Philos v.3 n°.20 (2017)

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Philos PORTUGUÊS CATALÀ ESPAÑOL FRANÇAIS ITALIANO ROMÂNĂ

REVISTA DE LITERATURA DA UNIÃO LATINA 20 setembro 2017 · REVISTA DE LITERATURA DE LA UNIÓN LATINA 20 septiembre 2017


Philos PORTUGUÊS CATALÀ ESPAÑOL FRANÇAIS ITALIANO ROMÂNĂ

REVISTA DE LITERATURA DA UNIÃO LATINA 20 setembro 2017 · REVISTA DE LITERATURA DE LA UNIÓN LATINA 20 septiembre 2017

MÁRCIO CRUZEIRO CARLOS BARTH THASSIO FERREIRA LAURA TORRES MUNIQUE DUARTE DANIELA BALESTRETO ESTER CHAVES SÍLVIO REIS MAGDA FERNANDES DAVID ORTEGA KÁTIA GERLACH SÍLVIO REIS


PORTUGUÊS CATALÀ ESPAÑOL FRANÇAIS ITALIANO ROMÂNĂ

REVISTA DE LITERATURA DA UNIÃO LATINA 20 setembro 2017 · REVISTA DE LITERATURA DE LA UNIÓN LATINA 20 septiembre 2017

EXPEDIENTE

REVISTA DE LITERATURA DA UNIÃO LATINA REVISTA DE LITERATURA DE LA UNIÓN LATINA

Souza Pereira

EDITOR CHEFE | EDITOR EN JEFE

Sylvia de Montarroyos

COMITÊ EDITORIAL | COMITÉ EDITORIAL

Lucrecia Welter

REVISÃO DE TEXTOS | SUPERVISIÓN DE TEXTOS

Maus Hábitos

DESENHO E DIAGRAMAÇÃO | DISEGÑO Y DIAGRAMACIÓN

Cecilia Campironi

ILUSTRADOR | DIBUJANTE

SOBRE A OBRA DESTA EDIÇÃO | SOBRE LA OBRA DE ESTA EDICIÓN

Publicado originalmente em setembro de 2017 com o título Philos, Revista de literatura da União latina. Os textos desta edição são copyright © de seus respectivos autores. As opiniões expressas e o conteúdo dos textos são de exclusiva responsabilidade de seus autores. Todos os esforços foram realizados para a obtenção das autorizações dos autores das citações ou fotografias reproduzidas nesta revista. Entretanto, não foi possível obter informações que levassem a encontrar alguns titulares. Mas os direitos lhes foram reservados. Philos, Revista de Literatura da União Latina é registrada sob o número SNIIC AG-20883 no Sistema Nacional de Informações e Indicadores Culturais com Certificado de Reserva outorgado pelo Instituto Nacional de Direitos do Autor sob o registro: 10-2015-032213473700-121. ISSN 2527-113X. Revista Philos © 2017 Todos os direitos reservados. | Publicado originalmente en septiembre de 2017 con el título Philos, Revista de literatura de la Unión latina. Los textos de esta edición son copyright © de sus respectivos autores. Todos los esfuerzos fueron hechos para la obtención de las autorizaciones de los autores de las citaciones o fotografías reproducidas en esta revista. Sin embargo, no fue posible obtener informaciones que llevaran a encontrar algunos titulares. Pero los derechos les fueron reservados. Philos, Revista de Literatura de la Unión Latina es registrada bajo el número SNIIC AG-20883 en el Sistema Nacional de Informaciones e Indicadores Culturales con Certificado de Reserva otorgado por el Instituto Nacional de Derechos del Autor bajo el registro: 10-2015-032213473700121. ISSN 2527-113X. Revista Philos © 2017 Todos los derechos reservados.

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Philos, Revista Philos Revista de de Literatura Literatura da da União União Latina Latina || Revista Revista de de Literatura Literatura de de la la Unión Unión Latina. Latina.


EDITORIAL

REVISTA DE LITERATURA DA UNIÃO LATINA REVISTA DE LITERATURA DE LA UNIÓN LATINA Nesta edição, intenciona-se enfatizar o uso da língua e da linguagem artística fluida de nossa artista convidada, a italiana, Cecilia Campironi, para elaborar uma edição de composições orgânicas e de traços antropológicos. Percebe-se uma narrativa dupla e constante feita entre os textos de nossos autores e o esforço da artista em alcançar uma vitalidade para além das formas, faces e gestos humanos. Transitando entre essas linguagens, as ideias de cor e corpo aqui apresentadas ganham relevância e inspiram muitas discussões. Um dos nossos contos, "Sem título", de nossa colunista Kátia Gerlach, quer indagar uma voz ao nosso público, lançando um desafio de nomeá-lo. A publicação de número vinte da Philos é uma dessas importantes edições que se configuram para o público como uma nova leitura, atrelada ao uso da cor e dos gestos, dos traços humanos que remetem à nossa natureza numa prosopopeia das palavras. Desejamos uma ótima leitura, Souza Pereira

EDITOR CHEFE | EDITOR EN JEFE

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Philos Revista de Literatura da União Latina | Revista de Literatura de la Unión Latina.


EDITORIAL

REVISTA DE LITERATURA DA UNIÃO LATINA REVISTA DE LITERATURA DE LA UNIÓN LATINA En esta edición, intenciona enfatizarse el uso de la lengua y del lenguaje artístico fluida de nuestra artista invitada, la italiana, Cecilia Campironi, para elaborar una edición de composiciones orgánicas y de trazos antropológicos. Se percibe una narrativa pareja y constante hecha entre los textos de nuestros autores y el esfuerzo de la artista en alcanzar una vitalidade más allá de las formas, faces y gestos humanos. Transitando entre esos lenguajes, las ideas de memoria y cuerpo aquí presentadas ganan relevancia e inspiran muchas discusiones. Uno de nuestros cuentos, “Sin título”, de nuestra columnista Kátia Gerlach, quiere indagar una voz a nuestro público, lanzando un desafío de nombrarlo. La publicación de número veinte de la Philos es una de esas importantes ediciones que se configuran para el público como una nueva lectura, atrelada al uso del color y de los gestos, de los trazos humanos que remiten a nuestra naturaleza en una prosopopeia de las palabras. Deseamos una óptima lectura, Souza Pereira

EDITOR CHEFE | EDITOR EN JEFE

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SUMÁRIO | SUMARIO CONTOS | COLUNAS | ARTIGOS CUENTOS | COLUMNAS | ARTÍCULOS

8 Carlos, o

homem,

por MÁRCIO

CRUZEIRO

13 Ocaso de

uma meretriz,

por

CARLOS BARTH

16 Este não é

um texto de ficção, por THASSIO FERRIRA

19 Salvo os de sempre,

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21 Barata nos

livros,

por MUNIQUE

com lábias de mel, por SÍLVIO REIS

DUARTE

23 L’amica del cuore,

31 Minigalope

da DANIELA BALESTRERO

26 A máquina de ser,

por ESTER CHAVES

por LAURA TORRES

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34 Corpo

Impossível,

por

MAGDA FERNANDES

36 El último

filósofo,

por DAVID

ORTEGA

40 Sem título, por KÁTIA GERLACH


Cecilia Campironi Tutt’uno (2017)


LITERATURA BRASILEIRA Rotas da lusofonia

CARLOS, O HOMEM por

Márcio Cruzeiro1

Aquela manhã começou de maneira particularmente estranha. Parecia que o frigorífico não era o mesmo local onde Carlos trabalhava há vinte anos, a empacotar cortes congelados de aves. Duas décadas e centenas de milhares, talvez um milhão ou mais, de bandejas de coxas, fígados, moelas, peitos etc., que abasteciam a mesa de carnívoros e onívoros de todas as partes do mundo. Há cerca de dez anos a empresa começou a exportar para os cinco continentes. Os colegas lhe pareciam outras pessoas, mesmo aqueles mais antigos, que começaram ali junto com ele. As máquinas, quase todas de última geração tecnológica, adquiridas após a reestruturação da planta produtiva, ocorrida meses atrás, não se assemelhavam em nada àquelas que deixara no dia anterior, quando foi para casa, ao final do expediente. Sentia-se, ele próprio, diferente, tanto do ponto vista mental quanto físico. As ideias simples e corriqueiras, que martelavam seu pensamento durante o expediente, que podia se estender a dez horas, nos dias em que fazia horas extras, foram substituídas por outras, que nunca haviam ocupado anteriormente sua cabeça de operário. Ao invés de imaginar a cerveja e o futebol do final de semana, perdia-se em especulações do tipo: como sua existência era vazia, dedicada, metade dela, a embrulhar vísceras de frango, apenas para sobreviver, jogar futebol e tomar cerveja aos finais de semana. Nunca se preocupara antes com esses termos da vida. O corpo, por sua vez, notadamente a perna esquerda, lhe proporcionava sensações também inusitadas. Tentava alongar o membro inferior direito ou o pressionava contra o piso para trazê-lo de volta à consciência de comandado, mas ele continuava a julgar que tinha vida própria e independência. Apesar disso, não sentia dor. Quando registrou o ponto eletrônico e saiu da fábrica, às 17:30 h, aquela rua, pela qual caminhava durante vinte minutos até em casa, não era a mesma rua, embora nada tivesse mudado, nem os prédios, nem os ambulantes, nem os veículos que naquele horário se repetiam dia após dia, final de expediente após final de expediente. Andou na trajetória e velocidade costumeiras, de volta ao lar, e quando entrou pela sala não sentiu vontade de beijar a mulher, como fazia todos os dias, há vinte anos. Sentou-se à mesa da cozinha, uma velha mesa de madeira rústica que também se transformara a seu olhar, estendeu a mão até a geladeira, pegou uma cerveja e começou a beber. A mulher estranhou a súbita mudança de hábito e quis saber a razão de seu comportamento taciturno. - O que houve, meu bem? Perguntou, gentilmente, enquanto acariciava os cabelos já ralos e brancos do marido, aos quarenta anos. - Nada importante. Sinto-me um pouco diferente hoje, só isso. - Está tudo bem no frigorífico? - Sim, foi um dia tranquilo, normal como todos os outros. É apenas uma sensação estranha de que as coisas mudaram. A fábrica, a rua, meus companheiros, eu mesmo, você. 8

