Philos v.3 n°.18 (2017)

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Philos PORTUGUÊS CATALÀ ESPAÑOL FRANÇAIS ITALIANO ROMÂNĂ julho 2017 · REVISTA DE LITERATURA DE LA UNIÓN LATINA 18 julio 2017

REVISTA DE LITERATURA DA UNIÃO LATINA 18


Philos PORTUGUÊS CATALÀ ESPAÑOL FRANÇAIS ITALIANO ROMÂNĂ REVISTA DE LITERATURA DA UNIÃO LATINA 18 julho 2017 · REVISTA DE LITERATURA DE LA UNIÓN LATINA 18 julio 2017

YLS RABELO CÂMARA CAROL REIS FÁBIO MACIEL PINTO DAVID JUNIOR CARLOS BARTH CARLOS PESSOA ROSA MARCIO RUFINO RUBEM MAURO MACHADO PAULO EMÍLIO AZEVÊDO MUNIQUE DUARTE CRISTINA GÁLVEZ MARTOS DIANA MONCADA


PORTUGUÊS CATALÀ ESPAÑOL FRANÇAIS ITALIANO ROMÂNĂ REVISTA DE LITERATURA DA UNIÃO LATINA 18 julho 2017 · REVISTA DE LITERATURA DE LA UNIÓN LATINA 18 julio 2017

EXPEDIENTE

REVISTA DE LITERATURA DA UNIÃO LATINA REVISTA DE LITERATURA DE LA UNIÓN LATINA

Souza Pereira

EDITOR CHEFE | EDITOR EN JEFE

Sylvia de Montarroyos

COMITÊ EDITORIAL | COMITÉ EDITORIAL

Lucrecia Welter

REVISÃO DE TEXTOS | SUPERVISIÓN DE TEXTOS

Maus Hábitos

DESENHO E DIAGRAMAÇÃO | DISEGÑO Y DIAGRAMACIÓN

Magda Fernandes & José Domingos ILUSTRADOR | DIBUJANTE

SOBRE A OBRA DESTA EDIÇÃO | SOBRE LA OBRA DE ESTA EDICIÓN

Publicado originalmente em julho de 2017 com o título Philos, Revista de literatura da União latina. Os textos desta edição são copyright © de seus respectivos autores. As opiniões expressas e o conteúdo dos textos são de exclusiva responsabilidade de seus autores. Todos os esforços foram realizados para a obtenção das autorizações dos autores das citações ou fotografias reproduzidas nesta revista. Entretanto, não foi possível obter informações que levassem a encontrar alguns titulares. Mas os direitos lhes foram reservados. Philos, Revista de Literatura da União Latina é registrada sob o número SNIIC AG-20883 no Sistema Nacional de Informações e Indicadores Culturais com Certificado de Reserva outorgado pelo Instituto Nacional de Direitos do Autor sob o registro: 10-2015-032213473700-121. ISSN em trâmite. Revista Philos © 2017 Todos os direitos reservados. | Publicado originalmente en julio de 2017 con el título Philos, Revista de literatura de la Unión latina. Los textos de esta edición son copyright © de sus respectivos autores. Todos los esfuerzos fueron hechos para la obtención de las autorizaciones de los autores de las citaciones o fotografías reproducidas en esta revista. Sin embargo, no fue posible obtener informaciones que llevaran a encontrar algunos titulares. Pero los derechos les fueron reservados. Philos, Revista de Literatura de la Unión Latina es registrada bajo el número SNIIC AG-20883 en el Sistema Nacional de Informaciones e Indicadores Culturales con Certificado de Reserva otorgado por el Instituto Nacional de Derechos del Autor bajo el registro: 10-2015-032213473700-121. ISSN en trámite. Revista Philos © 2017 Todos los derechos reservados.

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Philos, Revista Philos Revista de de Literatura Literatura da da União União Latina Latina || Revista Revista de de Literatura Literatura de de la la Unión Unión Latina. Latina.


EDITORIAL

REVISTA DE LITERATURA DA UNIÃO LATINA REVISTA DE LITERATURA DE LA UNIÓN LATINA

Julho foi um mês importante para nossa revista. Lançamos o primeiro volume impresso da Philos em dois cadernos, o nosso trabalho de democratização das línguas e espaços linguísticos assumiu formas diferentes dos bytes e assumiu o formato impresso em dois cadernos incríveis. Esse mês também realizamos a cobertura da 15° Festa Literária Internacional de Paraty, a Flip 2017. Ao longo da última semana nosso correspondente, o escritor e colaborador da Philos, Thassio Ferreira, realizou uma série de entrevistas com grandes nomes da literatura nacional. O projeto Philos na Flip contou com a participação da escritora Conceição Evaristo e dos escritores Jacques Fux e Roy Frankel. Essa edição nos provoca a pensar sobre o universo conceitual que criamos até aqui: A Philos como espaço de convívio e de reflexão. As artes visuais que ilustram esta edição são trabalhos experimentais de nossos colunistas da Imagerie - Casa de imagens. Magda Fernandes e José Domingos apresentam 26 composições fotográficas inéditas para a Revista Philos #18. Nas palavras dos criadores: "Apesar de ser inédito, este trabalho nasce como um prolongamento de projetos que temos vindo a desenvolver e que giram à volta​ de dois eixos que atravessam todo o nosso discurso criativo - a memória e a manipulação da matéria. Deste modo, o que fizemos foi uma tentativa de os entrecruzar - concretizando o abstrato e tornando abstrato o tangível. A ponte entre as duas ideias-chave é feita por uma espécie de arqueologia digital, que nos permitiu olhar para a matéria de um novo ponto de vista, aproximando-nos das suas “células”, descobrindo poéticas difíceis de ler a “olho nu”, olhando simultaneamente para a frente e para o verso, misturando o que era díspar, para encontrar novos significados." Desejamos uma ótima leitura, Souza Pereira

EDITOR CHEFE | EDITOR EN JEFE

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EDITORIAL

REVISTA DE LITERATURA DA UNIÃO LATINA REVISTA DE LITERATURA DE LA UNIÓN LATINA Julio fue un mes importante para nuestra revista. Lanzamos el primer volumen impreso de la Philos en dos cuadernos, nuestro trabajo de democratización de las lenguas y espacios lingüísticos asumió formas diferentes de los bytes y asumió el formato impreso en dos cuadernos increíbles. Ese mes también realizamos la cobertura de la 15° Fiesta Literaria Internacional de Paraty, la Flip 2017. Al largo de la última semana nuestro correspondiente, el escritor y colaborador de la Philos, Thassio Ferreira, realizó una serie de entrevistas con grandes nombres de la literatura nacional. El proyecto Philos en la Flip contó con la participación de la escritora Conceição Evaristo y de los escritores Jacques Fux y Roy Frankel. Esa edición nos provoca a pensar sobre el universo conceptual que creamos hasta aquí: La Philos como espacio de convivencia y de reflexión. Los artes visuales que ilustran esta edición son trabajos experimentales de nuestros columnistas de la Imagerie - Casa de imágenes. Magda Fernandes y José Domingos presentan 26 composiciones fotográficas inéditas para la Revista Philos #18. En las palabras de los creadores: "A pesar de ser inédito, este trabajo nace como una prolongación de proyectos que tenemos viniendo a desarrollar y que giran a la vuelta​ de dos ejes que atraviesan todo nuestro discurso creativo - la memoria y la manipulación de la materia. De este modo, lo que hicimos fue una tentativa de los entrecruzar - concretizando el abstracto y haciendo abstracto el tangible. El puente entre las dos ideas-llave es hecha por una especie de arqueología digital, que nos permitió mirar para la materia de un nuevo punto de vista, aproximándonos de sus "células", descubriendo poéticas difíciles de leer a "ojo desnudo", mirando simultáneamente para el frente y para el verso, mezclando lo que era díspar, para encontrar nuevos significados." Deseamos una óptima lectura, Souza Pereira

EDITOR CHEFE | EDITOR EN JEFE

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SUMÁRIO | SUMARIO CONTOS | COLUNAS | ARTIGOS CUENTOS | COLUMNAS | ARTÍCULOS

8 Ao vencedor,

as batatas,

por YLS RABELO CÂMARA

11 Brad and Ray,

24 O espelho do cego,

por CARLOS

BARTH

por CAROL REIS

27 Colagem pós

16 Pássaro de verão,

por FÁBIO

MACIEL PINTO

20 O conto de

um nostálgico,

da

DAVID JUNIOR

e Artaud com seu corpo sem órgãos,

por CARLOS PESSOA ROSA

30 Fazedoras

de filhos fracassadas, por

MARCIO RUFINO

34 Um único tiro,

por RUBEM MAURO

37 Mestre de

obra,

por PAULO EMÍLIO AZEVÊDO

39 O que é um clássico?,

por

MUNIQUE DUARTE

42 Kurt Cobain, por CRISTINA GÁLVEZ

MARTOS

MACHADO

46 Anais Nïm: La amante del Mundo, por DIANA MONCADA

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Magda Fernandes & JosĂŠ Domingos


LITERATURA BRASILEIRA

ENSAIOS

Rotas da lusofonia

AO VENCEDOR, AS BATATAS por

Yls Rabelo Câmara1

Joaquim Maria Machado de Assis... mulato, neto de escravos alforriados; filho de um pintor de paredes igualmente mulato e de uma lavadeira açoriana, morta quando Machado tinha apenas dez anos de idade. Criado por uma madrasta incomum, ficou órfão de pai muito jovem; já havia perdido a única irmã, um ano mais nova do que ele, cinco anos antes. Era epilético, gago e, desnecessário dizer, pobre. Com essa origem de perdas dolorosas e de singularidades, quem haveria de imaginar que estava sendo gestada nele a verve literária de um dos maiores escritores brasileiros de todos os tempos? Aclamado como o expoente máximo de nossa literatura, e reconhecido como o introdutor do Realismo no Brasil, Machado de Assis foi o fundador e o primeiro presidente (unanimemente eleito) da Academia Brasileira de Letras. Poliglota e autodidata, foi bem sucedido em quase todos os gêneros literários de que dispomos e pelos quais enveredou-se; em outras palavras, foi romancista, poeta, dramaturgo, ensaísta, tradutor, folhetinista e contista, além de crítico literário. Contudo, não atuou somente na literatura; como jornalista, cobriu acontecimentos importantes da sociedade de sua época, em transição entre o Império e a República, e plasmou costumes e tradições em jornais como o Diário do Rio de Janeiro. Em seus momentos de ócio, dedicava-se ao xadrez; e foi um exímio e premiado enxadrista. Mais de cem anos depois de seu falecimento, ele continua a ser um marco em nossas letras e um exemplo de persistência, determinação e vitória. A literatura brasileira conheceu e conhece ícones do quilate de Lygia Fagundes Telles, Moreira Campos, Dinah Silveira de Queiroz, Mário de Andrade, Cecília Meireles, Jorge Amado, Lygia Bojunga, João Cabral de Melo Neto, Marina Colasanti, Domingos Olímpio, Clarice Lispector, Érico Veríssimo, Hilda Hilst, Gonçalves Dias, Cora Coralina, Mário de Andrade, Rachel de Queiroz, Ariano Suassuna, Adélia Prado, Capistrano de Abreu, Ana Maria Machado, Juvenal Galeno, Carolina de Jesus, Guimarães Rosa, Zélia Gattai, Carlos Drummond de Andrade, Lya Luft, Nelson Rodrigues, Pagu e Mário Quintana, somente para citar alguns dos mais conhecidos. No entanto, quando se trata de superação, de auto superação, um nome vem a lume: Machado de Assis – sem a menor intenção de se cometer injustiça para com os demais. Tamanho reconhecimento não veio em vão: Machado sempre buscou alimentar sua veia literária com as boas amizades que mantinha no meio fecundo dos literatas em formação. Entre esses, podemos citar alguns que foram contemporâneos seus: Manuel Antônio de

