Philos v.1 n°.1 (2016)

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Philos

PORTUGUÊS CATALÀ ESPAÑOL FRANÇAIS ITALIANO ROMÂNĂ REVISTA DE LITERATURA DA UNIÃO LATINA 1 fevereiro 2016 · REVISTA DE LITERATURA DE LA UNIÓN LATINA 1 febrero 2016

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Philos

PORTUGUÊS CATALÀ ESPAÑOL FRANÇAIS ITALIANO ROMÂNĂ REVISTA DE LITERATURA DA UNIÃO LATINA 1 fevereiro 2016 · REVISTA DE LITERATURA DE LA UNIÓN LATINA 1 febrero 2016

CAIO LOBO AURILENE SAMPAIO EMANUELA RODRIGUES ALDENOR PIMENTEL LUCRECIA WELTER LUCAS DANTAS JULIEN KARINE DA ROSA HOFF LUIZZA JULIANELLI MUNIQUE DUARTE ÀNGEL GABREGAT ASTRID RAMOS

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PORTUGUÊS CATALÀ ESPAÑOL FRANÇAIS ITALIANO ROMÂNĂ REVISTA DE LITERATURA DA UNIÃO LATINA 1 fevereiro 2016 · REVISTA DE LITERATURA DE LA UNIÓN LATINA 1 febrero 2016

EXPEDIENTE

REVISTA DE LITERATURA DA UNIÃO LATINA REVISTA DE LITERATURA DE LA UNIÓN LATINA

Souza Pereira

EDITOR CHEFE | EDITOR EN JEFE

Sylvia de Montarroyos

COMITÊ EDITORIAL | COMITÉ EDITORIAL

Lucrecia Welter

REVISÃO DE TEXTOS | SUPERVISIÓN DE TEXTOS

Maus Hábitos

DESENHO E DIAGRAMAÇÃO | DISEGÑO Y DIAGRAMACIÓN

Anita Lisboa

ILUSTRADOR | DIBUJANTE

SOBRE A OBRA DESTA EDIÇÃO | SOBRE LA OBRA DE ESTA EDICIÓN

Publicado originalmente em fevereiro de 2016 com o título Philos, Revista de literatura da União latina. Os textos desta edição são copyright © de seus respectivos autores. As opiniões expressas e o conteúdo dos textos são de exclusiva responsabilidade de seus autores. Todos os esforços foram realizados para a obtenção das autorizações dos autores das citações ou fotografias reproduzidas nesta revista. Entretanto, não foi possível obter informações que levassem a encontrar alguns titulares. Mas os direitos lhes foram reservados. Philos, Revista de Literatura da União Latina é registrada sob o número SNIIC AG-20883 no Sistema Nacional de Informações e Indicadores Culturais com Certificado de Reserva outorgado pelo Instituto Nacional de Direitos do Autor sob o registro: 10-2015-032213473700-121. ISSN em trâmite. Revista Philos © 2017 Todos os direitos reservados. | Publicado originalmente en febrero de 2016 con el título Philos, Revista de literatura de la Unión latina. Los textos de esta edición son copyright © de sus respectivos autores. Todos los esfuerzos fueron hechos para la obtención de las autorizaciones de los autores de las citaciones o fotografías reproducidas en esta revista. Sin embargo, no fue posible obtener informaciones que llevaran a encontrar algunos titulares. Pero los derechos les fueron reservados. Philos, Revista de Literatura de la Unión Latina es registrada bajo el número SNIIC AG-20883 en el Sistema Nacional de Informaciones e Indicadores Culturales con Certificado de Reserva otorgado por el Instituto Nacional de Derechos del Autor bajo el registro: 10-2015-032213473700-121. ISSN en trámite. Revista Philos © 2017 Todos los derechos reservados.

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Philos, Revista Philos Revista de de Literatura Literatura da da União União Latina Latina || Revista Revista de de Literatura Literatura de de la la Unión Unión Latina. Latina.


EDITORIAL

REVISTA DE LITERATURA DA UNIÃO LATINA REVISTA DE LITERATURA DE LA UNIÓN LATINA «O futuro se aproxima devagar, mas vem.» Tomamos como nosso o primeiro verso do poema de Mário Benedetti para estrear as linhas da primeira edição da Revista Philos. Somos a Revista de Literatura da União Latina, uma iniciativa de valorização cultural do patrimônio linguístico, material e imaterial do mundo latino. Queremos dar espaço para a literatura dos novos autores, para a história feita pelo homem, queremos reverberar a sua importância, plantar as suas sementes. Escrever é errar, procurar, sofrer, indagar, amar… Por isso nossos autores erram, procuram, sofrem, indagam e amam. Caminham pelos caminhos mais difíceis para encontrar o fio condutor de sua arte, enchem-se de versos e prosas, narrativas e relatos, gostam ou desgostam, amassam, rabiscam, torcem, jogam fora, escrevem, reescrevem e de novo tornam a escrever. Neste sentido surgimos para fazer parte desse processo criativo, queremos junto com eles escrever e reescrever a nossa história. Queremos usar a palavra para compor silêncios, poemas, contos, ensaios, rimas, métricas, pessoas, sociedade, ambiente, arte. Queremos entrelaçar os pensamentos e ideias, as utopias de cada escritor, suas expressões, suas delicadezas e brutalidades lapidadas nas múltiplas faces da literatura. As ilustrações que acompanham esta primeira edição foram feitas pela artista visual e curadora Philos, Anita Lisboa. Seu trabalho, feito exclusivamente para os textos desta edição, conversam e se contrapõem com as narrativas, revelam o íntimo interpretativo da artista para com as palavras. Esta publicação é parte do Philos Reposter, um projeto de republicação de todo o material lançado pela editora Camará Cartonera em novo formato gráfico, com colaborações de novos ilustradores, fotógrafos e artistas visuais. Desejamos uma ótima leitura, Souza Pereira

EDITOR CHEFE | EDITOR EN JEFE

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EDITORIAL

REVISTA DE LITERATURA DA UNIÃO LATINA REVISTA DE LITERATURA DE LA UNIÓN LATINA «El futuro se acerca despacio, pero viene.» Tomamos como nuestro el primer verso del poema de Mário Benedetti para estrenar las líneas de la primera edición de la Revista Philos. Somos la Revista de Literatura de la Unión Latina, una iniciativa de valorización cultural del patrimonio lingüístico, material e imaterial del mundo latino. Queremos ofertar espacio para la literatura de los nuevos autores, para la historia hecha por el hombre, queremos mostrar su importancia, plantar sus semillas. Escribir es errar, buscar, sufrir, indagar, amar... Por eso nuestros autores yerran, buscan, sufren, indagam y aman. Caminan por los caminos más difíciles para encontrar el hilo conductor de su arte, se llenan de versos y prosas, narrativas y relatos, les gustan o disgustan, amasan, borran, tuercen, juegan fuera, escriben y de nuevo comienzan a escribir. En este sentido surgimos para formar parte de ese proceso creativo, queremos junto con ellos escribir y de nuevo comienzan a escribir nuestra historia. Queremos usar la palabra para componer silencios, poemas, cuentos, ensayos, rimas, métricas, personas, sociedad, ambiente, arte. Queremos unir los pensamientos e ideas, las utopías de cada escritor, sus expresiones, sus delicadezas y brutalidades lapidadas en las múltiples faces de la literatura. Las ilustraciones que acompañan esta primera edición fueron hechas por la artista visual y curadora de la Philos, Anita Lisboa. Su trabajo, hecho con singularidad para los textos de esta edición, conversan y se contraponen con las narrativas, revelan el íntimo interpretativo de la artista para con las palabras. Esta publicación es parte del Philos Reposter, un proyecto de republicación de todo el material lanzado por la editora Camará Cartonera en nuevo formato gráfico, con colaboraciones de nuevos ilustradores, fotógrafos y artistas visuales. Deseamos una óptima lectura, Souza Pereira

