nunca vou achar. Minha Mulher cozinha muito bem, mas doce de cidra igual o da mãe não existe! Uma vez apanhei tanto! Comi o tabuleiro inteiro, escondido, e era pro meu irmão, Renato, vender O Renato era deficiente e a Mãe fazia doces para ele vender e poder ajudar do seu modo no sustento da casa. O pai me bateu de tirar sangue. Quase quebrou a vara de marmelo nas minhas costas. A Mãe depois veio me dizer com aquela vozinha calma e amorosa para eu não fazer mais, que a gente precisava do dinheiro, que a situação estava difícil... Tadinha! Começou a chorar. Doeu tanto em mim, que chorei a noite toda sem conseguir dormir. Preferia muito mais a vara de marmelo. Eu já tinha doze anos. Não era mais tão criança. Depois disso, trabalhei feito nunca, sem corpo mole ou reclamação, para ajudar em casa, e comia o que tinha, sem fazer cara feia. Aprendi até a gostar de fubá suado. 8

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CONTOS


Isso foi pouco antes de eu ir pra Itu. Mas foi até bom: sempre lembrava disso no colégio interno e, quando sentia saudade e vontade de voltar para casa, pensava: “Não! Eles precisam de mim aqui, para eu aprender, ter uma boa profissão e ganhar dinheiro. Não quero nunca mais ver a Mãe chorar”. Minha mãe sabia viver: sempre amorosa com a gente, sempre nos defendendo das surras do Pai. Não era fácil pra gente: se batia em algum amigo, apanhava para não bater em filho dos outros; se apanhava do amigo, apanhava de novo para aprender a não apanhar de ninguém, mas ser homem. Rio disso, hoje e é mesmo engraçado. Os tempos eram outros. Não era só meu pai que fazia isso. Todo mundo era assim. Lembro uma vez quando o Zé da Porca, que era pouco mais novo que eu, amigo do Roberto, meu irmão, brigou com um dos Capetinhas (a gente chamava de “Capetinhas” os filhos do Paulo Capeta): o Zé apanhou feio e chegou em casa e apanhou de novo. No outro dia, na escola, ele foi brigar com o Capetinha mais uma vez porque o pai dele tinha mandado ele nunca abaixar a cabeça ou levar desaforo de ninguém. Apanhou do Capetinha e do pai, pela segunda vez. No terceiro dia, ele chegou todo mansinho pro Capetinha e falou: “vamos ser amigos porque eu não tenho medo de você, mas não quero apanhar do meu pai de novo”. O Capetinha contou para todo mundo e todo mundo deu risada do Zé da Porca e mexeram com ele por um bom tempo, por causa disso. Mas acabou que deu certo e não é que daí os dois se tornaram os melhores amigos um do outro e depois o Zé até casou com uma irmã do capetinha e tudo?! Era assim. Ninguém guardava raiva: a gente era tudo criança. Eu não briguei muito na rua, pois era o filho mais velho e trabalhava mais que os outros, naturalmente. Tirava leite e depois que o pai abriu o armazém, tomava conta dele, mas não pense que perdi minha infância, ou algo assim. Aproveitei muito mais que meus filhos. Aproveitei muito mais ainda que essa criançada de hoje em dia, que é só televisão, internet e videogame. Trabalhei, sim, mas meu pai nunca me tirou da escola, porque sabia que era importante. O Pai batia muito, mas queria nosso bem. Também, coitado, não era fácil: imagine aquela filharada, tudo homem - tive uma irmã só e o resto tudo homem: 10 homens! E a gente era pobre e o Pai tinha que se virar para tratar de toda a família. Além disso, o pai era doente: tinha uma úlcera que quase o matava. Às vezes, eu estava em casa e pensava: “cadê o pai?”. Ia pro quarto e estava ele deitado na cama, encolhido, morrendo de dor. Ele tomava um litro de leite para acalmar a dor e não valia de nada. Naquela época, não tinha recurso. O negócio era sofrer. “Gente nasce mesmo é para pagar”, dizia o povo antigo. Talvez estivessem certos. O Pai aguentou isso dois anos antes de conseguir fazer cirurgia. Hoje, eu me pergunto se estou à altura de meu pai e minha mãe. Quando era rapazinho e fui estudar em Itu, já que na minha cidade só tinha escola de criança, tive vergonha deles, por serem da roça, pobres e ignorantes. Eu só estudava com gente rica, no colégio dos Irmãos e só estava lá porque a Congregação pagava tudo, já que eles esperavam que a gente se tornasse padre. Os meninos que moravam lá eram todos destinados ao seminário, mas havia também os que moravam com suas famílias e iam lá só para estudar. Estes eram os mais ricos. Tinha até filho de fazendeiro! E eu com apenas duas calças e duas camisas que a Mãe fez para eu passar o ano: uma verde limão e uma abóbora. Para passar o ano: veja bem! Coitada da Mãe, costurava de noite, estragando a vista, depois de um dia inteiro de trabalho e ficou toda orgulhosa de me ver experimentando as camisas quando ficaram prontas. Depois, dobrou com tanto cuidado para por na mala e exigiu que eu tivesse tanto cuidado para transportá-las que parecia que se tratava das roupas de Jesus. Tadinha. 9