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“Ao vencedor, as batatas!”: breves palavras à guisa de panegírico acerca do maior expoente de nossas letras – Machado de Assis


Almeida, Joaquim Manuel de Macedo, Quintino Bocaiúva, Joaquim Nabuco, Rui Barbosa, Castro Alves, José de Alencar, José Veríssimo, Coelho Neto e Euclides da Cunha. Desde muito jovem, mesmo sem suficientes credenciais para isso, Machado inseriu-se no mundo das letras ao participar de tertúlias e saraus, e ao escrever e publicar seus primeiros trabalhos. Não tinha formação acadêmica; não teve meios econômicos para frequentar uma universidade; a educação formal que tivera veio-lhe através das escolas públicas que frequentou; mas sua inteligência, aliada à sua ambição de prosperar e à sua competência laboral, o fizeram galgar postos no serviço público e na imprensa. Foi em meio a seus amigos, a maioria formada por jovens escritores como os supracitados, que Machado conheceu Carolina Xavier, cinco anos mais velha do que ele, e irmã do já enfermo Faustino Xavier de Novaes, de quem ela viera cuidar. Culta e generosa, a nobre portuguesa, nascida no Porto, enxergou, naquele que viria a ser o amor de sua vida, o homem por trás das letras, o gênio enclausurado em um biótipo condenado às fímbrias da sociedade. Como Machado carecia de polimento acadêmico, foi Carolina quem lhe apresentou os clássicos da literatura portuguesa e de outras línguas. Além disso, corrigia seus textos e, muito provavelmente, influenciou sua escrita e o direcionamento de sua carreira literária. Estiveram casados por trinta e cinco anos, mas não tiveram filhos. Foi um casamento feliz até que ela faleceu, fato que o abalou profundamente e encurtou seus dias, quando ele passou a viver afogado em depressão e nostalgia cíclicas. Contudo, além de Carolina, de sua “Carola”, como ele a chamava na intimidade do lar, muitas foram as mulheres que lhe marcaram a vida e a nossa, por extensão: Helenas, Iaiás Garcia, Americanas e Ocidentais, Almas agradecidas... mulheres múltiplas que não temiam Brincar com fogo. Todas perfeitamente delineadas com capricho e desprovidas de desencantos pela Mão e a luva desse narrador nato e inquieto, em Papéis avulsos ou Contos fluminenses, em Poesias completas, enfim... várias histórias, Histórias da meia-noite, Histórias sem data, em Páginas recolhidas. Mesmo deprimido, Machado continuou escrevendo, dentro de suas possibilidades, até que uma úlcera bucal cancerosa e letal o levou aos sessenta e nove anos, com muita dor e sofrimento. Foi amplamente pranteado e homenageado no país e no exterior, fato que poucos literatas de sua época conseguiram. De seu lastro literário, legou-nos, dentre outros trabalhos: nove peças teatrais e nove romances, além de mais de seiscentas crônicas e cinco coletâneas de poemas e sonetos. Mais de um século após sua saída de cena, Machado de Assis continua tão presente no cenário literário brasileiro como se sua obra, cristalizada e imortalizada, fosse dirigida a uma plateia que não conhece os limites banais impostos pelo tempo. Os valores sociais mudam, as pessoas não; os problemas e conflitos são os mesmos, mas não o verniz que os cobre. Simão Bacamarte, se lhe fosse possível desprender-se das páginas de O Alienista, certamente internaria, na Casa Verde, aqueles que não reconhecem seu criador como a maior estrela na constelação de escritores nossos dos últimos cento e cinquenta anos. Joaquim Maria Machado de Assis merece o reconhecimento que logrou obter em vida e que se estende desde então. É motivo de orgulho para nós, brasileiros e brasileiras, contarmos entre os nossos grandes com o nome desse que foi um guerreiro, que conheceu a vitória, e que está entre os maiores nomes da Literatura Universal, ao lado de Camões, Cervantes, Shakespeare, Balzac e Dante. Ele foi a prova de que, por menos favorecido socialmente que seja alguém, se lhe sobrar força de vontade para mudar o seu destino, as teias de Cloto, Láquesis e Átropos poderão ajudá-lo nesse sentido. Como ele próprio cunhou em Memórias Póstumas de Brás Cubas, em 1881, e que hoje soa como um oráculo: “Ao vencedor, as batatas”! 9

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Yls Rabelo Câmara 1

(Fortaleza, 1972). Doutora em Filologia Inglesa pela Universidad de Santiago de Compostela.


Magda Fernandes & JosĂŠ Domingos


LITERATURA BRASILEIRA Rotas da lusofonia

BRAD AND RAY por

Carol Reis1

Há uns doze anos, quando Brad e Ray estavam explorando o espaço, encontraram um planeta muito parecido com o nosso. Muitas florestas, diversos rios, animais maravilhosos. Diziam até que, assim como a Terra, o planeta era formando por cerca de 70% água. Seria um ótimo lugar para descer e fazer contanto, pensou Ray. Brad foi meio contrário. Tinha medo dos nativos; sabe-se lá que tipo de pensamento tinham sobre nós terráqueos, isto é, se eles já sabiam que somos terráqueos ou o que é a Terra. Mas Ray, sempre em busca de aventuras, resolveu descer. A dupla procurou algum lugar com espaço para pouso. O espaço aéreo não parecia ter nenhum tipo de nave. Somente ao se aproximarem, puderam ver que os nativos usavam uma espécie de carro voador, semelhante aos nossos aviões atuais. Finalmente viram uma espécie de estacionamento com espaço suficiente para pararem a nave. Ao pousarem, perceberam que a população no chão se movimentava. Brad se preparou para lutar, mas Ray acreditava que eles não fariam nada demais, e estava certo. Os habitantes do planeta só olhavam para a nave com certa surpresa e curiosidade. Os dois terráqueos desceram e olharam bem os nativos. Eram também parecidos com os humanos; suas narinas e orelhas um pouco maiores e, de resto, havia espécies de peles em maior quantidade. Existiam alguns habitantes cor-de-rosa, laranjas, azuis, verdes; mas nenhum nas cores da variedade terrestre. As roupas eram também coloridas e pareciam diferentes para machos e fêmeas. Ray tentou fazer contato com uma fêmea azul que surpreendentemente sabia o inglês, o idioma dos dois rapazes, é claro. Ela informou que o planeta chamava-se Céffio, e que o ideal seria procurar o grande líder que vivia na capital do planeta. A fêmea céoffia chamou um grupo, que parecia uniformizado, e esse grupo fez contato com a capital, para aonde guiaram os terráqueos em seus carros voadores. Brad achou que o veículo era bem demorado, mas nada comentou. A capital era bonita, as pessoas andavam apressadas embaixo dos veículos. Havia muitos prédios com letreiros – numa escrita própria – o que indicava prédios públicos. Havia também alguns monumentos que pareciam não ter sentido algum. O prédio do governo era claramente um prédio do governo. Não combinava com nada a sua volta; era enorme, parecia ter custado muito mais do que os outros, e era brilhante. Muito brilhante.

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CONTOS


Logo se descobriu o nome do lugar: Palácio Brilhante (traduzido para a nossa língua). Ali, Brad e Ray foram levados ao encontro do governador, de nome Gewwerk. O líder era um pouco mais alto que os outros, tinha uma pele verde que combinava com os cabelos, também verdes, em tom mais escuro. Vestia-se, ao contrário da população, com uma só cor: branco. Parecia ser mais velho do que todos os habitantes vistos até então. Ele se antecipou e simpaticamente se apresentou: - Eu sou Gewwerk, governador de Céffio. Como vão vocês? De onde vocês vêm? Como podemos ajudá-los? Brad, empolgado com a boa recepção, estendeu a mão para cumprimentar o líder céffio, mas este lhe estendeu o nariz e lhe deu uma boa cafungada no cangote. Ray não conteve o riso. Os céffios presentes não compreenderam. Percebendo a gafe, Gewwerk pediu desculpa, informando que não conhecia os costumes dos dois visitantes, mas que pretendia conhecer, e sabia ser esse o desejo de toda a população do planeta. Ray percebeu a excelente oportunidade de conhecer um novo mundo, enquanto Brad pensava como receberiam glórias ao voltar. Assim, o governador organizou uma turnê para os dois, que deveriam conhecer várias regiões do planeta, essencialmente universidades, a fim de ensinar sobre a Terra e, quem sabe, aprender sobre Céffio. E assim, pelo menos, Brad ficou contente, pois, a cada parada, ele era recebido com as glórias que esperava de seu planeta. Mas, em nenhum momento procuravam aprender nada sobre os céffios, sempre falavam de seu povo. De seu incrível conhecimento bélico e tecnológico. Os céffios ficavam fascinados ao ouvir aquelas palavras e imaginar aquele mundo longínquo do qual nunca ouviram falar antes. Mais ou menos na décima parada, os dois cosmonautas foram recepcionados por um curioso ancião que era o reitor da Universidade de Klugh, uma das melhores do planeta, segundo diziam. Repararam logo a face que expressava sabedoria, e que, tal como o governador Gewwerk, o reitor se vestia de branco. Sua cor, contudo, era azul. Brad achou que ele tinha narinas maiores do que as dos outros. Simpático como todos os céffios, o reitor se apresentou. Chamava-se Griip e deu-lhes a famosa – e agora costumeira – fungada nos pescoços dos dois rapazes. Queria apresentar-lhes tudo na Universidade, da qual parecia ter muito orgulho. Trabalhava ali desde muito jovem, e esperava alguém para desenvolver um projeto de união interplanetária. Estava deveras empolgado. Resolveu então mostrar a parte da instituição, da que mais se orgulhava; uma criação sua, muito antiga, para guardar toda a sabedoria produzida pela população: a Sheei. A Sheei nada mais era do que uma sala cheia de papéis escritos e encadernados, guardados em estantes. Havia também algumas mesas, onde os céffios liam e cheiravam esses encadernados. - Existe uma Sheei em cada Universidade do planeta, mas foi uma invenção minha. Antes disso, o conhecimento ficava espalhado por aí. Agora, é só virmos aqui e consultar o que queremos da produção de outros, ou registro de velhos tempos – afirmou Griip, excitadíssimo. Brad deu uma enorme risada. Ray conteve o riso e disse que isso também existia na terra, e se chamava biblioteca. 12