EDITOR CHEFE | EDITOR EN JEFE

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SUMÁRIO | SUMARIO CONTOS | COLUNAS | ARTIGOS CUENTOS | COLUMNAS | ARTÍCULOS

8 Filosofia de

Lobos do Mar,

por

CAIO LOBO

11 A pedra

lascada,

por AURILENE

SAMPAIO

15 Palavras

equi-vocadas,

por

EMANUELA RODRIGUES

18 Olhar,

por

21 O colo de

minha mãe,

24 O abismo da fome,

por LUCAS

DANTAS

27 D’alma,

embrulhinho,

por

MUNIQUE DUARTE

35 La levedad del ser,

ALDENOR PIMENTEL

por ÀNGEL GABREGAT MORERA

por

JULIEN KARINE DA ROSA HOFF

29 Noite de

madrugadas de farsas, por LUIZZA JULIANELLI

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32 O

por

LUCRECIA WELTER

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37 Decantación de un diario,

por

ASTRID RAMOS


Anita Lisboa Obra: Espera


LITERATURA BRASILEIRA

COLUNAS

Rotas da lusofonia

FILOSOFIA DE LOBOS DO MAR Caio Lobo por

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O argumento do Lobo Larsen sobre a irrelevância da vida. “A vida é sem valor, exceto

para si mesma.” (O Lobo do mar, Jack London). Não sei se ele tirou isso de Nietzsche, desconfio que sim. A lógica é poderosa, na medida em que são os homens que atribuem valor à vida, seja à dos outros, seja à própria. Por outro lado, a vida viceja pujantemente (expressão minha). O que mais há no universo é vida. Quase tudo ao nosso redor vive, ainda que nossos olhos sejam incapazes de enxergar todas as formas de vida que nos circundam. Eu gosto dessa idéia: já pensou se cada elemento de vida correspondesse a uma luz visível e intensa, que nossos olhos pudessem enxergar? Ficaríamos cegos pela luz, não escaparíamos em lugar algum. Quantas bactérias, micróbios, micro-organismos estão agora mesmo sobre esse teclado de computador, sobre essa mesa, sobre esse livro, sobre a estátua de Cristo, sobre minha cama? Milhares? Milhões? Bilhões? Imagine a cegueira, imagine quanta luz branca não atingiria nossos olhos! A vida viceja com pujança, mesmo que nos esqueçamos disso na maior parte do tempo. Então o personagem do Lobo Larsen, de modo insidioso, nos diz: se fosse para julgar o valor da vida, ela seria obviamente barata, muito barata. Ela surge e desaparece no universo ao longo dos séculos, em grandes quantidades, quantidades incontáveis. É lei da oferta e da demanda pura: quanto mais tem menos vale. Argumento forte, com o qual a razão se confunde, não encontra solução. Não que se concorde com ele, porque é puramente racional e não leva em consideração os instintos compassivos dos homens, que nada têm a ver com ele. E o que é o valor que o homem atribui à sua vida ou à dos outros? Um valor exagerado, quase sempre. E o que é o valor, senão uma ideia sobre o que constitui a essência do homem? E o que é uma ideia, senão um ídolo? (expressão de Nietzsche). E quem te garante que uma ideia é verdadeira se ela é cria do espírito humano? Por isso, o filósofo queria destruí-las todas com seu incansável martelo. Para pôr o que no lugar? O amor fati, talvez. A experiência de amar a vida em sua totalidade, a cada instante, porque fazê-lo significa não agir pautado por ídolos, por ideias e ideologias. Significa ser, de fato, livre. Acho tudo isso fascinante. O problema é que não dar valor à vida é considerá-la um valor. Um valor ínfimo e irrelevante, mas ainda assim um valor. Não somos capazes de escapar dessa dualidade mental. Então quando o Lobo defende que não se deve ser altruísta, age conforme uma ideologia e assim se distancia de Nietzsche, que dizia: se vocês procuram um guru que lhes ensinará alguma coisa, vieram ao lugar errado. Ou algo do gênero. É interessante observar essas pessoas que, como o Lobo Larsen, menosprezam o valor da vida porque não podem medi-lo. Ou que negam a existência de Deus porque não encontram sentido no universo, a não ser na luta em que o mais forte sempre vence o mais

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fraco. Não é que eu discorde deles, porque, se discordasse, incidiria na crença oposta, que também é fruto da dualidade da mente - que também, portanto, seria um ídolo. Crer na irrelevância da vida ou na sua irrelevância dá no mesmo; crer que Deus existe ou que Deus não existe dá no mesmo. São ideais que se apresentam como verdades, como dogmas. Veja um ateu dando uma palestra sobre a não existência de Deus. Observe sua energia. É ou não um fundamentalismo igual ao do religioso mais radical? Parece que Sócrates continua sendo o mais sábio dos filósofos, não fosse o deslize de dizer que sabia de algo (no caso, que não sabia de nada). Nós não deveríamos dizer (caí eu também na armadilha? não sei), como ele, “só sei que nada sei” (ou algo do gênero). Deveríamos dizer: “nem sei se sei de algo”. Sim, a suspensão do juízo. Nada de novo. As coisas que sabemos são aquelas que podemos descobrir pelo método científico (e olhe lá!), relativas ao mundo físico. Se a vida tem valor e qual é o seu valor é uma questão inútil para a descoberta do ser, é uma dessas oposições kantianas que a razão é incapaz de responder, a não ser criando critérios próprios, não universais . Então onde ficamos nisso tudo? Eu diria que a melhor solução (caí, definitivamente caí) continua sendo a mente aberta: “não sei, mas eventualmente posso descobrir.” Quem sabe? Enquanto não sei, melhor não julgar nada apressadamente, nem minhas ações, nem as ações dos outros, porque desconheço o que há em mim e o que há no outro. Sequer sei quem sou. Uma forma de vida, talvez. O que mais, além disso? O que eu faço, o que eu sonho, o que eu digo, minhas ações, meu amor, meu medo? Há de se concordar que já saí da vida ao considerar essas hipóteses. Já abandonei esse elemento indefinível e sem contradições, porque nele pensamento não há. A contradição está associada ao pensamento e às experiências sensíveis. O Lobo Larsen é um animal preso na própria armadilha do pensar e do julgar. O pior é que, como a maioria dos homens, acredita que se encontra além dos muros, que se libertou porque, com tamanha arrogância, desvenda o mundo para os cegos. Pergunto-me quantos cegos não guiam cegos nessas paragens? E quantos não caíram ou cairão ainda em infinitos buracos?

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Caio Lobo (Recife, 1979). Colunista da Philos, é formado em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco e Mestre em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília. Leitor compulsivo e romancista. Lançou recentemente o seu livro Trôpegos Visionários pela editora Kazuá. 1