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CONTOS


- Vá descansar um pouco, meu amor. Talvez sejam apenas o cansaço e a preocupação diante das demissões que ocorreram nos últimos tempos. Deu na mulher o beijo postergado e foi para o quarto. A cerveja ficou pela metade sobre a mesa. Aquela cerveja, a propósito, não era a mesma que ele bebia nos fins de semana, há mais de vinte anos. Parecia, hoje, ter um certo gosto metálico. Por volta das 20:00 h a mulher de Carlos decidiu acordá-lo para um banho e o jantar, mas não obteve sucesso. O marido dormia profundamente e após algumas tentativas ela resolveu abandoná-lo ao inusitado cansaço que o dominava. Ele acordou, como sempre, às 06:00 h e lembrou-se de que se deitara às 18:00 h do dia anterior, sem banho ou jantar. Dirigiu-se ao banheiro e percebeu que a sensação de estranheza não apenas continuava, como se acentuara. As paredes da casa pareciam estar fluídas, as cores dançavam entre tons que nunca vira antes. Imaginou que ao tomar uma ducha recobraria a clareza das ideias e sensações, mas mesmo os pingos que lhe caíam no corpo não lhe causavam prazer como antes e esse antes era apenas a manhã de ontem. “Será que estou doente ou enlouquecendo?”, perguntou-se, em pensamento. A ideia de loucura tornava-se mais forte a cada ação corriqueira, como calçar os sapatos, tomar o café da manhã, alimentar o gato. Tudo aquilo era um mundo que parecia descolar-se de sua existência. Sentia como se seu ser estivesse a penetrar em outra dimensão ou era o mundo que se esvaía, em uma fumaça sem cor e cheiro, como se estivesse a ser apagado com uma borracha, bem na sua frente e sem sua permissão. Num gigantesco esforço, tentou recobrar a lucidez, levantou-se da mesa de café da manhã, vestiu o uniforme branco, despediu-se da mulher e saiu a caminhar para o trabalho. No percurso notou que a perna esquerda apresentava os mesmos sintomas que acometeram sua companheira um dia antes. Formigava, ameaçava passos mais largos, ensaiava um chute no ar sem o consentimento do seu senhor, mas também não doía. As conversas no trabalho passaram a irritar Carlos. Não apreciava mais as brincadeiras dos colegas, nem mesmo dos amigos. A presença do supervisor era o que mais o incomodava e todas as vezes que este passava pela linha de produção, a acompanhar lentamente todos os operários, para verificar se o ritmo estava adequado às necessidades da planilha de controle que ostentava em seu tablet, Carlos sentia uma pulsão de esmurrá-lo, ali mesmo no meio dos miúdos e coxas de frango. Após quebrar-lhe os dentes com socos poderosos, encheria sua boca de fígado e moela congelados e o faria engolir sem mastigar, até sufocar e morrer, para deleite dos duzentos homens e mulheres que a ele se submetiam todos os dias. Após o quinto dia do início de sua transformação, ou do mundo à sua volta, Carlos acordou de madrugada com os braços, o abdome e a cabeça a formigar e a retorcer. Seus músculos se contraíam e pulsavam de forma frenética, seu rosto se contorcia, os olhos reviravam e o estômago aparentava estar tomado por um líquido quente, embora ele não comesse ou bebesse há várias horas. Levantou-se com dificuldade e foi ao banheiro. A cabeça estava mais pesada que de costume. Ensaiou um grito quando sentiu algo apertarlhe dentro da boca. Ao abri-la notou que os dentes mudaram de cor, era como se fossem todos restaurados com aquele amálgama metálico que os dentistas utilizam. Sua cabeça girou e ele teve que se segurar na pia para não cair. Nesse momento deu um soco na parede e quase a atravessou. Percebeu que tinha uma força descomunal. Não sentiu nenhuma dor. Quando recolheu a mão, notou um pequeno ferimento na pele. Um ferimento diferente. Não sangrava. Por baixo não havia sangue ou carne, senão um brilho metálico. Apavorou-se. Ainda conseguia apavorar-se. Rasgou sem dificuldade aquela pequena ruptura de pele e viu que sua mão não era mais carne, músculos, nervos, sangue, ossos. 9

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Era metálica. Um metal prateado, muito brilhante. Continuou a remover a pele, com angústia e crescente pavor, quase às lágrimas, se ainda existissem, e após alguns minutos havia retirado toda a sua casca e deixado a nu um novo corpo de puro metal. Restava apenas o rosto. Olhou-se no espelho e conseguiu enxergar o último brilho humano em seus olhos castanho-claros. A pele do rosto estava rompida em múltiplos rasgos, de onde brotavam a luminescência argêntea que já dominava o restante do corpo. Rompeu violentamente, com as mãos, o restante da pele da face e trouxe com ela toda a cobertura biológica da cabeça. Carlos não era mais humano. Tentou chorar ou gritar, mas as sensações de alguns minutos atrás, como o coração disparado e o pavor que sentia com aquela horrenda metamorfose, já não existiam mais. Sua consciência de homem ainda resistia, mesmo que pulverizada e restrita a certas conexões com sentimentos e pensamentos, dos quais se poderia dizer “um tanto desumanizados”. Pensava em violência, em desespero, em vingança, em morte. Carlos, ou o que sobrara dele, ainda tinha uma missão a cumprir. Era o trabalho no frigorífico. Sem se preocupar em recolher sua couraça que jazia, exangue, no chão do banheiro, voltou para o quarto, vestiu o impoluto uniforme branco, bordado com seu nome e o dia da semana, e foi para o trabalho. Não acordou a mulher. Ele não tinha mais uma mulher ou ela não o tinha mais. Caminhou como de costume, e não obstante sua peculiar condição, os olhares dos demais transeuntes mostravam-se pouco espantados. Chegou mais rápido de que em geral o fazia, registrou o ponto eletrônico às 07:10 h, quarenta minutos antes do horário padrão, e foi para sua mesa de trabalho, empacotar, como há duas décadas se repetia, vísceras de galinha. O salão estava praticamente vazio e além dele só havia alguns funcionários do estoque e outros a concluir a limpeza. Olharamse, sem conseguir compreender bem o que se passava com o colega. “Por que ele havia pintado o corpo com uma tinta prateada? Teria enlouquecido?”. Ele manteve-se, como sempre, mecanicamente concentrado em sua tarefa, e sua produtividade hoje com certeza superaria em muito as metas estabelecidas no tablet do supervisor. À medida que chegavam, os outros operários, já avisados, evitavam passar perto de Carlos e aguardavam o encarregado para tomar as providências necessárias. O homem-metal continuava seu trabalho sistemático, com uma qualidade jamais vista. Nenhuma das bandejas submetidas à balança tinha um grama a mais ou a menos que um quilo e eram lacradas com inusitado esmero e rapidez incomum. Produzira, em apenas meia hora, o que em geral levaria três ou quatro horas para fazer. Quando a sirene que anunciava o início do expediente matutino tocou, exatamente à 07:50 h, todos já estavam em seus postos de trabalho, porém não conseguiam concentrarse em razão da presença do homem que até ontem era um colega qualquer da estação ao lado e hoje aparecera como um louco pintado de tinta metálica. E trabalhava como um louco. O supervisor entrou no salão dez minutos após e, igualmente alertado, foi direto à mesa de Carlos. Dirigiu-se rispidamente ao subordinado, como sempre fazia com todos os outros, e perguntou: - O que o senhor pensa que está fazendo, Sr. Carlos, que brincadeira é essa? As palavras ásperas do supervisor terminaram por liquidar os últimos e tênues nexos que Carlos tinha com sua vida humana. O homem-metal que ali estava, a tentar reproduzir da mesma forma mecanicista a vida servil de seu antecessor, “Carlos, o homem”, virou-se com a faca frigorífica de fio implacável nas mãos e, com um só golpe, penetrou-a o peito do encarregado, que mal teve tempo de levar uma das mãos à região atingida, antes de morrer. 10

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O assassino levantou com facilidade o corpo da vítima e colocou-o sobre a mesa de trabalho. Com movimentos rápidos e precisos extraiu o coração, que a faca transpassara exatamente no centro, o fígado, o baço, os rins e o pâncreas. Em seguida picou-os em pequenos pedaços, do tamanho das moelas e fígados que “Carlos, o homem”, empacotou durante metade da existência. Entre correria e gritos de desespero, os seguranças chegaram ao salão para conter e deter o matador do encarregado. Ordenaram-lhe que largasse a faca e se deitasse com as mãos na nuca, porém ele não os obedeceu. “Carlos, o homem”, após picar e empacotar as vísceras do supervisor de produção, com o mesmo capricho que dispensava aos miúdos de frango, despareceu por completo. Ali não havia mais um ser humano, senão apenas um bloco de metal em forma humanoide, animado tão somente por uma incontrolável força destrutiva, cuja finalidade era infligir, a tudo e todos, o caos e a dor. Quando ele se virou com a faca nas mãos, os três guardas já estavam de armas a postos e dispararam várias vezes contra aquela massa de metal sob o uniforme branco encharcado com o sangue do supervisor. Os projéteis não penetravam a couraça, mas por alguma potência instintiva, o homem metal rasgou e atirou fora as roupas, pulou sobre as mesas e correu em direção à parede, rompendo-a com o próprio corpo. Saiu no pátio do estacionamento e começou a correr pela rua. À medida que corria mais rápido foi se liquefazendo, a criar um rastro de líquido prateado até desparecer completamente. Os passantes viram-no se desfazer e muitos julgaram que se tratava de número de mágica, destinado a promover algum produto ou empresa. Depois que o último fio de metal de “Carlos, o homem”, quedou no passeio, todos voltaram a caminhar normalmente, como se nada fosse capaz de interromper suas trajetórias cotidianas. O líquido cromado foi aos poucos absorvido pelas solas dos sapatos e, em alguns minutos havia apenas manchas indiscerníveis de uma sujeira que logo a água da chuva ou das mangueiras de limpeza das casas e do comércio conduziria para os dutos pluviais. No dia seguinte, a parede do salão de produção do frigorífico já estava reparada, havia um substituto para o operário que matara o supervisor, a trabalhar na mesma mesa onde este fora imolado, e um novo encarregado portava o mesmo tablet, com a mesma planilha de metas, que estampava quantos quilos de vísceras e coxas de frango deveriam ser processadas por cada um dos futuros homens-metais.