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A verdade é que, mesmo com tanto amor e empenho, tive vergonha dela; desta simplicidade. E vergonha do Pai. Meu Deus! Vergonha do Pai que sempre lutou tanto por mim e por todos nós. Via os meninos mais bonitos, mais bem vestidos e mais inteligentes que eu. Meninos que nunca tinham pegado numa enxada e eu não podia dizer que nunca tinha trabalhado pois todo mundo via que eu era pobre tinha as mãos e os pés grossos e calejados. É duro ser adulto quando se ainda é criança, mas isso me fez homem. Depois é que fui perceber o quanto estava errado e quando comecei a trabalhar no banco em São Paulo - e o negócio apertou e tive que comer o pão que o diabo amassou - aí dei valor. E até hoje tenho muito orgulho deles. Espero que meus filhos um dia tenham a minha idade e ainda tenham esse orgulho que eu tenho de meus pais. Agora, só não sei uma coisa: orgulho do que? Não enfrentei nem um décimo das dificuldades que meus pais enfrentaram; não tive tantos filhos (apenas dois); não vivi numa época sem hospitais, estradas, escolas... a minha cidade ainda não tinha tudo isso, mas saí de lá cedo, para estudar em Itu e quando saí do Colégio, com 18 anos, os Irmãos me arrumaram o emprego no banco, em São Paulo. Não passei o que o Pai e Mãe passaram... Se alguém deveria ter vergonha de seu pai são meus filhos e não eu. Por isso os trago aqui. Quero que vejam como era tudo, que respeitem meus pais, como eu faço. Quero que conheçam este mundo que se perdeu. Quero mostrar a eles os locais em que aconteceram as coisas engraçadas e felizes de minha infância. E foram tantas! Eles nem devem se lembrar muito bem de tudo que lhes disse sobre os lugares daqui e de quando vinham; faz tanto tempo... É bom estar com eles, aqui. Tudo fica mais leve quando se tem o apoio de quem te respeita e trata bem. Principalmente quando você não merece isso. Enquanto eles estiverem aqui, comigo, sou eu o foco de tudo e o objeto de interesse deles. Querem saber como se deu esta ou aquela história que lhes contei. Quando estou com eles, recebo o amor que deveria ter dado a meus pais. A gente vai andando e as lembranças me vêm e me assustam, mas o amor deles ajuda a diminuir um pouco este impacto. “Diminuir”. Não “extinguir”. Não adianta: é inevitável viver. Viver é lembrar: a vida não começa do nada e o presente é dado por quem se não pelo passado? Cada rua traz em si uma ameaça; cada casa, cada pessoa da minha geração que me aparece e que pode ser alguém que conheço e que traz consigo marcas do passado. Meus filhos me ajudam, porém, a me sentir mais forte. Afinal, eles vêm força em mim. Não sei de onde tiraram isso, mas é assim. Eles me protegem de mim mesmo e me protegem de meus pais, de encontrar com as lembranças que tenho deles. Não sei se funciona, mas acho que é isso: a gente só tem filho é para se proteger de nossos próprios pais. Só espero que eles não carreguem um dia as mesmas culpas e traumas que eu. “A filiação é bênção ou maldição?”, pergunto-me. Diria que toda bênção é uma maldição. Aprendi isso com a vida. Pena que o oposto não seja verdadeiro. A vida é mesmo estranha e assustadora: quanto mais te amam e te fazem bem, mais te machucam e atormentam. Não se escapa das cadeias que se aprendeu a amar. Sobretudo se elas te geraram. Talvez seja egoísmo perpetuar essa prática, mas, como na brincadeira da batata quente, não se livra do mal se ele não for passado adiante. Viver é magoar e amar é ferir, mas quem consegue abrir mão disso tudo?! Assim, até mesmo o doce de cidra tornase veneno. O doce da Mãe.