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- Na terra, nem lemos mais em papel. Nossas Sheeis não têm mais muita função. Usamos uma coisa chamada tablet. Com o coração cheio de carinho que Ray tinha pelos céffios, tratou de contar como funcionava o tablet, os laptops e tudo que pudesse ser usado para ler sem utilizar papel. Insistiu, inclusive, que era um ganho para a questão ecológica, uma vez que a produção de folhas não seria mais necessária. Tudo isso fascinara Griip. Reuniu-se então na capital um grupo para modernização das Sheei. Griip, Gewwerk, Brand e Ray se envolveram no projeto. Uniram-se a eles dois cientistas que tentavam observar como aquela tecnologia supermoderna poderia ser utilizada por tão rústicos seres como os céffios. Assim pensavam os próprios céffios. Brad, sempre do contra, achou que aquilo atrapalharia seus planos de voltar para casa e, afinal, para que dar conhecimento para esses povos bárbaros? Enfim, Ray e Brad passaram quase um ano em Céffio. Ao fim do período, conseguiram patentear os novos equipamentos eletrônicos para guardar e produzir o conhecimento. Gwwerk, empolgado com a nova tecnologia, ordenou a destruição de todas as antigas Sheei e a criação das novas, agora totalmente tecnológicas. A inauguração seria na Sheei da Universidade de Klugh, onde Griip não podia conter a emoção pelos novos tempos de sabedoria que viriam. Houve festa, discursos felizes, discursos inflamados, discursos valorizando o futuro. Houve medalhas para Ray e Brad. Abraços e, é claro, fungadas. A população colorida entrava na nova Sheei animada e começava a mexer em seus equipamentos eletrônicos. Contudo, aos poucos, perceberam que não conseguiam compreender os textos escritos. Não que não conseguissem utilizar a tecnologia, que era facílima, mas simplesmente não conseguiam decodificar perfeitamente as mensagens. - Será uma questão de costume? – pensou Gwwerk. O semblante de Griip demonstrava pavor. Durante todo o processo, eles se esqueceram de algo muito importante: os céffios não liam somente com os olhos, mas também com as narinas. O reitor, cada vez mais desesperado, chamou os companheiros de lado e disse: - O que faremos? Todos os textos escritos foram destruídos. Sem instruções não saberemos nem como escrever de novo. - Talvez com apoio dos terráqueos... - disse Gwwerk. - Nossa missão foi cumprida, meus caros. Havia prometido dar-lhes tecnologia e a dei – disse Ray. - Eu não vejo a hora de ver os meus, sinto falta da minha terra! – disse Brad. O desespero tomou Gwwerk, mas Griip refletiu e resolveu trazer todos os anciões possíveis, aqueles que ainda tinham conhecimento de como ler e escrever, e tentariam produzir tudo de novo. Muitas coisas haviam se perdido, mas o que se há de fazer? Ray e Brad não conseguiam entender o motivo de tanta confusão. Eles que aprendessem a ler só com os olhos, ora! Meio ofendidos, resolveram que era hora de partir. Despediram-se dos céffios, sem muitas expressões de agradecimento. Juntaram suprimentos e partiram. Há uns cinco anos, outra missão chegara a Céffio. Os cosmonautas foram, como de praxe, bem recebidos. Porém, havia certa pobreza no ar. Os prédios da capital já não eram tão imponentes, e o Palácio Brilhante já não brilhava mais. 13

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Os anciões estavam lutando muito para botar as coisas em ordem, mas, devido à idade, morriam com o passar do tempo. Griip já havia falecido. Os terráqueos prometeram voltar para ajudar. Neste ano, finalmente, foi aprovado o plano de apoio aos céffios, e partirá um grupo de cientistas com uma enorme parafernália eletrônica. Vamos ver o que eles conseguem. Eu sou um deles, e não vejo a hora de começar o trabalho!

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Carol Reis

(Rio de Janeiro, 1980). Professora, Doutora em Literatura Comparada, membro de equipe da Superintendênci a de Desenvolviment o de Pessoas da Secretaria de Estado de Educação.


Magda Fernandes & JosĂŠ Domingos


LITERATURA BRASILEIRA Rotas da lusofonia

PÁSSARO DE VERÃO por

Fábio Maciel Pinto1

O costado; rocha preta e um tanto cinza em certas partes. O mar começa manso, liso e sólido; se aproxima, as ondas se erguem – prontas, sovam a face da pedra. A água sobe, os mariscos abrem as conchas e devoram qualquer coisa ínfima que flutua, ou vive, nas ondas. Gosto do salgado da ostra, do marisco… Bando de berbigões, siris e peixes – os sabores do mar e do verão. Chega um barquinho, mais para canoa; lança a rede e a puxa. Volta carregado para a areia, é tarde para pescas; sol alto no céu – poucas nuvens; vapores esparsos. As gaivotas observam abaixo, curiosas e esfomeadas, plainando nos ares quentes. Escolhemos, entre os frutos dos pescadores, o mais vivo e bonito; os frutos valentes e de olhos envidraçados – tarde, passando o sol e o dia, acompanham a cerveja e a gula dum tempo de moleza, de preguiça. À beira da água, lambendo a praia, os calcanhares cavam – os dedos, as mãos das crianças. Conchinhas em montículos; colares imaginários, brincos… Apito! Bebida, sorvete gelado. Ciciam; murmúrios… As pessoas, no lugar de onde vem o zumbido, levantam os corpos vermelhos, dourados; “Água, água”. Alguém se afoga, tombado pelas gostosas ondas; morte e sepultamento num mausoléu de mar quente de verão – que seja eterno! Imperatriz; coroada nas praias de luz cegante e areias douradas – biquíni mínimo, mínimas gorduras. A coroa; óculos de sol. Cetro; garrafa de cerveja. Porém, no horizonte, o sol – fraco, insustentável no topo do céu. Sol de inverno, baixo – roupas de frio; incômodas, pulguentas, emboloradas. Odores de naftalina. Uma mulher perfumada – à naftalina. Bota aos joelhos e, dentro, a meia, a calça e a ceroula – ridículo. “Ceroula…” – mal iniciado o dia; suja. Suada dentro das roupas pesadas. Pés e pernas lambuçadas de suor. Pior do que a sujeira; o frio. “Verão, praia, calor, minha pele de papel torrando igual torresminho; vermelha… insolação” – queria a insolação, como a um príncipe na infância. * Horinha – sonhasse mais, perdia o ritmo e o horário. Secretária… – carinha enjoada, bico vermelho “Falei que não usasse esse batom; impróprio demais…”, irritada. “Falta uma boa pi–” 16

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CONTOS


– A que horas ele desce, Sônia? – Meia, uma hora, talvez. Insisti; “Coma, não seja ingrato”! Da confeitaria que gosta; o café do jeito e da origem que gosta… …Comeu forçado; ausente a gula. Estava vidrado; olhava através da vidraça, não abriu as abas da janela, mas atentava ao que acontece lá embaixo – perguntou se comi, também, um pedacinho; – Não; sem vontade. Sônia entrecerrou as pálpebras, deixou cair bobo os braços. – Também; foge-me o apetite. É contágio? – Troque sabores e confeitaria; talvez cresça desejo. – Melhor; está melhor… Logo desce – assentou-se à sua mesa; breve, trouxe para si xícara e fatia. Admirava, apenas; nem nos pensamentos os tocava. * Chegaram e partiram, aos pares, ou solitários; clientes, advogados, contadores, contínuos. Espécies diversas de gentes. Estranhavam, às vezes, a ausência do Doutor; perguntavam e, muitas vezes, não se satisfaziam. Mas, minha letra, por procuração, valia tal como se fosse a dele – uns rabiscos e carimbos e encaminhava-os à rua. O último, um aprendiz doutros escritórios, trouxe consigo uma encomenda – pedi que a mim entregasse e, a ele, para sua dispensa e garantia, assinaria o recibo. Disse-me “Não! ordenaram que entregasse em mãos”; era uma hora antes da metade do dia. Cedi-lhe a poltrona; “À vontade; se quer, espere” – talvez o conhecesse, algo me diz, sussurrando nos ouvidos. Penso tê-lo visto na casa de alguém; do próprio chefe do nosso escritório, encarregado nas obrigações do jardim, sob as ordens da esposa. Penso nele, podando arbustos, rastelando gramas. O pacote; algo, recordação daquelas flores – a esposa, desquitada, envia uma lembrança; amarga a ela, às vezes doce a ele. Ou azeda a ambos. Perguntaria de qual dia, na casa, o conhecia; dormia, então. Sônia saíra; xícara e fatia intocadas. Saía, também, e vi que dormia inclinado, troncho, na poltrona. – Volta depois –safanão para acordar –; sai almoçar, é meio-dia. –Não! Mandaram ficar até entregar. * Tenho me alimentado de pouco; saladas espetadas com a ponta do garfo, roladas de borda a borda do prato. O apetite não abre – aperto as unhas das mãos; amarelão de anemia. A vontade de comer fugia desde aqueles dias; mas, trouxe dois pratos. Sobrepostos, enrolados num pano, o calor que emanava umedecia o pano e o cheiro fazia salivar as bocas – não a minha. – Sônia? – mesa vazia; não havia retornado. À poltrona, estirado, fechado na mudez de quem descansa; dorme sossegado abraçado à encomenda que não pode entregar, exceto ao destinatário. Rodopiei os pratos, segurando-os no nó do pano; despertá-lo com os odores de alhos e cebolas, salsinhas e manjericões – dormia e só. Ao menos roncar; não se mexia, nem se movia, que seja, para babar. “Dorme assim, tão pesado; a fome não vexa” – e subi, tomando o elevador. Passando pelas fileiras de arquivos e caixas, me identifiquei: – A hora, ou meia, já passou; o endereço do escritório mudou? Veio cá pra esse andar? – estava à janela; luzes apagadas. As sequências de estantes, caixas de arquivos do chão ao teto, impediam a luz natural – da 17

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janela o único faixo luminosidade, atravessando a crosta de pó dos vidros. E um odor, diferente do conteúdo dos meus pratos; sujeira. Suor, sebo; faltava-lhe um banho. A mim, incrédulo, encarou. Havia um olhar de quem constatava que algo, longe de ser humano, diante de si se materializava. Senti que nele crescia algo, pálido; arrepios. – Trouxe algo de comer; é hora de almoçar. Não vai descer? – Que bom! Deixe aqui do lado! –juntou duas, três caixas de papelão que fez de mesinha–. Desço logo. O que é que me trouxe? – ao lado, noutra mesinha, a fatia da manhã, machucada por uma garfada mal dada; doutro ao lado, outra fatia, mofada; e outra, mal garfada. – É… um pouco de tudo – ajoelhou e, diante das caixas, empenhou-se em abrir os pratos. – Desça, já! Quero descansar. Afinal, é hora de almoço – as cebolas, os alhos; às baratas. Só uma garfada de enganar. –Meia hora, ou uma? – confirmou, balançando a cabeça. * – Ele desce, dona? – vozinha fina; afinava. Ouvi desde detrás da minha escrivaninha. Sônia balbuciava algo entre não e nunca e coçava os olhos; narigão úmido, escorrendo. Chegava, abria as portas, esquentava a água para o café e descia comprar os desjejuns; primeira e última no escritório. Quando chegava, o patrão, Sônia exibia salas impecáveis; fartos pães, bolos e tortas – peito inflado, os seios se avolumavam, orgulhosos; “Bom dia, doutor, bem-vindo”! Desde duas horas antes, bom, o dia de Sônia começara. A Dona, às vezes, aparecia – normal; após as nove. Pedia um favor, via o marido enfurnado detrás da escrivaninha; rubricava, assinava, peticionava. “Táxi, Sônia, por favor”! antes de sair, oferecia-lhe licor, taça de vinho, um bíter se precisasse de digestivo. Na surdina, imperceptível, invadia o escritório e acariciava os cabelos do marido; imperceptível, tudo. As garrafas esvaziaram. Repostas; desapareceram – desistimos das garrafas. A Dona visitava, com menos frequência. Os táxis deixaram de nos visitar; esqueceram-nos – nem as buzinadinhas: “Oi, entra! pode deixar que essa corrida é pela amizade!” Desconheço, hoje, os taxistas da cidade. “O Doutor, não sei, acho que está chegando antes de mim”; disse-me, certa vez. Sônia, concluiu depois que ele, talvez, sequer teria deixado o escritório. Tornou-se visita nas salas; no nosso andar. – São quase dezoito –mostrei-lhe o meu relógio de pulso, presente de cinco anos de empresa–; acho que hoje não desce. Suspirou; perdia a voz aos poucos. Antes, menino de voz grossa e formal; fingida. Agora; mais como um menino. –Volto amanhã… –Pode deixar o pacote, não vamos espiar; diga à dona Marcela – dei fé; beijei duas vezes os indicadores cruzados. Concordou; gostaria de deixar. Partiu; fui à janela ver se podia identificá-lo no formigueiro da praça quando saísse do edifício – paravam; as formigas apontavam para a nossa face de janelas e continham as perninhas nervosas. Silvado agudo, como das bombas nos filmes, e o baque que repercutiu e atraiu as formigas, curiosas; caíra sobre a banca de jornais. Vermelho; escorria do teto esmagado à calçada. Frio mais cortante que nunca. Longe; vinha a sirena a silvar também.

