Philos v.3 n°.21 (2017)

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Philos PORTUGUÊS CATALÀ ESPAÑOL FRANÇAIS ITALIANO ROMÂNĂ

REVISTA DE LITERATURA DA UNIÃO LATINA 21 outubro 2017 · REVISTA DE LITERATURA DE LA UNIÓN LATINA 21 octubre 2017


Philos PORTUGUÊS CATALÀ ESPAÑOL FRANÇAIS ITALIANO ROMÂNĂ

REVISTA DE LITERATURA DA UNIÃO LATINA 21 outubro 2017 · REVISTA DE LITERATURA DE LA UNIÓN LATINA 21 octubre 2017

YVISSON GOMES DOS SANTOS ELICIO SANTOS THASSIO FERREIRA JACQUES FUX WILLAMES FRANK MUNIQUE DUARTE MARCELO FERREIRA DE MENEZES SÍLVIO REIS MAGDA FERNANDES & JOSÉ DOMINGOS KÁTIA BANDEIRA DE MELLO-GERLACH CAIO LOBO GIANNINA ZORRAH CARLOS BARTH VICENTE DE MELO DANIELA PEDRO FERREIRA DAVID ORTEGA SÍLVIO REIS


PORTUGUÊS CATALÀ ESPAÑOL FRANÇAIS ITALIANO ROMÂNĂ

REVISTA DE LITERATURA DA UNIÃO LATINA 21 outubro 2017 · REVISTA DE LITERATURA DE LA UNIÓN LATINA 21 octubre 2017

EXPEDIENTE

REVISTA DE LITERATURA DA UNIÃO LATINA REVISTA DE LITERATURA DE LA UNIÓN LATINA

Souza Pereira

EDITOR CHEFE | EDITOR EN JEFE

Sylvia de Montarroyos

COMITÊ EDITORIAL | COMITÉ EDITORIAL

Lucrecia Welter

REVISÃO DE TEXTOS | SUPERVISIÓN DE TEXTOS

Maus Hábitos

DESENHO E DIAGRAMAÇÃO | DISEGÑO Y DIAGRAMACIÓN

Daniela Spoto

ILUSTRADOR | DIBUJANTE

SOBRE A OBRA DESTA EDIÇÃO | SOBRE LA OBRA DE ESTA EDICIÓN

Publicado originalmente em outubro de 2017 com o título Philos, Revista de literatura da União latina. Os textos desta edição são copyright © de seus respectivos autores. As opiniões expressas e o conteúdo dos textos são de exclusiva responsabilidade de seus autores. Todos os esforços foram realizados para a obtenção das autorizações dos autores das citações ou fotografias reproduzidas nesta revista. Entretanto, não foi possível obter informações que levassem a encontrar alguns titulares. Mas os direitos lhes foram reservados. Philos, Revista de Literatura da União Latina é registrada sob o número SNIIC AG-20883 no Sistema Nacional de Informações e Indicadores Culturais com Certificado de Reserva outorgado pelo Instituto Nacional de Direitos do Autor sob o registro: 10-2015-032213473700-121. ISSN 2527-113X. Revista Philos © 2017 Todos os direitos reservados. | Publicado originalmente en octubre de 2017 con el título Philos, Revista de literatura de la Unión latina. Los textos de esta edición son copyright © de sus respectivos autores. Todos los esfuerzos fueron hechos para la obtención de las autorizaciones de los autores de las citaciones o fotografías reproducidas en esta revista. Sin embargo, no fue posible obtener informaciones que llevaran a encontrar algunos titulares. Pero los derechos les fueron reservados. Philos, Revista de Literatura de la Unión Latina es registrada bajo el número SNIIC AG-20883 en el Sistema Nacional de Informaciones e Indicadores Culturales con Certificado de Reserva otorgado por el Instituto Nacional de Derechos del Autor bajo el registro: 10-2015-032213473700-121. ISSN 2527113X. Revista Philos © 2017 Todos los derechos reservados.

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Philos, Revista Philos Revista de de Literatura Literatura da da União União Latina Latina | | Revista Revista de de Literatura Literatura de de lala Unión Unión Latina. Latina.


EDITORIAL

REVISTA DE LITERATURA DA UNIÃO LATINA REVISTA DE LITERATURA DE LA UNIÓN LATINA A literatura como forma de crítica, crônica e resistência é uma marca das publicações da Philos. Não por mérito plenamente editorial, mas principalmente pelas perspectivas e anseios dos autores e colaboradores que repensam o cotidiano, as lutas de classes, a desigualdade, a luta feminista e tantas outras bandeiras que implicam a necessidade de reflexão através das artes, do reconhecimento e da memória. A edição de número vinte e um da Philos está sendo lançada após um mês intenso de atividades com a Latinité Tournée nas cidades do Recife, São Paulo e Rio de Janeiro, em detrimento da divulgação de nosso primeiro volume impresso; apresentamos aqui um caderno repleto de trabalhos que reflexionam acerca do pensamento humano e dos nossos eus. David Ortega faz uma nova reflexões sobre os curto-circuitos das gerações e nos apresenta a segunda parte de seu ensaio sobre o pensamento moderno. Nossos colunistas da Imagerie, Magda Fernandes e José Domingos, nos apresentam uma sessão de artes visuais inspiradas em Frankenstein com trabalhos fotográficos experimentais que nos servem de deleite aos olhos. A direção de arte da Philos #21 fica por conta da ilustradora italiana, Daniela Spoto, que enche de cores e sensibilidade as páginas de nosso editorial com suas aquarelas e ilustrações delicadas. Para ela “a literatura e as artes não nos dão respostas, apenas nos impõem perguntas”. A Philos se coloca como um canal de diálogo, uma plataforma de suporte, um veículo de expansão e democratização do conhecimento. Apenas a partir da partilha é que alcançaremos a tão sonhada democratização da democracia. Desejamos uma ótima leitura, Souza Pereira

EDITOR CHEFE | EDITOR EN JEFE

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EDITORIAL

REVISTA DE LITERATURA DA UNIÃO LATINA REVISTA DE LITERATURA DE LA UNIÓN LATINA La literatura como forma de crítica, crónica y resistencia es una marca de las publicaciones de la Philos. No por mérito plenamente editorial, pero principalmente por las perspectivas y anhelos de los autores y colaboradores que replantean el cotidiano, las luchas de clases, la desigualdad, la lucha feminista y tantas otras banderas que implican la necesidad de reflexión a través de los artes, del reconocimiento y de la memoria. La edición de número veintiuno de la Philos está siendo lanzada después de un mes intenso de actividades con la Latinité Tournée en las ciudades del Recife, São Paulo y Río de Janeiro, en detrimento de la divulgación de nuestro primer volumen impreso; presentamos aquí un cuaderno repleto de trabajos que reflexionan acerca del pensamiento humano y de nuestros yos. David Ortega hace una nueva reflexiones sobre los cortocircuitos de las generaciones y nos presenta la segunda parte de su ensayo sobre el pensamiento moderno. Nuestros columnistas de la Imagerie, Magda Fernandes y José Domingos, nos presentan una sesión de artes visuales inspiradas en Frankenstein con trabajos fotográficos experimentales que nos sirven de deleite a los ojos. La dirección de arte de la Philos #21 queda por cuenta de la ilustradora italiana, Daniela Spoto, que llena de colores y sensibilidad las páginas de nuestro editorial con sus aquarelas e ilustraciones delicadas. Para ella “la literatura y los artes no nos dan respuestas, sólo nos imponen preguntas”. A Philos se coloca como un canal de diálogo, una plataforma de soporte, un vehículo de expansión y democratización del conocimiento. Sólo a partir del reparto es que alcanzaremos a tan soñada democratización de la democracia. Deseamos una óptima lectura, Souza Pereira

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SUMÁRIO | SUMARIO CONTOS | COLUNAS | ARTIGOS CUENTOS | COLUMNAS | ARTÍCULOS

24 Perezhivanie,

por MARCELO FERREIRA DE

8 Um beijo

MENEZES

, por YVISSON GOMES DOS SANTOS

11 Pouco antes do

quase novo fim,

por ELICIO SANTOS

14 Entrevista

com Jacques Fux,

por THASSIO FERREIRA

20 Razão

perdida,

por WILLAMES FRANK

22 Não julgue pela capa,

28 A força dos

amores imigrantes, por

por GIANNINA ZORRAH

40 Catimbau,

por

CARLOS BARTH

SÍLVIO REIS

30 Frankenstein, por MAGDA FERNANDES & JOSÉ DOMINGOS

32 Compressão, por KÁTIA BANDEIRA DE

MELLO-GERLACH

36 Passeio no

parque,

por CAIO LOBO

por

MUNIQUE DUARTE

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38 NaCimento,

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43 O engraxate, por VICENTE DE MELO