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Rodrigo do Prado Bittencourt (Pouso Alegre, 1984). Doutorando em Literatura de Língua Portuguesa pela Universidade de Coimbra; tem já um conto publicado numa revista da USP e outro a sair no final do mês. 1


Martiniano Ferraz (2015)


LITERATURA BRASILEIRA

CONTOS

Rotas da lusofonia

AMOR À PRIMEIRA VISTA Rogelma Sousa por

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Era uma manhã de inverno, o céu estava nublado, as flores pareciam chorosas no jardim

de sua casa, ela estava quentinha em sua cama confortável quando ouviu o despertador tocar as 06h00min. Embora ela gostasse do calor de sua cama, preferiu levantar-se para mais um dia de aula, principalmente porque era aula de sua matéria preferida: Matemática. Chamavam-na de “nerd”, pelo simples fato dela se dá bem não só em matemática, mas em todas as matérias, conseguia boas notas só pelo seu esforço de estudar, não porque queria ser mais do que ninguém, esse era o discurso dos preguiçosos da sua turma. Ela não dava muita importância para todo esse falatório e continuava a curtir sua matéria, os números para ela eram como se fosse seus filhos, amava-os indiscutivelmente. Adorava os desafios que seu professor lhe dava para serem resolvidos, sentia-se fascinada por aqueles problemas considerados dificílimos, ela decifrava-os como um enigma, isso só fazia com que ela se apaixonasse mais ainda pelos cálculos. Certa vez, quando estava na biblioteca da sua escola resolvendo seus cálculos matemáticos, era lá que se sentia mais segura, o silêncio lhe proporcionava uma paz para que pudesse resolver com calma cada operação. Não percebeu que do outro lado da biblioteca, estava acontecendo uma roda de leitura, lá estavam sendo declamadas as mais diversas poesias, dos mais diversos poetas, desde Carlos Drummond, Fernando Pessoa até o sensualismo de Florbela Espanca. Ela ouvia as poesias atentamente, esqueceu até de seus cálculos, por um instante aquelas palavras soaram como músicas aos seus ouvidos, pôde sentir uma sensação de prazer indescritível, cada palavra declamada lhe causava arrepios, fechou os olhos para se imaginar naquelas poesias. Foi amor à primeira vista, pensou ela. Levantou-se de sua cadeira e caminhou até a roda do grupo de leitura. Havia um banco vazio e resolveu sentar-se devagarzinho para não atrapalhar. Mas um rapaz que a viu se aproximar, chamou-a para participar, ela ficou um pouco apreensiva, pois não tinha muito contato com as palavras, gostava de ler, mas não tinha nenhuma intimidade com livros de literatura. Lia com entusiasmo apenas os enunciados das questões de matemática. Mesmo assim aceitou e leu uma poesia que lhe indicaram. Começou a ler baixo o primeiro verso. A cada palavra declamada, uma onda de excitação lhe invadia o corpo. Aumentou o tom da voz nos versos seguintes, sem perceber se encontrava de pé, gesticulando, andando de um lado para outro, franzia o cenho em uns versos incrédulos, sofria com os pensamentos descritos, sorvia cada sentimento escondido naqueles versos poéticos. Ao terminar de declamar as últimas palavras daquela poesia, estava deitada no chão, extasiada, anestesiada, fascinada. Lágrimas de emoção escorriam pela sua face quente. 12

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Naquele momento pôde sentir as mais belas sensações que as palavras causavam a quem lhe admirava. Despertou do seu êxtase com o barulho dos aplausos daquele grupo, todos sorriam admirados para aquela jovem que há pouco fez amor com as palavras e nem percebera. Ela levantou-se e deu sorriso, meio envergonhada, se ajustou no banco e não conseguiu falar nada, apenas segurava aquele livro com toda sua força, abraçava-o como se estivesse abraçando um amante, com uma mãe abraça um filho amorosamente, como a princesa que encontrou seu príncipe. Ela não sabia, mas essa experiência com as palavras seria a primeira de muitas que estavam por vir. A ponte apenas foi construída para novos caminhos serem percorridos. Uma nova jornada de encantamento poético se iniciava. O amor que sentia pelos números, agora teria que ser dividido com as palavras.