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1Fábio

Maciel Pinto (Curitiba, 1984). É um quase escritor. O resto é desimportante.


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LITERATURA BRASILEIRA Rotas da lusofonia

O CONTO DE UM NOSTÁLGICO por

David Junior1

Tinha muito que fazer naquele dia, mas pesava-lhe a cabeça. Possuía ainda um daqueles relógios digitais com alarme, e lembrava-se bem dele, ali, sobre o criado-mudo, ao lado esquerdo da casa, seu espaço. Abriu os olhos e agradou-lhe, de forma despercebida, ver que ali estava o tal relógio, bem como lhe ocorria na lembrança; mas, naquele momento, indicando as cinco e meia da manhã daquela terça-feira. Sabia bem que lhe restavam mais trinta minutos para dormir e descansar, mas o tormento de não ter à memória a lembrança do que tinha por fazer lhe incomodava. “Talvez a Sabrina, minha filha, possa me refrescar as ideias”. Mas não! Tereza era a sua filha. Ou melhor, talvez ambas fossem. Deixou-se a si mesmo assim, na confusão. E dormiu. Mas o alarme do relógio, diferente dele, lembrava-se de sua programação: despertou às seis, com grandes números reluzentes em alto e bom som, indicando na parte inferior de seu display a data, 23 de dezembro de 2014. Teve novamente aquela sensação de alegria perante o relógio, sem se recordar que há tão pouco já a tivera naquela manhã. Desativou o alarme, que incomodava na continuidade de seus bipes. Foi ao banho e ali se demorou. Sua idade lhe permitia essa morosidade sem dever explicações. E esse dia, tão curto, assim foi. Foi-se assim. Relógio e banho. Nada. Nada mais. Tinha muito que fazer naquele dia, 24 de dezembro de 2014, quarta-feira. Precisava comprar os presentes para sua filha, Sabrina, e para seu neto, Juninho. Arrependia-se sempre por deixar essas coisas para a última hora, mas era assim que o Natal ganhava certa graça, com a correria e a incerteza de encontrar algo que agradasse cada membro da família. Família, então, pequena, bem sabia. Eram ele, a filha, o neto e o genro, Arthur. Sim, tinha também de comprar algo de bom gosto para o genro, bom rapaz! Era atencioso, paciente e trabalhador. A filha fora bem encaminhada, e isso lhe trazia boas sensações de paternidade cumprida. Foi à pequena cozinha, café já à mesa, 7:15: - Bom dia, minha filha! - Oi, pai. Bom dia! Demorou no banho hoje, hein!? - Ah, a água tava muito boa… e preciso estar bem desperto hoje. Vou ao shopping… - Papai, eu já disse que não precisa comprar presentes! Todo ano você gasta muito dinheiro com isso. Não precisa! Vamos só fazer uma ceia bem gostosa hoje, depois assistimos ao filme que o Arthurzinho me pediu para alugar e… - Filha, falando nele… posso levar o Juninho comigo? Este ano ele já pode escolher o presente!

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CONTOS


– Papai!!! – Ah, minha filha… na minha idade já não há muito que nos agrade. Mas a satisfação de agradar a quem amamos conforta… – Ô, pai… tudo bem!… mas para de falar essas coisas, não quero chorar!… O pai bem sabia que Sabrina ficava emotiva nessas datas. Caía-lhe com muito peso a saudade da mãe, morta há cinco anos. Instalara-se no peito daquela senhora a tristeza, e disso morreu. É difícil compreender o cérebro de gente idosa – são muito carregados. o que lhes dizer das almas? Cansou-se do silêncio saudoso à mesa. O senhor de cabeça rala, então, gritou: – Juninho, meu neto! Coloque o seu boné, pois você vai comigo ao shopping! Cof! Este ano vou deixar você escolher seu presente. – virou-se para a filha – Vou aguardá-lo na portaria, peça que não se demore! Um beijo, filha. Nos vemos à tarde! Beijou o rosto da filha e saiu. Juninho logo desceu. Afinal, era ele o motorista. A ceia foi linda! Apenas as etiquetas nos presentes entregues pelo ancião é que eram estranhas, mas ele sempre fora divertido. Tocaram os sinos, todos agradeceram pelo banquete, Jesus na manjedoura chorou e depois sorriu. Arthur, o genro, ébrio de cidra, cantava junto ao filho, também bêbado, todos os cânticos natalinos. Juninho, por sinal, havia ganhado um boné novo do avô. Na sala do apartamento, ficaram todos os quatro, e ali dormiram. Papai Noel, confuso que é, não lhes trouxe presentes, mas sim o passado. … Acordou assustado, com o lençol encharcado de urina. Aos berros, chamou pela mãe, já preparado para as broncas pelo incidente: – Mãããeee!!! Manhêêê!!! – gritava à espera de dona Hermínia, que viria com aquela cara amassada de sono, abriria com rapidez a porta do quarto e diria com a voz maternal rouca: “O que houve, meu filho?”. Estranhou-lhe a moça que entrou aflita, logo pousando as mãos em seu rosto e dizendo: – Calma, papai!… calma!… foi um pesadelo. Ssshhh Um rapaz, de seus vinte e poucos anos, e desenhos nos braços, ajudou-lhe no banho. Era cuidadoso e paciente. Talvez fosse seu pai, José. Mas o rosto não se familiarizava com a memória. Fosse o que fosse, sentiu por ele gratidão. Aquele mês de fevereiro vinha sendo confuso. O rapaz o encaminhou novamente à cama, cujos lençóis já haviam sido trocados e cujo colchão já havia sido virado pela boa moça. O rapaz o deitou na cama. Os dois se encararam por alguns segundos. A comoção nos olhos do jovem comoviam aquele senhor, mas ele não entendia tudo aquilo. O gentil e jovem homem tinha os olhos marejados, e quando uma lágrima fez-se por escorrer em seu rosto, secou-as com as costas das mãos e beijou a testa daquele senhor, dizendo: – Volte a dormir, vovô! Foi só um susto. A caminha já está arrumada… já está tudo bem. Sentimentos estranhos… emoções complexas. Doía-lhe o peito e a cabeça. Era mesmo melhor o sono! … Acordou bem disposto naquele dia. O relógio ao lado da cama lhe agradava. Era-lhe familiar! Marcava: 1º de maio de 2015. Ora, feriado nacional! Queria logo ir à cozinha, pois tinha muito a contar sobre o que sabia da história por detrás do dia do trabalho. Juninho, seu neto de dez anos – sabia ele -, adorava ouvir a sua sabedoria. A mãe do pequeno, sua filha Tereza, é que lhe parecia triste nos últimos dias. Mas o velho homem sabia também que ela logo se animaria. Afinal, ir à praia é um ótimo antidepressivo! Saíram de Sorocaba perto das nove da manhã, rumo ao Guarujá – lindo lugar, mas também perigoso! 21

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Estrada carregada, carros nunca antes vistos. Quatro horas de viagem. A sua sorte era que seu genro, Rodrigo, era muito responsável ao volante. Já na praia, não é que quase se afoga o senhorzinho? … Despertou às quatro da madrugada. Sabia disso, pois um relógio estranho ao lado esquerdo da cama lhe dizia. A escuridão da madrugada lhe trouxe a lembrança da morte da filha caçula, o que o atormentou e entristeceu. Pobre casal, ela e o marido – tão jovens! Triste acidente de carro no feriado de 1º de maio do ano de 2001. Terça-feira. Estavam retornando de Santa Catarina. Viagem de casal. Choque com outro carro cujo motorista estava bêbado. Detalhes… Saudoso, ao escuro dizia: “Que saudades de você, Tereza, minha filha!… Que Deus tenha reservado um bom lugar para você e seu marido, pobre Rodrigo! … ah, que dor me dói!!!”. Aos prantos, fez uma oração. E dormiu. Única noite realmente fria do mês de junho daquele ano. … Sábado. O mês era agosto. Tinha coisas por fazer, mas não se lembrava ao certo. As pernas também não obedeciam bem. Os braços preguiçosos. Mas sentia-se jovem. Algo, no entanto, lhe pesava na cabeça, um mal não tão comum aos jovens. Era como se a moral de sua própria história fosse amoral. Mas era jovem!… Iria à Capital com o Grupo Escolar. Sim, era isso! Dona Hermínia certamente havia preparado um lanchinho de pão e sardinha para ele e para os irmãos levarem na excursão a São Paulo dos trens de ferro. É tão bom sentir-se filho! … Dia dos pais. Era pobre e não podia dar presentes ao pai, José. Mas o bom José se agradava com os abraços dos sete filhos, quatro fortes meninos e três lindas princesas. Ele e os irmãos, portanto, dariam um forte abraço coletivo no pai. Mas aquele relógio reluzente dizia que eram ainda 2:15 da madrugada. Tudo muito estranho, mas o sono é sempre maior. “Já sei, escreverei uma carta para o papai” – pensou. “Sim, uma carta! E embaixo vou assinar: com todo o amor do mundo, para o melhor pai do universo, assinado…”, …, mas havia se esquecido do próprio nome. Dormiu. Ao menos, o ato de dormir não nos cobra lembranças. Compensam-lhes os sonhos. Tantos esquecimentos!… Dia dos pais, oito de agosto de 2015. Tinha muito que fazer naquele dia. E alguns presentes a ganhar de sua família. O relógio, que não tem memória, mas se lembra, despertou às seis. Porém o homem, idoso e já tão criança, de tantas lembranças que lhe pulsavam na mente, naquele dia, esqueceu-se de acordar.

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David Edson de Camargo Junior 1

(Votorantim, 1989). Professor e poeta publicado em diversas antologias e vencedor de prêmios literários da região de Sorocaba, São Paulo.