46 Nós vivemos

os mesmos momentos..., por

DANIELA PEDRO FERREIRA

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Cortocircuitos generacionales II,

por DAVID ORTEGA


Daniela Spoto (2017)


LITERATURA BRASILEIRA Rotas da lusofonia

UM BEIJO por

O

Yvisson Gomes dos Santos1

saber do professor Luiz era efeito de vários anos de estudos de sua trajetória

acadêmica. Podia-se dizer ser um exímio docente, ou até um virtuose no manejo com as palavras. Seus acentos linguísticos eram graves, mas com uma sonata cognitiva in extremis. Amava uma moça do bairro onde morava. Podemos dizer que o local vivia cheio de flores e com vários perfumes. Uma viela que guardava nesse lugar o seu afeto insofismável por Vitória. Saindo um dia de manhã, ele ia para a universidade lecionar. Deve-se dizer que era um professor de retórica e lidava muito bem com os silogismos da lógica – um afortunado. Saía pelo dia raiado com um sorriso entre os lábios, porque encontraria sua amada a alguns passos dali. A jovem Vitória tinha um hábito atraente pelas manhãs: passeava com seu cãozinho para fazê-lo não ser um animal maltrapilho e gordo. Um costume de moça com seu cãozinho adorável. Ah, a sensação que pairou sobre a cabeça do eminente professor estava sendo perfeita. – Vou-me encontrar com a delicada e venturosa Vitória. Até rimou esse meu pensamento! Bem uma rima estranha, mas com um bom recurso mental dar-se-ia um dodecassílabo (riu baixo com a asneira que imaginava). Sou um homem de sorte por amar uma virgem e bela moça. Arrumado impecavelmente, andou com passos ansiosos e ao mesmo tempo contemplativos. Desejos não lhe faltavam, suspiros muito menos. Um jovem senhor se tornara um adolescente frívolo ao olhar de longe o seu querubim. – É ela, sim eu a vejo, é Vitória. O que faço agora? Vou mais devagar, um homem precisa caminhar tranquilo para não demonstrar frestas de seu insidioso coração a palpitar minutos a mais que o normal. Vitória pensava: – Ah! o professor Luiz logo passará por aqui. Será que me cumprimentará novamente? Será que serei privilegiada com o olhar sedento do homem galante? Ah! (inquieta) mas tudo deve ser a seu tempo, controle-se, Vitória! Tome lugar em seu mundo! Seja fria, seja paciente, não demonstre a olhos vistos o seu sentimento! Eles deveriam se encontrar. Era o destino. Que sortudo! Entretanto, algo aconteceria de forma implacável. – Vamos, homem, caminhe mais devagar e tenha uma postura solene! – divagava o professor. – É ela! – É ele! – Olha, o mundo dá voltas e estamos aqui novamente e sem acentos graves para este momento. Apenas a sensação de amor e fartura de amores – elucubrava o honesto professor. Aproximou-se da moçoila e lhe disse: – Perdão, mas está com um lindo semblante hoje. Será que lhe oportuno com este comentário? – Não mesmo, professor Luiz! Sempre é bem-vinda uma frase de lisonja de sua parte. Vai às aulas? – Ah sim, tenho coisas para fazer hoje. Por exemplo, de colocar uma sala de aula cheia de expectativas para um novo tema que escrevi ontem. – Qual será professor? – Sobre a lógica do amor. – Como assim? Há lógica no amor? – Sim. Ele existirá através da lógica do princípio da identidade aristotélica. Bem, esse tema é um tanto feroz para um dia belo e com um cheiro de rosas agradáveis. . – Fala mais, professor, sim, fala sobre esse amor! Ele tem pernas? Tem ancas? Tem fim? – Ah! e tem tentáculos. E tem um beijo! Vitória se ruborizou com aquela doce afirmação de Luiz que vinha a lhe aquecer a 8

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CONTOS


boca. – Bem, mocinha, eu preciso continuar o caminho, o acaso me reserva uma boa aula. – Sim, o senhor deve seguir. Ambos ficaram parados olhando um para o outro com uma saudade imensa. Tal como um adeus. Os olhos acinzentados de Vitória e os olhos enevoados de Luiz... Qual cor formaria essa mistura? Despediram-se cordialmente. E o cão latia, pois queria andar um pouco mais. – Essa mulher será minha para sempre. – Esse homem será meu para sempre. O professor, em efusão, deu alguns passos a mais e saiu com um solene semblante de conquista. Eu a amo, sim, como a amo! Que bela moça, que olhos ferinos! Serrarei os meus olhos agora para pensar no amanhã, em nosso casamento, em nossos filhos... De súbito, fechou seus olhos e divagou. Ao abri-los, na esquina da rua florida e suave, ele despediu-se da vida. Um carro em alta velocidade lhe deu um beijo. Um grande beijo! De longe, se ouvia um grito de donzela: – Por quê!?

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Yvisson Gomes dos Santos (Maceió, 1

1977) Especialista em linguística pela UNICID/AAL. É escritor alagoano nascido em 1977, em Maceió (na terra dos índios Caetés).


Daniela Spoto (2017)


LITERATURA FRANCESA Rotas da francofonia

POUCO ANTES DO QUASE NOVO FIM por

Elicio Santos1

Estava eu sentado no corrimão do maior viaduto que encontrei, quase mergulhando de

retinas e tudo nos faróis dos carros que passavam abaixo. O vento que resfriava a minha pele bêbada era o mesmo a atiçar o meu espírito à queda. Já que todos vão morrer um dia, não posso escolher a minha hora? Sim, desabar bem alto (refiro-me ao estado ébrio dos meus sentidos), cheio de anestesia no sangue e natureza aérea nos estímulos da carne: poros, arrepios, alívios, sobressaltos. Sentia o revoar dos meus cabelos à sinfonia úmida daquela fração de outono (chovera o dia todo), mas lá estava eu, equilibrando-me sob o céu mais estrelado que contemplei na vida. Uma lua brilhantíssima e deveras cheia, tanto quanto a minha gana pela morte. Fiquei umas duas horas assim: carros indo e vindo sob os meus pés indecisos, lua e estrelas sobre a cabeça do maluco que já angariava expectantes. Gente que me viu desafiando a altura, do viaduto e a minha, inclinando-me ao chão de propósito. Certamente se interessaram pela nova desgraça, mais um show de horrores ao vivo (por enquanto) a cores e, melhor, completamente de graça... vida é pagamento em nosso mundo? No íntimo, alimentava considerações involuntárias. Pontuais desconcertos que alcançam os homens ao encararem a morte de frente e próxima: as velhas dúvidas acerca do além que, ao mesmo tempo, atraíam-me e me apavoravam. Puxei a última quantidade da garrafa em punho, acho que portava uma cachaça popular da época, quase tão mortal quanto a descida... descida? Não, não. Descidas não trucidam enquanto não acham o tipo de fim que as endossa. No desgosto da cana brava, quase sem ardor de tanta, curvei-me à pista de um modo enfático. Não havia a plateia de quando ensaiei o meu objetivo. Acho que se cansou em decorrência da minha demora em praticá-lo. Bem, quem disse que morrer é fácil? Só se ela vier durante uma grande desconcentração da vítima. O meu ponto de equilíbrio rompeu-se, lentamente, quando me resolvi a largar a garrafa vazia. O vidro se espatifou com tamanha facilidade que, em sequência, pus-me ao igual destino. Caí de braços grudados ao tronco e pernas bem unidas, como se uma... Sorri e fechei os olhos. Não sei como, cargas d’água, mas de concreto (num súbito muito rápido) eu me meti num buraco da via asfaltada. Fiquei entalado num bueiro sem tampa, só com a cabeça do lado de fora, enquanto uma molhaceira pesava o meu corpo (da cintura para baixo), no subterrâneo destinado aos esgotos. Embora atravessando o álcool, a minha decisão pelo fim se misturou ao porquê de tanta ânsia escapista: ninguém sai desse mundo com vida, certo? O amor... essa loucura florida ardia-me num malmequer persistente. Ela, a minha quase esposa na cama com o maldito do meu melhor amigo! Enquanto os veículos cruzavam as minhas laterais, fincadas no bueiro, transbordavam em mim luzes e passagens barulhentas do vai e vem motorizado. 11