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Márcio Cruzeiro 1

(Piracanjuba, 1964). Historiador, servidor público e contista.


Cecilia Campironi Tutt’uno (2017)


LITERATURA FRANCESA Rotas da francofonia

OCASO DE UMA MERETRIZ por

Carlos Barth1

Verônica bebeu um gole da vodka enquanto batia o cigarro no cinzeiro encima da mesa. Mais um cliente havia preferido a companhia de outra menina à sua. Era uma quinta-feira, dia de bom movimento, e ainda não havia feito nenhum programa. Era difícil admitir, mas a idade chegara e seus tempos de glória haviam acabado. Bebeu mais um gole. Suspirou. Olhava para os homens com desgosto. Não por serem eles em sua maioria casados e estarem num puteiro. Já havia passado há muito tempo da fase de querer julgar alguém. Quem era ela para fazer juízo do comportamento alheio? Sua mágoa era que os homens não a queriam mais. Entretanto, isso não deveria ser nenhuma surpresa. Afinal, quem vai à zona para comer uma mulher envelhecida igual à que tem em casa? Tragou a fumaça do cigarro. Gostava daquela sensação. Havia entrado mais um cliente que olhou ao redor, hesitou por um momento e foi sentar-se com a baianinha. A menina chamava a atenção, tinha que admitir. Ainda mais sendo uma mulata em terras gaúchas. Verônica fixou os olhos na garota. Já fora como ela: jovem, bonita e gostosa. Mas sua hora chegará, minha filha! Ficará como eu. Uma velha caída e rejeitada. Será seu fim. Game over para você, minha flor! O ódio e a inveja ferviam seu sangue, o que lhe dava uma sensação muito agradável. Será que vou acabar como a Jaqueline? Largar a vida de puta e ficar viajando ao Paraguai para trazer muamba? Porra nenhuma! Prefiro tomar chumbinho a virar sacoleira. O pior de tudo era que não podia se queixar da sorte. Conhecia centenas - talvez milhares de meninas que trabalhavam em condições muito piores. Prostitutas de rua, sujeitas a todos os tipos de violência, ou mantidas em regime de escravidão por gigolôs sem escrúpulos. Ela sempre trabalhou em casas relativamente boas. Ganhara muito dinheiro, mas não guardou nada. Torrou tudo com cocaína e bebida. A verdade era que teve boas oportunidades de ter uma vida melhor. Lembrou-se do caso que teve com o engenheiro há uns dez anos. Ele a levou para sua cidade no interior, mobiliou um apartamento para ela e arranjou um trabalho de secretária na firma de um amigo. Mas aquela vida bovina de acordar todos os dias com as galinhas não era para Verônica. Ainda mais naquela cidadezinha provinciana, cheia de gente atrasada. Largou o emprego e voltou para Porto Alegre. Foda-se! Recapitulando, talvez tenha sido uma das poucas atitudes acertadas que tomara na vida, já que o tonto estava querendo largar a mulher e os filhos para ficar com ela. Iria acabar com a vida do sujeito. Foi melhor assim. 13

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CONTOS


Bebeu um largo gole da vodka. É pau, é pedra, é o fim do caminho, dizia um desses caras da MPB. Ou seria a própria Elis? Não importa. O fato é que ao final de vinte anos trabalhando como prostituta contabilizava três abortos, dois casamentos totalmente loucos e inconsequentes que não passaram de seis meses e uma conta bancária que não dava para pagar o aluguel no final do mês se ficasse doente. Agora estava aqui nesse puteiro meia-boca, mas era onde ainda podia trabalhar uma mulher da vida em final de carreira como ela. Preços acessíveis para atender ao pessoal do porto e do comércio. Carne de segunda mão. Até seu nome de guerra havia mudado. Nathália já não combinava mais com ela. Era até uma sacanagem com a memória dos bons tempos. Achou que Verônica era mais forte. Combinava com sua voz rouca devido à nicotina e bebida. E pensar que iniciou sua carreira como Shirley. Que nome ridículo! Mas, francamente, com aquele corpo poderia se chamar até Amélia que formariam filas de homens à sua porta aguardando a vez. A mulatinha subiu com o cliente que chegara há pouco. A loira desgraçada levou o frangote pro quarto. Bebeu um generoso gole de vodka em homenagem aos inúmeros meninos que desvirginou. Pelo menos isso. Ficaria na memória de muitos homens como a primeira mulher em suas vidas. Se todo mundo tem um propósito nesse mundo, quem sabe esse não era o seu? Bebeu o último gole da vodka e amassou a bituca do cigarro no cinzeiro. Recostou-se na cadeira, jogou a cabeça para trás e fechou os olhos. Suspirou fundo. Talvez esse lance de trazer muamba do Paraguai não seja tão ruim assim.

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Carlos Barth

(São Leopoldo, Rio Grande do Sul, 1979). É engenheiro de profissão e escreve por prazer. Teve trabalhos publicados nas Revistas Philos e Subjetiva.


Cecilia Campironi Tutt’uno (2017)


LITERATURA BRASILEIRA Rotas da lusofonia

ESTE NÃO É UM TEXTO DE FICÇÃO por

Thassio Ferreira1

Este não é um texto de ficção. Embora eu não garanta que tudo a seguir seja verdade. Não nos apresentamos ainda formalmente. Aliás, é para isso que escrevo neste momento. Apresentar-me. Chamo-me Thássio. De verdade. Mas nos conhecemos de todo modo. De certo modo, ao menos. Eu sou escritor. Provavelmente você nunca leu nada meu. Mas já publiquei por aí. Um desses novos escritores, cujo nome é ou não familiar, pelas infinitas páginas do mundo físico e da internet, tentando neste momento agarrar sua atenção. Você nos conhece. E também, de certo modo, eu conheço você. Quem lê. Onívoramente, se for como eu mais do que menos um tanto. Eu conheço você, acho, talvez, lendo, tentando decidir, neste momento, se vai em frente. Vá em frente, por gentileza. Gosto de contar que quando me alfabetizei ganhei de presente um livro em rimas, No Reino da Pata Leca: “No sopé da grande serra / onde o céu toca na terra / é o começo dessa história / guardem todos na memória”. Eu guardei. Acho que foi minha primeira porrada poética. Vieram outras. Clarice, por exemplo. Em um poema digo (Digo? Não. Os poemas dizemse, não somos nós que dizemos neles) que jamais poeta algum moldou a língua portuguesa como Clarice Lispector. Licença poética apenas, gente, não é teoria literária. Mas as minhas influências talvez não interessem a você neste momento. Interessa o que eu tenho a dizer. Eu vou chegar lá, vá em frente, por gentileza. Para além de me conhecer teoricamente, você talvez já tenha lido, aqui na Philos mesmo, meu nome e algumas palavras minhas (Minhas? Não. As palavras são do mundo, nós apenas as arquitetamos como quem arquiteta fotografar o sol mas nem por isso se apossa da luz). Publiquei dois poemas em janeiro deste ano. E depois fui correspondente da Revista na FLIP, a Festa Literária Internacional de Paraty. E depois desse depois, mas ainda dentro dele (sim, eu quase sempre sou, ou soo, um tanto plurívoco, mas tentarei não ser confuso além do necessário, ou do saboroso), publiquei na íntegra uma entrevista que havia inaugurado, em versão parcial, a correspondência na FLIP. Agora é diferente. Mais pessoal. Autoral. Conhecer o que já publiquei, aqui na Philos ou alhures (regrandificar a beleza de palavras esquecidas: alhures!), é fácil: uma busca no site, uma olhada ali no Sobre o Autor. Você já me conhece, teoricamente, e já conhece, ou pode conhecer a qualquer momento, a qualquer clique, o que publiquei por aí, por aqui. Mas o que você conhece de mim não é o que eu sou neste momento, enquanto escrevo para que me conheça. Nem o que desejo que você conheça do que irei escrever e publicar agora que me tornei colunista da Philos. Por isso, essa longa apresentação. 16

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COLUNAS


Quem escrevo agora é este, pois: o novo colunista da Philos. Tentando agarrar sua atenção hoje e daqui para a frente. Deixando que poemas que virão digam-se aqui neste espaço, com sua voz de poema, com sua carne de poema, com seu desenho de poema que eu não sei de onde virão. Mas virão. Arquitetando palavras outras, em prosa, em entrevistas, em fragmentos, experimentos, arquitetando a palavra em casa e em desabrigo, em pulsação e regaço, a cada vez que eu vier aqui escrever para você. Oferecer-me a você. Venha comigo. Vamos em frente, por gentileza.

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1Thássio

Ferreira (Rio de Janeiro, 1982). É poeta e contista, autor do livro de poemas (DES)NU(DO) (Íbis Libris, 2016) e de contos publicados nas antologias Prêmio VIP de Literatura 2016 (A.R. Publisher, 2016) e “Entre Amigos” (Sinna, 2016). Recentemente, seu livro inédito de contos “Cartografias” foi um dos préselecionados ao Prêmio Sesc de Literatura 2017. Tem poemas e contos publicados em revistas diversas como Philos, Germina, Mallarmargens, Revista Semeadura e Avessa.


Cecilia Campironi Tutt’uno (2017)


LITERATURA BRASILEIRA

EXPERIM.