Magda Fernandes & JosĂŠ Domingos


LITERATURA BRASILEIRA Rotas da lusofonia

O ESPELHO DO CEGO por

Carlos Barth1

Certo dia, apareceu um cego na Barra de Tramandaí. Não se sabia de onde vinha ou se tinha parentes vivos; até porque qualquer menção às palavras família ou terra natal o levava às lágrimas. A descoberta de que os cegos também choram foi a primeira grande quebra de paradigma na minha vida, que contava na época com oito anos de idade. Mesmo assim, ainda estava em vantagem sobre minha irmã. Ela acreditava que os cegos, quando usavam óculos escuros, enxergavam. Concordaram os populares que era melhor deixar em paz o pobre cego. Já não bastava o sofrimento de não enxergar, não era de bom tom ficar inquirindo o moço sobre um passado possivelmente triste. Tenhamos compaixão! Olhem a cara desse rapaz! Traz estampado no rosto as marcas, digamos assim, de quem já fora muito castigado pelas intempéries da vida. Envelhecido como um bom uísque, mentiam tentando aplacar o sofrimento do pobre infeliz. A única informação dada por ele é a de que a cegueira interrompera uma promissora carreira como atacante no Aimoré de São Leopoldo. “Me comparavam ao Escurinho, do Internacional. Aí veio a cegueira, do nada...”, chorava o cego. Que lástima! Poderia ter ido jogar em algum time grande. Quiçá ser convocado para a seleção brasileira! Sabiamente, o cego havia batido na porta de gente humilde. Se tivesse pedido ajuda à gente de posses, seria escorraçado ou recolhido à cadeia por vadiagem. Curiosamente, riqueza e solidariedade costumam serem medidas inversamente proporcionais. Entre os humildes, não faltou quem se compadecesse do rapaz. “Por hora, dorme na minha casa”, prontamente alguém disse. “Depois, construímos um barraco para ele” emendou outro. Foi algo bonito de se ver o empenho da comunidade para ajudá-lo. Foi daquelas experiências que nos fazem ter fé na humanidade. Com a ajuda de todos, foi construído um barraco em meio às dunas, na beira mar. Terra de propriedade da Marinha, necessário registrar. Mas em meio a tantos posseiros, um a mais ou a menos não fazia a menor diferença. Os poucos móveis foram doados pelos vizinhos. E lá o rapaz passou a levar sua vida espartana. Sem luxo algum, mas era o máximo que aquela gente poderia fazer por ele. Além disso, dizem as más línguas, não faltava uma ou outra moça da comunidade que o fizesse companhia nas noites mais frias. O cego foi completamente integrado à comunidade. Sempre filando um café aqui, um almoço lá. Pendurava os artigos de necessidade básica - cachaça e cigarro - no armazém de Seu Manoel. Prometia pagar quando saísse sua aposentadoria por invalidez no INSS. “O advogado falou que ainda este ano sai, Seu Manoel. Aí lhe pago tudo que devo.”, prometia. “Sem problemas.”, respondia o dono do botequim, sem muitas esperanças de algum dia ver esse dinheiro. O inverno veio, e com ele o temido vento minuano. O barraco, apesar de ter sido constru24

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CONTOS


ído com toda a boa vontade, carecia dos requisitos mínimos de engenharia. Cálculo estrutural? Alicerce? Nem pensar! Durante uma noite de tempestade, a rústica morada não resistiu ao vento e ruiu tal qual um castelo de cartas. Com os primeiros raios do sol, correu pela vizinhança a notícia. Todos correram para acudir. Lembro-me de ter chegado ao alto da duna, em meio aos escombros, e ter encontrado todos constrangidos por algum motivo. O morador do barraco não estava. Havia ido embora, deixando para trás o pouco que tinha. Olhando os pertences do cego, com a inocência que só as crianças têm, fui eu quem falou o que todos queriam dizer, mas não tinham coragem: - Para que um cego precisa de espelho? Foi a senha para uma explosão de fúria. “Safado! Farsante!”, gritavam os populares. “Abusou de nossa confiança aquele sem vergonha!”. Eu, que já havia aprendido que os cegos também choram, ainda levei muito tempo pensando se era possível ao cego se enxergar no espelho. Do suposto deficiente visual, nunca mais se soube. Provavelmente rumou de madrugada mesmo para a rodoviária e partiu para ser cego em algum outro lugar.

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Carlos Barth

(Rio Grande do Sul, 1979). Engenheiro de profissão, é apaixonado por Literatura e escreve por prazer.


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LITERATURA BRASILEIRA

EXPERIM.

Rotas da lusofonia

COLAGEM PÓS E ARTAUD COM SEU CORPO SEM ÓRGÃOS Carlos Pessoa Rosa por

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A pós-modernidade tem como principal característica a crise das grandes narrativas e um desencantamento com a ideia de um futuro melhor, levando o homem a viver um presente possível, dentro de sua efemeridade. No dia 28 de novembro de 1947, Artaud, ao declarar guerra aos órgãos, percebia e intuía haver chegado a hora de libertar o corpo de uma anatomia clássica, levando-o a uma experimentação extrema e, por vezes, insana; abrindo a possibilidade de re(de)senhar um corpo sem órgãos, aberto ao infinito. As explicações durante a modernidade, sobre o mundo, a história, a vida e o futuro, foram em grande parte influenciadas pelo marxismo, cristianismo e o iluminismo, cujo objetivo era levar o homem ao conhecimento na direção da construção de um mundo baseado na razão e na universalização de seu próprio Deus. Renunciar ao fígado que deixa a pele amarela, ao intestino que expulsa o lixo, a esse organismo construído durante a modernidade, e retomar um corpo sem órgãos, livre do juízo e perseguição de Deus, da sedimentação que lhe impõem formas, funções, ligações, organizações dominantes e hierarquizadas e transcendências, cujo objetivo seria unicamente extrair um trabalho útil, agora passa a ser uma necessidade cada vez maior do homem. A existência de um real-realmente-real, colocado de forma totalitária a outrem, através da estruturação de grandes narrativas, que oferece um projeto utópico de futuro, começa a ser questionada. O corpo sem órgãos, antes organizado, significante e significado, intérprete e interpretado, sujeito, começa a experimentar o desviante, o depravado e o vagabundo, antes mantido na marginalidade ou na invisibilidade. Logicamente, desfazer o organismo supõe agenciamentos, circuitos, conjunções, superposições e limiares, passagens e distribuições de intensidade, territórios e desterritorializações. Questões que as artes, diante da incerteza das grandes narrativas, de um modo geral, começam a tocar, mergulhando no que nos resta: um presente a ser modificado, experimentado e vivido, independentemente de bom ou ruim. É chegada a hora de experimentar a insânia, paranoica, esquizofrênica, masoquista e drogadida, de repensar o corpo onde únicos orifícios são cu e boca, alimenta e defeca, costurar os olhos, o ânus; necessário não enxergar e não respirar, caminhar com a cabeça, cantar com o sinus, ver com a pele. Onde a psicanálise diz Encontre seu Eu, necessário des27

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desconstruí-lo, substituir anamnese pelo esquecimento, a interpretação pela experimentação, ir ao encontro dos Eus, corpo sem órgãos, essa é a questão de vida ou morte, juventude ou velhice, tristeza ou alegria, é onde tudo se decide. A pós-modernidade não busca qualquer utopia, nem deseja legitimar qualquer ordem, ela é o próprio exercício de uma insânia baseada no descrédito e no ceticismo direcionado contra esse “real” destituído de todos os seus fantasmas, e que criou a ideia de um mundo ideal a partir de uma higienização dos devaneios humanos e na exclusão de parcela da sociedade. Logicamente, essa perda de uma referência utópica e o movimento do sujeito para si-próprio, em um momento de grande urbanização e acentuação do poder através dos instrumentos de comunicação e do dinheiro, produzem assimetrias profundas na sociedade, geradoras de conflitos individuais e coletivos. Para Lyotard, a queda das grandes narrativas abre a possibilidade de lidar com a incerteza, com aquilo que não está garantido. É esse território de incerteza e desconstrução que as artes passam a explorar, seja através de uma angular na direção da realidade como ela realmente é, seja através do exercício minimalista ou barroco dessa mesma realidade, trazendo à tona personagens, práticas e desejos, antes, fantasmas mantidos na invisibilidade e atuando em guetos, ou através de uma releitura de sua própria prática. Cabe às artes responder para cada corpo: qual tipo? Como é fabricado? O que prenuncia? Que coisas inesperadas traz? Sempre haverá uma relação muito particular de síntese e análise para cada corpo, produção infinita. São passagens, subprodutos, nada de estagnação. Necessário honrar o demente; o corpo é tão-somente um conjunto de válvulas, represas, comportas, taças ou vasos comunicantes, um nome próprio para cada um, o que povoa, o que passa e o que bloqueia? Um corpo feito de intensidades, por onde elas passam e se distribuem, um corpo não-espaço e sem estar no espaço, matéria intensidade a ocupar o espaço... Desfazer o organismo nunca foi matar-se, mas, abrir o corpo a conexões; cabe ao artista arrancar a consciência do sujeito para fazer dela um meio de exploração; arrancar o inconsciente da significância e da interpretação para fazer dele uma verdadeira produção. Para isso, se faz necessário guardar o suficiente do organismo para que ele se recomponha a cada aurora, ter pequenas provisões de significância e de interpretação, também de subjetividade, com prudência, a arte em doses e consciente do perigo da overdose, nada de pancadas de martelo, mas o uso de uma lima fina. Existe uma convergência fundamental entre a ciência e o mito, a embriologia e a mitologia, entre o ovo biológico e o ovo psíquico ou cósmico; cabe ao artista drogar-se sem droga, embriagar-se com água pura para abrir-se a esse corpo sem órgãos.

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Carlos Pessoa Rosa 1

(Brasil, 1949). Escritor e ensaísta vencedor do prêmio MEC Literatura para Todos (2010) e do Prêmio UBECEPE (1998). Publicou pela Pequeño Editor (Argentina), pelo Coletivo Dulcineia Catadora (Brasil) e na Amazon.com. Editor do www.meiotom.a rt.br.


