Philos PORTUGUÊS CATALÀ ESPAÑOL FRANÇAIS ITALIANO ROMÂNĂ
REVISTA DE LITERATURA DA UNIÃO LATINA 19 agosto 2017 · REVISTA DE LITERATURA DE LA UNIÓN LATINA 19 agosto 2017
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REVISTA DE LITERATURA DA UNIÃO LATINA 19 agosto 2017 · REVISTA DE LITERATURA DE LA UNIÓN LATINA 19 agosto 2017
MARCIO RUFINO MIKAËL GÓMEZ GUTHART LUIZ FRANCISCO GUIL LUISA BENEVIDES CAROLINE REIS MANOELA SOUZA CAIO LOBO PAULO EMÍLIO AZEVÊDO MUNIQUE DUARTE CRISTINA GÁLVEZ MARTOS SÍLVIO REIS
PORTUGUÊS CATALÀ ESPAÑOL FRANÇAIS ITALIANO ROMÂNĂ REVISTA DE LITERATURA DA UNIÃO LATINA 18 julho 2017 · REVISTA DE LITERATURA DE LA UNIÓN LATINA 18 julio 2017
EXPEDIENTE
REVISTA DE LITERATURA DA UNIÃO LATINA REVISTA DE LITERATURA DE LA UNIÓN LATINA
Souza Pereira
EDITOR CHEFE | EDITOR EN JEFE
Sylvia de Montarroyos
COMITÊ EDITORIAL | COMITÉ EDITORIAL
Lucrecia Welter
REVISÃO DE TEXTOS | SUPERVISIÓN DE TEXTOS
Maus Hábitos
DESENHO E DIAGRAMAÇÃO | DISEGÑO Y DIAGRAMACIÓN
Catrin Welz-Stein
ILUSTRADOR | DIBUJANTE
SOBRE A OBRA DESTA EDIÇÃO | SOBRE LA OBRA DE ESTA EDICIÓN
Publicado originalmente em agosto de 2017 com o título Philos, Revista de literatura da União latina. Os textos desta edição são copyright © de seus respectivos autores. As opiniões expressas e o conteúdo dos textos são de exclusiva responsabilidade de seus autores. Todos os esforços foram realizados para a obtenção das autorizações dos autores das citações ou fotografias reproduzidas nesta revista. Entretanto, não foi possível obter informações que levassem a encontrar alguns titulares. Mas os direitos lhes foram reservados. Philos, Revista de Literatura da União Latina é registrada sob o número SNIIC AG-20883 no Sistema Nacional de Informações e Indicadores Culturais com Certificado de Reserva outorgado pelo Instituto Nacional de Direitos do Autor sob o registro: 10-2015-032213473700-121. ISSN 2527-113X. Revista Philos © 2017 Todos os direitos reservados. | Publicado originalmente en agosto de 2017 con el título Philos, Revista de literatura de la Unión latina. Los textos de esta edición son copyright © de sus respectivos autores. Todos los esfuerzos fueron hechos para la obtención de las autorizaciones de los autores de las citaciones o fotografías reproducidas en esta revista. Sin embargo, no fue posible obtener informaciones que llevaran a encontrar algunos titulares. Pero los derechos les fueron reservados. Philos, Revista de Literatura de la Unión Latina es registrada bajo el número SNIIC AG-20883 en el Sistema Nacional de Informaciones e Indicadores Culturales con Certificado de Reserva otorgado por el Instituto Nacional de Derechos del Autor bajo el registro: 10-2015-032213473700-121. ISSN 2527113X. Revista Philos © 2017 Todos los derechos reservados.
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Philos, Revista Philos Revista de de Literatura Literatura da da União União Latina Latina || Revista Revista de de Literatura Literatura de de la la Unión Unión Latina. Latina.
EDITORIAL
REVISTA DE LITERATURA DA UNIÃO LATINA REVISTA DE LITERATURA DE LA UNIÓN LATINA Cada vez mais a Philos avança sobre um experimentalismo que considera a escrita como desenho. A presente edição nos oferece uma dimensão múltipla da criação de nossos autores. Reunimos uma seleção de variados textos em prosa e poesia, uma mostra de literatura que, decerto, levará o leitor a refletir sob o todo do que já conhece sobre a Philos e a descobrir um novo universo de nossa multiplicidade de elementos. Apresentamos neste número as obras da artista alemã, Catrin Welz-Stein, que nos propõem um experimentalismo da linguagem visual de suas artes com os textos apresentados em nossos cadernos. As palavras e as imagens aproximam-se, fundem-se como ficção e realidade para criar um real que não existe. Continuamos: procuramos proporcionar o diálogo impossível entre o visível e o invisível. Desejamos uma ótima leitura, Souza Pereira
EDITOR CHEFE | EDITOR EN JEFE
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Philos Revista de Literatura da União Latina | Revista de Literatura de la Unión Latina.
EDITORIAL
REVISTA DE LITERATURA DA UNIÃO LATINA REVISTA DE LITERATURA DE LA UNIÓN LATINA Cada vez más la Philos avanza sobre un experimentalismo que considera la escritura como dibujo. La presente edición nos oferta una dimensión múltiple de la creación de nuestros autores. Reunimos una selección de variados textos en prosa y poesía, una muestra de literatura que, decerto, llevará el lector a reflejar bajo lo todo del que ya conoce sobre la Philos y a descubrir un nuevo universo de nuestra multiplicidad de elementos. Presentamos en este número las obras de la artista alemana, Catrin Welz-Stein, que nos proponen un experimentalismo del lenguaje visual de sus artes con los textos presentados en nuestros cuadernos. Las palabras y las imágenes se aproximan, se funden como ficción y realidad para crear un real que no existe. Continuamos: buscamos proporcionar el diálogo imposible entre el visible y el invisible. Deseamos una óptima lectura, Souza Pereira
EDITOR CHEFE | EDITOR EN JEFE
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Philos Revista de Literatura da União Latina | Revista de Literatura de la Unión Latina.