Rotas da lusofonia

SALVO OS DE SEMPRE Laura Torres por

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o pai olhou para baixo, para o jornal onde lia sobre a miséria da aprovação da reforma trabalhista, em seu roupão azul puído e à direita sua caixa de remédios para diabetes e pressão e sorriu um sorriso de vitória, porque tinha salvo a filha da barbárie, tinha deixado-a a salvo simplesmente por colocar música erudita na hora do almoço, no programa de rádio que os entendedores torciam o nariz sempre que era mencionado, sua filha estava salva, ela saberia os códigos dos homens de escritórios com piso luzidio e estantes de madeira de lei, hoje um pouco modificados na estética, é verdade, mas ainda os mesmos senhores ou os filhos ou os netos dos senhores que lhe negaram leite e pão ao não honrar a dívida que tinham com o pai do pai, a filha poderia entrar nesses escritórios, ter ela mesma um escritório, ser chamada de doutora e não ter nunca que baixar os olhos e repetir “sim, senhor”, nem ter o medo, o medo que gela os ossos, o medo de estar à mercê sim senhor, eu entendo, claro, agora não é possível/não há vagas/não é mais necessário, sim, senhor, como o senhor quiser, é claro que eu posso, mais horas sim, senhor - o pai tinha certeza, ali, velho, depois de toda uma vida tendo chefes - “o melhor patrão é o Estado” - seus olhos grandes que a filha tinha herdado, olhos de criança que ele com muito cansaço passava pelo jornal, o cansaço de uma vida chamando os outros de doutor mas a filha, a filha escaparia com certeza e pai nós não escaparemos. ninguém escapará, salvo os de sempre.

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1

Laura Torres

(Belo Horizonte, 1981). Poeta de gaveta e revisora de textos alheios.


Cecilia Campironi Tutt’uno (2017)


LITERATURA BRASILEIRA

COLUNAS

Rotas da lusofonia

BARATAS NOS LIVROS por

Munique Duarte1

Terminou o verão, época típica das baratas. Você encontrou alguma em sua casa? Pois o que é repugnante aqui, na vida concreta, na literatura pode ganhar outro conceito, que não seja tão nojento assim. Vou começar falando de “A metamorfose”, do escritor tcheco Franz Kafka, que completou cem anos de publicação em 2015. Sim, é um livro antigo, mas é considerado um clássico, um dos mais traduzidos e lidos do mundo, que desperta discussões até hoje por seu conteúdo surreal. Em um dia, como outro qualquer, o personagem principal, o jovem Gregor Samsa, acorda atrasado para o trabalho e nota que não é mais um humano, e sim um inseto monstruoso. Pelas descrições de Kafka, trata-se, certamente, de uma barata. O surpreendente é que Gregor está muito mais preocupado com o horário de chegada ao trabalho do que com sua forma horrenda. Toda a família de Gregor é sustentada pelo emprego dele, que agora corre risco. Os pais se preocupam mais com isso, com o dinheiro que tem que entrar na casa, do que com a metamorfose do filho. A irmã é a única que demonstra compaixão, selecionando os restos de lixo que podem ser dados a ele, que nunca mais sairá do quarto. Outra obra que também traz a barata em destaque é “A paixão segundo G.H.”, de Clarice Lispector, livro lançado em 1964, da autora que faleceu em 1977. O inseto não é o personagem principal, mas participa de uma cena fenomenal da literatura brasileira. G.H. é uma mulher bem sucedida que se vê sozinha em seu apartamento, depois da demissão da empregada. Ao conferir como a mulher deixou seu quarto, encontra uma barata no armário vazio e a esmaga com a porta. A partir disso, a personagem mergulha em reflexões profundas sobre o sentido da vida, até que resolve provar do corpo da barata, “de sua massa amarelada”, em um ato de “comunhão” com o inseto. Na língua portuguesa, há um verbo chamado desbaratar, que significa afugentar, “colocar para correr”. Esses personagens não fizeram isso. Ao contrário, mostraram-nos o inusitado, o inesperado. São duas dicas de leitura que valem a pena! “A metamorfose”, de Kafka, é um livro fininho, ótimo para quem está começando no hábito da leitura. E eis que o ser repugnante se transformou em algo mágico. A literatura tem esse poder.

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Munique Duarte (Santos 1

Dumont, 1979). É jornalista, formada pela Universidade Federal de Juiz de Fora. Lecionou língua espanhola por dez anos, tendo estudado no CELEC – Córdoba (Argentina). Tem textos publicados em diversos sites, revistas e jornais literários, como Jornal Relevo, Jornal Opção, Revista Diversos Afins e Livro&Café. É idealizadora e apresentadora do programa mensal Literatura na Rádio Cultura, em Santos Dumont, Minas Gerais. Participou das antologias . É colunista da Philos na sessão “Não deixe de ler”.


Cecilia Campironi Tutt’uno (2017)


LETTERATURA ITALIANA Per una latinità plurale

L’AMICA DEL CUORE da

Daniela Balestrero1

Milena era seduta al tavolino di quel bar già da parecchi minuti e non aveva ancora ordinato nulla, per fortuna i proprietari erano suoi amici e non c'era molta confusione, così da lasciarla tranquilla a guardare dall'ampia vetrata, sorridendole di tanto in tanto. Tranquilla...si fa per dire! Gli impercettibili ammiccamenti di chi le passava accanto parevano sottolineare la sua inutile attesa, forse di un uomo che non sarebbe mai arrivato. Lei non se ne curò, mostrando un'indifferenza che non aveva. In realtà era arrivata troppo in anticipo, ma l'emozione di rivedere Paola era tanta. Quanti anni erano passati da quei lontani banchi di scuola, forse 35 o 40... A quell'epoca non pensavano al domani, ma ora all'ombra della cinquantina, era tutta un'altra cosa. Paola era la ragazza irraggiungibile: sicura di sé, bella, spigliata, “più avanti”... Insomma, la più ricercata dai ragazzi e la più odiata dalle ragazze. E Milena non faceva eccezione. Non rispondeva al genere di amicizia che Paola cercava, non poteva tenere il suo ritmo, ma fu proprio questo ad avvicinarle, lentamente, inesorabilmente, come una calamita. Un richiamo che Paola aveva fatto suo, ma che Milena ancora ignorava. Incominciarono a parlare dei loro problemi di adolescenti, delle difficoltà in famiglia, Milena la sentiva vicina, simile a lei, così che la sua impossibilità di fare nuove esperienze e la sua ingenuità si allontanarono. Fu lei ad aiutarla con il suo primo ragazzo dandogli i primi rudimentali consigli. Paola l'esperta, Paola la leader, ora appariva una ragazzina qualsiasi: ma era davvero così? Dopo tanto tempo, ora sarebbe entrata da quella porta che Milena fissava incessantemente. Aveva ritrovato per caso, alcuni giorni prima, un vecchio numero di telefono, ripensò a Paola e al modo che si erano separate. Alla rabbia che aveva provato in quei momenti, nel vedere Riccardo, il suo Riccardo, abbracciare Paola sorridendo, mentre parlavano di lei e della sua ingenuità. Si domandò perché non avesse gettato quel biglietto tanto tempo fa. Non lo fece allora e non lo fece adesso. Un leggero sorriso ironico si dipinse nel suo volto, compose il numero, sicura che nessuno avrebbe risposto.

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RACCONTO


“Pronto...?” pronunciò una voce interrogativa. “Paola?! C'è Paola” balbettò Milena, quasi colta di sorpresa. “Sono io” confermò una voce più decisa. “Sono Milena...ti ricordi di me? É passato così tanto tempo. Scusa, non volevo disturbarti”, o forse sì, lo voleva, ma non intendeva ammetterlo e sperava che lei fosse disponibile. Ora, come un tempo. “Milena....ah sì...ora ricordo. Ciao.” “Ti va se ci incontrassimo? Un caffè, se vuoi” disse in fretta prima che lei aggiungesse altro o riagganciasse. “Certo, va bene sabato alle 16?” “Benissimo, a sabato, allora, ciao.” Non credeva di averlo fatto davvero, ma ora era lì, a riprendersi la sua rivincita, a ridare senso alla sua amarezza. La vide entrare meno sicura di un tempo, con quale chilo in più, un foulard colorato le avvolgeva il capo, che mal nascondeva gli indizi di una chemioterapia. Si guardarono l'un l'altra per cercare ciò che il tempo aveva cambiato su di loro. La tazzina era quasi vuota quando si decisero a parlare, di cose banali e scontate. Frasi fatte, mezzi sorrisi, alcuni convenevoli. Decisero di rivedersi. Gli incontri continuarono, regolari, semplici, a poco a poco la complicità di un tempo si fece largo rientrando nei loro discorsi sempre meno formali. Tutto stava tornando come allora, quasi, con 39 anni di ritardo. Paola non era più quella di un tempo, il destino si era preso la sua rivincita e ben presto anche la sua vita, lasciando a Milena solo malinconia.

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Daniela Balestrero (Torino, Itália, 1960). Membro del Comitato editoriale della Rivista Philos. Dal 2015 collabora con un giornale locale web scrivendo articoli di spettacolo e attualità. Alcuni dei suoi scritti si possono trovare anche su il Blog di Ramingo.it. 1


Cecilia Campironi Tutt’uno (2017)