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CONTOS


Mas ela e ele sem roupa rebatiam a minha consciência, apesar de bêbada, exata nas infelizes recordações. Aos poucos as imagens se perderam (eu foi eu?). Bem, quando dei por mim, era início de outro dia... achei-me enxuto, limpo, numa cama ampla. Meus sentidos se abriram devagar, por isso tateei o colchão macio sem notar que... estatelei-me no piso e, bem, acho que a pancada me despertou num súbito. Logo notei que estava num quarto de apartamento. Faltavam inúmeros discernimentos, mas, pela janela que dava de frente a outro prédio, absorvi a percepção do edifício. De hotel? Motel? Próprio? Alugado? De uma dama bondosa? Dalgum tarado ou tarada? Nada sabia além da minha localização, aproximadamente manifesta e, sobretudo, enigmática. Levantei-me, mirando de alto a baixo. Só aí entendi que vestia apenas uma cueca. Bem familiar, diga-se de passagem. O ambiente me assustava e atraía. Passei a admirar os móveis em excelente estado e a ordem absurda dos detalhes do cômodo onde me instalaram. Entre curioso e pasmo, atravessei a porta do quarto, que estava apenas encostada, e parti à análise das outras áreas à minha disposição. Tudo de bom gosto e limpíssimo. Como da época em que eu não bebia... Bebida! Sim, dei de cara com um barzinho repleto de conhaques e uísques de ponta. Sorri. Bebi. Sorri. Bebi. So... rri. Bee...bi. Apaguei. “Amor, acorda. ” Ouvi o chamado ascendente até revê-la. Nós nos beijamos. Senti dela algum receio, que logo se confirmou quando ela me pediu alguns minutos para conversar. De início, não entendi bulhufas do que a minha querida me propôs, mas concordei. Obtive a razão do apartamento desconhecido: uma permissão temporária de alguns amigos. Até hoje relaxamos. Namoramos. Juramos o bem um do outro. Durante a semana nos sobram poucas horas juntos, devido ao cotidiano atribulado. Eu sou escritor, por isso trabalho no aconchego do lar (não precisamos mais das cessões de residências alheias). Todavia, ao anoitecer, o ritual quase não falha. O dia seguinte é promissor para muitos. Mas, ao nosso relacionamento, sinceramente, não. Ela me acorrenta e se fecha no quarto das visitas. Eu nunca me recordo de nada, até a nova manhã nascer e ela me reeducar para a maldição. Bebo e escrevo. Mais bebo. Jogo fora tudo o que pratiquei no tempo solar. Entrego à minha alma gêmea a confusão dos meus neurônios, sempre recauchutados pelo amor: ele nos basta.

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Elicio Santos

(Brasil). Comecei a escrever na adolescência, a princípio somente poesia. Retornei com toda a força à seara literária em 2011. Fiz duas oficinas literárias e hoje sou estudante de Direito (curso o décimo semestre). Remeto colaborações periódicas à revista Capítulo Um. Tenho quatro livros publicados.


Daniela Spoto (2017)


LITERATURA BRASILEIRA

ENTREVISTA

Rotas da lusofonia

ELE ALTERA TUDO ATRAVÉS DA LENTE ILUSÓRIA DOS Thassio Ferreira PRÓPRIOS OLHOS por

“Ele adultera tudo através da lente ilusória dos próprios olhos. E já não sabe o que

ambiciona mais: invenção ou realidade.” As palavras são de Jacques Fux, em seu mais recente livro: Meshugá - Um Romance Sobre a Loucura. Ou não. Aqui, hoje, neste texto, somos todos meio loucos, meio inventados, meio reais demais, e caberá a você decidir quais palavras pertencem a quem, se é que as palavras podem pertencer a alguém. Foi de um modo bem carioca que alcancei entrevistar o mineiro Jacques. No vai e vem das pedras portuguesas do centro do Rio, encontrei uma amiga e comentei, feliz como pinto no lixo, que estaria na 15a Festa Literária Internacional de Paraty, a FLIP, compondo uma mesa a convite da Liga Brasileira de Editoras. E acrescentei, jogando charme, além de atuar como correspondente da Philos - Revista de literatura da União Latina. A amiga, sorrindo-me de volta, comentou por sua vez que outro amigo dela também estaria na festa. E cantou: Jacques Fux. “Se você é humano, reaja.” Estas palavras não são minhas nem de Jacques, mas de Shakespeare. Pelos mistérios e delícias do acaso, eis que poucos dias antes desse encontro eu tinha assistido a Hamlet, logo Hamlet, um dos textos fundamentais da literatura sobre a loucura. Feito humano, feito carioca, feito correspondente literário estreante, reagi. Pedi a minha amiga que fizesse o meio de campo E a loucura desse texto começou a se tecer. Você, aliás, já teve um lampejo dela, não? Olhe de novo. Marcando a estreia da Philos na FLIP, parte dessa entrevista foi publicada em julho, com o disclaimer de que se tratava de uma obra inacabada. Que será para sempre assim. Mas hoje toma novo formato e alguns fios de inacabada loucura a mais. Jacques foi um dos convidados da programação oficial da FLIP 2017. Autor de Antiterapias — com o qual ganhou o Prêmio São Paulo de Literatura 2013 — e Brochadas; em Meshugá ele reencena episódios reais para soprar suas palavras à boca de pessoas que ao longo da história foram tidas, em algum momento, de alguma forma, como um meshugá: o louco judeu. Essa técnica, aliás, é um dos grandes encantos de Fux com a literatura: adulterar através da lente ilusória dos próprios olhos. Misturar e confundir o que seria realidade e ficção. Loucura, enfim, talvez. Mas talvez uma loucura hamletiana, que, em sua própria voz, é “louco por astúcia”. Pois vamos então à loucura de Jacques Fux. 14

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Como foi receber o convite da Flip e qual sua expectativa sobre o evento? A minha história com a Flip é antiga. Acho que a primeira ou segunda teve um show do Chico Buarque, mas eu não fui [Chico participou da 2a edição da Flip, em 2004, e na edição de 2009]. Mas eu fiquei lendo, e desde então eu sempre fiquei muito interessado na Flip. Em 2011, quando eu fui pela primeira vez, eu achei aquele lugar encantador, maravilhoso. Há dois anos atrás eu lancei meu livro pela Rocco e teve a casa Rocco lá. Eu sempre participei, no Brasil inteiro, de feiras literárias, mas a Flip para mim era um sonho, um evento muito grande, muito bonito, que consegue trazer as pessoas. Então quando eu recebi o convite achei maravilhoso! Eu fiquei muito feliz, e venho pensando nas coisas pra se falar, estou muito alegre, é um grande sonho. A literatura por mais difícil que ela possa ser, e ela é, ela tem me realizado grandes sonhos. Neste ano o homenageado da Flip é Lima Barreto, cuja figura guarda algumas interseções com o Meshugá. Barreto sofreu na pele não só a loucura como muito preconceito por ser negro, você acha que ele daria um bom personagem de Jacques Fux? [Risos] De fato, acho que estou lá por causa disso, nesse momento em que lancei o Meshugá, que trata da loucura e tem também uma outra entrada: a questão do auto-ódio, que são as coisas que os outros sempre falam sobre algumas minorias, depreciando negros, judeus, e as pessoas acabam introjetando isso. Eu fui atrás de fazer um corte pela loucura judaica, então eu fui atrás dos judeus que acabaram introjetando esse ódio milenar com relação a eles. Então, ele não seria um personagem do Meshugá [por não ser judeu, intervenho], mas daria um bom personagem literário em outro contexto, eu gosto dessas biografias. Para fazer o Meshugá li muitas biografias, muitas teses de doutorado sobre o tema, e aí fui construir os personagens, que são muito biografados mas o narrador entra nas cabeças deles, e está aí a ficção. Então o Lima Barreto poderia ser um personagem, eu faria a biografia dele e entraria na cabeça dele. A loucura é um tema riquíssimo. Eu li você declarar que fez uma pesquisa extensa para os personagens reais do Meshugá. Você se permite ir ficcionalmente contra os fatos que tenha apurado ou nada da ficção do livro contradiz a realidade? Ou seja, você se permite alterar os fatos ou apenas completar as lacunas, especialmente com o narrador entrando na cabeça dos personagens? Eu li muitas biografias, muitos estudos, mas acho que como escritor, ficcionista, eu tenho essa liberdade, então eu não me policiava tanto para ir a fundo e saber se de fato exatamente tudo aconteceu. Tem que ter alguma verossimilhança, tem que ter lógica, alguma construção, tudo baseado na biografia, mas com muitas subversões, acho isso um recurso muito interessante literário que eu uso; eu uso aspas muitas vezes que não existem, não uso aspas em trechos que são citações, acho que isso enriquece a literatura, meu objetivo é justamente esse: criar novas redes literárias, um hipertexto. Eu brinco, o que é verdade, o que é mentira, gosto de brincar com o leitor, ele tem que entrar no jogo. E se os personagens retratados pudessem ler sua obra, como você reagiria? Eu fico sempre pensando no Woody Allen, que está vivo, tem um poderio financeiro gigantesco, se ele me processasse... Mas acho que em uma leitura sensível do livro se percebe que é ficcional, e além disso o narrador não se propõe a fazer juízo de valor dos acontecimentos. Então por exemplo, a história do Allen é complexa, né, ele casou com a filha adotiva da ex-mulher, e o narrador entra na cabeça dele, da ex-mulher e da filha, e ao entrar na cabeça deles é ficção pura, e eu não estou criando juízo de valor. É um livro de ficção. Mas eu acho que seria legal... Eu fiz um curta em que falo de uma mulher comendo churros, de um conto que eu escrevi, e no curta eu a estou descrevendo e de repente ela vem e interpela o narrador, que sou eu. Eu acho legal esse diálogo, e aí, sou eu que você está representando ou não sou? Eu gosto dessa brincadeira, então acho que seria interessante alguém ler. 15