SUMÁRIO | SUMARIO CONTOS | COLUNAS | ARTIGOS CUENTOS | COLUMNAS | ARTÍCULOS
8 Aquiles e o bombom,
estranho por MARCIO
RUFINO
11 Lin Shu, autor do Quixote,
por
MIKAËL GÓMEZ GUTHART
14 As crias do Criador,
por LUIZ
FRANCISCO GUIL
16 30,
por LUISA
18 Taj Mahal,
por
CAROLINE REIS
por
CAIO LOBO
21 Ilhado sem
guarda-chuva,
por
MANOELA SOUZA
23 Eu e meu
Uber Titanic,
por
PAULO EMÍLIO AZEVÊDO
BENEVIDES
25 A morte, o
morto e o medo da morte, por MUNIQUE DUARTE
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27 A barriga,
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30 Como un
hacha rompiendo un mar helado. En torno a la lectura de Bukowski, por CRISTINA GÁLVEZ MARTOS
34 Cavalos da
educação, tigres da ira, por SÍLVIO REIS
Catrin Welz-Stein Fill up my cup (2017)
LITERATURA BRASILEIRA Rotas da lusofonia
AQUILES E O ESTRANHO BOMBOM por
Marcio Rufino1
Já era meio dia quando Aquiles resolveu ir ao banco. Como era meado de mês, com certeza, não iria encontrá-lo cheio. Ao andar até o centro de Belford Roxo, a pé, sentia que o tempo era de um nublado opressor. O sol era um espectro agonizante por trás das cortinas de nuvens com suas nervuras negras e cinzas. Havia chovido dias antes, mas parecia que a chuva aumentava ainda mais o calor. Ao chegar ao caixa-eletrônico, sacou tudo que tinha: dez reais. Daria para caminhar até o bairro de Areia Branca onde morava, e comprar uma quentinha de cinco reais para almoçar - e ainda sobraria. A mãe havia morrido fazia quatro anos; o pai contraíra novas núpcias fazia dois; a irmã havia se casado fazia um e meio. Ficou então ele sozinho naquela casa de dois andares. Não, a solidão não lhe doía, pelo menos por enquanto, pois tinha a companhia de seus livros, de seus cds, de seus sonhos e da angústia de quem já passara dos quarenta e ainda não se dera conta disso. Foi quando, de repente, se viu diante de uma galeria onde havia uma charmosa bombonière. Lembrou de quando assistira ao filme "A Fantástica Fábrica de Chocolates" na televisão e sentira falta do tempo em que acreditava em Universos Paralelos; do tempo em que esses Universos eram apenas doces; ou melhor, de quando achava que só o doce era interessante. Do tempo em que não havia descoberto que o salgado e o azedo podiam ser muito instigantes. Ou melhor, sentiu saudade do tempo em que ainda não havia descoberto o instigante que era o tempo da inocência. Já dentro da bombonière, observou os vários sabores, quando deparou com um que o surpreendeu: goiaba com café. Ao lê-lo na embalagem, a primeira imagem que veio à mente de Aquiles foi a da goiabeira do quintal da casa de sua avó paterna; como gostava de subir nela com os primos e coleguinhas de infância! Gostava mais das goiabas brancas. Comia-as com casca, caroço e tudo. Lembrou-se do dó que sentira ao ver a goiabeira ser arrancada para construírem a meia-água que iriam alugar, e ser vendida após a morte da avó. Achou tudo muito esquisito. Como poderia haver essa mistura? Tanto a goiaba quanto o café lhe acolhiam bem nas lembranças de infância. O café era o primeiro cheiro que sentia; tirado do fogo do fogão; quentinho, direto para o coador de pano, antes de ir para escola. Sua mãe sempre o servia forte. Preto e forte. Comprou apenas um bombom. E, apesar de não conseguir encontrar nenhuma conexão gustativa pela sinapse dos sentidos e da memória que lhe causasse uma sensação de prazer ou de asco, desembrulhou e mordeu o bombom. Ao mordê-lo, a primeira sensação que teve, de ter uma floresta negra preenchendo sua boca e seu estômago, deu-lhe a impressão de que nunca sentiria fome na vida. Logo depois, o sabor frio da calda de goiaba com café e sua simplicidade dúbia o transportou como uma 8
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CONTOS
máquina do tempo comestível para dentro de si mesmo. Era incrível como o estranho sabor do recheio do bombom lhe despertava lembranças marcantes, intensas, dolorosas, surpreendentes. Viu a primeira imagem que o excitou na vida quando tinha doze anos. Era a de uma capa de revista erótica, exposta em uma banca de jornal: um jovem beijava uma bunda branca, lisa, tenra, macia. Saiu apertando o passo pela Rua Benjamin Pinto Dias. Mordeu novamente o bombom e, desta vez, a floresta negra veio seguida da dificuldade de se entender o mundo na infância. Era negro, gordinho e desajeitado. Os pais, com muito sacrifício, matricularam-no numa escola particular. O pai era um bancário; a mãe, uma exenfermeira que abdicara da profissão para cuidar melhor dele. Na escola, os meninos brancos maiores, duas turmas mais adiantados achincalhavam-no, e, quando ele finalmente reagia, o inspetor que até então assistia a tudo imóvel, fazia questão de botá-lo de castigo em pé durante horas embaixo do sol quente. O bombom lhe descia seco na garganta e a calda de goiaba com café descia-lhe fria e indiferente entre os dentes até a gengiva. Estava atravessando a rua da padaria quando deu a terceira mordida. Lembrou-se dos treze anos; de sua mãe espancando-o com o salto fino do tamanco, abrindo-lhe um enorme galo na testa, gritando enlouquecida que se ele fosse veado o mataria e depois se mataria. Lembrou-se da primeira vez que se masturbou na vida pensando no galã da novela das oito. A quarta mordida lhe trouxe a primeira cantada que recebeu do vizinho solteirão aos 18 anos e, apesar do desejo ser recíproco, a fuga na certeza de que aquele desejo era passageiro e logo ele seria um homem "normal" como qualquer outro. A quarta mordida veio com a primeira transa, na última fileira da poltrona de um ônibus de excursão, com um colega de trabalho, na volta de um passeio de sábado, nas montanhas, e a sensação de a ficha estar caindo e não ter mais para aonde correr. Já estava no centro de Areia Branca, quando deu a penúltima mordida e se lembrou de quando falou de sua intimidade com sua mãe depois de tantas cobranças e interrogações. De um caindo chorando para um lado e o outro caindo chorando para o outro. Nesse momento, o sol se abria e, com ele, a chuva caía; e Aquiles, diante da pensão, pegava a sacola de quentinha. Quando chegou à esquina de sua casa, olhou para o horizonte, e um enorme arco-íris se exibia imponente por trás da escola que ficava no outro lado da rua; com a chuva metralhando seus óculos. Foi quando deu com o derradeiro pedaço de bombom à boca: e com ele veio a lembrança de quando se entregou finalmente ao vizinho solteirão vinte anos depois da primeira cantada, e do momento em que faziam amor enquanto ele sussurrava em seu ouvido o quanto o desejava desde quando era menino. O ar agora estava fresco, e Aquiles, já na calçada de casa, lambia o que restava do bombom na embalagem. Jogou-a na poça d'água e olhou para trás, vendo o papel do bombom de goiaba com café navegando rumo ao bueiro; como um barquinho que levava em sua embarcação todas aquelas lembranças para o precipício. Quando abriu a porta da sala, admirou a sujeira e a bagunça; e falou para si mesmo com a sacola de quentinha na mão: - Hoje essa casa não escapa de uma boa faxina!
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Marcio Rufino (São 1
João de Meriti, 1973). É ator, escritor, performer e educador. Autor dos livros de poesia Doces Versos da Paixão e Emaranhado, além do blog Emaranhado Rufiniano. Já participou de alguns movimentos literários e um de seus poemas foi selecionado para participar da exposição Poesia Agora.