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LITERATURA BRASILEIRA Rotas da lusofonia

FAZEDORAS DE FILHOS FRACASSADAS por

Marcio Rufino1

Kátia estava triste a passar roupa. Pensava na vida como que pisando em cacos de vidro, e obrigada a engolir em seco o choro de dor. Sua fome de vida estava lhe trazendo consequências desagradáveis, dolorosas. Mãe de três filhos; cada um de um relacionamento diferente; e grávida do quarto. Após várias aventuras amorosas, voltava a viver sob a hospitalidade da amiga Noêmia, que já a havia acolhido antes, na gravidez do primeiro filho, em sua casa, na rua Aguapeí, bairro Piam, em Belford Roxo. Kátia sempre fora muito afoita em tudo. Muitos homens, entre adolescentes, rapazes, e até mesmo alguns senhores casados de todas as cores, idades, pesos e alturas já haviam sentido, na pele do corpo inteiro, sua ânsia por prazer intenso em fugidas, pegações, ficadas, noitadas e orgias: entre uma batida de funk e uma roda de pagode; entre um copo de cerveja e um cálice de vinho; entre um e outro tapinha num cigarrinho de maconha. Mas, como tudo tem seu preço, quando o cuidado não faz parte da rotina de um ser-humano, ela agora está ali... sem trabalho, sem homem. Respirando o que não queria; comendo o que não queria; ouvindo o que não queria. Noêmia teve que fugir de casa aos dezessete anos, por causa da irmã mais velha, que queria rasgar seu rosto com gilete, invejosa de sua beleza. Mas conheceu um homem bom e remediado que se casou com ela, e lhe deu um nome, um lar e uma filha. Só que, em seu casamento, faltou o amor e uma pitada de paixão; e com isso Noêmia, numa bela tarde, se descobriu traída pelo marido. Revoltada, se separou, pondoo para fora de casa. Então passou a aturar cobranças não só dos credores, já que o ex não lhe ajudava em um centavo, mas também do atual namorado que exigia uma relação mais séria; e da filha adolescente, que crescia exigindo a presença do pai dentro de casa. Tudo isso, além de criar o filho mais velho de Kátia. Kátia e Noêmia agora estavam ali, passando roupa naquela casa velha que precisa de uma reforma. Com o telhado quase caindo em suas cabeças. Ouve-se um barulho de portão se abrindo; passos pela varanda. A porta se abre e, naquela sala quente, entra Verônica, comadre de Noêmia, acompanhada de seu jovem filho Marcelo, afilhado de Noêmia. O papo corre solto e animado até que Verônica fala da excunhada Edilene. Outrora, Noêmia havia tomado conta de Miltinho, filho de Edilene, sobrinho de Verônica. - Hum! Essa aí se deu bem, minha filha! - dizia Verônica com sarcasmo e um pinguinho de inveja. Tá com seis filhos. Cada um de um homem diferente. Botou todos na justiça, e hoje recebe pensão dos seis. Agora tá morando num casarão em 30

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CONTOS


Miguel Couto. A mordomia da nega é tanta que os filhos levam o café da manhã pra ela na cama. E você pensa que é café e pão com manteiga? Nada disso! É suco, frutas, queijo, presunto, geleia... tudo na bandeja. Ao ouvir aquilo, Noêmia deu um tapa no braço de Kátia que, da sala a outra, quase foi parar na cozinha. - Tá vendo Kátia? - perguntava a anfitriã numa fúria intolerante. - Tá vendo, sua fazedora de filho fracassada? Mulher que quer ser piranha tem que ser piranha esperta. Piranha burra fica é pastando pela casa dos outros, igual a você. Mulher burra tem mais é que tomar no c... pra deixar de ter o grelo no lugar do cérebro. Marcelo caiu na gargalhada, dada a teatralidade histrionicamente humilhadora do esbravejar da madrinha. Constrangida, Verônica começou a beliscar discretamente o filho para que parasse com as risadas. – Deixe-o rir, Verônica! determinou Noêmia ao notar o embaraço da comadre. - Pode rir, Marcelo! Você está na minha casa. Ao perceber a lágrima invisível que rolava no rosto de Kátia, Marcelo cessou o riso e, sentindo-se culpado, quase despencou da gargalhada escrachadamente histérica para o choro desesperadoramente comovido. - Bom! Eu já vou - disse Verônica, levantando e puxando Marcelo pelo braço. - Foi só uma visitinha rápida. Ao sair pelo portão, Verônica assumiu uma aura de tristeza e indignação repreensiva. Noêmia não deveria tratar a moça dessa forma. - Disse ao filho, num monólogo inconsciente: ela se esquece de tudo que viveu. Ela se esquece de que tem uma filha mulher dentro de casa. Verônica andava pela rua com o olhar parado; misteriosamente distante como o olhar sedutoramente longínquo de uma mulher do Oriente. Marcelo, olhando-a, parecia assistir ao filme invisível que passava diante das vistas austeramente melancólicas da mãe através de suas lembranças. De quando ela ajudou Noêmia a fugir da irmã. Nesse filme, a protagonista era a própria Verônica, e as cenas eram dolorosamente cults. Seu pai proibindo-a de continuar seus estudos, ainda menina, para ajudar a mãe a cuidar da casa e tomar conta dos irmãos menores, já que ela era a mais velha de todos. As madrugadas em claro, tendo que embalar o sono dos irmãos, e tendo que esquentar o leite, já que a mãe tinha que atender aos apelos grosseiramente amorosos do pai na fabricação de mais irmãozinhos. Os gritos dos irmãos e o roncar da cama dos pais eram a trilha sonora da infância daquela mulher, somada ao medo de dormir no meio da tarefa, e ser despertada por uma surra de moer os ossos. Na pausa para o intervalo, em frente à banca de jornal, lê na capa de revista de celebridades sobre a famosa socialite da zona sul, que acordou numa luxuosíssima cobertura em Paris, ao som de uma orquestra de violinos, na manhã seguinte à noite em que dissera ao marido, um poderoso empresário, que estava grávida. Isso a remeteu a alguns anos atrás, num quartinho imundo e abafado do bairro Areia Brancos, quando o até então namorado, Joaquim, arremessou um punhado de dinheiro em sua face para que fizesse o aborto ao saber de sua gravidez; e ela, desobedecendo-o e tendo o filho, precisou abandonar o emprego de enfermeira, dois anos depois, para se dedicar integralmente ao pequeno Marcelo, mediante as ameaças de abandonar o lar, do já marido Joaquim. A capa da revista remeteu-a também à casa dos pais, de onde foi expulsa, aos bofetões, pelo pai que não queria uma filha mãe solteira dentro de casa. Ela teve de se abrigar na casa da amiga Agripina, também grávida; e que mais tarde seria a mãe de leite de Marcelo. É, se Eva soubesse que a conta que teria de pagar fosse tão alta, por ter dado o maldito fruto para Adão comer, teria ela comido a própria serpente assada! Ao passar em frente à padaria, lembrou que tinha de comprar pão. Quando chegou ao guichê, uma voz, melancolicamente doce, chegou ao seu ouvido como o canto de um anjo: - Moça, compra 31

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uns doce pra me ajudá a dá de comer pros meus fio! É baratinho! Uma bela, mas suja, esfarrapada e maltrapilha jovem negra lhe oferecia uma caixa de bananadas. Duas crianças pequenas e um bebê ao colo choravam ensurdecedoramente de fome. Os olhos da jovem e das crianças, inchados pela violência, desamparo e desesperança eram vários punhais pontiagudos cravados no peito de Verônica.

Marcio Rufino (São 1

João de Meriti, 1973). Escritor, poeta, ator e performer. É autor dos livros de poesia Doces

Versos da paixão e Emaranhado, além do blog

Emaranhado Rufiniano. Teve um de seus poemas selecionado para participar da exposição Poesia Agora.

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LITERATURA BRASILEIRA Rotas da lusofonia

UM ÚNICO TIRO por

Rubem Mauro Machado1

O legionário Manlio empurra a grossa porta ogival, que range pesada nos batentes. O prisioneiro está agachado num canto da cela. Com pedaço de carvão traçou na parede o desenho de um peixe, símbolo dos cristãos. Ali parado, apoiado na lança, Manlio nada diz e Amos compreende. Ergue-se devagar, um misto de medo e estranha determinação nos olhos. O romano sente confusos sentimentos em relação a este homem ainda jovem, a vontade de ter raiva dele mesclada a pena e até a uma ponta de admiração. Estende a corda para amarrar-lhe as mãos, Amos sacude a cabeça, não é necessário. Dedos entrelaçados à frente do corpo, lábios trêmulos balbuciando uma oração, começa a subir os degraus de pedra, seguido um passo atrás pelo legionário. Muito pálido, olhar fixo à frente, o preso, mãos atadas às costas, galga o último degrau da escadaria. "Por aqui", diz Diogo, no comando da escolta, orientando-o a tomar à direita do corredor. Nos meses de calabouço a barba e o cabelo de Daniel cresceram desordenadamente, dão-lhe aparência selvagem. Diogo mais de uma vez conduziu o prisioneiro de sua cela até a câmara de torturas; mas, todos comentam, o herege em nenhum momento fraquejou, renegou sua fé, nem mesmo quando lhe arrancaram as unhas. No fim do corredor, o grupo que os aguarda tem à frente o dominicano Henrique, juiz do tribunal. O frade estende à frente o crucifixo, num gesto teatral: "Meu filho, ainda há tempo, salva a tua alma. Beija o crucifixo", grita. O prisioneiro passa reto, sem se dignar sequer a olhá-lo. Deixam o prédio sombrio, ofuscados pelo sol ibérico. O jovem Diogo sente um arrepio de frio, embora o suor lhe escorra das axilas. Saem no pátio calçado. A manhã está fria, brumosa. O Visconde de Beauharnais detém-se um segundo, inspira fundo, como se querendo absorver com todas as forças aquele último hausto de vida. Jean-Paul, no comando dos sete mal ajambrados soldados republicanos, detém-se respeitosamente e teme, como se por ele próprio, que o aristocrata vá fraquejar. O Visconde retoma a marcha em direção ao cadafalso, passo firme, cabeça levantada. O pequeno grupo atravessa o portão. O orvalho do campo molha as botas dos soldados. Wang olha em torno e pensa, as macieiras estão começando a florir. Apesar de tudo a China é bela e foi bom ter vivido aqui. Marcham em passo firme. O sargento Gong procura não pensar, ouve o rangido das botinas no saibro e a música dos cantis a roçarem nos cinturões ou ao baterem ocasionalmente de encontro à coronha dos fuzis, pendurados do ombro a tiracolo. Não cessa de se repetir mentalmente, "eu não gosto disso, eu não gosto disso, eu não gosto disso". Se se tratasse de um invasor japonês, talvez não se sentisse assim agoniado; mas um chinês, como ele! O estudante é, lhe disseram, comunista. Será que, apesar disso, merece morrer tão jovem? Sim, está fria esta manhã em Varsóvia, constata o sargento Wolf. Ele tenta não pensar, en34

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CONTOS


quanto deixam a estrada. Percebe o quanto está tenso pela força com que aperta o cabo da metralhadora. Samuel, à frente, mortalmente pálido, mexe os lábios, dizendo suas orações. Apesar de judeus, mostraram, é preciso reconhecer, coragem na defesa de seu gueto; quantos dias de combate desigual! E parece-lhe de repente que teriam o direito de ser tratados como prisioneiros de guerra. E tem vontade de lhe dizer em alemão, "olha, eu não gosto disso, mas não posso fazer nada. Estou apenas cumprindo ordens." Nada fala, ouve-se apenas o rangido das botas sobre o cascalho e dos cantis que pendem dos cintos. O sol saiu, a manhã está insuportavelmente quente. O grupo deixa a trilha e atravessa o campo, em direção ao capão de mato. O sargento Evans está contente de deixar para trás os gritos de desespero da gente da pequena aldeia, iniciados assim que seus homens arrastaram Chou-li de dentro da choça, logo após incendiada. Tenta olhar com ódio o pequeno homem oriental de mãos amarradas que caminha à sua frente; mas tudo que consegue sentir é uma náusea muito grande que o invade das profundezas. Não posso vomitar, não posso fraquejar, pensa, preciso dar o exemplo. Os homens caminham calados a seu lado. Chou-li é informante do Vietcong, não pode deixar de ser justiçado. Mas Evans sabe, Chou-li deve lealdade a seu povo, não ao homem branco de língua incompreensível. Pensa que seu pai a essa hora já parou de trabalhar, depois de passar o dia montado sobre o trator, chapéu protegendo do sol a cabeça branca, arando a terra da fazendola deles em Ohio, enquanto na cozinha Mary talvez prepare aquele bolo de nozes que ela faz tão bem. E toda a realidade em volta lhe parece de repente totalmente estranha, irreconhecível, como se ele fosse personagem de um sonho absurdo e mau. A roupa ensopada de suor de Chou-li, o cheiro acre do medo que emana de seu corpo, lhe diz que não, infelizmente não está sonhando. O grupo entra no capão e o major Bento não consegue tirar os olhos da nuca do prisioneiro de mãos amarradas às costas. O guerrilheiro Carlão, que tanto trabalho lhes deu, que já começava a se tornar uma figura lendária às margens do Araguaia, agora ali está, à mercê deles, depois de um combate em que só pôde ser capturado depois que sua munição se esgotou. "Sinto muito Carlão, você é um homem valente. Pena que não tenha escolhido o nosso lado" – o major surpreende-se ao ouvir a própria voz, como que derivada de um comando autônomo. Carlão, ensopado de suor, roupa em trapos, responde, voz grave e rouca: "Não me arrependo de ter ficado ao lado do povo, contra os exploradores e a ditadura." Quem passasse pela trilha poeirenta não poderia ver aquele pequeno grupo oculto pelo tufo de árvores. Poderia ter escutado o tiro que ecoou no silêncio da manhã, cortado apenas pelo cantar dos pássaros. Um único, solitário tiro.