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Rogelma Sousa (Itapipoca, 1987). Graduanda em Letras pelo Iva – Instituto de Estudos e Pesquisas do Vale do Acaraú – Uva, professora de reforço escolar em sua casa. Amante da leitura, apaixonada pela vida, lê nas horas vagas e também na correria do dia a dia, escreve por inspiração, estuda, trabalha e adora a companhia da família. 1


Martiniano Ferraz (2016)


LITERATURA BRASILEIRA

COLUNAS

Rotas da lusofonia

DA VOZ QUE APELIDEI SIDARTA Caio Lobo por

1

“O fundo é você distorcido. Você que não se vê e continua agindo impulsivamente. O fundo é a incompreensão a respeito de quem se é e do que se quer. Na embriaguez você some e só o autônomo age. O problema é a necessidade do autômato de afirmar-se, quando o humano em você é – ou pretende ser – mais presente. O humano quer erguer-se às alturas e você o reprime com impulsos animais. Uma vez aliviados, a contradição revelase fonte de sofrimento: o abismo entre o que se é e o que supostamente se deveria ser. Essa cisão, você a constrói, destrói e reconstrói ao contato dos outros, que te moldam. Você lhes apresenta o reflexo de si mesmos para que possam aceitar-se e para que você se sinta aceito. O único caminho para a liberdade é a ruptura, a aceitação irrestrita do ser que se rebela e que deseja romper as estruturas rígidas nas quais está inserido. Nenhum progresso ocorre sem dor e sofrimento. Avançar significa sacrifício de ideais deturpados, de projetos alheios. Evoluir é destruir-se por partes, abandonando excessos e mentiras. Equilíbrio é compreensão das reais necessidades do espírito, e descarte do supérfluo. Voltar ao centro abandonando a periferia da alma. Periferia que é mente. 'O fardo é leve'. Quando perceberes que carregas o mundo e o tempo, passado e futuro, e que as costas não suportam o peso, a bagagem cairá na estrada, como fruta madura. Caminharás forte. As placas no percurso não chamarão tua atenção.”

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Caio Lobo (Recife, 1979). Colunista da Philos, é formado em Direito pela UFPE e Mestre em Relações Internacionais pela UnB. Leitor compulsivo e romancista, lançou recentemente seus livros Trôpegos Visionários e Liberdade pela editora Kazuá. 1


Martiniano Ferraz (2017)


LITERATURA BRASILEIRA Rotas da lusofonia

ARQUEOLOGIA por

Nathalie Lourenço1

Tínhamos demorado três dias inteiros para esvaziar a casa. Tia Beta nunca jogava nada

fora. Antes, cada superfície estava preenchida por jornais de vinte anos atrás, embrulhos de presente dobrados para serem usados outra vez, controles remotos de tevês e aparelhos de som quebrados há muito tempo. Era trabalhoso, não difícil. Quase tudo tinha ido parar nos grandes sacos de lixo pretos, agora alinhados na calçada. Estávamos cansadas, eu e minha prima Juliana. Tia Beta não tinha filhos. Essa era nossa herança: resolver as pendências braçais que os irmãos da morta já não tinham idade para fazer. Paramos para tomar um copo d´água, contemplando o recém-criado vazio da cozinha. Enfim começava a reconhecer a casa onde brincávamos na infância, que eu não visitava há pelo menos dez anos. - Você lembra? A gente brincava de caverna debaixo desta escada. Nós brincávamos em todas as partes da casinha geminada, inseparáveis como apenas crianças da mesma idade podem ser. Fazíamos tudo juntas. Às vezes dormíamos lá, nos sofás que tia Beta disfarçava de cama, conversando noite a fora. A vida adulta ainda não tinha nos mostrado que não tínhamos nada em comum, que dali a alguns anos ela me faria a mesma pergunta sobre o meu trabalho e eu a mesma pergunta sobre as crianças em toda santa festa de família. - Será que ainda tem a laranjeira? Juliana tinha menstruado primeiro. Ela que começou a falar sobre meninos, a roubar o batom da minha tia e a recortar atores de cinema de revistas. Uma vez, Tia Alberta saiu para o quintal com uma faca e colheu duas laranjas, que descascou com cuidado, sentada sobre um degrau, girando a fruta nas mãos, a faca a desenhar uma longa espiral de casca, o cheiro impregnando a pele. Nos deu a casca para brincar. Nunca jogava nada fora. A ponta da casca na mão pendia como uma fita. Fomos uma de cada vez, para não misturar. Rodei a casca sobre minha cabeça como a tia mandou, gotículas caindo no meu cabelo, o sol acentuando o cheiro de laranja. Rodei até romper, um naco da casca voar e cair sobre a lona que cobria a piscina. Nós três de pé, em torno de um pedaço de fruta. Tia Beta sentenciou: é um S, o nome dele começa com S. A brincadeira servia pra adivinhar a inicial do menino que gosta da gente. Não tinha ninguém com S na minha sala. A de Juliana também deu S. Depois descobrimos, sempre dava S. As frutas sabem muito pouco sobre o alfabeto. Juliana tinha ido fumar um cigarro no quintal e gritou para eu ir lá ver. A piscina não estava mais coberta. Meu coração afundou, se escondeu em algum lugar entre o fígado e os rins. Não acabou. As tralhas preenchiam a piscina até a borda. Cento e cinquenta metros cúbicos de lixo. Quis xingar tia Beta. Não o fiz. É preciso esperar alguns meses depois do enterro antes de admitir que às vezes temos raiva das pessoas que amávamos. Peguei um novo rolo de sacos de lixo. 17