Catrin Welz-Stein Tangled (2017)
LITERATURA FRANCESA
ARTIGO
Rotas da francofonia
LIN SHU, AUTOR DO QUIXOTE Mikaël Gómez Guthart1 tradução ao português por Alexandra Landa2 por
O nome de Lin Shu soa-lhes, sem dúvida, totalmente estranho. No entanto, deveria figurar há muito em todos os manuais de história da literatura. Oriundo da região de Fujian, no sudeste da China, esse grande erudito autodidata pertencente à dinastia Qing - a última a ter reinado sobre o Império chinês - era pintor, calígrafo, romancista, novelista, poeta, ensaísta e tradutor. Foi de fato o autor, desde o final do século XIX, das primeiras traduções literárias na China, das quais as bibliotecas eram, por assim dizer, desprovidas - a tradição chinesa sendo constituída há séculos por comentários de textos chineses antigos e não por importações. Lin Shu contribuiu assim amplamente ao levar, ao conhecimento dos leitores chineses, autores e obras extremamente exóticos, vindos principalmente da Inglaterra, em um primeiro tempo, e a seguir da França, dos Estados Unidos, Suécia e Alemanha; ora, este não falava nem lia nenhum idioma estrangeiro. Primeiramente, fazia com que os textos lhe fossem lidos em voz alta por um assistente-tradutor que dominava, pelo menos teoricamente, o idioma original e que podia arriscar-se sem demasiados percalços a uma interpretação em mandarim oral; segundo os dizeres de seus mais finos exegetas - poucos, é verdade - Lin Shu reescrevia tudo em mandarim clássico, empenhando-se tanto quanto possível em corresponder à partitura. O que significava privilegiar a trama da narrativa mais que sua melodia, seu ritmo ou estilo. Lin Shu, autorizado somente por si mesmo, gozava da surpreendente faculdade que consiste em poder ler qualquer língua através dos olhos de um terceiro. Auxiliado por dezenove assistentes sucessivos, traduziu, ou mais precisamente reescreveu cerca de duzentos clássicos da literatura ocidental, dentre os quais Balzac, Shakespeare, Dumas pai e filho, Tolstói, Dickens, Goethe, Stevenson, Ibsen, Montesquieu, Hugo, Tchékhov ou Loti. Algumas de suas adaptações, no começo do século XX, tornaram-se mesmo verdadeiros best-sellers na China, como A dama das camélias, rebatizada A Herança da dama parisiense das camélias . De modo ainda mais fascinante e misterioso, cerca de cinquenta de suas traduções não publicadas seriam textos dos quais ninguém até hoje foi capaz de identificar o autor ou mesmo o idioma original. Entre esses manuscritos perdidos, encontram-se obras-primas das quais ignoramos absolutamente tudo. Os livros servem-se frequentemente de atalhos e caminhos que se bifurcam para atravessar fronteiras e chegar lá aonde não são esperados. Exemplos nesse sentido não faltam na história da literatura ou mesmo da escrita. O jovem Isaac Bashevis Singer - tradutor de Knut Hamsun, Romain Rolland ou Gabriele d'Annunzio em yiddish -, não tinha ao que parece a mínima noção de norueguês, francês ou italiano; trabalhou a partir de traduções 11
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"A China é um desses singulares reveladores que, ao que parece, ninguém aborda impunemente: raros são os autores que sabem tratá-lo sem exibir suas fantasias íntimas; nesse sentido, quem fala da China fala de si." - Simon Leys
alemãs que circulavam na Polônia de antes da guerra. Witold Gombrowicz é outro exemplo famoso; ele próprio reescreveu na Argentina seu Ferdydurke em espanhol, com a ajuda de Virgilio Piñera e Humberto Rodriguez Tomeu, dois escritores cubanos que nunca tinham ouvido uma só palavra de polonês, em seguida traduziu novamente essa versão em francês, auxiliado por um professor da Aliança Francesa de Buenos Aires, para resultar no que será a primeira edição francesa de Ferdydurke, publicada por Maurice Nadeau em 1958. Em 1921, Lin Shu decide abordar Don Quixote a partir de uma tradução inglesa de 1885. Seu assistente Chen Jialin, que tinha realizado uma parte de sua formação universitária na Inglaterra, parecia capaz de lê-lo, segundo uma técnica já bem ensaiada. Forneceu-lhe, no entanto, apenas uma versão parcial, não só repleta de acréscimos de diálogos inéditos como também amputada de vários capítulos, inclusive seu célebre prólogo; ou seja, um total de 285 páginas que correspondem à primeira parte da obra-prima de Miguel de Cervantes - o que não deixa de evocar a empresa secreta de um certo Pierre Ménard que, segundo Jorge Luis Borges, ambicionava justamente reescrever o primeiro tomo de Don Quixote. Essa Biografia do cavaleiro louco (ou Vida do cavaleiro enfeitiçado, segundo as retraduções) foi publicada no ano de 1922 em Shanghai, fortaleza da indústria do livro chinês, apelidada então "a Paris do Oriente", com suas editoras, tipografias e cafés literários. Lin Shu, consumido pela enfermidade, morre dois anos mais tarde e despede-se com esse meio-Quixote. Não é inútil lembrar que Don Quixote de la Mancha conta precisamente as peripécias de um homem idoso adoentado, apaixonado por romances de cavalaria e que estas seriam a tradução de um texto árabe que Cervantes, astuciosamente, atribui a um historiador muçulmano. O subterfúgio do falso tradutor era, desde o século XIV, um artifício recorrente na literatura cavalheiresca, cujos autores pretendiam frequentemente que seus escritos fossem na realidade traduções do toscano, do tártaro, do florentino, do grego, do húngaro, ou mesmo de línguas não identificadas. Portanto, a modernidade literária se inaugura em 1605 com uma obra que seria uma tradução e cujo protagonista é um leitor de romances. Fechou-se lindamente o círculo. Uma tradução, enquanto reescritura, por fiel que seja, não equivale de modo algum à obra original. José Ortega y Gasset notava a esse respeito que se trata, na melhor das hipóteses, de um caminho em direção a esta. A incrível cavalgada romanesca do engenhoso Lin Shu, secundado por seu fiel assistente Chen Jialin, longe de desmenti-lo, é ao contrário sua desconcertante ilustração.
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1Mikaël
Gómez Guthart (1981). É um tradutor e crítico literário. Traduziu ao espanhol obras de Jean-Jacques Rousseau, Maurice Merleau-Ponty e em francês autores como Alejandra Pizarnik, Enrique VilaMatas, Witold Gombrowicz e Miguel de Unamono. É autor da obra La Nouvelle Revue Française.
Catrin Welz-Stein Where Keys hang on Trees (2017)
LITERATURA BRASILEIRA
CONTOS
Rotas da lusofonia
AS CRIAS DO CRIADOR por
Luiz Francisco Guil1
Quando não havia nada, as tardes do Criador não eram tardes, porque não havia os dias. O Criador olhava para o nada e nada sentia, nada pensava e nada vivia. E, como não havia nada que o impulsionasse a criar coisa alguma, lá ficou o Criador em seu nada, dizendo a si mesmo que criar um mundo era uma dificuldade danada. Mas, numa segunda-feira de grande inspiração, o Criador criou o carrapicho, que inventou o velcro; depois criou as vespas, que inventaram suas casas de papel. Naquela tarde, criou as aranhas, que inventaram a rede; e, na terça-feira, o Criador criou as espigas de milho, que inventaram a ordem unida; e a palha do milho inventou o código de barras. Depois vieram as bromélias, que inventaram a espiral; e o copo de leite inventou a parábola; as formigas inventaram a monarquia; e, naquela noite, os vagalumes inventaram a lanterna. Na quarta-feira, o Criador criou os fungos, que inventaram a penicilina; e a serpente inventou a injeção intramuscular. Criado na quinta-feira, o Sol inventou a luz, o João de Barro inventou o condomínio de luxo; e as abelhas inventaram o hexágono. A minhoca inventou o metrô; o bicho serrador inventou a motosserra; e a lagarta inventou a seda. Na mesma sexta-feira em que fora criada, a maçã inventou a Lei da Gravidade; e as nuvens inventaram a eletricidade. Os lagos inventaram o espelho; os rios inventaram a curva; o dente-de-leão inventou o paraquedas; as borboletas inventaram a flâmula; e os pássaros inventaram a si mesmos. No sábado, o Criador criou o homem, que tem inventado as mais sofisticadas técnicas de reprodução. No domingo, o Criador retornou ao seu descanso eterno.