Anita Lisboa Obra: Meus males eu mesma espanto


LITERATURA BRASILEIRA Rotas da lusofonia

A PEDRA LASCADA por

Aurilene Sampaio1

Hoje, como acontece com muitas pessoas, sinto-me nostálgica ao me lembrar da infância. Remeto-me a um sítio, situado na cidade de Itapipoca, a 150 km da capital Fortaleza. Vivíamos na zona rural, não muito longe do centro urbano. Ali criávamos o nosso mundo. Poucas vezes saíamos do sítio onde nossas brincadeiras e peripécias aconteciam apenas entre nós irmãos. Tínhamos poucos amigos. Éramos - ou melhor – somos seis irmãos, cinco filhas e um rapaz, hoje homem. Ele era meu principal parceiro nas aventuras diárias. O proprietário do sítio, patrão do meu pai, era o Sr. Ribeiro, homem de semblante firme, cabelos grisalhos, estatura média, além de muito sério, cheio de regras e, por vezes, intolerante com as crianças. Pelo menos era assim que eu o percebia. Infelizmente não tive o prazer de conhecê-lo (percebê-lo) como meu pai o retratava. Segundo meu pai, seu patrão era um homem bondoso, íntegro, justo e respeitável. E foi nas terras do Seu Ribeiro que vivemos a maior parte da nossa infância. Trago-a viva na lembrança. Meu irmão e eu desbravávamos as serras, aventurávamos nos riachos, criávamos mundos fantásticos. O mês do ano que eu mais gostava era agosto – pois se comemora o aniversário da cidade – e muitas escolas nos procuravam, querendo trazer grupos de alunos para conhecerem a Pedra Lascada, símbolo da cidade, localizada na subida da serra, com aproximadamente 40 minutos de caminhada desde a nossa casa do sítio. Naquela época, ouvíamos histórias sobre a Pedra..., que ela era monumento histórico da cidade, de como ela foi lascada e deu nome à cidade; ita: pedra, pipoca: lascada. Não sei precisar data, nem razões do fenômeno, mas isso não importa. O que mais me maravilhava era servir de guia para os inúmeros grupos de estudantes e professores que visitavam a Pedra. Fazíamos a caminhada várias vezes ao dia, sempre dispostos, e, a cada viagem, uma nova empolgação. Tenho boas e saudosas lembranças dos anos vividos no sítio. Saímos do lugar em 1993, e minha última ida à Pedra foi em agosto de 1992. Até que recebemos – meu irmão e eu – o convite de alguns amigos para nos aventurarmos em um passeio à Pedra. Marcamos para sair às seis da manhã do dia dez de agosto. Minha emoção só não foi maior do que minha ansiedade. Meu coração pulsava apressado ao imaginar como estaria o local, qual seria a sensação de rever os ambientes de minhas peripécias. Cheguei a sonhar que não conseguíamos chegar ao sítio. A cada minuto que passava, sentia-me mais perto de reviver bons e memoráveis momentos de minha infância. Muito cedo estava em pé e pronta para o passeio. Não continha o desejo de rever o local. Comecei narrando à minha filha algumas travessuras que meu irmão e eu aprontávamos nas idas e vindas à Pedra. Pra mim, a viagem já havia começado. Meus apetrechos ficaram prontos na noite anterior. E o grande momento chegara. Estávamos – minha filha, seu namorado e eu – no carro do

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CONTOS


nosso amigo a caminho do sítio. Passamos na casa do meu irmão que ia nos guiar até a Pedra. Lá um grupo de amigos (aventureiros) nos aguardava para seguirmos caminho. Dois minutos de carro e já estávamos na entrada da propriedade atravessando um mataburro (estrados instalados em cima de valas que impedem a fuga do gado). Naquele momento, fiz uma viagem aos bons tempos de minha infância, vendo a primeira casa em que moramos quando minha família chegara ao sítio. A habitação ficava na entrada da propriedade. Quase não acreditava que seria possível reviver, em minhas lembranças, tantas recordações... Tudo me pareceu menor. A estrada que ia do mata-burro até a casa do Seu Ribeiro já não era tão longa como vislumbrava. O curral, onde fui muitas vezes às quatro da manhã para ordenhar as vacas com meu pai, ainda estava lá. Abandonado, mas ainda existia... Ao descer do carro, contemplei o ambiente à minha volta. Já não era como antes, não tinha o mesmo cheiro. A grandiosidade que via na casa do patrão já não me deslumbrava. Não tinha a pompa que esperava encontrar, talvez por estar abandonada há muito tempo e não ter mais a vida que um dia tivera. Começamos nossa caminhada. Passamos a primeira porteira que dava para uma estrada de terra, que exalava esterco fresco e remetia meus pensamentos aos passeios nos currais de gado, que tantas vezes fiz sozinha, destemida, fantasiando um mundo que precisava ser salvo. E lá estava eu para fazê-lo. Nossa aventura era composta por um grupo animado de dez pessoas. Seguimos caminhando, abastecidos de água, disposição e ânimo. A estrada de terra foi estreitando à medida que avançávamos serra acima. Estar naquele lugar depois de tantos anos parecia irreal, embora não fosse impossível. O mato foi ficando, a cada instante, mais apertado. Quando nos percebemos, estávamos num matagal de bamburrais e marmeleiros que mediam uns dois metros de altura. Tentei reconhecer a trilha estreita que criávamos em meio à mata de bamburral e marmeleiro, mas todas as trilhas de matagal seco pareciam iguais. O cheiro do bamburral chegava com força às minhas narinas num primeiro momento. Era agradável aquele cheiro de perfume silvestre que lembrava travessura. Trazia-me imagens do meu pai retornando da roça e das inúmeras viagens feitas à Pedra para levar os visitantes. Estava eufórica. Todo o tempo vinha à minha cabeça uma travessura, antes esquecida e substituída pela rotina diária. Encontramos um lajeiro, recoberto por cactos com espinhos compridos e afiados, onde fizemos nossa primeira parada para descanso e hidratação. Naquele momento, as lembranças vieram como um tornado, trazendo-me um turbilhão fascinante de recordações. Não era a primeira vez que estivera naquele exato local. Eu havia reconhecido o lugar. Foi naquele lajeiro, em meio aos cactos, que caçávamos ninho de rolinha, fato lembrado por meu irmão, pois sabíamos que as aves, para proteger o ninho dos predadores, intuitivamente construíam seus ninhos em meio aos pontiagudos espinhos. Ficamos ali por uns cinco minutos, fotografando, conversando e tentando planejar o percurso da caminhada. De volta à trilha, agora não mais tão aparente, chegamos à mata fechada. Impossível continuar. Senti um aperto lancinante no peito ao pensar na possibilidade de não finalizar o percurso. Tentei contornar a minha decepção, considerando que já valera a pena. Mas não queria desistir. Embrenhei-me mata adentro na tentativa de convencer a todos que seria difícil, mas que poderíamos conseguir. Advertia o grupo de que havia somente um trecho penoso, e logo estaríamos em nova vereda. Meu irmão, mais experiente, conhecia o lugar melhor do que eu. Indicou uma picada, to12

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mada pelo matagal de bamburral. Foi possível abrir caminho com os pés, enquanto flores secas de bamburral caíam sobre nós, causando uma coceira irritante. A caminhada ia ficando mais complicada. Passamos por trechos íngremes. As “maliças” (Corruptela de malícia), planta espinhenta que se fecha ao ser tocada, grudavam em nossas roupas. Quando criança, sempre que encontrava um pé de “maliça”, cantava uma musiquinha, pois acreditava que ela só se fechava se ouvisse a canção. Depois de muito caminhar, nos deparamos com o leito seco de um riacho e uma parede de rochas. Impossível seguir em frente. Meu irmão, mais disposto, localizou uma nova vereda. Ficamos aguardando. Ele retornou dizendo que fomos além do previsto e deveríamos voltar. Apesar da exaustão, nada nos abatia. Minhas pernas estavam em frangalhos, o cansaço e o calor me faziam ofegar. Retornamos confiantes e seguros com a direção a seguir. Nosso último obstáculo até a Pedra foi um pé de juazeiro, com ramos tortuosos protegidos por espinhos. Esquivando-nos por entre os galhos espinhosos da planta, chegamos. Quase não podia acreditar que estava ali, aos pés daquela rocha. O nosso sentimento era de conquista. Ela continuava como a minha memória a retratara. Grandiosa! Subimos à Pedra com dificuldade. Contemplamos aquele fenômeno ininteligível ao senso comum. A paisagem nos encheu os olhos de uma emoção inexplicável. A aventura me levou a duas grandes descobertas: a que não tinha noção do que aquilo representava pra mim; e a outra, não menos importante, que já não tenho a mesma disposição de vinte e três anos atrás. No silêncio da mata, nos embriagamos de fascinação.