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Rubem Mauro Machado é escritor, jornalista e tradutor. Com A idade da paixão (Editora José Olympio) ganhou o Prêmio Jubuti de melhor romance nacional de 1986. Seu romance Lobos (Record), de 1997, retrata a vida nas redações e nos quartéis nos Anos de Chumbo da ditadura militar e foi lançado na Itália, pela Editora Fabula, com o titulo Lupi. Participou de mais de uma dezena de antologias de contos no Brasil e no exterior. É autor ainda, entre outros títulos, de Jacarés ao sol (Ed. Ática, contos) e Não acreditem em mim - Memórias dos Anos Dourados (Ed. Saraiva), este voltado para o público juvenil. 1


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LITERATURA BRASILEIRA

CRÔNICAS

Rotas da lusofonia

MESTRE DE OBRA por

Paulo Emílio Azevêdo1

Não sei quem inventou esse sofisma de que fazer arte é super legal e faz bem para o coração. Não conheço nenhum terrorista que não seja ilegal ou viva em paz (artesãos às vezes chegam perto disso, mas logo atravessam a linha); e o que faz bem para o coração não prevê ansiedade, egos aflorados, cafeína (e tantas 'inas'), maços de cigarros, dias de invernos prolongados, noites despertadas com uma caneta na mão. Afinal, mãos não dormem nunca e, na falta de papel o corpo é lousa que não vende em papelaria. O corpo é uma avenida suja que todo mundo adora deitar. Os três piores ambientes que existem para reconhecer amigos são: bocas de fumo, cocktails de estreias ou lançamentos e reuniões de políticos. Nada que mexe com exaltação de beleza, economia, poder e estímulo à criatividade sem férias promete calmaria. Por isso mesmo Arte só vale se é ruptura, desobediência e potência, o resto é suborno rebelde. Arte é para encontrar lirismo em rocha. Isso é trabalho de mestre de obra. Deve ser daí que vem a relação entre arte e obra - os escultores sempre me entendem com mais profundidade; gosto de artesãos e escultores, acho poetas chatos urgentes e coreógrafos pessoas 'metidas à bestas', com exceção dos que fazem 'papel de arquitetos'. Já pintores são saudades do mundo imperfeito e atores só me encantam os destemidos. Haveria tanto a dizer sobre os palhaços e sei que sou um cineasta desempregado sem roteiro qualquer... Mas, sempre soube que erguer estéticas era trabalho de carpinteiro e pedreiro, bem como formigas são os bichos que melhor compreenderam a ideia de comunidade e trabalho coletivo. Sim, bons pedreiros constroem o prelúdio de lares incríveis para que afeto tenha casa, coberta e cama. Tem alguns que conseguem bater uma laje no deserto e assistir a veia explodir se aproximando da artéria. É arte, ria! Nada de pular do prédio quando tudo estiver pronto e a plateia silenciar. Mas se o fizer cite Dostoiévski antes do voo. Deus é russo!

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Paulo Emílio Azevêdo (Rio de Janeiro, 1975). Professor, Doutor pela PUC-Rio em Ciências Sociais, escritor, poeta e coreógrafo. Recebeu diversos prêmios, entre eles “Rumos Educação, Cultura e Arte” (2008/10) pelo Instituto Itaú Cultural e “Nada sobre nós sem nós” (201112) no âmbito da Escola Brasil/Ministéri o da Cultura para publicação do livro Notas sobre outros corpos possíveis (2014). Seu mais recente livro, O amor não nasce em muros (2016), tem prefácio assinado pelo editor chefe da Philos. 1


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LITERATURA BRASILEIRA

COLUNAS

Rotas da lusofonia

O QUE É UM CLÁSSICO?

por

Munique Duarte1 Munique Duarte (Santos 1

Imagine um homem que foi para a guerra e que após todas as batalhas vencidas demorou vinte anos para voltar para casa. No percurso, enfrenta monstros marinhos, embarcações que afundam, o medo de ver seus companheiros de viagem mortos, fantasmas, sereias perigosas, deuses em fúria e centenas de homens que invadiram sua casa para cortejar a esposa abandonada. Ele vence cada desafio e volta a seu trono, triunfante. Ele se chama Ulisses. Essa história foi escrita no século VIII a.C., sendo “A odisseia”, do poeta grego, Homero. Agora imagine um homem que assassina uma senhora que é agiota e rouba seu cofre. A irmã da vítima surge repentinamente no apartamento, e ele não vê outra alternativa do que matá-la da mesma forma. Ele nem chega a vender os objetos de ouro, para ajudar a irmã e mãe, que passam por dificuldades financeiras. Raskólnikov é jovem, ex-estudante de direito, e se vê atormentado por não ter feito nada de importante na vida. Com sua idade, Napoleão já era general, ele pensava, e tinha passado por cima de muita gente. Essa obra é “Crime e castigo”, lançada em 1866, pelo escritor russo, . Um clássico é um livro que não termina na última página. Encerramos a leitura e ficamos com ela na cabeça por vários dias, refletindo sobre o que foi escrito, revendo nossos próprios conceitos e analisando a nossa vida por outros ângulos. Recriminamos ou apoiamos o personagem, com uma força que parece que somos nós mesmos os envolvidos na trama. Um clássico não se desatualiza. Ele lida com sentimentos gerais, como inveja, ambição, ciúmes, paixão ou desprezo, de uma maneira em que todos possam se identificar, em algum momento, com algo que foi escrito. Um livro clássico não é, necessariamente, um livro difícil. Livro bom é aquele que ainda fica em nossa cabeça, e a gente tem vontade de reler e reinterpretar tudo outra vez. Citei, acima, uma obra de antes da era cristã e uma do século XIX, daquelas que quando paramos de ler já é de madrugada e nem vimos o tempo passar! Os clássicos têm poder de sobra e são, em sua maioria, de leitura acessível. Experimente um deles! E se prepare para uma grande aventura.

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Dumont, 1979). É jornalista, formada pela Universidade Federal de Juiz de Fora. Lecionou língua espanhola por dez anos, tendo estudado no CELEC – Córdoba (Argentina). Tem textos publicados em diversos sites, revistas e jornais literários, como Jornal Relevo, Jornal Opção, Revista Diversos Afins e Livro&Café. É idealizadora e apresentadora do programa mensal Literatura na Rádio Cultura, em Santos Dumont, Minas Gerais. Participou das antologias . É colunista da Philos na sessão “Não deixe de ler”.


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LITERATURA BRASILEIRA Rotas da lusofonia

E AGORA, JOÃO?* por

Caio Lobo1

Joãozinho roubou de novo. Ele entra na Promotoria conduzido, cabisbaixo, não encara ninguém, como se admitisse a culpa. Não a culpa do crime, essa não dá para esconder: tem flagrante, tem vítima que o reconhece, tem arma apreendida. A autoria passa ao largo de seu pensamento, sim “foi ele mesmo, foi”. A culpa é outra, mais profunda, arraigada, irresistível. João se pergunta quando algum projeto vai dar certo, quando haverá futuro para ele. Ele já assumiu sua condição e está cansado de perguntas e de conselhos: “estuda, João”, “não rouba, João”, “fica em casa, João”, “deixa as más companhias, João”, “não usa droga, João”. Não, não, não. Ninguém quer realmente saber de João, ele é só um motivo para que outros se sintam normais. Quem quer saber que onde para uns há o lar, para ele a casa é o inferno? Quem quer saber que o pai batia na mãe? Que o orçamento da casa só dá para a comida de João, quando ao redor meninos têm comida, roupas, videogames, tênis, carros? Ninguém! Ninguém quer enxergar a desigualdade flagrante, gritante e absurda que faz João tremer de revolta. Sabem os homens o que é um barraco, uma rua de esgoto a céu aberto, o cheiro de podridão? “Estuda, João”. Sabem como é a escola e os professores? “Larga as más companhias” – nunca o apresentaram às “boas”. O universo conspira a seu desfavor, mas é claro, basta ter caráter, ninguém está condenado a agir “mal”. Quem diz isso a João é o Advogado, é o Promotor, é o Juiz, engravatados, cheirosos, arrumados. Berços de ouro; o seu: de lixo, de miséria, de horror. “Não justifica, claro”, dizem os teóricos do racionalismo-individual, sentados em sofás confortáveis enquanto bebem cafés – não: cappuccinos italianos. João queria tanta coisa, mas queria antes de mais nada ter tido a chance que outros tiveram, a chance de ter coisas sem ter que roubá-las. João pede ajuda, no seio de seu desespero pessoal, mas ninguém escuta: Deus só dá a quem já tem. Óbvio, ele poderia estudar onde não estudam; recusar a droga que é sua única fuga; andar com pessoas que não existem; ter caráter, diabos! Não desejar, ser como os antigos gregos, mergulhar em profunda sabedoria... Quem, nos seus quinze anos, não seria capaz de ser como Sócrates? Ninguém olhou por ele. O pai, violento, deixou o lar; a mãe é ignorante, mas querem que ela faça brotar do fundo de sua boa alma os dons de um profissional da psicologia ou da pedagogia, ela que também é fruto podre de uma sociedade injusta. “É possível, é possível!”; “Ah se fosse meu filho!”; “Uma boa surra, é o que basta!”. João está só. Bom, tem o Estado... Esse Leviatã atabalhoado não viu a desestruturação de tantos Joãos – ou se viu, nada pôde ou quis fazer. O Estado não deu a João nem a educação de que ele precisava, nem bons salários a professores, nem entusiasmo com relação ao futuro, 41