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Luiz Francisco Guil 1
(Prudentópolis, 1964). Escritor, historiador de cidades, compositor, artista plástico. Vencedor de vários prêmios literários nas categorias "conto" e "poesia".
Catrin Welz-Stein Spring Awakening (2017)
LITERATURA BRASILEIRA
CONTOS
Rotas da lusofonia
30 por
Luisa Benevides1
Apressada, minha crise dos 30 se insinuou aos 28, junto com os primeiros fios brancos e uma receita de creminho antirrugas. “Sua pele é muito fina”, decretou sem cerimônias a dermatologista, “temos que cuidar desse pé de galinha”. Cheguei no consultório falando de espinhas; saí com um prognóstico fatal na pele e amostras de colágeno na bolsa. A receita trouxe consigo uma séria questão: comprar o creminho seria um caminho sem volta. Creminho, aliás, era eufemismo: importado, custava uma pequena fortuna. Somei, mentalmente, o valor de todos os creminhos que compraria a partir de então, travando uma batalha que, mais cedo ou mais tarde, sairia perdedora. Triunfante, escondi a receita numa pasta: não iniciar a luta era, de alguma forma, sair ganhando. Hoje, aos 30, ainda não cedi ao creminho – nem à tinta nos cabelos. É um tanto estranho, mas admito: os fios brancos me trazem certo prazer. Reluzindo histórias para contar, cada fio traz à tona uma época vivida: entrada na faculdade, primeiro amor, saída de casa, primeiro emprego. Rebobino os 20 como quem lembra uma viagem - única porque minha. Ao invés de catar moedas e comprar creminhos, meus pés de galinha olharam as estrelas: quais viagens me esperam nesta fase que se inicia? Mas as rugas e os fios alvos foram só parte da crise. Visível e concreta, talvez por isso mais fácil de lidar. Sinto essa geração de mulheres se beneficiar do feminismo que pipoca hoje: nossos corpos começam a sair do domínio público para ganhar a esfera privada. Da máxima “homem de cabelo branco é charmoso; já mulher, é bruxa”, vejo despontar mais e mais grisalhas estilosas e donas de seus cabelos. Mas isso é papo pra outra história. Já a outra parte da crise, como ia falando, foi bem mais insossa. Passei os 29 com gosto de boca mordida, ruminando os medos da década que batia à porta. Sabe aquela gaveta bagunçada, que você sempre deixa pra arrumar depois? Pois é, essa gaveta era os 30. Menina, imaginava-me uma trintona de salto alto, planejando o segundo filho e indo trabalhar numa nave dos Jetsons. Mas lá estava eu com 29: de allstar, dando duro para alimentar dois gatos, e indo pra labuta cheia de dúvidas na cestinha da bicicleta. Foi, porém, a menina de allstar, e não a mulher de salto, quem juntou forças e arrumou a gaveta. Joguei fora o que já não me servia, botei para jogo o que tinha de mais precioso e, numa caixinha não muito grande, não muito pequena, guardei as dúvidas como quem guarda fotos e cartas – consciente de nelas haver um quê de poesia. Hoje, já de gaveta arrumada, qual não foi minha alegria ao deparar-me comigo mesma. Dos 30, não veio a outra, com respostas na bolsa de marca e longos cabelos soltos. A mulher que surgiu fui eu própria, com algumas dúvidas na bicicleta e outras certezas no coque bagunçado.
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Luisa Benevides (Rio 1
de Janeiro, 1986). É psicóloga e possui mestrado em filosofia pela Université de Toulouse, França. Hoje, passeia entre a psicologia e a literatura, trabalhando em eventos literários e ministrando oficinas de escrita. Já publicou alguns contos em antologias.
Catrin Welz-Stein Journey To The East (2017)
LITERATURA BRASILEIRA Rotas da lusofonia
TAJ MAHAL por
Caroline Reis1
Aff! Estou esperando há dias. Não! Meses. Deixe-me ver! Fomos comprados em novembro, agora é março... Aff! Muito tempo! O homem achou uma ideia ótima: “um quebra-cabeça do Taj Mahal”. Ok. Mas com 3000 peças? O idiota achou mesmo que ele, a mulher e o melequento do filho iam conseguir montar o Taj Mahal em pouco tempo? Enquanto estávamos na caixa, estava tudo uma bagunça, um por cima do outro, mas era divertido, éramos um bolão de peças. A primeira coisa que o imbecil fez foi nos separar por cores – ele disse ao filho que seria mais fácil assim. O garoto, claro, não estava nem um pouco interessado. Gordinho, está sempre comendo algo e vem pegar na gente com aquelas mãos sujas. Argh! sempre ficamos manchados e sujos. A mulher vem, reclama, dá uma esfregada e nos limpa. Depois suspira com cara de “pra que essa coisa?”. Mas o homem gosta. Empolga-se quando tenta nos unir. Se bem que, cada dia que passa, ele tenta menos. Antigamente, chegava do trabalho, corria pra mesa onde estamos acampados e ficava horas, separando, juntando. Agora, vem com menos frequência, e mais nos fins de semana. Também desistiu de ficar chamando o melequento (ainda bem), que sempre aparecia com cara de enjoo. Eu sou uma peça do prédio, sou branca acinzentada. Posso ser de qualquer lugar do monumento. Bom, pelo menos sei que não sou do jardim ou do lago. Essas já estão bem adiantadas na montagem. Mas o prédio, admito, é difícil mesmo. Eu, por exemplo, tenho cinco pontas ordinárias, quase como se eu fosse um ser humano, cabeça, braços e pernas. Gosto de pensar assim. Mas posso ficar de lado, de cabeça para baixo. Eu não tenho certeza. Não me lembro do dia em que nasci/me recortaram na fábrica. Estou aqui, junto a outras peças semelhantes. É bem verdade que, de vez em quando, o dono mexe em mim. Já tentou me encaixar na esquerda, já tentou me encaixar na direita, e nada! Na incapacidade do meu dono em me encaixar, às vezes, sou jogada de lado. Um dia, o melequento tentou me cortar para ver se eu me encaixava, mas o pai não deixou e disse que aquilo era fraude. O menino não sabia o que era fraude. Além disso, quando a gente encaixa alguma coisa por meio de fraude, as outras peças não encaixam também. A não ser que cortassem as outras também, mas ainda assim, alguma coisa ia acabar ficando torta. Acho que das três mil peças, já estão no lugar, dividias em três blocos, umas setecentas. Mas o idiota mor não desiste. Ainda bem, porque esse é meu trabalho! *** Estamos em maio, faz um mês que ninguém chega perto da gente. Estou achando que vamos ser todos unidos na caixa de novo. Isso é uma coisa boa. *** Felicidade de peça dura pouco. Hoje meu dono voltou a mexer na gente. Cara fechada e decidida. Tenho de reconhecer, estava fazendo um bom trabalho, encaixando um pedaço enorme, dois dos três blocos que havia feito. Acho que dessa vez eu entro. Não entrei. 18
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CONTOS
O melequento voltou e perguntou “ainda nisso?”, o pai não respondeu. *** Bom, agora já tem quase um ano que estou aqui. Faltam poucas peças, mas ninguém vem aqui com frequência. Hoje ouvi que são férias do homem e ele pretende ficar aqui conosco. *** O homem passou dias aqui conosco. Manipulou-me para todos os lados, mas é como se eu não quisesse me encaixar. Todas as peças foram se encaixando. Fui ficando cada vez mais tensa. Acreditei que era uma das peças de cima. Fiquei feliz. Ele também acreditou. Forçava-me em qualquer espaço, mas não dava. Voltava para as outras e elas iam uma a uma entrando em seu lugar. Eu não, eu resistia. Não por que quisesse. Não. Eu queria me encaixar. Queria ficar com minhas irmãs, novamente, juntas, ainda que não emboladas, organizadas em nossos lugares. Porém, cada vez o tempo passava, e ele não encontrava lugar para mim. Foi então que, no fim das férias, ele conseguiu montar tudo. E eu? Bom, eu era uma peça que sobrou. Talvez nem fosse parte do Taj Mahal. O idiota olhou pra mim, riu. Mostrou a família. O melequento me pegou e balbuciou alguma coisa que eu não entendi, até porque ele estava com um chiclete na boca. O homem pensava em emoldurar o quebra-cabeça, enquanto a mulher não conseguia ver espaço para aquilo, era melhor desmontar e guardar na caixa. Por um momento tive a esperança de voltar para caixa com os meus. Mas não foi o que aconteceu. Minhas irmãs foram mesmo reencaixotadas, enquanto eu fui cortada em pedaços pelo melequento. Em seguida, jogada fora. Bem feito para mim por nunca me encaixar.