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CONTOS


Ajoelhada perto da borda da piscina, rasguei o picote, violenta, e esfreguei dois dedos na borda do quadrado plástico, tentando achar a abertura. Não abria. Por que essas coisas são tão difíceis de abrir? Grunhi e amassei tudo. Juliana se agachou e abriu o saco em um movimento simples. Deixou-o ao meu lado e rasgou outro para si. Eu jogava as coisas para dentro do buraco negro de plástico, sem nem olhar. A escada da piscina, de metal carcomido, sumia entre caixas de sapato e torradeiras quebradas. A superfície era feita de bugigangas recentes. Latas vazias de biscoitos amanteigados, cadeiras de praia, geométricos vidros de perfume. Conforme eu e Juliana enchemos as barrigas brilhosas dos sacos de lixo (salvando pouco, uma caixa com fotos, um castiçal bonito), atingimos camadas mais antigas de entulho. Um telefone de baquelite, tapetes enrolados e embalados. Agachadas na beirada, não alcançávamos mais os objetos. Desci pela escadinha, tentando firmar os pés naquele chão desigual. Ia passando as coisas para as mãos estendidas de Juliana. Um espelho escurecido, a mesa de dobrar que ela montava aos domingos, o balanço que ela tinha pendurado no quintal para a gente, agora um quadrado de madeira envolvido pela corrente, um carretel. Suada, com as mãos negras de poeira, caminhei para a ponta mais funda da piscina. Alguma coisa cedeu debaixo do meu pé, o tornozelo se dobrando em um rasgo de dor. Caí com o rosto a centímetros de um ventilador desbotado, partículas de sujeira se levantando, pousando na boca e no nariz. Ao lado dele, nossos nomes riscados a caneta em uma caixa. Exausta, empurrei o pacote para cima. Juliana rasgou a tampa e ia me mostrando, dali de cima, todas as nossas coisas, dobradas, cuidadas, ensacadas. Pijamas de flanela e as xícaras em formato de bichos. Uma grossa pasta com desenhos. Duas pequenas escovas de dentes. Fomos esmagadas pelo peso do amor da Tia Beta. Chorei o suficiente para encher de novo a piscina.

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Nathalie Lourenço (São Paulo, 1984). É redatora publicitária e tem contos publicados nas revistas Philos, Flaubert, Vacatussa, Parênteses, Blecaute! e Quincas. Também é parte do coletivo literário 9s/fora e escreve no blog sabedoriadeim proviso.wordp ress.com 1


Martiniano Ferraz (2017)


LITERATURA BRASILEIRA

ENSAIOS

Rotas da lusofonia

A LEGITIMAÇÃO DA HOMOAFETIVIDADE por

Magno Mello1

Sou heteroafetivo e quanto a isso nada posso fazer; se eu fosse outra coisa já estaria lá, sem