Aurilene Sampaio (Itapipoca, 1982). Professora da rede estadual de ensino, nas horas vagas abstrai escrevendo e pintando. 1

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Anita Lisboa Obra: Praรงa


LITERATURA BRASILEIRA

CONTOS

Rotas da lusofonia

PALAVRAS EQUIVOCADAS Emanuela Rodrigues por

Era um belo dia de sempre. Despertei-me às dez da manhã e, por uma disciplina qualquer, abri a caixa de e-mail. Abri-o com a expectativa mesma de algo mais. Divindome entre tarefas práticas e meu mundo ‘criptografado’, entre realidade crua e subjetividade, olhei superficialmente a ‘caixa de entrada’, para depois seguir com os afazeres urgentes. Dentre informativos de emprego, literatura e afins, havia um raio de esperança, entitulado ‘Certificado’. O que poderia ser mais importante do que abrir aquele e-mail? Uma xícara de café preto para despertar-me e aquecer-me ao dia frio de verão? – sim, as estações já não são constantes. A urgência em alentar-me o hálito amanhecido? Ou, não havendo nada tão urgente, a importância estava em nutrir a chama da esperança? Seria aquele o dia em que receberia o reconhecimento de meus dias e noites de trabalho involuntário? Sim, porque escrever é para o escritor um tipo de trabalho involuntário prestado voluntariamente. Ao que escreve com a alma tal ato é como um impulso vital, um antídoto para os males nascidos da observação crítica, do mergulho na própria subjetividade, do emergir nu de emoções mergulhadas no profundo oceano do subconsciente. Porquanto escovava os dentes, olhando-me nos olhos refletidos pelo espelho, observava a jovialidade que de mim se esvaía. Preocupava-me o futuro próximo e incerto. Todavia, havia no franzir de minha testa alguma esperança. Que nunca me falte o pão da inspiração! Agarrei com as duas mãos a xícara de café, sem saber se o saboreava por gosto ou se o tomava por hábito. Sentei-me diante do computador e cliquei sobre o certificado de esperança. Em anexo, a tão desejada Menção Honrosa. Seria bom receber o prêmio em dinheiro. Lembrei-me, então, dos originais que enviei às editoras. No corpo de texto, nenhum dado pré-impressionante. Sempre só uma autora desconhecida enviando o que lhe parece valioso, transformador ou entretenido. Sempre eu e um talento não comprovado, não premiado, não capitalizado. Agora, haveria honra em meu trabalho. Haveria honra documentada e assinada por quem tem a palavra. “Ninguém vai te dar nada!” Essas palavras me chegaram como objetos cortantes, que dóem e tatuam em alto relevo a pele. Talvez tenha sido o eco de uma verdade interna minha. Talvez expressassem o mais infantil de meus temores: ‘Ninguém’ significando a ausência total de alguém, e ‘nada’ significando a ausência de tudo. Ninguém vai me dar nada! Nem amor, nem amizade, nem trabalho, nem menção honrosa. Menção honrosa? Sim, porque essas palavras, que me caíram com a força de uma profecia, vieram à tona quando recebi, por e-mail, um pedido de desculpas pela equivocada “Menção Honrosa”. O documento enviado não era mais do que um “Certificado de Participação”. Ninguém vai me dar nada! Nem dinheiro, nem troféu, nem medalha, sequer uma simbólica menção

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honrosa. Poderia transcrever tal equívoco, do seguinte modo: “Veja, seu trabalho é muito bom!... Pensando bem, não tanto”. Cheguei a cogitar conspiração. Alguém do alto escalão da cultura, listado entre os ‘amigos’ de minha página social, e ofendido por alguma de minhas críticas ácidas à mesma cultura (não) oferecida, teria mexido seus palitos para desmoralizar-me após precipitada comemoração. Como não pensar em boicote, quando o uso inadequado de palavras parte da comissão organizadora de um concurso literário? Como não considerar que a importância da literatura está, exatamente, no ‘bom uso’ das palavras? Sim, a vida pode ser irônica. Havendo, de fato, conspiração, há que se premiar quem atirou ao alvo, acertando-no em cheio e ao meio. Ninguém vai me dar nada? Talvez não. Talvez eu seja a pseudoescritora, cujas palavras só fazem sentido em seu mundo subjetivo. Talvez o único que me assemelha aos tantos escritores consagrados e imortalizado seja uma vida solitária e pontuada por miserável estilo de morte. Com sorte, uma autora a ser compreendida em tempos que ainda virão. Com sorte e um possível talento. Quão frágil pode ser o ego de um artista em tempos de capital? Em um mundo onde aparência e resultado são requisitos indispensáveis ao bom currículo, como não desmoronar-me após falso reconhecimento? Enfim, restou-me excluir de minha página profissional, sob o mínimo ruído, o documento que dizia ser o que não era. Talvez, algum dia, eu explique publicamente o porquê de apagar as luzes de um ato comemorativo. Talvez eu o faça amanhã. Talvez o faça em dia de São Nunca... Talvez ao trigêsimo dia do mês dois do próximo ano. Segunda-feira, talvez...

Emanuela Rodrigues 1

(Goiás, 1983). Escritora, poetisa e artista visual. É autora autopublicada da obra ‘Metamorphose de Sophia’ dentre outras. Escreve temas diversos, entre os quais regionalismo e realismo fantástico. Foi a responsável pela direção de arte da Philos #4 do ano 1.

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Anita Lisboa Obra: Hipercontato


LITERATURA BRASILEIRA Rotas da lusofonia

OLHAR por

Aldenor Pimentel1

Eles andavam nus. Sempre andaram. E nada de errado viam nisso. Olhar o corpo nu do outro era tão corriqueiro e puro como contemplar o pôr do sol ou responder a um sorriso com outro. Naquele povoado, não havia escrita, não havia papel. Tudo o que aprendiam registravam no próprio corpo. Tatuavam na pele sinais de fácil compreensão. E aprendiam uns com os outros pelo olhar. Os corpos nus eram como livros abertos, prontos para serem lidos. Assim, tudo era partilhado e nenhum saber se perdia. Quando alguém morria, repetia-se o ritual. O corpo era exposto na praça central e todo o povoado se reunia para ver. Passavam dias e dias olhando o corpo exposto, até terem certeza de que nenhum sinal tatuado passara despercebido por alguém. Em seguida, cobriam todo o corpo com fibras de uma árvore e o enterravam onde não pudesse ser visto. Depois de uma vida inteira, sua missão estava cumprida. Com o tempo, o inevitável contato com outros povos aconteceu. Um deles, em especial, que se instalou pelas redondezas, cobria-se dos pés à cabeça. Não se olhavam nos olhos. Aliás, não se olhavam. Acreditavam que todo olhar é invasivo e, por isso, deve ser evitado. Pouco a pouco, os mais jovens daquele povoado passaram a sentir vergonha do próprio corpo. Começaram a esconder as partes íntimas, as pernas, o tórax, o abdômen e, no final, já cobriam o corpo todo. Quando, entre eles, alguém, por deslize, deixava à mostra algum pedaço de pele, os demais desviavam o olhar. E se o distraído não se emendasse, voltando à mesma conduta, era duramente repreendido. O conhecimento daquele povo, preservado por gerações e gerações, estava ameaçado. Eles já não aprendiam nada novo. E, assim, a extinção de todos eles parecia tão certa quanto o apagamento para sempre dos sinais tatuados, em um passado distante, no corpo dos mais velhos. Quando morreu o mais velho dos seus anciãos do povoado e um grupo já preparava o seu enterro em um caixão lacrado, um dos jovens decidiu não fechar os olhos para o que acontecia. Ao cair em si, rasgou as próprias vestes, ficando nu diante de seus pares. Aos olhos que o evitavam, gritou para que todos ouvissem: — Amigos, olhem aqui: sempre andamos nus e isso nunca nos pareceu feio ou sujo. De uma hora para outra, fomos convencidos de que devemos sentir envergonha do nosso corpo e de que nos olhar mutuamente é repulsivo. Com isso, deixamos de aprender com o outro e com tudo aquilo que o nosso corpo tem a oferecer. Assim, negamos a nós próprios. Desfiguramo-nos. Tornamo-nos irreconhecíveis. Envergonhados, não mais por causa do próprio corpo, mas pelo comportamento que tiveram nos últimos tempos, despiram-se todos, deixando à mostra corpos vazios de tatuagens. Juntos, tiraram de dentro do caixão o corpo do ancião. Toda a sua pele estava