LITERATURA BRASILEIRA Rotas da lusofonia

A MÁQUINA DE SER por

Ester Chaves1

Acordou com um desejo. Ou melhor, o desejo a acordara. Queria sentir cheiro de tinta fresca, sujar as mãos e colocar de novo aquele velho avental. Achava incrível como depois de tantas voltas, a vida parecia não evoluir, permanecia no mesmo lugar como um cavalo teimoso. Estava decidida, voltaria ao ateliê de arte. Agora, teria diante de si as telas abstratas, os quadros inacabados... O mundo todo colorido fazia sentido. Sentido que se resolvia apenas no detalhe, talvez na escolha do matiz. Com os olhos bem abertos, percebia o quanto de seus sonhos tinha sido abandonado por causa de outra prioridade — o casamento. Ao ver-se sozinha, sentada à mesa de jantar, com aquela quantidade de talheres chiques, sentiu uma dor pontiaguda ferroar o peito. As cadeiras denunciavam o excesso de ausência. Talvez tivesse sido um pouco feliz ali naquele lugar. Experimentado uma alegriazinha morna, mas alegria. Ou, talvez tivesse se enganado, confundido resignação com felicidade, o que não seria novidade alguma; tantas vezes havia se embaraçado com os sentimentos, tentado decifrar o que era o que. Afinal de contas, o saldo da tragédia não havia sido tão ruim. Ficara com a posse de uma bela casa, espaçosa e confortável e mais dois terrenos no litoral da cidade. Mas isso não lhe dava orgulho, pois nunca fora mulher de luxos exorbitantes. Vivia bem com o que o seu dinheiro podia pagar, e isso era tudo. Nos últimos dias, repousara em seu peito um sentimento de culpa, carregava certa frustração consigo mesma, uma inadequação à vida, um descontrole... acordava com uma sensação de náusea, respirava fundo, e aquilo só aumentava, e já começava a incomodar. Aos trinta e cinco anos sentia-se revigorada, e até gabava-se de nunca ter sido acometida por séria enfermidade. Às vezes aparecia uma dor de cabeça, mas nada que a deixasse em estado de alerta. Pensando nisso, deitou-se de lado na cama e examinou os seios com cautela. Estavam doloridos, o que anunciava a guerra mensal dos hormônios. Época em que se sentia mais vulnerável, chorava mais e irritava-se com facilidade. Recordou-se dos tempos em que vivia com o ex-marido... “Como o homem conseguiu torná-la invisível durante tanto tempo?” Um pedido dele, e as coisas aconteciam. Um olhar mais sério, e ela se curvava. Só faltava dizer “Eis-me aqui, meu senhor!”. Afinal, ela vivia para servi-lo. E o servia bem, com todas as honras da casa. Durante três anos, deixara de viver. Acomodara-se em seu limbo nadificante. Abandonara o ateliê de arte com lágrimas nos olhos. Trocaria as telas pelas panelas, as tintas, pelo óleo de cozinha. E o que receberia em troca? Ah, isso o tempo diria... Ao chegar do trabalho, o marido acomodava-se num canto do sofá como um gato em dia de chuva. Sequer tirava as meias e a beijava sem desejo. Às vezes, acenava para ela na cozinha como quem se despede de um conhecido na rua. E era só. Depois, adormecia no sofá e lá ficava até o corpo sentir vontade de sexo. Quando isso acontecia, ele a procurava no meio da noite, cheio de um vocabulário sujo e palavras constrangedoras. “Que tragédia”. Disse baixinho, como se alguém pudesse ouvi-la. 26

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CONTOS


“Como eu pude?!” A mulher avaliava-se seriamente, assim, averiguando de longe, não imaginava que fora capaz de tanta covardia. Cada acontecimento deixara nela a marca de uma irresponsabilidade, e era a pior das irresponsabilidades — a que se tem consigo mesma. Abandonara-se durante três anos à sorte de um estranho. O homem que avaliava se um edifício cairia ou não no centro da cidade não poderia suportar o peso de um casamento, e obviamente, não suportou... ele calculara mal e ali estava o desmoronamento, a ruína. Uma lágrima densa escorreu ligeiramente na face da mulher. “Como eu pude me anular tanto?” “Deus! Como eu pude?” A pergunta se chacoalhava na mente. Mas por que a culpa agora? Nove meses já havia passado desde o rompimento, certamente o homem nem se lembrava mais dela. A separação ocorrera de modo cordial, entre idas e vindas do cartório, reuniões com advogados, até o último adeus no portão. Passou a mão ligeiramente sobre a face quente, como se o gesto fosse capaz de apagar os pensamentos. Limpou a lágrima que escorria sorrateira, sentiu-se tão pequena, tão frágil, tão só. No fundo, suspeitava que alguma coisa não era de fato o que parecia ser. Sabia que as coisas não aconteciam em vão. Tudo se explicava por intermédio de um princípio absoluto. Seria um princípio ou um acordo misterioso? Firmado entre quem? Que partes? Por hora não sabia responder. Tudo que tinha era perguntas sem respostas e, quando começava com as perguntas bestas, o dia parecia se expandir em larga escala — um enorme lençol aberto sobre a origem dos séculos. Sentia-se impelida a mudar o resultado de sua vida. Queria alterar o estado das coisas. “E vivendo se altera alguma coisa?”. Ou as coisas serão sempre como são. Ou a gente é que muda? As perguntas multiplicavam-se. Principalmente nas noites em que o sono não era forte o suficiente para derrubá-la. Então, o que estaria acontecendo? Pensativa, apoiou o braço na mesa e sorveu o último gole do café, levantando o queixo a ponto de observar as manchas lodosas no teto. Quem a visse assim, imaginaria a cena de um animal uivando para a lua. Retornou a si apertando a xícara com força entre os dedos; ao cogitar a possibilidade de se ferir, abandonou o objeto na pia e espreguiçou-se. Dirigiu-se até a janela e abriu-a lentamente, como se estivesse rasgando as cortinas do mundo. Ficou ali, parada, olhando a rua deserta por algum tempo; o céu se expandia como uma tela fresca, azul, azul... Às vezes ela pensava que a vida poderia dispor de um “botão de alarme”, e que nesses estados específicos de “calamidade profunda” poderia ser agraciada com alguma ajuda sobrenatural, um mecanismo infalível que tivesse o poder de mudar o rumo das coisas; mas, no fundo, ela sabia que sobrenatural era viver num mundo em que tudo é instável e não se pode descobrir quem se é de fato e com que propósito se vive. Isto sim era confuso. Sofre-se por quê? A troco de quê? Partia do princípio de que era uma boa pessoa e não desejava mal a ninguém. E quem disse que isso extinguia futuras desgraças? A grande fortuna, a grande ruína... o coração. O órgão misterioso costumava pregar peças, apadrinhar pequenas tragédias. Quando se enganou a respeito do amor não fez julgamentos prévios e não culpou ninguém pelas consequências do trágico desfecho. Não sabia se a queixa adiantaria alguma coisa. Fora lá no fundo e encontrara forças para um perdão silencioso; as mágoas o tempo levaria... e se não levasse, ficariam ali, quietas, como restos de embarcações que lentamente se desintegram no fundo do mar. Pensava... “O mar é grande, mas meu coração é maior ainda”. Ali naquele grande coração também havia o espaço das telas brancas; e foi pensando nisso que voltou ao quar-

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to, despiu-se, jogando as peças de roupa no carpete, caminhou lentamente até o banheiro, abriu a ducha e sentiu a água cair sobre o seu corpo num jato relaxante. A mulher brincava com os jorros d’água, desfrutando de uma felicidade quase infantil; redimia-se de si mesma, juntando as gotículas que caíam nas mãos como pequenos cristais translúcidos. Ali ela poderia ver o presente e o passado juntos, dispostos numa fruição intermitente. A vida se perfazia em cada gotícula; “os cristais”, como ela os designara, expurgariam o fundo do mar se fosse preciso. Foi aí que tivera a grande ideia; encheu a banheira até que o volume de água inundasse o chão; munida de folhas coloridas, construiu inúmeros barcos de papel, que foram lançados nas águas movimentadas; de tamanhos e cores distintas, os barquinhos dançavam no “mar” exposto à frente dela. “O mar é grande, mas meu coração é maior ainda”. Lembrou-se dos conselhos maternos, “Quem é pequeno, minha filha, vê o mundo pequeno. Expanda o seu olhar e será sempre maior do que já é”. O olhar... era isso. O olhar era o grande trunfo. Basta olhar as coisas por um novo ângulo, uma mirada diferente, e elas se modificam. A coisa deixa de ser somente coisa. Lembrou-se do “dialeto manoelês”. “As coisas não querem ser vistas por pessoas razoáveis”. “Será que sou uma pessoa razoável? ”. A mulher se analisava de perto como quem olha a boca de um abismo. “Uma pessoa razoável é uma pessoa óbvia”. “Será que eu sou óbvia?” “Eu sou o meu nome ou sou o que as pessoas veem?” Se as coisas não querem ser vistas por pessoas razoáveis, preciso me coisificar para entender a essência delas sem aplicar o meu lado humano. Analisando por esse prisma, posso perder totalmente o meu interesse pela antropologia e começar as incursões pelo terreno metafísico das coisas. A mulher mergulhava no delírio provocado pelas perguntas bestas, tinha nas mãos a transparência dos cristais; e o espanto causado pelos objetos já não era só o espanto da primeira impressão, era mais que isso. As coisas ao redor transformavam-se cada vez que ela olhava. Treinar o olhar era entrar na superfície das coisas com a ferramenta do desvelamento. Velar e desvelar eram o seu ofício primeiro. No fundo, ela sentia inveja das coisas. As coisas eram. Independentemente do que acontecia, estavam ali provando a resistência de coisa, a durabilidade e características que explicavam a sua utilização. Todas as coisas tinham um propósito, até aquelas mais insignificantes serviam para ser “inutensílio”. E ela, servia para ser o quê? Estava certa de que, um dia não estaria mais no mundo, e essa pergunta era a que mais doía. Por quê? Se um dia acabaria morta, sabe-se lá como, para que viveria sonhando com viagens ao redor do mundo e visitas ao Museu do Louvre? Todas as telas abstratas causavam nela um desconserto, tudo que ela não era estava ali exposto. Era uma afronta, um disparate... Ela era enfim alguma coisa indecifrável, e se arrependia de ser… Talvez fosse o esboço de uma curva de tinta no meio de uma confusão de cores quentes. Um lugar ao contrário rumando para o infinito, uma mancha solta na tela branca. A mulher só queria ser.… mesmo quando desistia... ela só queria desempenhar o seu papel de gente enquanto ainda pudesse olhar as coisas sem ter de virar o rosto indignada. As coisas eram, e ela um dia passaria. Sequer deixaria herdeiros. De que adiantaria deixar legatários que certamente viveriam sob a tutela da mesma dor? A dor de ser. Levantou-se, calmamente, parecia sofrer com o peso das perguntas que despencaram como uma enxurrada sobre a mente aflita. Enrolou-se na toalha e caminhou na direção do quarto. Não quis olhar o movimento dos barcos. Queria despedir-se das imagens deles na água, sem encará-los; sabia que ali estava

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mais uma armadilha das coisas. “Eu queria desenvolver uma máquina de ser. Eu estou sendo absolutamente sincera quando digo que o espanto causado pelas coisas me ultrapassa e me dispersa, a ponto de eu perder a noção que tenho de mim”. Se todas as perguntas que ela tinha feito até ali não a deixara ilhada e completamente perdida de si, enfim chegaria o dia em que ela teria de se olhar no espelho e receber de volta tudo que ela era. “Uma máquina de ser talvez eliminasse tudo que tenho de mim; ficariam apenas as ligeiras impressões do que já fui um dia. Estou em pleno processo de mudança, sempre alcançando o devir, dia após dia; já não sou quem eu era; o ontem ficou para trás como um dia perdido no tempo. Para os outros, eu sou apenas a ideia do meu nome; só que é uma ideia que já vem preenchida por tudo que atribuem a mim e imaginam que sou. O que pode ser um equívoco. Para mim, eu sou apenas uma hipótese, uma equação que dá zero, uma curva que não se completa; não chego a me alcançar totalmente pelo meu discurso; sou rala demais para me significar apenas com meia dúzia de palavras e o que tenho de profundo é tão pouco, que é quase inatingível”. Sentada na cama, deixava o pensamento viajar livremente; a rotina dos dias pesados não lhe permitia a graça de um momento como esse. Tudo que ela tinha era obrigações. A vida tinha hora marcada, e ela sequer dispunha de tempo para planejar outras atividades que não estivessem relacionadas ao trabalho. Instantes em que ela poderia chegar mais perto e ver as coisas por dentro eram raros. Assim, a vida parecia valer a pena. Pensava agora nas telas, que deixara inacabadas. Sorriu, ao lembrar-se de uma frase que lera no outro dia estampada no painel luminoso: “A arte é uma revolta contra o destino”.