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Caroline Reis
(Rio de Janeiro, 1980). Graduada, mestre e doutora em Letras pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Foi professora do ensino básico e superior durante todo o novo século. Atualmente é membro da Superintendência de Desenvolvimento de Pessoas da Secretaria de Estado de Educação do Rio de Janeiro.
Catrin Welz-Stein Hear Me Calling (2017)
LITERATURA BRASILEIRA
CONTOS
Rotas da lusofonia
ILHADO SEM GUARDA-CHUVA por
Manoela Souza1
Chovia com pouca intensidade, mas fazia bastante frio. Apesar da pouca chuva, eu estava ilhado na saída do supermercado. Moro aqui perto e havia esquecido meu guardachuva quando decidi almoçar no restaurante italiano da rua de trás. Aquela massa recheada estava ótima. Após minha refeição, recordei de pequenas coisas que faltavam em casa, meu café solúvel, papel higiênico, azeite, páprica, e algumas gramas de camarão para me arriscar na cozinha enquanto assisto masterchef. Então, quando estava na pequena fila para pagar minhas pequenas compras, avistei Luíza, minha ex, empurrando um carrinho que continha caixas de cereais de chocolate, e uma criança. Ela estava acompanhada de um homem alto que em nada se assemelhava a mim. Ambos usavam uma aliança dourada no anelar esquerdo. Pareciam felizes. Por uma fração de segundo cheguei a sentir inveja, mas, enquanto estivera comigo, Luíza queria uma família, e eu queria poder sair para comer no restaurante italiano da rua de trás e ficar ilhado no supermercado por ter esquecido o guarda-chuva. Queria poder ser o Marcelo antes de ser o marido de Luíza.
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Manoela Souza (Maceió, 1
1998). Contista, cronista, e estudante de Relações Públicas pela Universidade Federal de Alagoas.
Catrin Welz-Stein Entering Dreamland (2017)
LITERATURA BRASILEIRA
CRÔNICAS
Rotas da lusofonia
EU E MEU UBER TITANIC por
Paulo Emílio Azevêdo1
Lembro-me do dia em que "Titanic" fez sua estreia em Macaé - era ainda no belo Cine Clube, em 1998. O filme chegou nove meses depois do grande circuito, foi a primeira vez que saí de casa depois de meu acidente, lia Heidegger dia e noite. Também foi a primeira vez que vi uma fila de operários do mar comprando pipocas e deixando seus barcos dormirem. As freiras também vieram, mas seus hábitos não. Tinha gente que descobriu o corpo naquele dia e outros que já haviam consumido cinco ingressos - em vila de pescadores, a diversão, muitas vezes, é se tornar um mentiroso genial ou um delator premiado. Atrás de mim, havia dois guris de uns doze anos que contavam cada cena detalhadamente, antecipadamente - ainda não se dizia spoiler. Lembro-me quando um deles falou para o outro: "é agora, é agora, é agora que ele vai comer ela no banco de trás do carro" - moleque sacana aquele. Ontem sonhei que era o Di Caprio, acordei hoje loiro e de barba falhada. Falei em inglês com minha mãe que não entendeu nada e fez cara como quem diz "coitado, pirou de vez". Engraxei o sapato, pus o terno preto de festa, com a gravata borboleta, desci a escadaria e entrei num móvel - tocava "My heart will go on". Sem perder tempo, fui para o banco de trás, empolgado. Mas a realidade não é cinema - quando ouvi a risada dos atores percebi que estava num Uber Pool, com mais dois chineses, comendo pastel e tirando foto do Cristo. Mas tá beleza! Um dia a gente dorme em Macaé e acorda no Rio; um dia é Roma, outro é amor. A vida é uma estrada de palíndromos. Um dia ainda encontro a minha Kate Winslet ou Hannah Arendt.
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Paulo Emílio Azevêdo (Rio de Janeiro, 1975). Professor, Doutor pela PUC-Rio em Ciências Sociais, escritor, poeta e coreógrafo. Recebeu diversos prêmios, entre eles “Rumos Educação, Cultura e Arte” (2008/10) pelo Instituto Itaú Cultural e “Nada sobre nós sem nós” (201112) no âmbito da Escola Brasil/Ministéri o da Cultura para publicação do livro Notas sobre outros corpos possíveis (2014). Seu mais recente livro, O amor não nasce em muros (2016), tem prefácio assinado pelo editor chefe da Philos. 1
Catrin Welz-Stein Trust (2017)
LITERATURA BRASILEIRA
COLUNAS
Rotas da lusofonia
A MORTE, O MORTO E O MEDO DA MORTE por
Munique Duarte1
A morte nos causa reflexão e, obviamente, está em muitas obras publicadas de autores diversos. É um tema para inúmeras considerações e há autores que não perderam tempo ao colocar a criatividade e a genialidade em prática. Já pensou se a morte um dia “parasse de trabalhar”? O que aconteceria com funerárias, hospitais e empresas de seguro de vida? O que seria das famílias com entes queridos moribundos? Conseguiu imaginar? Não? Mas José Saramago sim! Em seu livro publicado em 2005, “As intermitências da morte”, o saudoso escritor português nos leva a um país onde a morte tirou férias, e acabou se enrolando até o pescoço. Protagonista da trama, ela assumiu a forma humana e deu até comunicado nacional em rede aberta. Também há a morte na perspectiva do morto, em um livro sensacional, “A morte de Olivier Becaille”, do escritor francês Émile Zola. Em uma manhã, o personagem passa mal, fica desacordado; na verdade, como um morto, mas continua ouvindo tudo o que se passa ao seu redor. Trata-se de um caso de catalepsia, uma “morte temporária” do corpo, já explicada pela medicina. Olivier sabe desse estado, mas a esposa não. Por fim, ele é enterrado vivo e narra a angústia dessa situação, com um final surpreendente. Alguns autores nos trouxeram, em suas obras, o medo da morte, um sentimento recorrente. Posso citar “A morte de Ivan Ilitch”, do escritor russo Lev Tolstói. O autor era obcecado pelo tema e lançou, em 1886, a história de um funcionário público que cai de uma escada, ao ajeitar a cortina de seu novo apartamento. Algo que parecia banal evolui para sintomas graves e irreversíveis. Um motivo e tanto para destrinchar a morte sob diversos aspectos. De acordo com o personagem principal, ela é indigna para aqueles que tanto brilharam em vida. Para citar uma obra nacional, há a famosa obra “Memórias póstumas de Brás Cubas”, de 1881, de Machado de Assis. O livro começa com descrição do enterro pelo próprio defunto, que assiste a tudo, de fora de seu corpo sem vida. “Sem choro, nem vela”, alguns escritores foram a fundo em sua imaginação para tratar desse tema “árduo e misterioso”. Não basta simplesmente que o personagem morra. Há várias especulações em torno e que nem chegam a questionar o que há depois, como paraíso, inferno ou outra existência. O próprio corpo sem vida já basta para a reflexão, a imaginação e a surpresa.