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No Meshugá há uma frase que diz: “O gozo, inatingível para todos os outros mortais, é experienciado pelo matemático.” Qual gozo a literatura te proporciona e qual você busca proporcionar ao leitor? Essa frase fala do gozo lacaniano que a gente sempre busca mas não consegue realizar enquanto humanos; e nesse texto eu falo desse matemático que resolve o problema mais importante da matemática e prefere não receber o prêmio, e eu falo que ele está num outro espírito, que seria capaz de realizar o gozo do problema. Eu acho que enquanto escritor achar esse gozo talvez não seja possível, porque o gozo é essa angústia que você tem diariamente de escrever, esse sofrimento. Porque escrever é muito sofrido, é muito angustiante Você acaba o livro e não sabe se é bom, e nunca vai saber... Então acho que não tem gozo não, talvez seja mais sofrimento. Um sofrimento que dá um certo prazer mas tem muito sofrimento e muita angústia, muito mais do que gozo. [Eu insisto um pouco: mas e o que você tenta causar no leitor? É mais um gozo, uma reflexão..?] Talvez um estranhamento. Tocar o leitor de alguma forma. Como você decide que um livro está pronto? Você revisa muito, reescreve muito? Eu escrevo muito, vou reescrevendo várias vezes. Talvez a primeira escrita seja a mais sofrida e menos prazerosa. As reescritas, como um diamante que você vai lapidando, são muito prazerosas, porque você vê o negócio melhorando, mas mesmo assim você tem muita insegurança. A minha insegurança é eterna. E mesmo, por exemplo, meu primeiro livro, que ganhou o prêmio São Paulo, eu estou querendo relançar, e se ele sair por outra editora eu pretendo reescrever algumas partes, mesmo de um livro publicado. E eu acho que esse desejo de reescrever não vai parar nunca. A história da literatura tem muitos personagens que nós não sabemos se estão realmente loucos ou não. Inclusive Hamlet. No Meshugá também há isso, há atitudes que dificilmente poderiam deixar de ser classificadas como seriam loucura mas outras não são tão inequívocas. Como você escolheu os personagens? Você os foi juntando ao longo do tempo e depois resolveu fazer um livro ou teve a ideia e foi atrás dos personagens? Como eu vim da matemática, fiz computação, sempre gostei desse mundo da ciência, eu sempre achei a questão da loucura muito interessante e muito próxima da genialidade. E quando você vê isso de longe você acha um assunto divertido, risível, lúdico. Então eu fui colecionando loucos ao longo da minha vida inteira, sempre pensei em um dia escrever algo sobre isso e aí chegou o momento e resolvi juntar todos esses personagens. Só que a grande questão é que eu imaginava que seria um livro lúdico, a loucura me pareceu lúdica em algum momento, e depois de entrar na cabeça desses personagens eu vi o quanto é dolorosa a loucura, dentro deles há muito sofrimento. E como é sua visão sobre uma história que se constrói em torno de um ponto de vista de um personagem que pode ou não estar louco? Como é ter um narrador não confiável? Talvez essa seja a grande questão da literatura. Se você pensar no Dom Casmurro... Os narradores por si só são ficcionistas. E se um livro é muito fechadinho eu acho que perde o encanto. Esses livros de autoajuda têm muito uma receita de bolo, muito bem descrito, então a pessoa fecha o livro e sabe o que tem que fazer na vida, quando a vida não tem controle nenhum, é tudo imponderável; a grande angústia da vida talvez seja que a gente queira controlá-la, controlar também nossas pequenas coisas e elas são incontroláveis. Então o narrador tem que conseguir passar isso. Ele tem que passar uma coisa pro leitor pensar, imaginar, ir para outros mundos. Isso é um livro rico, que permite muitas outras leituras, pessoais, da sociedade, e não receitinhas de bolo. Ao longo do Meshugá você entra na mente dos personagens mas dá ao leitor diversos sentidos possíveis dos atos daqueles personagens, explicitando isso na linguagem (“Será que ele está pensando isso? Ou isso? Ou isso? etc.). Foi proposital para dar essa indefinição 16

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relacionada à loucura? Sim, vai abrindo, vai abrindo muito. Minha literatura é essa de abrir, abrir novos caminhos, eu brinco que é um hipertexto. As frases não são jogadas, elas têm um sentido e muitas vezes pode ser um sentido de abrir uma outra literatura. Você joga uma frase lá e ela está fazendo referencia ao Proust, ou ao Joyce, ou a uma questão da matemática, ou da filosofia, ou da física, e quem conhece vai saber; quem não conhece não vai saber mas pode um dia saber e acho que isso é a beleza. Você lê Alice no País das Maravilhas, por exemplo, é um livro que as crianças leem mas que não é para crianças, o Lewis Carrol era matemático, é um livro de lógica. Eu fiz um mestrado em lógica, sei como aquilo vai se abrindo, mas se você não sabe não significa que você não tenha um encantamento seu. Alice está aí há cento e cinquenta anos e quantas pessoas sabem que é um livro de lógica? Mas é um livro que encanta e é isso que quero fazer na minha literatura. Você teve alguma tentação estética de ir além da compreensão textual, para emular algum tipo de loucura? Ou você quer sempre ser entendido? Eu escolhi a terceira pessoa nesse livro, então é um estilo mais descritivo, embora ele [o narrador] vá se questionando. Então eu não quis fazer essa brincadeira linguística. Poderia. Eu acho que não quis atacar essa questão, mas seria interessante. Além de ser um livro sobre a loucura, sobre a (in)compreensão de certos atos, o Meshugá também é um livro sobre pertencimento. Sobre o peso e o desejo de pertencer. O sentimento de pertencer é em si meio louco? De fato, você passa a vida inteira em busca de pertencer a alguma coisa, algum grupo, ser aceito pelo olhar do outro porque esse olhar do outro de alguma forma te faz ser o que voc6e é. E nesses personagens é esse maldito olhar do outro, odioso, que desperta um ódio ao próprio corpo. A gente passa a vida inteira em busca de pertencimento quando na verdade você pode passar uma vida com uma pessoa ao seu lado e você nunca vai conhecê-la de fato, e mesmo você, né, você fica a vida inteira vivendo com você mesmo e mesmo assim muitas coisas te surpreendem sobre você mesmo. Então de fato é um sentimento meio louco. E quais pertencimentos literários você deseja e quais te pesam? É difícil viver de literatura, eu gostaria de viver de literatura. Ter mais leitores. Talvez o peso seja esse: tenta fazer algo em que você acredita e tenha qualidade literária e não acessar tantos leitores. Ao fim do Meshugá essa questão do pertencimento se inclina para a própria relação do escritor com o cânone literário. Como é a sua relação com o cânone? Existem os grandes, né, e quando você os lê fica muito tocado, como leitor, achando maravilhoso, e como autor, achando angustiante, porque é muito bem feito, muito magistral, e você fica angustiado de achar que o que você está fazendo é muito menor, muito ínfimo. Mas ao mesmo tempo também te dá um certo ímpeto para continuar fazendo, tentando. Então eu procuro na minha literatura abraçar esse cânone que me é caro: Joyce, Proust, Philip Roth, Guimarães Rosa, Machado, Borges. Eu vou abraçando, não quero competir com eles, não quero não considerá-los, eu quero que eles caminhem junto com a minha obra, então é por isso que tem tanto deles ali dentro. Com outra voz. Você lê mais ficção, não- ficção ou poesia? Ficção e não-ficção. Um bom título de livro é? Um que te encanta mas não cai no lugar-comum. Um conselho aos jovens escritores? "Não seja escritor". Porque na verdade quem aceitar esse conselho não tinha que ser escritor mesmo, entendeu? Você lida bem com críticas? Quando é construtiva, acho bem interessante. Dói, todas as críticas doem, mas também de todos os elogios você desconfia... Eu tento melhorar tudo, né, mas é uma angústia eterna... A literatura é um antídoto contra a loucura? Ou um convite? É um convite, né, mas talvez 17

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1Thássio

Ferreira (Rio de Janeiro, 1982). É poeta e contista, autor do livro de poemas (DES)NU(DO) (Íbis Libris, 2016) e de contos publicados nas antologias Prêmio VIP de Literatura 2016 (A.R. Publisher, 2016) e “Entre Amigos” (Sinna, 2016). Recentemente, seu livro inédito de contos “Cartografias” foi um dos préselecionados ao Prêmio Sesc de Literatura 2017. Tem poemas e contos publicados em revistas diversas como Philos, Germina, Mallarmargens, Revista Semeadura e Avessa.