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Ester Chaves

(Brasília, 1979). Escritora brasiliense. Graduada em Letras pela Universidade Católica de Brasília e Pósgraduada em Literatura Brasileira pela mesma instituição. Atuante na vida cultural da cidade, participou de vários eventos poéticos e musicais. Já teve textos publicados em jornais e revistas. Em junho de 2016, teve o conto "Os Voos de Josué" selecionado na 1ª edição do Prêmio VIP de Literatura, da A.R Publisher Editora.


Cecilia Campironi Tutt’uno (2017)


LITERATURA BRASILEIRA Rotas da lusofonia

MINIGALOPE COM LÁBIAS DE MEL por

Sílvio Reis1

“Exu matou um pássaro ontem com uma pedra que jogou hoje”. Quase assim tem agido os pintores medievais e Peter Bruegel, para proteger uma caixa de abelhas que completou 40 anos de instalação na fachada de uma casa no sur de Minas Gerais. A história é real; com algumas pedras e loucuras. Da Idade Média aos dias de hoje, os BBs Bosch e Bruegel chegam um dia antes de alguém apedrejar a caixa. Diferentemente da extração da pedra da loucura, lá no século XV, eles pintam os atiradores com a pedra na cabeça. De imediato, a loucura se instala nos retratados. Conclusão: “Não atires pedras sobre as abelhas, porque não vai dar certo.” Reflexão: Se até uma pedrinha renal pode enlouquecer alguém, imagine a era Paleolítica, quando todos tinham uma pedra lascada dentro de si. Por eu ser um jornalista foca (a vida toda em início de carreira), consegui entrevista com a abelha rainha. Ela saiu da caixa de 2,5 m de comprimento por 2 m de largura. Ficou pousada na janela de Johari da casa e me zumbiu um aviso: “Abelha dá mel, mas não quer saber de agrado.” Estava vestida de forma estranha. Parecia zangada, meio zangã. Quase perguntei: “Você é você?” A caixa quarentona está num município batizado com o nome de uma abelha sem ferrão. Quando começou a ser arquitetada, os ancestrais paleolíticos da atual rainha invadiram a prefeitura e alteraram o amarelo mel de abelha apis, na imagem do brasão municipal. “Por que a substituição pelo amarelo tâmara?” A rainha reagiu nervosa à pergunta. - As palavras, como as abelhas, têm mel e ferrão. Eu só tenho ferrão. Com voz dulcíssima, questionei por que nos primeiros anos de construção da caixa, as abelhas só eram mansas com os moradores da casa. Agrediam visitantes, vizinhos e quem passasse pela rua em frente. De repente, ficaram cordiais com todos. Ela me aconselhou a não mexer nesse vespeiro. E mexeu o corpo para indicar as muitas pedras da loucura dentro nela. Sou o tipo de foca que busca mel no travesseiro da vespa. “Por que nessa caixa só é produzido o mel de tâmara, superior ao mel apis em doçura?” Antes que viessem os BBs para me apedrejarem na pintura, quis saber se ela era uma rainha ou um rei? A resposta veio sofrida e humilde: - A gente é tudo marimbondo. Entendeu? Entendi que poucos ou quase nenhum morador local permitiu que abelhas fizessem moradia em seus imóveis. Algum prefeito, vereador ou associação cultivou plantas para atrair o inseto que dá nome à cidade? Entendi que até hoje, um dos poucos únicos que 31

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COLUNAS


preservou polinizadores na cidade foi o proprietário da referida casa, que passou essa tradição aos seus familiares. E assim, há 40 anos é mantido um cartão postal vivo, cada vez maior. - A nossa caixa ia ter apoio do Banco do Brasil, mas o crédito não saiu, explicou o reinha. De raiva, chamamos a concorrência: os BBs. “Então vocês deram um minigolpe”, concluí. “Negativo”, contestou o reinha. Seria golpe se a caixa vespeira vendesse gato por lebre, ou seja, oferecesse tâmara e entregasse mel de abelha. Acontece o contrário: oferece mel de abelha, menos doce, e entrega mel de tâmara, com doçura superior. - O que a gente faz é um antigolpe: vende gato e entrega lebre. Nós temos lábias de mel. Entendeu?

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Sílvio Reis. É graduado em Jornalismo e exerce este ofício há 30 anos. Autor de pesquisas de linguagem, que resultaram em publicação de livros, atualmente ele se dedica à pesquisa, reportagens e artigos sobre a relação “homemanimal”. Os textos são divulgados em diversos veículos de comunicação e no blog vitorioregio.com 1


Cecilia Campironi Tutt’uno (2017)


LITERATURA PORTUGUESA

COLUNAS

Rotas da lusofonia

CORPO IMPOSSÍVEL por

Magda Fernandes1

Observando o corpo que dança a transformar-se em corpo-tempo e em corpo-espaço, esbarro nas limitações da fotografia. O tempo e o espaço fotográficos não são capazes de conter o corpo em movimento, que se expande e contrai para além das capacidades mecânicas da câmara. Não é possível fotografar o corpo que dança! Para avançar faço, pois, do impossível o meu território. Invento com a fotografia novos corpos, uma dança de partículas de prata, que se forma da desintegração dos músculos, pele e ossos dos bailarinos que observo. Os seus corposmovimentos-orgânicos tornam-se, nas imagens, corpos-suspensos-minerais. Deixo o meu olhar fascinar-se por estas anatomias que se assemelham a bandos de estorninhos, assumindo sucessivamente formas imprevistas - cada pássaro uma partícula, um grão de areia único, mas ligado por forças misteriosas aos outros que o rodeiam. Demoro-me nessa imprevisibilidade, conceito novo. Por mais que descortine os movimentos dissecados, decompostos, repetidos até à inconsciência, por mais que escolha os meus fragmentos, os corpos revelados trazem sempre consigo a surpresa e a alquimia da aparição. A imaginação é ultrapassada por uma realidade aparentemente impossível. Esta aparição nasce de um esforço, de uma procura ativa. A dança não se vê apenas com os olhos, deve sentir-se dentro do corpo. Aí, nasce o desejo de dançar, de juntar-se aos outros corpos, de fazer do nosso também um corpo impossível. Não seria apropriado, então, que estas fotografias não se mostrassem também apenas ao olhar? Pretendo assim, que cada corpo que observa participe com mais do que com a sua visão, que tenha que ser autor da sua própria micro-dança, mais lenta ou receosa, mais firme ou assertiva, para chegar à aparição destes corpos impossíveis. Invoco deste modo mais uma vez o tempo e o espaço para o discurso, já não da dança, já não da captura, mas ainda da comunicação e da fruição. Cada um chegará às imagens a seu tempo, cada um, intervindo no elemento mineral areia (símbolo do tempo, e assimilador da forma do espaço), descobrirá os seus próprios contornos das imagens, podendo criar, através de um jogo de esconder e revelar, novos corpos. Com o tempo, espero que a areia faça o seu trabalho erosivo nas imagens, dissolvendo no limite estes corpos que, no momento em que foram criados, deixaram logo de existir.

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Magda Fernandes (Porto, Portugal, 1981). Colunista da Philos e fundadora da Imagerie, Casa de Imagens, criada em Lisboa. 1


Cecilia Campironi Tutt’uno (2017)


LITERATURA ESPAÑOLA

COLUMNAS

Rutas Literarias de Iberoamerica – Ex professo

EL ÚLTIMO FILÓSOFO por

David Ortega1 ¿Qué es la filosofía?

Deleuze escribió a dos manos con su amigo psicoanalista Guattari, un libro entero para

tratar de explicarlo. Pero Deleuze era un posmoderno y tan deconstructor como Derrida, así pues, quien no sea audaz (no ávido lector, con eso no basta) podrá pensar que, en vez de desentrañar, enmaraña lo que quiere decir con su lenguaje resquebrajándose a cada momento, deviniendo. Todo en Deleuze tiene que ver con crear nuevos términos, con los contornos del concepto. Su Mil mesetas son un paso a través filosófico y literario, un juego intelectual que muchas veces utiliza contraposiciones y antítesis, y en el que uno explora aristas y recovecos que no había pensado todavía. Ese juego ya no está vivo, aunque sigan sus libros en cartel; tuvo su repercusión en filósofos japoneses, pero dejó de ser lo que era. Deleuze se tiró por el balcón en una de sus mayores contradicciones y nos dejó huérfanos del “juego exploratorio intelectual”. Ahora bien, ¿Quién aporta algo nuevo en términos filosóficos hoy en día?... ¿Para qué sirve la filosofía en la actualidad?... Cuestiones que se hacen todos los que no han estudiado Filosofía y demuestran ser más filósofos que los propios estudiantes de Filosofía que viven permanentemente en el tormento de tratar de defender su carrera académica con uñas y dientes hasta alcanzar la completa resignación. Pero para ser filósofo hace falta una mirada más amplia, neutra, sin ideología, porque si no el filósofo es un títere intelectualoide al servicio de una fuerza social que compra lo que dices. Se trata de pensar, y pensar es lo más difícil que puedes hacer en esta vida. No se trata de pensar “dando vueltas al bailarín”, “agotar al duende”, como hace el común de los mortales, sino de ir más allá, no necesariamente en un sentido metafísico, sino de pensar como si fueras tú, él/ella, nosotros, ellos. Ponerte en la piel y evadirte, retornar y marchar, pensar como pensaría Sócrates. Pensar sufriendo. Hacer fuerte una premisa, crear un axioma, y proyectar diversas líneas y curvas, hasta crear un espacio topológico. Luego, revisitar el axioma. Wittgenstein, el genio filosófico que detestaba Deleuze por vilipendiar cualquier tipo de metafísica, decía que la Filosofía debía de dedicarse única y exclusivamente a la purificación de nuestro lenguaje. Debemos pensar correctamente, y de lo que no se puede hablar hay que guardar silencio. Sin embargo, el filósofo debe de pensar científicamente y poéticamente, debe de captar musas y aplicar la razón más aséptica sobre el contenido que adquiere de lo misterioso. No puede quedarse corto en nada, ni poner vetos. Debe beber la miel de los dedos del arpista, desde los relatos órficos hasta los misterios eleusinos, vivir en el numen contemplativo, y buscar la verdad de las cosas, haciendo inmersiones en lo fenoménico: explorando en lo antropológico, social, cultural, político, psicológico, etc. Un filósofo debe ser capaz de vivir plenamente, en su plano noúmeno y fenoménico (conceptos/notaciones kantianos). De hecho, si él no tiene la facultad de la contemplación amorosa, difícilmente sus ideas trascenderán lo que piensen los demás “dando vueltas al 36