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CONTOS


tatuada. Ao vê-lo, deram-se conta do quanto ele era sábio e do quanto perderiam se o enterrassem sem lê-lo. Fizeram o ritual. Todo o povoado reunido olhava cada detalhe do corpo do ancião coberto de tatuagens. Como era de se esperar, dessa vez, o ritual demorou mais do que o costume. Afinal, havia muito que aprender, ainda mais depois de tanto tempo sem exercitar o olhar para o outro. Naquele dia, aprenderam muitas coisas. Principalmente, que nunca mais deveriam se envergonhar de quem eram. Nos olhos de cada um, era possível ler o quanto estavam felizes por ainda viverem e do quanto estavam certos de que só estavam vivos porque não deixaram de ser eternos aprendizes.

Aldenor Pimentel (Boa 1

Vista, 1984). Escritor e poeta, autor do livro “Deus para Presidência”.

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Anita Lisboa Obra: Arriscar


LITERATURA BRASILEIRA

COLUNAS

Rotas da lusofonia

O COLO DA MINHA MÃE Lucrecia Welter por

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Eu ainda não me havia dado conta de que já existia. Meu corpo se formava dentro de uma bolsa especial. Na medida e no instante certo, tinha o necessário: oxigênio, alimento, repouso, carinho e calor. Como era confortante aquele ninho, tendo uma mãe inteirinha pra mim! E eu era somente dela. Nada me perturbava. Com ninguém precisei disputar coisa alguma. Contudo, sem ser consultada, fui trazida à luz. Só porque à minha hora eu havia chegado. O colo da minha mãe tinha um calor diferente do de seu ventre. Mais instável. Ainda assim, era prazeroso estar ao seu peito, sentir o aperto de seus braços, sugar o seu leite, enquanto ouvia as batidas de seu coração, como antes. E quando ela me embalava então? O corpo dela, em balanço firme, era impulsionado por uma canção italiana, cantada por ela, com um tom vivo de saudades. Eu a fitava com insistência, pois me parecia que o meu mundo estava todinho ali, limitado ao corpo dela. Quando se aproximava de mim, eu via anjos em nossa volta. Um deles parecia ajeitar as estrelinhas no azul dos seus olhos. Cresci sob um manto de amor e cuidados. Ao perder o colo, porém, eu não quis aceitar o fato de dividir a minha mãe. Teimava e chorava, suplicando atenção exclusiva. E ela se rendia, reservando um de seus braços para mim. Com o outro, dava conta de suas tarefas. Ela me queria bem, mas queria por igual aos demais filhinhos seus que iam chegando. Um a cada ano. Tive que aprender a ceder. Desde então, a minha vida foi ficando do jeito que deveria ser de verdade, com ganhos e perdas. A partir daí, aventurei-me a ajudá-la no exaustivo cuidado com os menores. Percebi que ela ficava feliz com o meu papel de ajudante. Passei a gostar da nova fase e deixar de lado o desejo de ter o colo de volta. Nossos tempos eram muito diferentes. O meu não tinha despertador e os ponteiros andavam normais. O dia dela precisava urgente ter mais de vinte e quatro horas, pois os filhos, devagarinho, somaram onze. Pelos dias sagrados da infância, o eco, o vento, a chuva faziam parte dos nossos brinquedos. Os raios solares indicavam a hora, pois não tínhamos relógio. Um chamado da nossa mãe significava o toque de recolher. Naquelas tardinhas, eu via que ela ficava mais linda e mais cheirosa se iluminada pelo sol tênue. Ou pela lua, nas noites em que passava ao nosso lado, confortando-nos. Ela surgia do nada, na meia escuridão, sempre que solicitada. Fosse por quem fosse. Eram momentos em que não precisávamos dos anjos, pois ela era o nosso anjo guardião. Veio-me a adolescência. Passei-a ouvindo conselhos de pura sabedoria. Nem sempre os seguia. Achava que aquilo era coisa de mãe exigente. Eu me julgava pronta para enfrentar o mundo, de salto alto. Desci dele todas as vezes em que não seguira o que me fora ensinado. Esperava, com ansiedade, pelos meus dezoito anos. Depois, pelos vinte e um. Daí em dian-

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te, parecia que o “tempo voava”, como dizia ela. Adulta, passei a observar mais os seus exemplos. A me espelhar neles e valorizar tudo o que dela viera. Foi quando o fato de tê-la ainda ao meu lado significou muito para mim. A melhor companhia em horas preciosas que me transportavam de volta à infância querida. E a saudade daqueles tempos me queimava o peito. Vieram-me os filhos, a realizar o meu sonho acalentado desde menina: o de ser mãe. O simples chazinho para os nenéns até, mais tarde, o diploma universitário que se agitava nas mãos deles eram motivos para lembrar-me dela. Incontáveis são as lições que dela aprendi. Todas válidas e ricas, embora ela não fosse letrada. Passados os anos, foram-me colocados nos braços três netos. Bisnetos dela. E eu me vi como ela, mãe e avó ao mesmo tempo. Dos meus velhos brinquedos, dos preferidos, alguns foram passados para as mãos deles, outros não existem mais. Porém, os ensinamentos ainda latentes dessa - mãe, avó e bisavó querida - movem os meus dias e me despertam o desejo de também chegar com saúde ao pódio a que ela chegou. Que fases espetaculares da vida eu vivi até então! Cada qual com sua graça e grandiosidade. De algumas, eu não queria me desgarrar. Mas, embora sinta saudades, não tornaria a vivêlas, pois ainda tenho a experimentar o gostinho de ser bisavó e o sabor absoluto da eternidade. Sei, de lá também não desejarei voltar. Pois hei de reencontrar o anjo que se vestiu de Adiles Anna e cuidou de mim aqui na terra com um amor possuído de plena vida.

1Lucrecia

Welter (Paraná, 1953). Escritora multipremiada e presidente da Academia de Letras de Toledo, Paraná. É Revisora de textos da Revista Philos e Curadora de Literatura lusófona da mesma Revista. Tem diversos livros lançados e publicações em coletâneas poéticas.