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COLUNAS


nem ajuda, nem conselhos. O Estado fechou os olhos enquanto a família se digladiava, se destruía, enquanto João desejava ser como os outros, ter o que os outros tinham. Ninguém lhe disse: “você terá, eu ajudo, faça assim, faça assado”, ninguém falou a João de valores, nem deu exemplos. Seu exemplo é a condição que ele já aceitou. Quem se dirige a ele vive em mundos tão distantes que suas vozes não o atingem: assistentes sociais, juízes, policiais, promotores. Falam do que não conhecem. João ri e sua raiva aumenta. “Olha, quando tiver 18 anos, vai ser Papuda, vai ser dez anos, vai ser isso e aquilo outro”, como se ameaças de sofrimento pudessem transformá-lo. A vida já é puro sofrimento. E ouve isto do Estado que não viu nada acontecer, que não lhe deu qualquer expectativa de vida. O mesmo Estado que, não satisfeito em não proteger sua infância quando a família falhou, agora vem puni-lo, julgá-lo. João realmente acha que as lições de moral são dispensáveis, já que o Estado ausente é o mesmo que agora pune, mas não dá para dizer isso a um Juiz, não. Se não vai ser pior, porque as pessoas lidam muito mal com a verdade, ainda mais quando usam gravatas. Pedem para ele ser bom... João acha que é bom, de verdade. Mas às vezes a fúria lhe sobe pelo peito, o mundo o agride com toda sua injustiça, é difícil controlar. “Mas não se justifica, se não todo miserável seria bandido”. Verdade. Os que viveram nas condições de João e resistiram são os grandes desse mundo, maiores do que eu, maiores do que você, maiores do que Sócrates. Mas se pode pedir a João que seja assim? João é humano. Agora ele sai da audiência. Seu caso já era: é internação na certa. Vão mandá-lo à instituição onde João será ressocializado, onde apreenderá os valores essenciais do cidadão. É o que o Estado diz, a justificativa para restringir sua liberdade. É o ato final da tragédia. Que piada! O Estado que não ofereceu o ombro a João, que não viu que precisava de ajuda, que não o educou direito; o Estado que não teve forças para tirá-lo da miséria agora vem, com sua maquinaria pesada, estraçalhar o pobre João, vem puni-lo usando eufemismos de ressocialização. O Estado nunca o socializou; como pode “ressocializá-lo”? Tem alguma coisa muito errada com esse país. *nome fictício.

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1Caio

Lobo (Recife, 1979). Colunista da Philos, é formado em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco e Mestre em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília. Leitor compulsivo e romancista. Lançou recentemente o seu livro Trôpegos Visionários pela editora Kazuá.


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LITERATURA ESPAÑOLA

COLUMNAS

Rutas Literarias de Iberoamerica

KURT COBAIN por

Cristina Gálvez Martos1

Los héroes de nuestra generación son flores marchitas. Polillas de alas chamuscadas alrededor del bombillo. Abejas que buscaron flores y cayeron en el concreto. No hubo quien les diera de beber. Nuestros héroes murieron de sobredosis, de desamor, de rabia. Tomaron una caja de somníferos, se lanzaron desde un edificio, colgaron de las ramas de un árbol como péndulos, metieron la cabeza en un horno lleno de gas. Destruyeron a preferencia su propio corazón, porque era demasiado grande o demasiado débil, latía más lento, más rápido, diferente, tenía raíces u hojas o pétalos que arrancaron porque nadie entendía, nadie escuchaba. Los ángeles no sobreviven. Se ahogan en tazas de leche y sus alas se destiñen. Tragan medicamentos para olvidar, para adormecer, para no despertar. Van a especialistas, clínicas normalizadoras. Debe haber algo o alguien que los repare. A Kurt Cobain le gustaban los gatitos. Rezaba a Dios para que lo ayudara a superar su adicción a la heroína, y estaba sumamente lúcido. Sus ojos eran como uno de los lagos impasibles de Washington, donde hay poderes que se hacen los dormidos, los olvidados, bajo el ojo del crimen blanco y mercantil. La pureza de los ángeles no resiste este mundo. No son aptos. Nunca supimos por qué estamos incompletos. Nos prometieron mucho, a ellos y a nosotros. Nuestros héroes nunca supieron que eran nuestra salvación.

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I'm on warm milk and laxatives Cherry-flavored antacids Sit and drink Pennyroyal Tea Distill the life that's inside of me.

Pennyroyal Tea, Nirvana 1Cristina

Gálvez Martos (Caracas, Venezuela, 1987). Es Licenciada en Letras por la Universidad Central de Venezuela. En 2013 ganó el Concurso para Autores Inéditos de Monte Ávila Editores en la categoría de poesía con su obra Psicopompa, libro editado por la misma casa editorial en 2015. Su poemario Bicorne (Casa de las Letras Andrés Bello, 2016) obtuvo una mención en el VI Concurso Nacional de Poesía.


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LITERATURA ESPAÑOLA Rutas Literarias de Iberoamerica

COLUMNAS

Diana Moncada1

ANAIS NÏM: LA AMANTE DEL MUNDO por

Una mujer desconocida espera a Anais Nïm una mañana en la que el Nanankepichu flota en medio de una bruma callada y tranquila. La intercepta, le invita un café, Anaïs tiene un ocupado itinerario con sus amantes pero acepta porque, después de todo, a veces es necesario escuchar las preguntas de una extraña. Así transcurre la conversación. Mujer: Coses el universo de tus hombres mientras deshilvanas las pieles que cubren tus ojos anfibios. Anaïs, ¿no crees que el amor sea una tela percudida de ensoñaciones que no descansan sino en la totalidad? Anaïs: La totalidad no es posible porque yo sólo puedo ser total en relación conmigo misma. ¿Por qué la gente llama a la totalidad singularidad y exclusividad? Yo me siento completa mientras me reparto entre Henry y Gonzalo por razones bastante diferentes. Mujer: ¿pero ellos piden exclusividad de ti? Anaïs: Henry me toma febril y rápidamente, acuciado por los celos cuando estoy a punto de ver a otro hombre… Es como si quisiera que me encontrara con los demás hombres con el útero lleno de su esperma. He llevado su esperma a Hugh, a Rank, a Allendy, a Eduardo, a Turner y a muchos sitios. Por otro lado, tengo la sensación de que Gonzalo sería capaz de matar al hombre que se acercara a mí, que me amara. Creo que no olvida nunca que he sido una mujer con las piernas separadas y que he gritado voluptuosidad. Mujer: Eres una cúpula empapada en mieles, estás en el centro, tu piel es la leche tibia de los sueños, ¿eso te hace feliz? Anaïs: Solo conozco una receta para la felicidad: Tomar el esperma de tres hombres diferentes (lo más diferentes que sean posible), y mezclarlos en tu útero. Si la transfusión tiene lugar en el mismo día, la alquimia dará como resultado la perfección. Mujer: ¿y qué hay de la alquimia que borbotea cuando el deseo se conjura con el amor? Anaïs: El amor es eterno y yo voy de paso, impidiendo terremotos en todas partes, luchando contra la muerte. No dejaré que nada muera. El monstruo que mato todos los días es el monstruo del realismo. El monstruo que me ataca todos los días es la destrucción. Y de ese duelo surge la transformación. Una y otra vez convierto la destrucción en creación. Mujer: entonces ¿amar es una rebelión contra la muerte? ¿de eso se trata? Anaïs: Es que no puedo dejar que nada muera, no puedo soportar la separación, los

finales, la muerte, el paso del amor... Si no me moviera y bailara entre ellos, los tres se convertirían en piedra, porque son pasivos. Anhelos, sufrimientos. Celos, aspiraciones, es el máximo de su actividad. Caerían dormidos si yo me detuviera. Henry, Gonzalo, Hugh. Una especie de muerte les acecha, una especie de quietud. Es solo mi baile, mi danza, la que los anima. Como una serpiente me deslizo fuera de la cama de Gonzalo. Me deslizo 46

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fuera de la cama de Hugh. Mujer: ¿en qué momento te descubriste sierva del amor? Anaïs: Una vez me pareció que todo mi ser estaba tan despierto que sentía todos mis amores al mismo tiempo, y era insoportable. Tantos amores. ¿Qué soy? La Amante del Mundo. Loca de amor. Loca de amor. Todo mi cuerpo sufre el dolor de la separación, de la pérdida, del cambio. Mujer: y aun así ¿no temes borrarte ante una conjugación tan desmesurada del dar? Anaïs: Mi necesidad de dar ha sido un vicio, pero no del todo destructivo. Quizás yo me encuentre a mí misma mediante la disolución. Por mucho que dé, no me pierdo. Pero me he desperdiciado. Ahora bien, dar es amar: una necesidad Mujer: Debes sentirte entonces como una diosa, como una curandera milenaria capaz de parir y amar a todas las cabezas de este mundo. Anaïs: La sacralidad con la cual curo, la emoción que siento ante el milagro del hombre que nace una y otra vez, hace que tema despertarme en blanco, transparente, alejada para siempre de la sensualidad y la tierra. Mujer: ¿Y esa exacerbada necesidad de dar no termina por agotarte? Anaïs: Casi soy un objeto de culto. Yo necesito ser humana. Estoy cansada de imitar a Dios. Preferiría tener amigos. Mujer: ¿Amar es siempre arder? La abundancia es capaz de desgajar la piel en jirones. Anaïs: El erotismo me devora, mi hambre sensual palpita dentro de mí como un corazón independiente, el fuego entre las piernas encendido por Henry es inextinguible. Si no ardo, todo me es indiferente. Yo solo puedo reunir y completar la vida hasta que su demasía e intensidad se hacen insoportables y exploto histéricamente en mil fragmentos. ¡Demasiada vida! Mi alegría reside en la comunión. Solo creo en el fuego. Mujer: Entonces quizás un día la piel, los ojos, el sexo, los sentidos se te desgasten, quizás tanta entrega termine por arrojarte sola a un cuarto vacío exento de sueños. Anaïs: Estoy sola, insoportable, profundamente sola, sola en el horno del amor, pero la necesidad de dar ilusión es mayor que la necesidad de ser sincera conmigo misma, abiertamente. Mujer: ¿La mentira está al servicio del amor? Anaïs: Mentir es la única manera que he encontrado para ser sincera conmigo misma, para hacer lo que quiero, para ser lo que quiero haciendo el mínimo daño a los demás. Mujer: ¿no será que todo se trata de una simple traición? Anaïs: Pasar de un mundo a otro, dar a cada uno mi plenitud, ¿por qué se le llama a eso traición? Solo puedes traicionar lo que existe. Lo que hay en Gonzalo, o entre Gonzalo y yo, no lo traiciono. No doy a Henry los sentimientos que doy a Gonzalo, ni siquiera las mismas caricias. No me llevo nada de Henry porque aún soy leal con su creación, con su vida y porque estoy llena de amor y cuidados. Mujer: ¿cómo es que aprendiste todo esto? Anaïs: No lo aprendí, aún no he descubierto ¿en qué momento se hunde el cuchillo tan profundamente que la carne empieza a llorar de amor? Mujer: cuando penetras tan intensamente a la muerte que la olvidas y tu sexo se abre como una fruta hambrienta de eternidad y fuego.

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1Diana

Moncada (Caracas, Venezuela, 1989). Poeta e jornalista cultural, prologuista do livro Al filo de Miyó Vestrini, do selo editorial independente, Letra Muerta. Colabora com a Revista Poesía da Universidade de Carabobo. Participou como pesquisadora do projeto Mostra de Valorização do Patrimônio Teatral Venezuelano. Tem trabalhado com jornalismo cultural em diversos veículos venezuelanos, como El Universal, Contrapunto e Correo del Orinoco, especialmente em matérias sobre literatura, artes visuais e artes cênicas.


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REVISTA DE LITERATURA DA UNIÃO LATINA 18


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