dúvida. Mas torço pela felicidade de todos os gays do mundo, pelo menos dos que fazem mais bem do que mal à sociedade e ao planeta. Sinceramente, por mais que reflita, não consigo entender o que uma pessoa tem a ver com a sexualidade da outra, a não ser que se esteja num relacionamento amoroso com essa outra pessoa; no máximo. Motivos religiosos? Aqui para nós e para quem quiser ler: ninguém que frequenta uma igreja é religioso. Sem querer ofender, honestamente, é no que acredito: religioso é quem possui religiosidade inerente e não quem vai buscar uma de concreto, de palavras, postiça, junto a meros homens que se dizem representantes de Deus na Terra. Fazendo uma analogia, não tão barata: cantor é alguém como Milton Nascimento. É quem abre a boca e canta, não quem precisa se concentrar ou raciocinar para cantar. Religioso, portanto, é quem é, e não quem tenta ser. É quem existe rezando, não quem vive rezando. Não há igreja que torne alguém religioso. E gay, da mesma forma, é gay, e pronto. Não pode, simplesmente, não ser. E nisso não há culpa, não há vergonha, nem imoralidade. Não há desrespeito a ninguém, muito menos a Deus. Desrespeito é alguém achar que quem é, não deve ser, ou não tem o direito de ser, em toda sua plenitude. Quanto a um que não se diz religioso e ainda assim condena a homoafetividade, só posso perguntar: o que exatamente o agride? O mesmo tipo de preconceito que se tinha e ainda se tem contra os negros? Talvez não. Nenhum branco preconceituoso contra negros tem medo de se tornar - ou lá no fundo é - negro. Ou, de outro modo, achar que os gays são mais promíscuos que os não gays, e por isso, de algum modo ameaçadores à moral e aos bons costumes, e não perceber esse fato (mas o corpo é de quem?) apenas como um reflexo temporal, pela marginalidade na qual os homoafetivos foram obrigados a viver ao longo da história, é declarar-se burro. Uma vez aceitos com naturalidade, os homoafetivos de forma alguma serão mais promíscuos que os heteroafetivos; e boa parte já não é. Ou será que os héteros acreditam que o sexo gay é mais prazeroso? De resto, só consigo imaginar o preconceito estético. Que, no entanto, não se sustentará por mais de duas décadas. E como relação a isso, nada melhor que se divulgar, em todas as mídias possíveis, belas e humanas demonstrações de afeto entre gays, lésbicas, travestis, transexuais e qualquer outro tipo de gente (exceto crianças) em suas inclinações e opções sexuais, e afetivas; evitando-se, é claro, o erotismo banalizado, que só presta um desfavor à libido dos povos. Dois últimos recados aos preconceituosos: achar-se dono da moral é a coisa mais cara-depau que existe neste mundo, basta se olhar no espelho para ver o tamanho do ridículo, as bochechas moles, o olho de peixe morto. E condenar a afetividade alheia, simplesmente, é nada entender sobre o amor. Vai dizer que ama seus filhos? 20

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Magno Mello (Brasília, 1966). Compositor, escritor, educador e livre pesquisador. Vencedor do Prêmio Interações Estéticas do MinC/Funarte , 2010. Vencedor da Maratona Literária 2016 do concurso nacional de publicação, da Editora Oito e Meio. 1


Martiniano Ferraz (2017)


LITERATURA BRASILEIRA Rotas da lusofonia

NUNCA FOMOS NÓS por

Marcela Sayuri1

Tínhamos uma promessa silenciosa de pertencer um ao outro para sempre. Se não fosse