seja um convite também a tentar compreender a loucura, não só à loucura por si só, mas também uma tentativa de compreensão. Um autor que merece ser mais lido? [E eu me antecipo, com receio de que Jacques roube minha piada: não vale dizer você. Antes de responder, ele embarca:] É, eu mereço! Os chineses deveriam conhecer minha obra, né, pelo menos cem milhões de chineses, porque é uma porcentagem ridícula no todo. [Como ele é o especialista de nós dois tanto em matemática quanto em literatura, não questiono se a adjetivação "ridícula" a dez por cento da população chinesa é um juízo matemático ou uma força de expressão. Ele então responde:] Quando eu morava nos Estados Unidos me perguntavam qual autor eu achava mais maravilhoso e eu respondia Guimarães Rosa, completamente desconhecido e inacessível para os americanos. Então fica essa dor, de saber que talvez nosso maior escritor, a meu ver, a gente não consegue passá-lo para o mundo. Eu brinco que a gente só fala português para ser capaz de ler O Grande Sertão: Veredas no original. O mais difícil em escrever é? A angústia, né, de saber se é bom, se você vai conseguir expressar tudo que você quer. A maior dificuldade é a angústia de escrever.

Jacques Fux

(Belo Horizonte, 1977). É formado em matemática, mestre em computação, doutor e pósdoutor em literatura. Estreou na literatura com Antiterapi as (Scriptum, 2012), que obteve o Prêmio São Paulo de 2013. O romance mais recente é Meshugá (José Olympio, 2016), que reinventa a vida e a obra de nomes como a filósofa Sarah Kofman e o cineasta Woody Allen para explorar temas como a loucura, a identidade judaica e os limites da ficção. Foi pesquisador visitante na Universidade de Harvard e também publica ensaios, sendo o mais recente Literatu

ra e matemática (Perspectiva,201 6), finalista do Prêmio APCA.

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Daniela Spoto (2017)


LITERATURA BRASILEIRA

EXPERIM.

Rotas da lusofonia

RAZÃO PERDIDA por

Willames Frank1

Teus olhos na tua boca me fazem ouvir passos descalços que se distanciam do teu

ouvido e batem no meu peito. Desfaço-me de desgosto; mesmo assim continua gostoso o gosto azedo do teu suor que me leva a uma atmosfera única do mundo astral dos sonhos encantados. Tuas costas cheias de cordões umbilicais que te conectam a esse sonho acordado que vivo a teu lado. E não me esqueço do momento que te conheci, mas não consigo lembrar-me de quando deixei de te conhecer. Droga! Essa nuvem negra, cada vez mais negra, me faz lembrar teu hálito que transpirava do teu corpo inteiro e me exalava de carinhos, ternura; quantas amarguras vividas ao teu lado. Mas que lado? Essa nuvem negra me fez esquecer como são lindos teus olhos na tua boca. Ah, que boca! Que olhos! Que corpo! E aqueles gozos gozosos que muitas vezes fui levado de mim para ti em movimentos cada vez mais únicos e gostosos. Tuas mãos eram meus pés e tua cabeça minha cabeça; na verdade, o que era meu era também teu, teus pés, teus joelhos, tua barriga, ah, que barriga!... Hoje, andando, vejo ruas escuras, noturnas, por onde passamos e flutuamos, nos afundamos num oceano cada vez mais raso nesse rastro de rato doentio que povoa esgotos de belos romances com nuances pútridas de ciúmes; que tua bela boca fala o que meus olhos não conseguem ouvir e meus ouvidos não conseguem ver, e continuas a falar... Eu grito. – Cale-se! Pelo amor da razão que perdeste muito tempo atrás!

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Willames Frank (Alagoas, 1

1986). Graduado em Filosofia (UFAL), especialista em Filosofia da Educação (FACESTA), estudante de Letras na Universidade Federal de Alagoas. Pesquisa em Filosofia Latino americana e faz parte do Grupo de Pesquisa: Subjetividade e Crítica ao Sujeito Moderno (UFAL CNPq).


Daniela Spoto (2017)


LITERATURA BRASILEIRA

COLUNAS

Rotas da lusofonia

NÃO JULGUE PELA CAPA por

Munique Duarte1

“Nunca julgue um livro pela capa” é uma frase famosa, assim como “Não julgue as pessoas pela aparência”. Concordo. E observando minhas experiências ao comprar livros, concluo que: - já comprei livro por ter capa bonita e o conteúdo não era tão bom; - já comprei livro muito bom com capa bonita; - já comprei livro com capa horrível, mas o conteúdo era ótimo; - já comprei livro com capa que não tinha nada a ver com a história; - já comprei livro com capa sem graça, cuja história era mais sem graça ainda. As combinações são variadas. E quem resiste a uma capa maravilhosa na livraria? E há também uma pesquisa que apontou que o brasileiro compra livro de acordo com o texto de orelha – um resumo ou avaliação da obra que vem na dobra da capa ou contracapa. Sim, a questão é complexa. Mas vou passar duas dicas para você não desperdiçar seu dinheiro com “livro ruim de capa boa”, em livraria ou sebo, ou desperdiçar seu tempo em uma ida à biblioteca, saindo de lá com uma péssima opção. Antes de buscar a obra que você tanto deseja, dê uma pesquisada na internet em sinopses, resumos, resenhas e opiniões de outros leitores. Ou pergunte a alguém que já tenha lido se o livro vale a pena. Mas é legal você perguntar a um leitor que tenha um gosto literário parecido com o seu. Mas se, na livraria, no sebo ou na biblioteca, na correria do dia a dia, você levar uma capa bonita pra casa, não se esqueça que, como foi dito, as combinações são variadas. O conteúdo pode ser bom e você terá feito um excelente negócio. Se não for o que você esperava, não se preocupe. O que você não gosta de ler pode ser o que o outro leitor prefere. Venda on line, presenteie um amigo, negocie em um sebo, troque com alguém ou doe a uma biblioteca. Quando o assunto é literatura, uma boa saída é o que não falta.

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Munique Duarte (Santos 1

Dumont, 1979). É jornalista, formada pela Universidade Federal de Juiz de Fora. Lecionou língua espanhola por dez anos, tendo estudado no CELEC – Córdoba (Argentina). Tem textos publicados em diversos sites, revistas e jornais literários, como Jornal Relevo, Jornal Opção, Revista Diversos Afins e Livro&Café. É idealizadora e apresentadora do programa mensal Literatura na Rádio Cultura, em Santos Dumont, Minas Gerais. Participou das antologias . É colunista da Philos na sessão “Não deixe de ler”.


Daniela Spoto (2017)


LITERATURA BRASILEIRA Rotas da lusofonia

PEREZHIVANIE por

Marcelo Ferreira de Menezes1

A caminhonete fez uma curva suave para a esquerda, entrando finalmente na estrada de

terra que levava a Relicário. O tempo estava seco, como fora nos meses de junho e julho e, pelo retrovisor, eu podia ver a poeira do barro fino do chão formando grandes lufadas vermelhas, contrastando com o verde da vegetação que margeava todo o antigo caminho com um céu absolutamente azul, sem nuvens, como eu não me lembrava ter visto algum dia por ali. Relicário, a fazenda de meu pai, de nossa família, finalmente surgiu no fim da estrada sinuosa, por entre galhos de árvores mudas de suas folhas, folhas que antes davam voz ao vento. Relicário, eu dizia, avultou-se como um fantasma: austero, solitário, parvo, pesado, com um ar estúpido, cansado. Parecia me olhar com raiva, por ter seu descanso interrompido por mim naquela tarde. Eu era um intruso em meu próprio passado. Desci do carro e contemplei suas paredes vetustas então cobertas de musgo e solidão. Não mais nossas vozes, não mais os gritos de ordem para os camaradas, não mais o relincho dos garanhões no pasto, das vacas reclamando a ordenha ou de mamãe chamando para o almoço. O silêncio desabava agudamente sobre o vozerio ininterrupto das tantas gentes que me habitavam; em vão, seu peso tentava silenciá-las, uma após outra. Cada um desses habitantes subia o tom da voz, como um mercador, na ânsia de atraírem compradores para seus produtos. Acendi um cigarro. Então avistei o poço. O poço. Caminhei até sua borda. Minha infância, aos poucos, voltava a vibrar em meu corpo, como os formigamentos que vão se alastrando pela carne num tremor morno: um braço, uma perna, um pé, que, conforme se diz, ficaram dormentes. E novamente abandonei o presente, transformando, no redemoinho do afogar-me em mim mesmo, toda a paisagem externa e também meus contornos físicos: voltava a ter meus nove anos. Meu irmão gritou lá de fora: – Vem ver, Gláucio, seu dorminhoco! Sai dessa cama! Papai trouxe um pastor! Ele não sabia, mas eu já estava acordado e tomava meu desjejum. Deixei o pão com manteiga e a caneca de café com leite na mesa da sala de jantar e saí pela porta principal, descendo as escadas quase tropeçando nas barras de meu pijama. Glauco, meu irmão gêmeo, já estava segurando a coleira do animal; e sorria triunfante, como se mostrasse para mim o valor de acordar cedo todos os dias, com papai. Era um cão adulto, mas ainda jovem. Meu pai sorria ao lado dos dois. Mais uma vez, papai dera a Glauco a primazia pelos prazeres das pequenas responsabilidades; de novo eu me atrasara. Mamãe reclamou: – Ai, Chico! Mas pra que mais um cachorro? Já não temos um? – Deixe, mulher! O Tigela está velho. Já, já ele nos falta. Achamos esse aqui na estrada do Matondo e parece que é manso. Mas eu já conserto isso. Vai dar um bom cão de guarda! Não mentia ele; Tigela era um vira-lata magro que passava os dias ou dormindo na soleira, ou lambendo erupções na pele causadas pelos bernes. Latia só de vez em quando, sem a mínima necessidade, pela aproximação de alguma visita e nada mais. Posso não estar bem certo quanto à duração 24