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Munique Duarte (Santos 1
Dumont, 1979). É jornalista, formada pela Universidade Federal de Juiz de Fora. Lecionou língua espanhola por dez anos, tendo estudado no CELEC – Córdoba (Argentina). Tem textos publicados em diversos sites, revistas e jornais literários, como Jornal Relevo, Jornal Opção, Revista Diversos Afins e Livro&Café. É idealizadora e apresentadora do programa mensal Literatura na Rádio Cultura, em Santos Dumont, Minas Gerais. Participou das antologias . É colunista da Philos na sessão “Não deixe de ler”.
Catrin Welz-Stein The Moon Ship (2017)
LITERATURA BRASILEIRA Rotas da lusofonia
A BARRIGA por
Caio Lobo1
Aquela barriga quis me dizer alguma coisa. Era todo um discurso silencioso, um mistério a ser desvendado. No corpo feminino de quarenta anos, a barriga tinha vinte. Mas não era só isso. Nem toda menina de vinte anos tem uma barriga tão perfeita como aquela. Tratava-se de uma barriga construída, trabalhada. A conjunção perfeita entre bons genes e muita malhação. Pele perfeita, cor perfeita, textura perfeita e - ainda que eu não a tenha tocado - consistência perfeita. Ela estava ali, diante de mim, exposta, orgulhosa como sua dona, que sentia prazer em me ver olhando-a, e que aceitou o elogio pela sua forma, de modo franco e confiante. Foram por esses pequenos olhares de admiração que ela tanto suara; é uma das recompensas pelo seu esforço diário. Ela anda ao redor da piscina como quem desfila, como quem venceu na vida. E sua barriga continua me dizendo algo ao ouvido, o palavreado sussurrado que ainda não captei, mas que não quer me deixar em paz. Ela disse algo – não a barriga, a proprietária – que me ressoa aos ouvidos até agora. Algo como “as mulheres finalmente apreenderam a colocar medo nos homens”. Afirmou isso em alto e bom som, de modo natural, como se anunciasse uma verdade óbvia, mas uma que não se diz assim, de forma tão aberta. A dona da barriga me pareceu, subitamente, um oráculo anunciando a mudança dos tempos. Ela dizia, sem mesmo o saber, o quanto o conflito entre os sexos se tornou acirrado e o quanto esta luta se desenrola no terreno da imagem. Fiquei me perguntando quanto dinheiro e suor haviam sido gastos naquela barriga. Sobretudo, se havia um ser humano por trás dela. E, não menos importante, se havia verdadeiros seres humanos apreciando-a. Se a velha reverência à forma não eram simplesmente estímulos biológicos antiquíssimos... Estímulos que necessitavam ser compreendidos como tais – e tão somente como tais – para que eu pudesse sustentar minha humanidade, para que eu pudesse ostentar minha suposta presença humana no mundo. Eu sei: faço-me incompreensível. Mas a culpa é da barriga. A barriga que ficou em mim mesmo depois de ter-se ido. Como uma autoridade. Como uma lei imperiosa que eu nunca questiono e que ninguém, entre os tolos, questiona. Eu fiquei me perguntando se, para ter uma barriga como aquela, para acariciá-la, mimá-la, endeusá-la, eu não precisaria também, eu mesmo possuir uma igual. Digo, se a minha barriga não precisaria de reformas, dinheiro investido, suor gasto. Estaria eu apaixonado pela barriga como Selton Melo apaixonou-se por uma bunda no Cheiro do ralo? É preciso ser belo para possuir o belo? Ou ser rico? Ou não ter barrigas? Lembrei-me da última foto da famosa atriz que saiu na imprensa. Os braços caquéticos, esqueléticos, aparecendo as veias. Um padrão social sugando um indivíduo, dizendo-lhe aos ouvidos que ainda não está magro o bastante, enquanto todos veem que ele se aproxima da desnu27
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COLUNAS
trição. Até onde um modelo imposto pode conduzir seres humanos? Não se trata mais de saúde. O corpo agora representa a possibilidade de ser aceito e amado. Não qualquer corpo, claro. Acho que Francis Fukuyama tinha razão. Não me refiro ao Fim da história, mas à grande mudança social ocorrida com o fim da Guerra Fria. O mundo se torna aberto, completamente exposto, as pessoas se comunicam, se veem. A internet as coloca na vitrine. Num universo como esse, o que todos querem é reconhecimento. Nesse ponto, acho que o autor acertou em cheio. As pessoas se percebem de modo mais intenso. Talvez elas vejam que, no fundo, no fundo, são muito parecidas. Então a necessidade de destacar-se faz sua [re]aparição. E, é claro, é melhor destacar-se imitando os padrões de sucesso. Subitamente, a imitação, quanto mais próxima do modelo, é o próprio sucesso. Lembro-me de um amigo dizendo: “Pô, ninguém curtiu minha postagem no Facebook”. Quer uma frase mais digna do seu tempo do que esta? Não é como dizer: “ninguém me viu, ninguém me reconheceu, ninguém reconheceu que o que expus tinha valor, ninguém reconheceu - por tabela - o valor que há em mim”? A própria existência de uma rede social como o Facebook já não diz tudo? E o que dizer da existência desse texto? A época dos grandes ideais, das grandes ideologias, das disputas sobre regimes políticos, da tutela do Estado sobre os indivíduos, tudo isso ruiu – ou melhor, implodiu. E as pessoas agora se encontram diante de dilemas menos sangrentos, em confronto com elas mesmas e com os outros. Não sei se esse confrontar-se consigo e com os outros tem sido uma experiência muito agradável. A barriga me diz que não. Ela parece traduzir um enorme desconforto entre o que se é e o que se precisa ser. A necessidade de expor a forma “correta” (perfeita?) para ser aceito, reconhecido e amado, como se o valor pudesse ser expresso em taxas de gordura reduzidas, no peso, ou em determinados formatos impostos por terceiros. A barriga está orgulhosa de si – e com razão – porque chegou onde queria, porque atingiu o ponto em que outros a podem reconhecerem. Mas será que todos veem aquilo que vi no rosto de quem a ostentava? Podem observar que a dona da barriga não sabe sequer se reconhecer? E que, por trás do seu orgulho, emerge uma intensa carga de tristeza? E que, sobretudo, ninguém consegue identificá-la justamente porque só tem olhos para sua barriga?