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Anita Lisboa Obra: Ojos


LITERATURA BRASILEIRA Rotas da lusofonia

O ABISMO DA FOME por

Lucas de Carvalho Dantas1

O inverno mal acabara e o sol já deixava marcas pelo chão. Um mosaico de rachaduras se expandia por todo o leito de um rio antes transbordante. O inverno fora insuficiente e o verão surgia com mais força. A mandioca estava chegando ao fim e a fome começava a tomar a região. Em uma humilde residência - um barraco de taipa caindo aos pedaços Rômulo lamenta a falta de sorte e a miséria. - Meu Deus, o que darei de comer aos meus filhos? Exclamava ele sentado num velho banco de madeira, olhando para os pequenos correndo pela frente da casa à beira da ruína. O seu olhar era de um tom tão triste, sentia-se inútil e impotente. Sua esposa não resistira ao parto do último filho, e as duas crianças, uma com dez e a outra com oito anos, não têm perspectiva de vida. O que havia da farinha foi servido no almoço com os dois ovos que restavam da magra e raquítica galinha. Na hora da refeição, com as porções bem medidas, um dos filhos indaga ao pai: - Estou com fome! Quero mais. Rômulo com os olhos encharcados, responde: - Meu filho, só tem isso, não temos mais nada... O garoto conformado abaixa a cabeça e sai da mesa ao mesmo tempo em que o pai se rompe num choro silencioso. A situação estava difícil e ainda iria piorar. Passam-se dois dias sem que nem sequer uma migalha de pão chegasse à mesa. Sentado no seu banquinho, Rômulo observa um de seus filhos arriado, aos prantos, num velho colchão, no chão da casa. O garoto mais novo mal conseguia ficar em pé. A fraqueza percorria sua carne e a fome não o deixava em paz. Restava apenas dormir, a única coisa que lhe trazia paz, apesar das turbulências e a febre que consumia o seu corpo. Lá fora, o chão torrado pelo sol e os ossos da única galinha que tinham. Morrera de fome, pois nem no chão encontrava algum alimento. E o filho mais velho, ao lado do animal morto, misturava o barro com água e, da mistura, fazia o seu pão. O sol já se punha no horizonte. Mais uma noite e novamente um novo dia, uma nova luta contra a fome. O garoto doente delirava de febre, a sua pobre dieta dos últimos meses minara suas energias. Seu coração pulsara lentamente até dar a última badalada num suspiro de desespero e, ao mesmo tempo, de alívio, pois acabava o seu sofrimento. O pai atordoado vê a cena e verte lágrimas que encharcam o chão. O outro menino, em profunda diarreia, mina-se no chão encostado ao pai. O seu gemido de dor só é interrompido quando o vento ecoa no velho telhado, todo furado pela ação do tempo. Novamente o menino chora ao mesmo tempo em que, sem força de se levantar, faz suas necessidades ali mesmo. O sofrimento perpetua-se por toda manhã. Uma escuridão toma a vista de Rômulo, que

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CONTOS


sente, no seu íntimo, o fim próximo. Levanta-se, vê a casa rodar, segura-se na parede, vai ao fundo da casa e pega uma enxada. Sai rumo à vasta imensidão vermelha, o verdadeiro vale da morte. Abutres o sobrevoam. Ossadas de animais, acompanhadas de restos da carne, são ornamentos da funesta paisagem. Num determinado ponto, para e começa a cavar três buracos. Ao terminar, quase desfalecendo, retorna à sua casa e encontra o menino dando os últimos suspiros ao lado do corpo frio do irmão. O pai toma o mais novo em seus braços e sai da residência em direção aos buracos. O garoto é molhado com as lágrimas do pai que deposita o cadáver no buraco e o cobre de terra. Torna a casa para pegar o segundo garoto e novamente voltar ao jazigo. O segundo garoto é posto na cova ainda quente e coberto de uma rala camada de terra. Por fim, Rômulo se deita em sua vala para esperar o beijo da morte. A procissão funesta durara a manhã toda. Ao meio-dia, Rômulo definhava. Um abismo se abria abaixo dele e o sol a pino escurecia. O calor, antes insuportável, dissipava-se em leve brisa de outono. Os seus olhos abertos perdiam o brilho enquanto uma gota de chuva caía em seus lábios ressequidos pela sede. E um sono profundo o tomou. Quando acordou, entre uma bela campina florida rodeada de uma pomar, o seu sofrimento passara e o seu corpo debilitado recobrara as energias. Ainda meio zonzo, levanta e, quando apruma a visão, vê ao longe a sua esposa e os dois filhos sorridentes, vindo ao seu encontro. Emocionado os abraça com ternura. E de mãos dadas, adentraram naquele paraíso de múltiplas cores.

Lucas de Carvalho Dantas 1

(Sergipe, 1994). Poeta, músico e contista.

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Anita Lisboa Obra: Vestir o mar


LITERATURA BRASILEIRA

EXPERIM.

Rotas da lusofonia

D’ALMA por

Julien Karine da Rosa Hoff1

Faça um favor a si mesmo: ouse brindar pelos risos incontidos que der, até mesmo quando o tempo ou as pessoas não estiverem a favor de seus atos. Brilhe, cante, dance, fale, ouça, brigue, discuta. Não importa quão vagas sejam as suas palavras, ou quão descoordenados sejam seus passos, apenas tente. Não desista da vida, tampouco de percorrer o caminho que lhe parece viável traçar. Corra atrás do que quer, una a você mesmo a serenidade, a paciência e a prudência que se faz ausente. Decida o que achar melhor, enfrente quem lhe for oposto. Se achar coerente fazer de seus dizeres história, guerreie. Transforme-se não em apenas um humano ou talvez em máquina de recursos, mas seja além, um possuidor da sabedoria, dos dons da magnificação, da amplitude. Seja eufórico, brinde a ousadia, clame a Deus se ele existir. Peça, implore, chore, desabe em soluços e lágrimas. Engrandeça-se nos pesares e cresça. Mude e evolua. Mas acima de todas as coisas que nos dignificam, seja você mesmo. Talvez sagaz, talvez rude, talvez incoerente, talvez tolerante, paciente, ou então, frustrado, decepcionado. Negativista ou positivista. Seja tudo, seja nada, seja terno, seja denso. Seja simples, seja complexo. Mas, seja. E jamais se permita manter-se vazio por um longo período, não se mantenha estável. Mude, reorganize, ou então, apenas erre. Talvez caia, mas levante-se e siga em frente. Sozinho. Sem pesos e empecilhos!

Julien Karine da Rosa Hoff (São Paulo, 1990). Escritora ama oraeadmiradora dos devaneios humanos. 1

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Anita Lisboa Obra: Fuga


LITERATURA BRASILEIRA

EXPERIM.

Rotas da lusofonia

NOITES DE MADRUGADAS DE FARSAS Luizza Julianelli por

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A noite espreita, pela varanda, seus pontilhados esparsos de estrelas. Meu pequeno livro de consulta, meu vinho, meu caderno e meu cigarro. Eu olho para o silêncio lá fora por um momento e procuro me lembrar do que eu fui. Tento me esquecer do que me invade nos dias vazios. Eu não poderei saber o que seria se não tivesse sido com você. E isso me assusta. Tenho horror da certeza de que você moldou quem eu sou, de que eu jamais poderia ter sido esta – que escreve, que chora, que ama – se você não tivesse existido. Eu te amei. E amei, digo assim, no meio do parágrafo, porque essa certeza me corrói, me destrincha, me estrinça. Eu jamais poderei esquecer você. Você me fez. Estive olhando para a noite nublada, de prédios encardidos. Desço o elevador, saio à rua. Os carros quase não passam na madrugada quente. As pessoas não existem. Existem apenas as almas solitárias, os bêbedos desiludidos, as crianças desamparadas, as moças que trabalham. E essas almas não são na noite o que se pretendem no céu claro. Elas são escravas da rotina, e procuram fugir dos pensamentos incômodos. Queria poder fingir nas horas vagas, mas sou feita de verdade. E a verdade me atormenta, não me permite aproveitar as madrugadas nos sonhos. É porque, eu digo, preciso escrever, preciso me libertar e me ferir. Preciso me desnudar e mutilar e manchar o papel com meu suor, minha saliva. E digo: escrever sempre me dói. Mas é dor que me liberta do mundo de farsas. Somos todos artistas desprovidos de sua arte. Vagamos pelo mundo sem um mundo para vagar. Eu poderia sentar num belo Café, pedir um pouco de chá. Sim, senhor, obrigada. E polidamente tirar meu caderno preto da bolsa, uma caneta (bonita, sempre bonita) e anotar com parcimônia os meus mais profundos e belos pensamentos. Mas a verdade é que não é com tal facilidade que as palavras surgem no meu papel. Eu sofro. E não sei viver sem sofrer. E é assim que escrevo. E de tal melancolia tiro proveito. Eu sento no meio-fio. Um homem robusto vai se aproximando na calçada. Não tenho medo. Nunca tenho medo dos homens quando se aproximam em sua brutalidade sincera. Tenho medo dos que – sim – parecem muito suaves no andar. Ele se senta ao meu lado. Oferece um cigarro. Quero dizer que não fumo, mas aceito. Ele não me olha. O som perturba a rua. Os cães ladram. Tomo mais um gole de vinho. O homem do meio-fio vai se esvaindo. Primeiro, seu rosto sem fisionomia. Depois, seus dedos, suas pernas e seus cabelos negros. Minha boca está seca, minha língua áspera. Sinto-me cansada, mas otimista. Uma melancolia afaga meu pei29