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CONTOS


dos fatos, pois a memória muitas vezes nos engana, mas acredito que foram dois meses de agonia. Meu pai mantinha o pobre cão preso a uma estaca próxima ao poço, dando-lhe talvez o suficiente para não sucumbir; à pouca comida que lhe dava, acrescentava pimenta. E açulava-lhe com uma vara pontiaguda, instigando-lhe a raiva. Mas bem se via que aquilo não estava dando certo; o pastor era de outra natureza; não mudava sua boa índole. Meu pai sim, a cada insucesso, parecia mudar o que eu supunha ser a sua. Passou a bater nele ritualisticamente; no começo de forma comedida; depois, com mais força. O cão gania, lacerando meus ouvidos e também a alma. Eu e meu irmão presenciávamos essas surras; imóveis, como os mourões que cercavam nossas terras, nada falávamos. Nos olhos verdes de Glauco, eu buscava um pouco da piedade que devia sobejar nos meus. Meu pai parecia perceber meu incômodo. E me olhando sério: – Ele vai ficar bravo! Ora se vai! – e aumentava a força das pancadas. Minha mãe se escondia nos fundos da casa, sabendo que pouco poderia fazer para convencer meu pai do contrário quando ele metia uma ideia na cabeça. Um dia, ao amanhecer, após uma noite inteira de agonia, em que o cão parecia suplicar até por sua morte, ganindo e uivando num lamento vagaroso e sem descanso, levantei da cama antes mesmo de papai e Glauco, corri até o poço e soltei o nó da corda que apertava o pescoço de meu amigo canino. “Ele nem teve tempo de me agradecer”, interpretei naquele instante; correu e se enfiou na mata. Apanhei muito de meu pai nesse dia; parecia para mim, enquanto era surrado, que eu levava as pancadas que o pastor, fugido, deixara de levar. Meu pai saiu com Glauco atrás do animal e, após algumas horas, encontraram-no metido numa touceira não muito longe do portão de entrada da Relicário. Trouxeram-no de volta e o puseram na amarração perto do poço novamente, onde ele havia ficado horas a lamber suas feridas. De castigo e com dores pelo corpo, eu acompanhei da janela a chegada dos três. Meu pai ordenou que eu fosse até o terreiro, o que fiz imediatamente. Lá chegando, ele me passou uma borduna, bem diferente da vara com que ele costumava açular o cão. Imediatamente entendi o que ele queria, nem precisaria falar mais nada; mas ele falou: – Esse bicho fujão tem de aprender a não fazer mais isso! E você – gritou apontando para mim – tem de aprender a ser homem! Castigueo! Eu olhei para Glauco; tínhamos a mesma expressão, que eu julguei – pela natural impossibilidade de ver meu próprio rosto – fosse de incredulidade, de surpresa, de horror, como certamente era a minha. O medo me paralisava, mas ainda isto: não havia nada em mim que me movesse em direção àquele animal para tocar minimamente em seu corpo no intuito de lhe impingir a mínima dor. Em busca de auxílio, mirei o verde dos olhos de meu irmão, procurando novamente algo de mim ali. E foi então que aconteceu. Naquele momento, eu presenciei, como, no meu entender, dificilmente alguém costuma presenciar na vida, exatamente como nascem os homens. Glauco arrancou de minhas mãos a borduna e, como que possuído por algo que jamais existira, existia ou viria a existir em mim, deitou tantas pancadas no pastor, que terminou por quebrar-lhe as cadeiras, inutilizando-o de vez. Eu não me reconhecia mais naquele rosto que, estranhamente e apesar de tudo, era também o meu, no verde veneno daqueles olhos despidos do verde amedrontado dos meus. Mesmo meu pai pareceu temer ao que acabáramos de assistir; como se algum limite tivesse sido ultrapassado inapropriadamente. Durante a madrugada, com um tiro, único e seco de sua espingarda, meu pai concluiu a obra de meu irmão. Foi-se sem ao menos o direito de ter ouvido de nossas bocas um nome que lhe coubesse; no tempo que ali padecera, todos o chamávamos tão somente de o pastor. O ribombar de uma trovoada, num susto, me trouxe de volta ao presente, a Relicário, à intensa luz branca da tarde, ameaçada agora por nuvens negras que se encapelavam manhosamente no topo dos morros distantes; era a chuva que chegava. 25

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Novamente o musgo, as paredes vermelhas de barro, as janelas desfolhando-se em lascas de tinta e páginas de sua própria madeira, a secura dos galhos retorcidos das velhas árvores ao redor do terreiro, o fantasma aborrecido daquele lugar reprovando minha intrusa visita. Meu cigarro terminara, sem que eu conseguisse lembrar se o tragara sequer uma só vez naqueles instantes de devaneio. Ali, na boca daquele poço, limite entre a escuridão de um subterrâneo úmido, líquido, pastoso, e uma superfície pétrea que me inundava de luz, ali eu vivenciara, há tantos anos, a encruzilhada. Eu e meu irmão fomos gêmeos por exatos nove anos e nada mais. A partir dali, seguimos caminhos opostos. Ele se tornou um tipo de homem; eu, outro. Dizem que a morte de mamãe se deu em função de desgosto; eu só posso imaginar que sim. Pensar que um dia levara em seu ventre o frio assassino em que Glauco viera a se transformar não poderia tê-la conduzido a outro fim. O gosto dele, ou seu vício por drogas, dor e sangue conduziu-o ao cárcere, não sem antes consumir, com advogados, todo o patrimônio de papai, a quem um infarto colhera fulminante. Paradoxalmente, drogas, dor e sangue também passaram a fazer parte de minha vida, mas de um modo bem diferente: a medicina veterinária hoje se confunde com minha própria personalidade e com meu projeto de existência. Abaixei-me ao lado do poço e fechei no punho um tanto de terra preta, fria, bem no local onde anos atrás aquele cão vivera sua terrível paixão. Relicário não suspeitava do real motivo de minha visita repentina naquela tarde: bem-sucedido em minha carreira, eu juntara dinheiro suficiente para tê-la de volta; não para trazê-la novamente à vida, que isso era impossível – o passado é um ente morto a assombrar-nos por dentro –, mas para lhe proporcionar uma vida inteiramente nova, a partir mesmo do nome. Pensei em chamá-la, por justiça e adequação, quando novamente estivesse em pé, “Santuário para Animais Fazenda do Bom Pastor” .

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Marcelo Ferreira de Menezes (Rio 1

de Janeiro, 1968), contista e poeta, é professor de Redação da Escola de Especialistas de Aeronáutica (EEAR), em GuaratinguetáSP, onde reside. Mestrando em Linguística Aplicada pela Unitau-SP, é editor da Revista Atrium, ISSN 2446-7219.