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1Caio
Lobo (Recife, 1979). Colunista da Philos, é formado em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco e Mestre em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília. Leitor compulsivo e romancista. Lançou recentemente o seu livro Trôpegos Visionários pela editora Kazuá.
Catrin Welz-Stein Sing me a Song (2017)
LITERATURA ESPAÑOLA
COLUMNAS
Rutas Literarias de Iberoamerica
COMO UN HACHA ROMPIENDO UN MAR HELADO EN TORNO A LA LECTURA DE Cristina Gálvez BUKOWSKI Martos por
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Hace un tiempo, no me interesaba para nada leer a Bukowski. Asumía lo que había en sus libros, en sus versos: alcohol, putas, sordidez, y algo de misoginia. Sin embargo, lo que sucede con determinadas lecturas o autores, es lo mismo que pasa en cuanto a personas o situaciones que nos rodean en la cotidianidad: asumir es, casi siempre, un acto de soberbia. Darse cuenta de algo, de cualquier cosa con mayor o menor relevancia, conlleva un proceso en el que, primero, nos permitimos observar mejor, más de cerca de lo que nos habíamos permitido anteriormente. De esa observación se va mostrando otra cosa distinta, que dialoga y choca con nuestra primera impresión, y crea un conflicto, una tensión ante la cual terminamos flexibilizándonos. Esto nos muestra, más allá de esa resistencia del ego, algo nuevo, otra cara de eso que miramos, pero se trata también de algo nuevo –y, sin embargo, familiar- en nosotros mismos. Opera entonces una transformación: de pronto, somos capaces de mirar con otros ojos, pero, a la vez, estos ojos resultan más propios, más auténticos. Me acercó a Bukowski una inclinación en común: el amor por los gatos. El poema “Historia de un duro hijo de puta”, con el que di por casualidad, me conmovió. Posteriormente, me encontré en una librería con una compilación, editada por la Colección Visor de Poesía, de poemas del autor dedicados a los gatos. En el momento no tenía el dinero para comprarla, pero me prometí volver por ella; sin embargo, aunque regresé, terminé quedándome con el poemario Arder en el fuego, ahogarse en el agua. Pienso que sólo debemos leer libros de los que muerden y pinchan. Si el libro que estamos leyendo no nos obliga a despertarnos como un puñetazo en la cara, ¿para qué molestarnos en leerlo? ¿Para que nos haga felices, como dice tu carta? Cielo santo, ¡seríamos igualmente felices si no tuviéramos ningún libro! Los libros que nos hagan felices podríamos escribirlos nosotros mismos, si no nos quedara otro remedio. Lo que necesitamos son libros que nos golpeen como una desgracia dolorosa, como la muerte de alguien a quien queríamos más que a nosotros mismos, libros que nos hagan sentirnos desterrados a los bosques más remotos, lejos de toda presencia humana, algo semejante al suicidio. Un libro 30
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debe ser el hacha que rompa el mar helado dentro de nosotros. Eso es lo que creo. Así dice Franz Kafka en una carta a su amigo Oskar Pollak. No sé si es lo que me sucede actualmente con la lectura de Bukowski –tal vez todavía es temprano para decirlo-, pero definitivamente se acerca. Arder en el agua, ahogarse en el fuego reposa sobre mi mesa de noche. No puedo hablar de La obra (así, con mayúsculas) de Bukowski. No puedo hablar de sus novelas, ni de su poesía en general, ni siquiera puedo hablar con toda propiedad de este libro que llevo a medias y que voy leyendo en los contados momentos que me permite el día a día, que se va entre el trabajo, los estudios, tratar de mantener en pie el apartamento donde vivo con mi pareja y alguna que otra cosa más. El mundo en que nos desenvolvemos nos exige, queramos o no, cambiar los cristales con los que miramos las cosas: aún cuando nos quieran vender fórmulas alteradas, cada vez se hace más evidente la cruda realidad. Y, después de todo, no es tan malo mirar las cosas como son. Tal vez lo que me ha generado esta lectura sea el alivio de la comprensión mutua, el encontrar un diálogo con el libro –y conmigo misma a través del libro-: Bukowski me encanta porque en él veo reflejado mi desencanto. Y, más importante, me voy haciendo a la idea de que ese desencanto no tiene por qué ser trágico. El ser humano pasa trabajo. Mejor dicho, la mayoría de los seres humanos pasan trabajo, mientras otros viven en la comodidad y el exceso. Pero unos y otros padecemos, de maneras no iguales, pero sí semejantes; y, al final, todos vamos a morirnos. Las carnes se ablandan, las ilusiones se desdibujan bajo la luz de la realidad, hay días tediosos, sin un ápice de brillo, días en que nos hallamos brutalmente intrascendentes: “y contemplé el sol a través de las hojillas de un árbol/ fuera, y no se me ocurrió nada maravilloso/ no se me ocurrió nada inmortal, y eso fue lo mejor” (“a vida”, p. 150-151). Estoy en la fila del supermercado. Un supermercado en un shopping, en una zona acomodada de la ciudad donde vivo. Delante de mí, en la fila para pagar, hay una señora con muchas cosas en el carrito. Realmente son muchas y sumamente variadas, pienso si acaso les da el tiempo para consumir tantas cosas en una casa. La señora es muy alta y voluminosa, tiene joyas y un abrigo casi hasta los pies, que, sin embargo, deja ver sus botas. La señora es tan grande que parece casi de otra especie cercana a la humana. La cajera pasa una cosa detrás de otra con un hastío resignado, yo miro y me siento más cercana a la especie de la cajera. Detrás de mí hay otra señora, con muchos años y muchas cirugías, que también parece de otra especie. Está llena de cosas brillantes: anillos, maquillaje brillante, uñas resplandecientes, una falda negra hasta los pies bajo la cual se asoman unas botas de tacón, negras, de cuero. Su cartera es brillante, su pelo es brillante, casi sintético. Mira cremas corporales mientras espera su turno para pagar. La música de fondo parece de Los Sims, y nos da a todos un aire de sims. Esta señora lleva diez cajitas de salmón teriyaki, del que venden ya preparado, lleva también manzanas y zanahorias (me gusta ver lo que compra la gente en las filas de los supermercados). Yo también me hastío y me pongo algo triste, pero a la vez siento compasión por todos nosotros. Mientras todos los demás/ apilan oro/ y Cadillacs y/ novias,/ yo pienso en hojas de palmera/ y lápidas/ y en la hermosura de un/ sueño larval;/ ser un lagarto sería/ bastante jodido/ como estar abocado a tener/ tamaño de Hombre y vida de Hombre/ y no querer tomar parte en/ el juego, no querer ametralladoras ni torres ni/ relojes registradores. (“ametralladoras, torres y relojes registradores”, p. 82). ¿De qué nos enorgullecemos como especie? Tal vez, después de todo, no somos tan sórdidos. O al menos no todo el tiempo. Hay atis31
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bos de ternura, de bondad, de belleza en nosotros. Es cierto que podemos ser tan elevados como ruines. Es verdad que estamos tan bendecidos como desahuciados. Y muchas veces la dulzura se encuentra bajo una capa amarga; si indagamos en la miseria encontramos, también, un esplendor. Pienso que para hallar algo verdaderamente valioso tenemos que vérnosla con aquello que no nos gusta: sólo lo verdadero tiene una dimensión realmente significativa, y la verdad no responde a nuestros caprichos. Creo que eso es lo que me salva a través de estos textos de Bukowski: la dimensión humana en todo su patetismo y, allí, inmersa, a veces casi imperceptible, nuestra virtud. Uno de los poemas que más me ha gustado de este libro se titula “los obreros”, y me devuelve a un pensamiento que he tenido antes, y es que lo bello casi nunca se percata de su propia belleza: ríen todo el rato/ incluso cuando/ cae un tablón/ y destroza una cara/ o deforma un/ cuerpo/ continúan/ riendo,/ cuando el color de un ojo/ se torna de una palidez pavorosa/ por causa de la luz/ escasa/ siguen riendo;/ arrugados e imbéciles/ ya a edad temprana/ bromean al respecto:/ un hombre que aparenta sesenta años/ dice/ tengo 32, y/ entonces se ríen/ se ríen todos. (“los obreros”, p. 74). Personalmente, no me sirve de nada indagar en si Bukowski es o no misógino (definitivamente algo de ello hay en sus textos, pero tal afirmación significaría pasar por alto cuestiones muy relativas), tampoco me sirve observarlo bajo conceptos morales, ya que precisamente su espíritu va sobre toda moralidad. Lo que me sirve de Bukowski es su capacidad de no negar la mierda de este mundo, por aplastante que sea, su valentía en despojarse de velos ilusorios y de enfrentar esa visión porque así, cruda, bruta, real, aún guarda algo valioso.