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«Como gran charlatán filosófico, no le importa tanto la verdad como el sonido de su prosa» G. C. Lichtenberg.


bailarín”. La Filosofía es una profesión alejada de la realidad pero que debe de ponerse en práctica. Porque si no, no sirve de nada (Un ejemplo paradigmático de la falta de utilidad es la fenomenología de Husserl) Hay que irse lejos para volver. Proponer e involucrarse, como hicieron Sartre o Unamuno. Aunque, las ideas no pueden tener sesgo ideológico, como ya dije. El filósofo debe salirse del contexto y percutir en él, como hizo Wittgenstein antes, durante y después de batallar en la Primera Guerra Mundial. Por eso, en 2017, la Filosofía es una profesión muerta. Más que la del herrero o la del talabartero. Hoy en día, en el plano académico, se trata de fabricar un repositorio de autores muertos. Y, como ya dijimos, no se deben ajustar ideas de otros en contextos históricos distintos a nuestra realidad actual. Hay tesis mixtas sobre Marx, Heidegger, Kieerkegard, incluso Althusser, que inventan focos que no existen; estudiantes que dedican cuatro o cinco años de sus vidas al regodeo más hípster bebiendo del autor que idolatran. Están matando la filosofía hasta al punto de quitarle cualquier valor. Luego, algún autor con buenos contactos, ya dentro del “club selecto para pijos”, puede llegar a escribir un libro políticamente correcto si es español o políticamente incorrecto si es francés. En España, la verdad incómoda duele y en Francia suele recibir aplausos escatológicos. ¿Quién es filosofo? Sinceramente, ¿quién propone algo actualmente que no sea un sermón de cura (E. Lledó), perogrulladas éticas (M. Nussbaum), o repositorios de autores que marcan tendencia (H. Arendt), o generar polémica y soltar bilis (A. Flinkielkraut) o esté sirviendo a una ideología (M. Onfray)? Nadie. Quizá el único y gran “desenmascarador” de todo esto sea Mario Bunge, quien cumplirá cien años en breve. ¿Sirve también el hecho de enseñar a los adolescentes a pensar sobre la Teoría de las ideas de Platón o las Meditaciones metafísicas de Descartes? Dos alumnos te escuchan y no podrán entenderlo a su edad. Aunque, como profesor, forzar a pensar sobre algo que no se alcanza de facto en el caos de la adolescencia parece muy meritorio y loable, lo cierto es que eso no tiene nada que ver con ser filósofo o ejercer como tal. Para ello es necesario revisar las propuestas filosóficas e involucrar a los verdaderos pensadores y agentes que actúan en la sociedad, más allá de las aulas. No hablo del carácter introvertido del ratón de biblioteca, poco agraciado físicamente, que se dedica a leer sin comprender verdaderamente lo que lee y creyendo que sí lo comprende. Tampoco hablo del charlatán que trata de cabalgar sobre paradojas sin salir nunca de ellas. Hablo de pensadores como los que ha habido siempre, que escapan al poder de los algoritmos de Internet y al discurso atronador de los Mass Media. Que piensan por sí mismos y no necesitan adscribirse a una determinada tribu o corriente filosófica para que le tomen en serio. Que tienen un espíritu distinto, que arrolla, y que se interesa por aportar algo a los demás. La intelectualidad deja de ser tal y se convierte en algo caricaturesco, en el momento que sirve de fractura entre el individuo y la sociedad, y sirve de dulce solipsismo. La Filosofía no puede pretender seguir anclada en el pasado, y hacer regodeos banales. Así es normal que no se la tome en serio. No se trata de ver quién ha leído más, sino de quién tiene una fórmula. Quién se anticipa a las nuevas eventualidades y procesos sociales. Filosofía aplicada. Literalmente. No hay otra manera. Realizar la inversión que propugnaba Nietzsche, pero en el caso que nos atañe, en la que no se trataba de un derecho o libertad de expresión en la que la opinión sin conocimiento tiene el mismo valor 37

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que la de la opinión del sabio. No, aquella suerte de ágora trataba de eso. Los sofistas declamaban, y Sócrates (real o ficticio) vivía en un barril. Hablaba con la gente, les instruía. Anticipaba lo que iba a suceder, tanto como Cristo (real o ficticio) sabía de su muerte. Era un profeta, en la pureza del término, un Outsider, quien mayeuticamente como Buda, hacía pensar a los que no habían pensado sobre lo que ocurría y ocurriría. No sobre cientos de años atrás, citando siempre a autores que nunca habían conocido. El último filósofo es el primer filosofo: El primer profeta en nuestra tierra (pero manteniendo su espíritu crítico, sin magnificar su figura creando dogmas). Fijándonos en él, salvamos a la Filosofía de la esquizofrenia capitalista por vender libros irrelevantes y sostener a ratones de biblioteca en su Cátedra, embriagados de dulce solipsismo. Una figura que inspira es el protofilósofo Sócrates-Platón, así como los presocráticos, asimismo, algunos sabios orientales de la remota intrahistoria, y Wittgenstein, como figura meteórica, que fue capaz hasta de desdecirse a sí mismo con una evolución del pensamiento o de romper las ataduras aristocráticas con su linaje para poder ser él mismo. En ellos está la inspiración de todo lo que uno debería admirar en un auténtico filósofo.

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David Ortega (Bilbao, España, 1981). Es licenciado en Filosofía con Master en Filosofía teórica y práctica, UNED. Ha escrito un libro de viajes autobiográfico: El último viaje, sobre Alaska (USA); una novela de ficción: El secreto de Nina; y una novela negra que pronto estará disponible: Casi héroes. Sus tres escritos están basados en hechos reales. También ha realizado un ensayo sobre los fundamentos ontológicos de la estética: Diaphainon, que obtuvo la máxima calificación en la carrera. 1


Cecilia Campironi Tutt’uno (2017)


LITERATURA PORTUGUESA

COLUNAS

Rotas da lusofonia

SEM TÍTULO por

Kátia Bandeira de Mello-Gerlach1

Na Sociedade dos Cirurgiões Russos, o assassinato de dona Candinha levara o carimbo 1

de URGENTE numa cadeia de bilhetes coloridos azul-amarelo-laranja-azul-vermelho desde o Alto Comando em Lubyanka. Durante anos, Madame Petróvska manipulara dona Candinha para os seus fins sórdidos. Seguindo ordens, a mulher do engraxate fomentara discórdias e difundira informações até que os sintomas de demência a desqualificaram. Os aldeões, ao disputarem-se entre si numa briga de xadrez, submetiam-se ao jugo de Petróvska e seus camaradas. Impressionava a facilidade com que os patifes, alguns vesgos, outros não (portanto, não interessava em que direção as pupilas concentravam), fiavam-se em qualquer boato cuja veracidade dona Candinha ajudava a solidificar entre eles. Uma alegação de estupro, o famoso “Lisa Affair”, bastou para que o imbróglio causasse apedrejamento do estrangeiro ajoelhado sobre o seu tapete de orações. Com o agravo da doença, Dona Candinha cometera indiscrições. Expusera as práticas absconsas do casal de espiões Africa e Hernandez em seu museu de bonecas; as vaidades de Madame Petróvska em vestir-se como diva de ópera; a cama de Proscuto onde esticaram o barítono e vários abduzidos; e, a distribuição dos pãezinhos envenenados por ergot para que o fundamentalismo religioso se disseminasse. No tocante aos venefícios, dona Candinha desvendara a cumplicidade do alcaide, interessado em preservar-se na torre suprema, acalentando o fervor popular por divindades. O mesmo ocorrendo com líderes religiosos, retumbantes com a febre do rebanho e interessados nos cofres que jorravam dízimos. Ao constatar o vazamento das informações por dona Candinha e havendo cumprido os requisitos burocráticos, Madame Petróvska preencheu um último formulário para que o agente Sorokin apagasse a mexeriqueira. Sorokin, em jejum, escalou o subagente Seminióvy em seu lugar, sem, no entanto, notificar a mandachuva 2. A FÁBULA DE SEMINIÓVY É de surpreender que o sujeito lograsse exterminar moscas, papagaios, araras ou a dona Candinha. A resolução do crime em questão permanece em aberto como um leitor atento repara. O Alto Comando de Lubyanka elegera Seminióvy, um subalterno na hierarquia dos agentes russos, para missão num país periférico num continente patafísico de detetives curiosos numa de transformá-lo em informante, nem que precisasse transmigrar para o corpo de um “beatnik”.