como jovens namorados, seríamos parceiros na arte. Se não fosse como amantes, seriamos confidentes. Sabíamos que uma vida convencional não nos traria felicidade. Sabíamos que a ideia romântica de uma cerimônia de casamento nunca esteve em nossos planos. Quando imaginávamos nosso futuro, era em volta de uma mesa de um café, bebericando e escrevendo versos, pois sempre soubemos que é a única coisa que sabemos fazer direito é escrever. A verdade é que éramos individualistas demais para dividir uma só vida. Dividíamos ideias, mas nunca planos. Dividíamos o hoje, mas nunca o ontem ou o amanhã. Porque pintávamos o céu até o amanhecer, mas partíamos antes do sol atingir o topo do céu. Mas também sabíamos que éramos eternos um para o outro. Nos encontraríamos nesse pequeno mundo dos que morrem por amor. Nos encontraríamos nas estantes das livrarias, nos encontraríamos nos corações daqueles que amam. E no final sempre nos amaríamos. Não diríamos isso um ao outro, mas saberíamos como um voto secreto. Não tocaríamos um ao outro como tocam os enamorados, mas estaríamos um apaixonado pelo outro. Beijaríamos bocas de outras pessoas e as faríamos nossa inspiração, mas acabaríamos voltando no final da madrugada um para o outro com as histórias da noite que acabariam virando relatos em nossos papéis mofados com as lágrimas que não derrubamos. E às vezes, só às vezes, quando a saudade batesse na porta, ou a carência, ou depois de algumas taças de vinho em uma noite de deslumbramento, acabaríamos mostrando fisicamente toda nossa admiração pelo outro. E seria só por aquele momento em que nosso individualismo ficaria de lado, nossa forma não-verbal de amar seria posta para fora. E no final sempre acabaríamos questionando porque não escolhíamos o caminho simples e seguro. Porque não nos entregávamos, porque continuávamos caçando pequenas amostras de amor pelas ruelas mal iluminadas da cidade. Carinho nunca foi sinônimo de afeto. E não confundíamos mais um cafuné com promessas de permanência. Mas reconhecíamos que nossas vidas tinham mudado depois do dia que nos conhecemos, que o que tínhamos era transcendental, grande demais para impor limites de compromisso ou casamento. E em minhas dedicatórias sempre teriam seu nome. E em suas dedicatórias o meu. E procuraríamos um ao outro por ajuda. E às vezes confundiríamos com paixão. Mas não nos uniríamos de novo, porque sabíamos que sozinhos já pegávamos fogo, e juntos apenas destruiríamos tudo que conhecemos. Estaríamos eternamente juntos. Nas noites frias de melancolia, dividindo a mesma cama e o mesmo colo. Nos dias claros de conquistas e no consolo. E você me veria de mãos dada com outro alguém e isso não te perturbaria. E eu te veria com seus braços na cintura de 22

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CONTOS


uma mulher sensual e mais bonita do que eu poderia sonhar em ser, e seu sorriso me traria alegria. Nascemos para ficarmos juntos, mas nunca para ficarmos presos. Nascemos para não nos acomodarmos e acostumarmos um com o outro. Nascemos para partir e voltar como se fosse a primeira vez. Nascemos para matar a saudade e espantar a dor que nós provocamos em nós mesmos. A única coisa que dividiríamos seriam nossos nomes iguais e os pensamentos, mas nunca o banheiro.

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Marcela Sayuri (Tatuí, 2000). Escreve por necessidade existencial e acredita que a arte e a poesia salva. 1


Martiniano Ferraz (2017)


LITERATURA BRASILEIRA

CONTOS

Rotas da lusofonia

MÃOS DE PAPEL CREPOM Rândyna da Cunha por

1

A cadeira de rodas fazia um ruído maçante, à medida que ela a movimentava: “Nhéc,

nhéc, nhéc”. Alguma engrenagem não ia bem. A secura dos rolamentos, encostando um no outro, provocava um rangido agudo e comprido. Em alguma casa vizinha alguém ouvia uma daquelas músicas loucas da moda. Ali da sala de estar ela sentia uns raios de sol entrando pelos vidros da janela e escutava a empregada batendo as louças contra a pia. Não adiantava pedir que lavasse louças gentilmente. Provavelmente aquela ali só conhecia gentileza humanizada, não deveria compreender a utilidade de manusear as coisas com leveza. Os cabelos brancos e ásperos, pela ausência de queratina, lhe caíam pela face. Mal tivera ânimo para prendê-los hoje. Aliás, ultimamente, não tinha mais disposição para realizações. Mas era olhar para as mãos que a deixava mais perplexa. Enquanto completava sua revista Coquetel, olhava para o desenho das rugas em suas mãos, linhas fundas e longas, a pele seca como um papel crepom, as mãos de uma velha. Mãos que completaram muitas Coquetéis, que empurraram as cadeiras de rodas de outras pessoas. Mãos que estão neste mundo há muito tempo viajando pela vida. Olhando para estas mãos quem imaginaria que ela encontrou o amor? Duas vezes na vida. Ela encontrou duas vezes o amor em sua vida. Quando a maioria das pessoas não o encontra uma vez sequer, nem mesmo de relance. E ela encontrara, por duas vezes, o forte, vívido e intenso amor. Na primeira vez, foi o amor quem a encontrou. Surgiu como a maré sobe no fim da tarde. Buscou, perseguiu, conquistou, estranhamente permaneceu e, num piscar de olhos, ela se flagrou no meio da história. Aquela história que todas as garotas desejam. Ele estava ao seu lado cotidianamente, mas ela só o percebeu no momento correto. Todo o tempo ele veio assenhorando-se do seu espaço, até o dia de reivindicar o que de modo incansável e leve conquistou. E foi o tempo mais feliz de sua vida, eram dois sorrisos em uníssono, dois olhares na mesma direção, dois corações em mesma cadência, dois seres na mesma frequência, duas vidas em busca de uma só. E foi assim, durante alguns anos, mas, antes mesmo que suas mãos dessem os primeiros sinais de papel crepom, sua maré defrontou-se com a morte e findou. Uma onda pesada e escura se abateu sobre sua vida. Toda a alegria de peregrinar naquele caminho desvaneceu-se e pela primeira vez ela quis morrer. Ela estava perdida, em meio ao negrume de seus pensamentos, pois já não sabia mais como viver sem ele. Ele estava diligentemente alinhavado em cada canto da alma dela. Estavam separados pelo véu que limita os mundos e que impede que vejamos o lado daqueles que se foram, mas permaneciam unidos pelo fio incorruptível que consubstanciou suas almas. Por esta razão, ela não o via, contudo sentia ao seu lado aquela presença constante, era a existência dele dizendo a ela que permanecia. E neste tempo, de amargura fúnebre, ela conheceu o amor pela segunda vez. Conheceu o 25