Daniela Spoto (2017)


LITERATURA BRASILEIRA

COLUNAS

Rotas da lusofonia

A FORÇA DOS AMORES IMIGRANTES por

Sílvio Reis1

Enquanto estudava para ser padre, um italiano de Gênova apaixonou-se pela filha de

criação da família. Para evitar o amor entre os quase irmãos, os pais o mandaram para o Brasil. Morando em Minas Gerais, conheceu outra mulher, exatamente no dia em que ela buscava o vestido de noiva na loja, para se casar. Nesse encontro entre italianos, os olhos do amor à primeira vista falaram mais que as palavras. A noiva, italiana de Bolonha, se desfez do noivado e se casou com o genovês. Tiveram apenas uma filha, que depois de casada morou em Guaxupé, no Sul de Minas. Do Líbano, o padre José Youssef Elias partiu de Baino Acar para o Brasil, em 1907. Veio com o filho Nicolau Cury, com a missão de edificar uma igreja cristã Ortodoxa em Guaxupé. Construída entre 1920 e 1930, foi a segunda do país na época. A primeira, em São Paulo. A missão do padre José Elias foi cumprida, mesmo depois da morte do filho. A namorada de Nicolau escreveu do Líbano para informar que não poderia esperá-lo por muito tempo. Ia se casar com outro. De tristeza, o jovem parou de comer e se desgostou da vida. Morreu de amor, sem tempo de entender o significado brasileiro da palavra saudade. A terceira história é mista de amor social e familiar. No Líbano, o padre José Elias deixou três filhos e a esposa grávida. Todos só se reencontraram 14 anos depois, em Guaxupé. Foi o tempo necessário para se estabelecer, financeiramente, e conseguir todo o dinheiro da construção da igreja. De batina preta que cobria os pés, cabelos compridos e presos num coque, o padre viajava muito. Como resultado, a Paróquia Santo Elias abrangeu municípios do Sul de Minas, do Triângulo Mineiro, cidades paulistas e até Anápolis, em Goiás. A dificuldade de se comunicar em português não impediu o padre José Elias de realizar batismos, rituais religiosos e muitos casamentos. Algumas festanças duravam até sete dias, com farta comida árabe, dança e alegria. Era uma forma de fortalecer a colônia síriolibanesa na região e no País. E ainda comemorar a força dos amores imigrantes.

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Sílvio Reis.

(Rio de Janeiro, Brasil). É graduado em Jornalismo e exerce este ofício há 30 anos. Autor de pesquisas de linguagem, que resultaram em publicação de livros, atualmente ele se dedica à pesquisa, reportagens e artigos sobre a relação “homemanimal”. Os textos são divulgados em diversos veículos de comunicação e no blog vitorioregio.com


Daniela Spoto (2017)


LITERATURA PORTUGUESA

COLUNAS

Rotas da lusofonia

FRANKENSTEIN por

Magda Fernandes e José Domingos1

Pretendendo discursar visualmente sobre o tema “monstros” vestimos a pele de Victor Frankenstein e partimos numa busca por fotografias e projetos cadáveres. Encontrámos algo que nos serviria, ao nos depararmos com imagens descartadas de rostos e expressões, que tinham sido cortadas, separadas e arquivadas, fruto de um projeto passado. Começámos então a inventar novas entidades, reconjugando as suas partes, tentando criarlhes feições no limite entre o verosímil e o monstruoso, entre o nítido e o evanescente, tal como acontece nos pesadelos. Assim nasceram os nossos monstros.

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Imagerie – Casa de Imagens, criada em Lisboa em 2008 por Magda Fernandes (Porto, Portugal, 1981) e José Domingos (Paris, França, 1974), é uma estrutura que desenvolve as suas atividades no âmbito da fotografia, funcionando como plataforma de criação e investigação, e como espaço de aprendizagem e de partilha de conhecimento. O coletivo explora as possibilidades técnicas, conceitos e artísticas da fotografia analógica e dos processos fotográficos alternativos na produção visual contemporânea 1


Daniela Spoto (2017)


LITERATURA PORTUGUESA

COLUNAS

Rotas da lusofonia

COMPRESSÃO por

Kátia Bandeira de Mello-Gerlach1

De um capítulo anterior: Os sapatos de Pietro Paolini jogados sobre o piso haviam perdido o resplendor polido pelo engraxate; desvendados os pés, salientavam-se as calosidades, ossos novos que se feriam ao menor contato. O limpa-botas massageara as protuberâncias, aliviando o martírio de Pietro Paolini momentaneamente. No entanto, o sequestro levara-o do camarote do engraxate para aquele lugar ermo, de murmúrios em russo. Uma coronada na nuca apagara o clarão. Escalpelado, Pietro Paolini representava o sujeito amoroso sem que nunca houvesse amado. Vulnerável, expunha a carne viva aos mais leves ferimentos. Sob o poder dos sequestradores, Pietro Paolini permanecia com o cérebro mole e os pés em gélida nudez. Ao abrir os olhos, pestanejaria nervosamente e confrontaria os seus malfeitores, sujeitos de cérebros doentios e inconsequentes, de pés calçados em botas e cadarços firmes, inclusive Madame Petróvska, ciente, desde a infância, da lista de crimes que cometeria. Pietro Paolini, como um menino de pijama, riu de seu próprio medo e sentiu a urina arder a urticária entre as coxas. “Façam-me um favor”, disse Madame Petróvska. “Mudem as roupas dele.” Vladmir, Boris e Sorokin, membros da Sociedade Cirúrgica Russa, assentiram providenciaram roupas brancas e limpas. *** A Pigmaleã e O Barítono Galante: 1 Ludmila pretendeu esculpir o homem perfeito com a mesma técnica de Noguchi para lavrar asteroides. Sobre a cama de Procusto, 2 não se faz amor. Ah, amor, a soma do Eu+Eu, ria-se Ludmila ao acender a árvore do riso e do pranto! A armação de ferro serviu de moldura para Pietro Paolini, antes gorducho e fanfarrão. A terceira e invisível mão de Ludmila delineou as partes do corpo que foram retraídas e as outras, alongadas, resultando em um homem mais soturno, que abaixara não apenas calças mas também a crista do galo. Apesar do suplício infligido sobre ele pela antiga amante, Paolini ainda insistia na nostalgia pelo cãozinho Zamor. Era teimoso. Desta teimosia, Ludmila não o livraria pois a cama alterava a forma, humilhava o espírito até a epiderme salpicada de pelos e pintas grandes, médias e pequenas mas não apagava a culpa. A pedido de Ludmila, um cirurgião russo fora capaz de raspar a gigantesca pinta de nascença fincada sobre a sobrancelha esquerda. A mãe de Paolini costumava dizer que a pinta sobreviera ao beijo de um anjo vingativo; o pai amnésico sugeria que o sinal representava o ovo da aves-

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“Os loucos são o sal da Terra, e se eles perderem a loucura, piramos todos.”


truz perdido em um deserto de cujo nome não se lembra. Paolini segurou as barras da cama de ferro que o moldara. Sentia a presença de Ludmila Petróvska soprar no cativeiro onde ela o mantinha sob os cuidados de Sorokin. Paolini tentava falar apesar da boca inchada em um sorriso horroroso. Ouvia o balanço dos brincos de marfim da mulher a meio lume, o ruído o fazia pensar em sexo. Rosto, onde estaria o rosto dela? Da posição em que se encontrava, enxergava o penico e o fato de que não poderia pegá-lo. Recobrava os seus sentidos. Os braços haviam sido retorcidos, o seu corpo inteiro doía. As roupas limpas com as quais os camaradas o vestiram agradavam-no, cheiravam a sabão de coco. - Ludmila, é você? - Reconhece a minha voz? -Latoschka,3 como iria esquecer-me? -? -? -? -? (Não há AMOR na CAMa de PROCUSTO que se assemelhava ao leito de Sodoma. Ludmila fantasiava o barítono a cantar árias da ópera. Ludmila era uma mulher muito abaixo dos anjos. Ninguém suspeitava que tivesse alma. Entretanto, gostava de óperas, não se conformava com as tramas e modificava-as a seu bel-prazer. E se Desdemona, cujos trajes vestia, houvesse sido culpada de adultério e não morresse sob Otelo?) Estamos na cena ideal que sai da televisão, ou de um sonho e vem viver em cima de você. Giram os desejos, vestígios da carne e da consciência. Pietro Paolini convidou Ludmila para um passeio no carrossel. Roda que roda, eram jovens e habituavam-se a uma felicidade nova. Quando naquele momento, Pietro empurrou-a para fora do carrossel na tentativa de sentar-se sobre o cavalinho árabe negro, o mero acidente foi interpretado por Ludmila como tentativa para matá-la. Desde que viera da Rússia para Nápoles, dedicara-se à carreira do promissor barítono, ignorara as inúmeras tentativas de Paolini para conquistar Sophia Loren e acreditara que arrancaria alguns dos espinhos dos músculos cardíacos do homem-objeto do qual se apropriava. Abandonam a cena do carrossel e os dois corpos se encontram em um vagão asfixiante do metrô de Tóquio e o rosto de Noguchi padece como os deles amassados contra a janela do trem imóvel no interior de um túnel a quinhentos metros da superfície. A gigantesca pinta da testa de Paolini é um tentáculo que o gruda no vidro temperado. Os olhos sabem que os russos estão a espalhar submarinos com mísseis pelos oceanos, submarinos com pele absorvente de ecos e com sistemas de propulsão com silenciadores. Ludmila, já naquela época, recebia informações privilegiadas. As autoridades de Lubyanka permitiram que desfrutasse do sol napolitano descrito por Ferrante e corresse mundo desde que pertencesse à rede de agentes treinados para a rota das galochas, como também no caso de Afrika e Hernandez e se especializasse em venenos. Noguchi nos contou que a temperatura no compartimento ultrapassava os cinquenta graus e ninguém era avestruz para suportar o mau agouro de um deserto molhado como a Islândia. Se as portas se abrissem, iriam aventurar-se pelo subterrâneo escuro. Só que o condutor do trem recusava-se a apertar o botão que os libertaria do confinamento e a sensação era de quem se encontrava num submarino. Diante do avanço dos ponteiros, os passageiros começaram a despir-se e o mais louco de todos disse que manteria apenas a gra33