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to e sinto vontade de correr. Correr, correr, correr. Não queria ter esse ímpeto da escrita, a maldita arte de qualquer um. Não são todos que se fazem pintores ou escultores, muito menos músicos, mas quantos e quantos se dizem escritores. E sou mais um deles, traça de livros empoeirados. E o que me diferencia dos demais? Minha dor, minha dor? O sofrimento e a necessidade, a força que sinto em cada sílaba, em cada instante que meu punho corre o papel? Pois sinto que minha alma se esfacela, que morro aos pedaços, que vou me deixando, me empoeirando, me matando, me corroendo. Sinto que o que escrevo é nada, que é tudo, o mundo distorcido dentro de mim. É confuso. É íntimo. É eu. E parece que estou afogada nas mesmas feridas, emaranhada de perversão, de obsessão, de submissão. O que restará disso tudo? Quem lerá o meu fim? Quando meu coração se cansar, todo o mundo irá com ele?

Luizza Julianelli (Rio 1

de Janeiro, 1998). Vencedora do Prêmio Ariano Suassuna em artigo de opinião e poesia e do Prêmio Mário de Andrade em contos do Colégio Pedro II. Premiada pela Revista Ôxe! na sessão de poesias. Colaborou com a Revista Desenredo.

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Anita Lisboa Obra: Por que que a gente fica esperando?


LITERATURA BRASILEIRA Rotas da lusofonia

O EMBRULHINHO por

Munique Duarte1

Na Rua das Goiabeiras, ele quase enfartou ao colocar a mão no bolso da camisa e perceber que o embrulhinho não estava lá. Que suadouro! Fez o trajeto de volta até chegar a casa e, com a face branca, começou a revirar as primeiras gavetas da cômoda. A mulher não poderia pegá-lo ali, todo sôfrego, a fuçar em toalhas alvas dobradas. Fechou as gavetas. Abriu-as outra vez na esperança da olhadela mal dada. Perda de tempo. Apalpou o bolso, por instinto. O embrulhinho não estava lá. Caíra na rua, decerto. Saiu correndo, triplicando o suor colado no corpo. Andou como cão farejador que não levanta os cílios. Percorreu tudo, até parar outra vez diante da palmeira da Rua das Goiabeiras, onde tudo começou. Nada na calçada. Nada! Foi para o trabalho mesmo assim. Talvez o tivesse deixado sobre a mesa. Foi consolando-se com mentiras de algodão-doce, até sentar-se diante da máquina de escrever e constatar que o embrulhinho sumira de fato. Datilografou tudo errado naquele dia. O cesto ficou cheio de papel amassado, e o café respingou na camisa bem passada. Abriu e fechou todas as gavetas da mesa de cinco em cinco minutos, até dar as cinco no relógio grande da parede encardida da repartição. Quem sabe, no trajeto de volta, ele encontre o embrulhinho tão particular. Quem poderia querer ficar com ele, tão pequeno e sem importância? Em casa, a mulher o estranhou. Roupa suja de café e cabelo desgrenhado. Cara de quem viu lobisomem. Pálido. Aquele não era o seu marido. Jantaram sem diálogos. Pensava nas gavetas da cômoda. Abriria as outras também, além das duas verificadas pela manhã. Faria enquanto a mulher estivesse prendendo os cabelos antes de dormir. Empurrou uma a uma das gavetas para fora, com a língua entre os lábios. Sem ruídos. Passou a mão em cada dobra de lençol, fronha e toalha perfumados. Fez isso com todos os panos dobrados em todas as gavetas. Olhou até entre os perfumes sobre a cômoda. Nada! Dormiu gelado. A mulher suspeitava de febre. Teve pesadelos horríveis. Seu futuro estava perdido. Tomou café da manhã com olhos esbugalhados. A mulher quis chamar o médico. Ele fez que não. Parecia mais velho, com cara de lobisomem. Na Rua das Goiabeiras, lembrou que era sexta-feira. Dia da entrega do embrulhinho. Deixá-lo na repartição, para melhor segurança, até o ato da entrega, falhara. Agora tinha o coração aos saltos. Pensava em não derrubar café na camisa. E em manter os cabelos alinhados. Naquele dia, trabalhou muito. Houve vários imprevistos. Cólicas renais. Andava esquecido. Esqueceu que era dia de ir mais cedo para substituir o colega que faltaria. Deixara o colega na mão. O serviço acumulara. Recomendaram-lhe jabuticabas para refrescar a memória. E sopa de cebola antes de dormir. Isso lhe causou náuseas. O embrulhinho feito órfão no mundo. Almoçou pouquinho. Só um terço do bife e meia folha da alface. Tentava baixar mais as pálpebras

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CONTOS


para não mostrar os olhos esbugalhados de terror. Voltou para o trabalho e avisou a mulher que era dia de serão. Prometeu a si mesmo passar na farmácia depois do expediente para ver o remédio da memória. Dali em diante, escreveria bilhetinhos para se lembrar das tarefas. Só não poderia se esquecer de escrever os bilhetinhos. Imaginava o embrulhinho aberto e a cara de espanto de quem o abrisse. Tão pequenininho e revelador. As mãos tremiam com os pensamentos. Disseram a ele que mãos geladas eram lombrigas. Quem sabe mais jabuticabas não lhe fariam bem? Terminou o serviço às sete da noite. Que dia longo e sofrido! Olhou no espelho do pequeno banheiro e viu que o cabelo estava alinhado e que os olhos estavam na posição normal. Também verificou se havia café na camisa. Depois lembrou que nem tomara café. Jabuticabas e sopa de cebola cortaram seu apetite. De volta às ruas, refez o trajeto, feito cão farejador. Nada de embrulhinho. Bateu na janela em frente à palmeira da Rua das Goiabeiras. Uma voz abafada respondeu lá de dentro que o ouvia bem. De fora, apenas respondeu que naquele dia não teria poesia e doce de amêndoa. A voz chorosa indagou o porquê. Ele, com coração apertado, disse que depois explicaria. Apressou o passo e, em casa, a mulher já estava com os cabelos presos para dormir. Pediu a janta. Ela colocou sobre a mesa um prato tapado com o outro, e lhe deu “até amanhã”. A sós, pensava onde estaria o embrulhinho. Não estava em casa, nem no trabalho, nem jogado na rua. Nenhum vizinho o encontrara. Ninguém. Mais uma vez verificaria cada espaço das gavetas, entre as roupas lavadas, entre as esperanças brancas perdidas. Emagrecia a olhos vistos. O rosto estava fundo nas maçãs. Na sala, em frente ao santo, a vela acesa quase se apagando fazia figura de lobisomem nas paredes. Não poderia orar pelo embrulhinho. Tinha vergonha do santo. Tinha vergonha da falta de memória. E, nessa sexta-feira, não se lembrou de escrever nenhum bilhetinho para refrescar as tarefas do dia. Era um homem sem jeito, sem sorte e sem embrulhinho. Dormiu como pedra. A mulher já se acostumara com seu ar perdido de menino que sempre observa os outros a brincar. Estranhou que ele chegara cedo ontem. Sexta-feira era dia de serão que durava até as onze da noite. Hoje faria diferente. Disse que precisava sair ainda de manhãzinha. Era melhor que ele respirasse ares puros matinais. Depois do café, percorreu o mesmo trajeto do trabalho até chegar à Rua das Goiabeiras. Bateu dois soquinhos na janela em frente à palmeira. A voz abafada lá de dentro custou a responder. Mais dois soquinhos. Escutou o ranger das dobradiças da porta. Depois de olhar para as duas direções da rua, entrou sem barulho no piso. Na sala, ainda de cabelos com grampos, ela o apertava em abraços sufocantes, davalhe beijinhos na testa e nas bochechas. Dizia que ele era a sua amendoazinha favorita. Largaram-se no sofá. Ele, com os olhos esbugalhados, não entendia nada. Ela, com o sorriso esbugalhado, disse que adorara a surpresa deixada na janela em frente à palmeira, na Rua das Goiabeiras. Não merecia surpresinha tão íntima. O embrulhinho estava lá, todo desfeito, sobre a mesinha de centro.