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1Cristina
Gálvez Martos (Caracas, Venezuela, 1987). Es Licenciada en Letras por la Universidad Central de Venezuela. En 2013 ganó el Concurso para Autores Inéditos de Monte Ávila Editores en la categoría de poesía con su obra Psicopompa, libro editado por la misma casa editorial en 2015. Su poemario Bicorne (Casa de las Letras Andrés Bello, 2016) obtuvo una mención en el VI Concurso Nacional de Poesía.
Catrin Welz-Stein Stranded (2017)
LITERATURA BRASILEIRA
COLUNAS
Rotas da lusofonia
CAVALOS DA EDUCAÇÃO, TIGRES DA IRA Sílvio Reis por
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Por séculos e séculos, cinco animais domesticáveis se mantêm no topo do pensamento,
da afetividade e nos provérbios. A Bíblia contribuiu com o Bezerro de Ouro, em forma de idolatria. O fabulista Esopo, no século 7 a.C, criou a Galinha dos Ovos de Ouro. Tempos depois, século 2 d.C, o argelino Lúcio Apuleio escreveu a sátira O Asno de Ouro. Faz de conta que o gato engoliu a grande estátua dourada do pássaro lendário e japonês Karura, a versão Garuda da lenda hindu. O cão comeu dois pomos de ouro da mitologia grega e usa um terceiro como coroa. Em nota à imprensa, mitos gregos informaram que os pomos roubados são banhados a ouro. Bijus. Disseram ainda que o lendário Grifo, que botava ovos de ouro em ninho de ouro, não faz parte dessa historinha de vaidades. Com cabeça e asas de águia em um corpo de leão, Grifo repudia esses cinco domesticáveis. Muitos animais têm repudiado uma pesquisa jornalística com 2.200 provérbios e expressões populares com citação animal. Abrangendo mais de 50 países, entre os 130 bichos registrados apenas cinco respondem por 45% do total de termos. É muito! Os equinos – cavalo, égua, burro, mula, asno – estão em 300 frases; 15% desse acervo linguístico. É uma afronta a 50 animais que aparecem em uma só frase. A girafa nem aparece. Em 2º lugar, com 170 frases feitas, bovinos alegam fraude na pesquisa. Há séculos eles fazem muuuu pelo mundo. No início de 1700, quando a população brasileira tinha 300 mil pessoas, três milhões de cabeças de gado já pastavam pelo País, conforme pesquisa do historiador José Augusto Pádua, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, UFRJ. O sociólogo Gilberto Freyre registrou que o boi e o cavalo fazem parte da formação do imaginário do folclore brasileiro. Dom Pedro II criou o primeiro selo postal do Brasil, que é o segundo selo do mundo: O Olho de Boi. Depois vieram o Olho de Cabra e o colorido Olho Gato. Irritado na 3ª posição, cães exigem ditos populares em regiões geladas, onde eles puxam trenó, são caçadores, vigias, bicho de estimação e se tornam alimento dos nativos, se faltar comida. De olho no 2º lugar, o engolidor de bijuterias de pomos critica a ausência do boi no conto Os Músicos de Bremen, dos irmãos Grimm. Nessa alegoria política, o burro representa os trabalhadores rurais; a galinha é uma alusão à classe operária; o cachorro fugiu dos militares; a gata busca a liberdade artística. Por falar em artista, gatos esnobam a participação do cão e do cavalo nas pinturas Os quatro estágios da Crueldade, de , em 1751. A quinta crueldade seria gatos lançados na fo-
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gueira, como as bruxas. “Ainda bem o tio Charles Perraut escreveu o Gato de Botas, em 1697”, disse o galo, que foi interrompido pelo galo, orgulhoso de ser o terceiro mascote no futebol brasileiro, atrás do leão. “E eu? E eu? E eu???”, ruge o leão, um dos destaques no Livro das Bestas, da Idade Média. Como ele foi parar na 13º posição dessa pesquisa? O primeiro selvagem, o lobo, aparece em 8ª lugar, à frente do Porco (5º) e Ovelha (6º). A Cobra, em 9º, se distanciou do 1º lugar entre, entre 60 animais mais presentes na astrologia e tarô. Fica ainda distante se a pesquisa considerar duas categorias genéricas, em que as espécies não são citadas. São os pássaros e peixes, abaixo da pontuação do gato. Essa preferência quase mundial pelos equídeos, bovinos, cães, galinhas e gatos torna cada um deles uma mina de ouro para os humanos. No poema Provérbios do Inferno, o autor inglês William Blake critica os domesticáveis, o pensamento cristão, sugere uma Nova Bíblia ou a Anti-Bíblia. No Inferno, os selvagens estão posicionados acima dos domesticáveis, com a justificativa: “Os tigres da ira são mais sábios que os cavalos da educação.”
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Sílvio Reis. É graduado em Jornalismo e exerce este ofício há 30 anos. Autor de pesquisas de linguagem, que resultaram em publicação de livros, atualmente ele se dedica à pesquisa, reportagens e artigos sobre a relação “homemanimal”. Os textos são divulgados em diversos veículos de comunicação e no blog vitorioregio.com 1
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REVISTA DE LITERATURA DA UNIÃO LATINA 19 agosto 2017 · REVISTA DE LITERATURA DE LA UNIÓN LATINA 19 agosto 2017