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“Seu coração será mais importante que o meu coração”.


amor na eternidade, na espera silenciosa e paciente pelo reencontro; no toque sutil que recebia em seu rosto todos os dias, quando estava prestes a cair no sono e sabia que era ele; no afago quente das doces memórias que lhe arrancavam um sorriso silencioso, enquanto dirigia; nas histórias que os amigos contavam; nas fotos guardadas com zelo; na lembrança dos longos e íntimos diálogos; na devoção que tinham um pela essência do outro. E ela o amou pela segunda vez, até que suas mãos se tornassem crepom e seus destinos pudessem finalmente se alcançar uma vez mais. Olhando para aquelas mãos agora, ela sabia que logo seus espíritos se entrelaçariam outra vez. E que esta trama, agora tecida com a força da eternidade, jamais poderia ser desfeita. Aquelas mãos de papel crepom manifestavam silenciosamente a liberdade e o voo conjunto, pelo qual ela tanto aguardou.

In memoriam de R.R.C.F.

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Rândyna da Cunha (Brasília, 1983). Graduada em Letras e Direito pela Universidade Católica de Brasília. Colunista na página “A Soma de Todos os Afetos”. Tem contos publicados em revistas literárias brasileiras, como Philos, Avessa e Subversa. Foi selecionada no IX Concurso Literário de Presidente Prudente. Participou da antologia Folcl ore Nacional: Contos Regionalistas d a Editora Illuminare e das coletâneas literárias Vendetta e Tratado Oculto do Horror, da Andross Editora. 1


Martiniano Ferraz (2017)


LITERATURA BRASILEIRA

EXPERIM.

Rotas da lusofonia

OS POETAS MORTOS por

Gustavo Souza1

Quando a morte decair em meus pés, o céu terá uma grande festa, – os poetas mortos, se encontrarão em um paraíso de flores… As poesias estarão vivas, com Manuel Bandeira e Vinicius… As prosas, – serão as falas em comunicação de amor, entre a vida e a morte, entre o sonho e o inferno. Os poetas mortos darão as mãos ao novo mundo da imaginação, – de Augusto dos Anjos, com os vermes famintos… Clarice Lispector, com seus olhos estranhos, nos encaminha a belos poemas, sem cor, em sonho… – A felicidade maior, em um mundo de encanto é o vinho, o álcool em meu sangue, que sumiu em sopro… Os poetas mortos dançam em uma felicidade impossível, aqui na terra. – Aqui é eterno, no outro lado, é súbito… – Sentado escrevo, o sonho, as alegrias, o amor o encontro dos poetas mortos.

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Philos Revista de Literatura da União Latina | Revista de Literatura de la Unión Latina.

Gustavo Souza (Piranhas, 1992). Recémgraduado em História pela Universidade Federal de Alagoas – Campus Sertão, em Delmiro Gouveia, é poeta crítico. Tem como destaque no mundo literário o 4º lugar no concurso nacional Novos Poetas Sarau Brasil, realizado pela editora Vivara em 2015, conseguindo menção honrosa e publicação em antologia; além de várias publicações em coletâneas. 1


Philos

PORTUGUÊS CATALÀ ESPAÑOL FRANÇAIS ITALIANO ROMÂNĂ REVISTA DE LITERATURA DA UNIÃO LATINA 9 outubro 2016 · REVISTA DE LITERATURA DE LA UNIÓN LATINA 9 octubre 2016

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