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Munique Duarte (Santos 1

Dumont, Minas Gerais, 1979). Jornalista e escritora, autora dos livros “O salto do guepardo” e “Espelho oxidado”.


Anita Lisboa Obra: Gabriel


LITERATURA BRASILEIRA

CUENTOS

Rutas Literarias de Iberoamerica

LA LEVEDAD DEL SER por

Àngel Gabregat Morera1

Gregorio S. evitaba cualquier superficie donde pudiera verse reflejado. Tenía la pierna derecha unos centímetros más larga que la pierna izquierda. Era especialmente feo. Su físico era difícil de encajar en el gusto de un ser humano. Desde que murieron sus padres, la única compañía que había tenido, era la de un gato callejero que un día acogió. Su madre desde pequeño le decía que en esta vida; Dios le da a cada uno la carga que puede soportar. Trabajaba de... sol a sol en las grúas que manejaban los contenedores del puerto. Solía llegar a casa andando. A menudo la gente cambiaba de acera unos metros antes de cruzarse con él. Siempre que podía se cubría con una capucha ya fuera de la sudadera o de la chaqueta. Una noche soñó que era una cucaracha. Entonces se despertó sobresaltado. Al verse reflejado en la ventana que daba a la calle, pensó: “¡Uf! Que susto menos mal que vuelvo a ser yo”.

1Àngel Gabregat Morera (Lleida, Cataluña, 1965). Empezó a escribir a los diecisiete años. Su escasa obra, en catalán, se centra en la poesía y el relato corto, con los que ha .cosechado más de ochenta prêmios literarios. Tiene publicado el libro de poesía Antologia d’un Onatge (Columna, 1990).

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Anita Lisboa Obra: Mão


LITERATURA ESPAÑOLA

EXPERIM.

Rutas Literarias de Iberoamerica

DECANTACIÓN DE UN DIARIO Astrid Ramos por

1

3 de enero. El primer día del año me sentí bien, el segundo vi un mosquitero cantar en un árbol, el tercero acepté, por un instante, mi desgracia. 4 de enero. Soy palomas para ti. Múltiple, cagona, pedigüeña. 6 de enero. La suciedad de los regalos. 14 de enero. Y luego dirán que la historia la escriben los vencedores. 21 de enero. No creas que eres tú ni tu carisma, es mi simpar atracción por lo malsano, lo obscuro, lo inefable. 13 de febrero. Maldito hijo de Urano. No asomarás tu cráneo. Tu bello cráneo. Tan cercano a la verdad, a la vida, a su desaparición. Tienes tanto miedo del infierno que no intentarás de nuevo el cielo. 20 de febrero. Ya no te veré más vivir. 21 de febrero. Dicen que también son especialmente bellos los arcoíris bajo la lluvia ácida. 3 de marzo. Todo debió acabar en 2006, ahora ya no acabará nunca. 7 de marzo. La vida y yo hemos empatado. Hay algo que ella no puede ni yo tampoco. Devolverte. El resto de lo que suceda será mera traca, olor a pólvora. 19 de marzo. Pretérito imperfecto del subjuntivo 2 de mayo. Gracias por cruzarte en mi camino. Nunca me gustaron las línea rectas. 5 de mayo. Soy los sitios que no veré, las lenguas que no hablaré, los hombres que no amaré. 13 de junio. Hoy, durante todo el día, solo contaré vencejos. 3 de julio. Tienes la suerte del planeta. 24 de julio. Tú, si quisieras, podrías ser el mismo durante milenios. Mi pasmo sería idéntico. Eso te debe de cansar, lo entiendo. 30 de julio. La vida es solo una metáfora de tu cuerpo. Insuficiente. Finita. Huidiza. Falsamente explorable. 31 de julio. Que yo haya volado y Leonardo no. Que yo haya visto las nubes desde arriba y William no. Eso, eso me ayudará. Un día de agosto. Felicidades. 3 de septiembre. Y no vienes, ni embarcado en la corriente del tiempo ni por los canales

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subterráneos de la culpa. Ni rastro de ti tampoco entre las luces pretéritas. 23 de septiembre. Lo que escribo desvela, tapa, señala o circunvala. 27 de septiembre. Tu pulso se debilita en insondables abismos hipotalámicos. 30 de septiembre: He estado con otro. Otros. Todos. Ninguno. 2 de octubre. Volverás repetidamente. Cada día. En las señales que solo yo sé puntuales. Retaguardia bicéfala de tu ejército semiótico. 15 de octubre. No fue real, pero fue verdad. 24 de octubre. No tienes ningún mérito. En menos de un año ya he visto miradas más ciertas que la tuya. Promesas que eran, antes de enunciarse, verdaderas. 1 de noviembre. Se ha roto el espejo y con él mi reflejo. Cicatrices de cristal recorren ahora mi rostro. 5 de noviembre. Pienso en ti. Floración intermitente, pienso en ti, floración efímera, pienso en ti, floración interna. Pienso en ti. 18 de noviembre. Tu sonora ausencia. Tan segura de su peso. 21 de noviembre. El infierno es un constante regreso. 25 de noviembre. Cuando otros logran franquear la puerta que deja atrás la indiferencia apareces tú, nítido, apoyado en el barandal. Con tu pullover de cuello de cisne azul marino, fumando lentamente. Tu presencia aun irreal hace burla de todas las palabras, de todas las presencias, de todos los cuerpos. 28 de noviembre. Rellena la línea de puntos o, mejor, pon tus puntos entre los míos. 1 de diciembre. Estamos vivos. Los dos. En la misma época. En el mismo planeta. ¿Cómo puedes desmerecer eso? 2 de diciembre: Perdona por no haber bajado a comprarte aquella cajetilla de tabaco ese día en que llorabas rendido en el suelo. 23 diciembre. Cosas que tú y yo hablamos en sueños: ¿Volver, para qué? Para reeditar un clásico con ilustraciones nuevas. ¿Volver? ¿Para qué? Para acariciarnos las suturas. No. ¿Por qué? El polvo que desprende la porcelana rota impediría que vuelvan a ajustarse los pedazos perfectamente. Además es venenoso. Permanece en los pulmones para siempre. 29 de diciembre. ¿Mesías trasnochado? Pase, le esperan. Siempre le van a estar esperando. 31 de diciembre. Aspiración palindrómica: que todo acabase tal y como empezó.

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1

Astrid Ramos

(Isla de Gran Canaria, 1980).

Obtuve el 2º Premio del IV Concurso de Poesía “Poeta Bento” de la Fundación Canaria Néstor Álamo y el 1° Premio del IV Concurso de Relatos de Mujeres Viajeras en 2012 y 2014. 1° Premio del certamen de Relatos de la Revista Cultural Babelia de ElPais.com y el 3° Premio del concurso organizado por El Viajero de El País.


Philos

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