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Quem fala do que não lhe diz respeito, ouve algo que o deixará contrafeito. - Trigésima quinta noite das Mil e Uma Noites

É por causa do meu engraxate que ando agora em plena desolação. - Mário de Andrade


Entretanto, um homem para desgraçar a si dispensa a mão do Diabo. Eis que Seminióvy, ao sair para caminhada a la Walser, perde seu lenço antes de assoar o nariz (sofria de coriza). Inicia a procura pelo lenço, do qual não recordava a cor. A boina extravia-se da cabeça. Ignorando se olhava para cima ou para baixo, livra-se do capote (era um dia de calor, sem nuvens, o capote pouco importava). Nas tentativas pelos objetos perdidos, vê-se descalço das galochas. Põe-se de volta ao ponto de partida mas perde-se. “Desse jeito, não terei nada além de calos nos pés”, exclama. Senta-se sobre uma pedra, apóia a cabeça sobre o cabo do guarda-chuva e dorme. Sonha. De tanto embaralhar-se, Seminióvy perde a mulher que o ama (se ele a amara era outros quinhentos réis pois o amor exige tensão superficial e atenção mínima). Desorientado para os encontros, Seminióvy alternara a enamorada com antigas amantes, malbaratara as cartas e por fim Katya transformara-se em uma mulher de cabelo natural ruivo aniquilada apesar da fúria de cobre. Portanto, conclui-se que um tipo como Seminióvy não chegaria à choupana de barro de dona Candinha para exterminá-la. Dados adicionais: Seminióvy não dispunha de instrumentos de corte. As instruções de Sorokin em como proceder para cometer o crime adormeceram com o agente, que jamais as resgatou do fundo da memória. O CRIME Escobar escondeu-se atrás da pilastra da alcova voltada para o resto da choupana. Pensava estar a sós. Esperava Rosina cuja mãezinha azucrinava os parvos dispostos a ouvi-la e, nas manhãs, prostrava-se ao pé da vizinha enferma, semi-finada, ensurdecida. “Dona Candinha bisbilhota como se o rumo dos corpos e das coisas lhe pertencesse”, observava Escobar, o noivo-engraxate da Rosina, a menos vesga de todas elas. O casal se conhecera no Quadrado K4 onde a rapariga vendia panos de pratos bordados com bainhas de crochê aos lustradores que os presenteavam às mulheres. Na primeira lavagem, os panos encolhiam e, doravante, as mulheres. As choupanas de barro do povoado continham uma centena de mulheres encolhidas. Nenhuma delas ousava reclamar dos panos sem propósito, temiam os maridos e a tromba da mãe de Rosina, pesada como a de São Pedro em dias de cântaros. Durante a espera pela noiva, Escobar ouviu um empurrão na porta da choupana. Ao redor, o escuro tomava conta. O índio manteve a mão apoiada na parede como referência. A pulga pendurada em sua orelha não cessava de perguntar: quem é este homem que está no seu lugar? O corpo suava, a paciência evaporava em gotículas de suor da testa e escorria pelo rosto, pescoço, pairando no colo do peito detidas pela gola da camisa. Escobar, recorrendo a profundos traumas de infância, recriminava-se por haver confiado em uma mulher. Em breve, regressaria ao trabalho, atravessando a muralha erguida do lixo e do detritos que não tinham destino. A sua visita teria sido num esforço em vão caso Rosina não desse as caras ou estivesse de combinação com o Outro. Antes que a raiva dominasse Escobar, cujo o cérebro se encontrava em plena produção de novas especulações, a porta abriu-se. Dona Candinha, o seu andar manco e um clarão penetraram o ambiente. Do interior da escuridão, um homem bexiguento disparou em cima da idosa, nocauteando-a. Atingiu-a no gasganete com um bisturi, cortando pele e osso, cuidando para não romper a jugular. Em fuga, o algoz abandonou a dona em sua velha manta com retalhos de lebre e trapos. Escobar manteve-se hirto em seu canto, não se animava a perseguir assassinos. Gesticulou 41

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Candinha, “um nome adorável”, “que quer dizer, na voz do povo, o que andam falando, os dizques”, Mário de Andrade. 1

Naturalmente, Sorokin enfrentaria dificuldades posteriores para justificar esta decisão individual. 2


a mecânica da cruz em frente ao peito que arfava, preocupava-se em salvar-se. Concentrou-se na taquicardia, contou até duzentos e vinte e três e deu com Rosina cantarolando o Tango 31. Ainda estavam no dia 20 do mês. Onze dias para o fim. “Rosina, por que demorou tanto?” “Fui jogar pedrinhas com as crianças da rua”, respondeu a noiva, indiferente aos anseios de Escobar que encobria um cadáver. As pedras surgiam do nada, brotavam do chão e se deixavam partir e esculpir. Serviam para brincadeiras e defesa territorial. Quem as engolia, petrificava. A mão de Rosina segurava cinco pedras que resolvera trazer consigo. Apertava-as com a força dos atiradores de Gaza. “Você esbarrou em um homem que saía daqui?”, perguntou Escobar. “Não rocei em homem nenhum,” defendeu-se Rosina. Dias atrás, Escobar testemunhara caso de polícia, o sequestro do barítono Pietro Paolini e a forçara a acompanhá-lo numa visita à agência de detetives. Agora vinha com perguntas sobre suposto intruso. Além de engraxar para viver, será que nutria paranóias? Escobar interrompeu o fluxo de pensamento, o trem desgovernado de Rosina: “Minha filha, enquanto eu esperava por você atrás da pilastra, um forasteiro arrombou a porta, agachou-se como bicho e pulou em cima da senhora sua mãe. Acredito que seja o sujeito que vi no Quadrado como parte do grupo que sequestrou o barítono, o menor deles, com bafo de vodka e vomitando bolas de caviar.” Foi então que Escobar retirou-se de sobre o corpo da idosa e permitiu que a filha a tocasse. Rosina esvaziou a mão das cinco pedras, colocou-as de lado e sacudiu a mãe. Os gritos provocaram a aparição dos vizinhos, instalando pressa. Todos salivaram para enterrar a maldita. Detestavam a alcoviteira pelas intrigas, boatos e falsas verdades. Há muito que as faíscas de ódio chegaram à praça Alfred Jarry, onde a presença de Candinha fora interditada pelo alcaide. O mutirão descartou a necessidade de autópsia e embalou a defunta num saco de juta. Transportaram-na numa ambulância que ultrapassou semáforos roxos e qualquer obstáculo no percurso para a funerária. Atiraram o saco lacrado sobre o carpete no exterior da Casa de los Muertos. As comemorações se deram em irresistível euforia. Rosina permaneceu sentada no banco da cozinha. Perdera a mãe enquanto o povoado festejava. O pai dela agradeceria o livramento quando encerrasse o expediente no camarote e voltasse à casa na condição de viúvo. Escobar, por outro lado, oferecera consolo enquanto se somava ao rol de suspeitos. O casal se despediu, os corpos não havendo se encostado. A moça duvidava das versões do noivo, era vesga mas não tola, ora bolas, ora pedras! Para ela, a mãe nunca amealhara inimigos. Na Casa de los Muertos, a enferma a quem a dona Candinha visitava pelas manhãs, largou o leito para velar o corpo da amiga que invertera as posições no tabuleiro. Fervilhando de inveja da morta, a enferma alegrou-se por se aproximar da câmara fúnebre onde encontrou Dona Candinha afogada em um ataúde fabricado para um organismo quatro vezes o seu tamanho. A doente não hesitou em encostar o rosto na face da conhecida para o beijo do adeus. Um sopro liberado pelos lábios da defunta a surpreendeu no momento em que se afastava. Arrepiou-se. “A ceifadeira evita os maus”, pensou. “Ainda chego ao inferno antes de Candinha!”, exclamou sem que ninguém a presenciasse. A REPERCUSSÃO E UMA RECEITA CULINÁRIA Ignorando o que se passara, Sorokin contentou-se em certificar-se da localização de dona 42

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Candinha na Casa de los Muertos, o que logo reportou à Madame Petróvska. Madame P. despontou da catacumba em trajes de Desdemona para a ceia com Garcia, Africa e Hernandez, quando o quarteto devorou coelhos assados com ameixas e se embriagou de Sancerre e licores. RECEITA DE COELHO ASSADO COM AMEIXAS SECAS Ingredientes: 1 coelho robusto 1 cebola branca 4 dentes de alho Suco de um limão, ou vinagre ramos de alecrim azeite sal e pimenta q.b. 1 copo de Cabernet Sauvignon linguiças cortadas ameixas secas Confecção do Assado Especialíssimo: Escalpelar o coelho para depois cortá-lo em pedaços. Tempere com sal, pimenta e suco de limão. Dourar no azeite. Retire os pedaços do coelho para um recipiente que vá ao forno. No azeite onde fritou o coelho, junte a cebola, a linguiça em rodelas e o alho picados, assim como as ameixas previamente descaroçadas e partidas ao meio. Quando a cebola estiver dourada, junte o copo de Cabernet Sauvignon e deixe cozer a cebola por mais um tempo. Deite esta mistura sobre o coelho, cubra com os ramos de alecrim e leve ao forno para assar durante um bom tempo. Sirva com arroz branco e batatinhas fritas. Hernandez puxou o fio da conversa entre os convivas, noticiando a aparição de girafas brancas no Quênia. “Girafas brancas na reserva de Hirola”, repetia ad nauseam sem controlar a língua. As impressões daqueles animais lunares com olhos negros e manchas cinzentas nas extremidades a padecerem de leucismo sem base patafísica alguma mantiveram o quarteto ínsone. Madame Petróvska recusava-se a chamar o barítono Pietro Paolini para a festa. Nos fundos da casa, ele chorava em nostalgia por seu cãozinho Zamor. (Continua) * O autor pede um título aos leitores.

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Kátia Bandeira de MelloGerlach (Rio de Janeiro, Brasil, 1980). Natural do Rio de Janeiro e radicada em Nova York, formou-se em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). É mestre em Direito Internacional Privado pela Universidade de Londres e pela NYU School of Law, e professora de Direito na Fundação Getúlio Vargas. Corpo docente da Universidad Desconocida do Brooklyn sob a reitoria de Enrique VillaMatas. Publica no Jornal Rascunho. 1


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REVISTA DE LITERATURA DA UNIÃO LATINA 20 setembro 2017 · REVISTA DE LITERATURA DE LA UNIÓN LATINA 20 septiembre 2017


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