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vata vermelha para cobrir a barriga que não possuía enquanto era o pênis que dava a volta no pescoço. O espetáculo de Pietro Paolini na ópera de Tóquio onde encenou Nabuco, Rei da Babilônia, foi bem recebido pela crítica e os jornais japoneses exaltavam a sua voz com unanimidade. Não se percebeu a rouquidão que o incidente metroviário lhe causou. Aquela fora a última viagem de Ludmila como assistente do barítono. O Alto Comando posicionou-a em algumas missões da guerra fria e, depois de alguns anos, entregou-a à guerra suja da América Latina. Para sua sorte, Ludmila Petróvska nunca foi enviada à India central onde se sacrificam as bruxas. Um remorso ameaçou Madame Petróvska ao largar Pietro Paolini como prisioneiro no aposento recluso da casa e não lhe servir coelho assado com ameixas. Não é que se compadecesse do homem. É que, no interior do oco deixado pela alma, Petróvska percebera que desejava o monstro de volta, aquele que tanto a magoara, e não um Pietro Paolini que se submetesse a uma dieta de sopas ralas de ervilhas sem reclamar, a laia de um marido cansado. Simultaneamente, Paolini, havendo percebido que Ludmila recuara e se ausentava, começou a tremer dos pés ao cérebro sobre os ferros frouxos da cama. O terremoto de 1882 se repetia. ___ No canteiro da casa, Ludmila plantara duas árvores ricas em virtudes. A primeira alcunhara de Calvino porque era a árvore do espanto conforme a folhagem despontava ou secava, riso ou pranto. A segunda recebera o nome de Borges apesar de pequenas modificações imagéticas. Esta árvore não continha folhagem e soltava penas de pavão. Acontece que o azar amaldiçoa as casas com penas de pavão em seu interior, provocando a cegueira. O movimento sísmico separou as árvores uma da outra. Tal como a mão apressada apanha a flor, a outra toma a espada abandonada e a terceira mão cumpre a obrigação: dar o nó na garganta. Madame Petróvska fazia muito o uso da terceira mão. Pietro Paolini que a esperasse. ___ 1 Em referência a Pigmaleão e Galatéia. 2 Procusto, um ladrão grego, provocava o suplício de suas vítimas colocando-as em uma cama de ferro que as modelava. 3 Andorinha em russo.

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Kátia Bandeira de MelloGerlach (Rio de Janeiro, Brasil, 1980). Natural do Rio de Janeiro e radicada em Nova York, formou-se em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). É mestre em Direito Internacional Privado pela Universidade de Londres e pela NYU School of Law, e professora de Direito na Fundação Getúlio Vargas. Corpo docente da Universidad Desconocida do Brooklyn sob a reitoria de Enrique VillaMatas. Publica no Jornal Rascunho. 1


Daniela Spoto (2017)


LITERATURA PORTUGUESA

COLUNAS

Rotas da lusofonia

PASSEIO NO PARQUE por

Caio Lobo1

A vida está no parque. Luz, cheiro, ar, cores. A liberdade está no parque, no vento que

provém da velocidade da bicicleta, do deslizar dos pneus, das curvas que faço como se desenhasse obras de arte. A força está no parque, no verde das árvores, no terreno árido de uma Brasília que seca aos poucos, mas que pulsa sob mim, que promete renascer sempre, que concede a energia necessária para seguir adiante. O presente é esta corrida para o nada, é a entrega do atleta, é o suor que redime, o esforço que me faz sentir que sou humano. Os humanos estão no parque: homens, mulheres, crianças. E sorrisos, abraços, corridas, quedas, gritos, vozes, música. A canção me impõe o ritmo, e eu transpiro a paz de viver plenamente, sem máculas, sem anseios. A morte da mente está no parque. E há jogos, farsas, circos; há amantes e famílias – há de tudo. Há quem ande em coisas que nunca se viu, há patins, skates, bicicletas. E os cães estão no parque, felizes com suas matilhas, perguntando-se como eles conseguem. Como eles conseguem? A dúvida que se evapora no parque, na mente de lobos domesticados, até isto há no parque. E eu corro, corro, corro. Fico em pé sobre os pedais, olho ao longe, em toda a imensidão desse lugar sublime: não quero parar. Quero que se eternize a comunhão que me faz crescer, alheio ao tempo. Há sonhos no parque, e sonhadores que passeiam querendo, querendo ter o que não se pode, quando se tem tudo ali, quando bastaria ver como tenho a sorte de ver, porque o parque já está dentro de mim, porque não há diferença entre nós, porque as cores se misturam. Os cheiros, caóticos, são a brisa e o vento e o olhar risonho da criança que conseguiu dar as primeiras pedaladas. Há tanto no parque que não posso dizer, que a expressão se esvai, o pensamento foge, e só me resta esse fluxo de energias que produzem palavras desconexas, essa verve que não é minha, essa alma universal. O parque fala em mim. Sorrio. Estaria louco? A loucura que nos liberta assim só pode ser uma benção. Benção de onde? Quem há de dizer? Agradeço a quem me abençoa assim, gratuitamente, e pedalo, pedalo, pedalo. O parque se oferece a mim como o paraíso que ninguém vê, como a realidade que todos negam. E no entanto, está aqui, o parque sou eu, a expansão se fez, o milagre brotou do chão alaranjado. E ninguém viu. Ou talvez não. Talvez eles vejam como eu. Talvez por isto estejam aqui, congregando embaixo das árvores imponentes, esbarrando-se, cumprimentando-se, conversando, discutindo, comendo pipoca, tomando água de coco. A humanidade, é o que sinto por fim, também está no parque.

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Caio Lobo (Recife, 1979). Colunista da Philos, é formado em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco e Mestre em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília. Leitor compulsivo e romancista. Lançou recentemente o seu livro Liberdade pela editora Kazuá. 1


Daniela Spoto (2017)


LITERATURA PORTUGUESA

EXPERIM.

Rotas da lusofonia

NACIMENTO por

Giannina Zorrah1

Escrevo sobre “ser” que se constitui em rabiscos no papel. Escrevo sobre a Maria Ninguém de Virgulina, de beira de esquina, aquela que você assassina, mesmo antes de ser Giannina. Escrevo sobre o medo de ser. Escrevo sobre a vergonha de ser. Escrevo antes sobre o que não se pode ser, querendo ser algo, querendo ser alguém. Escrevo e apago. E retorno a escrever. Borro. Apago. Erro. Apago. Sai tudo tão disforme, apesar da certeza, de novo e mais uma vez... Escrevo sobre a pedra abrupta que o tempo há de lapidar... mas não com a morte. Por que pensar no fim, se o início ainda está por vir? Escrevo sobre a lírica, que é uma canção adormecida prestes a entrar em erupção. Escrevo sobre a ação no corpocarne-concreto... Há firmeza, mas, também, maleabilidade. Uso papel e tesoura. Recorto e colo no quadro world interno. Amasso e jogo na caixa de lixo da memória. Algumas horas depois, recupero o rascunho e volto a escrever. Escrevo no vidro, na parede, na escuridão da humanidade... Escrevo sobre a dor alojada no peito, que sangra, que saúda, que sente saudade de casa. Escrevo e reescrevo sobre uma existência que é texto em construção, sem acabamento definitivo, mas real, de osso, carne e cimento.

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Giannina Zorrah (Brasil). Rabiscoconcreto no papelrealidade, por ora é isso e ponto final. 1


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LITERATURA PORTUGUESA Rotas da lusofonia

CATIMBAU por

Carlos Barth1

Uma das recordações que trago da infância é o vento nordeste, que chamávamos,

respeitosamente, de nordestão. Nunca chegava pacificamente, sempre com violência. Vinha para nos mostrar que era mais forte, e que éramos insignificantes. Levava os guardasóis e as tampas das caixas de isopor que guardavam a cerveja. Levantava saias e fazia os veranistas correrem para casa. Tombava os carrinhos de venda de milho verde e desfolhava os exemplares de Zero Hora que a molecada vendia. Metia medo nos pescadores da barra do rio Tramandaí. Foi por culpa dele, em grande parte, que morreu Catimbau. Por culpa do vento nordeste e de um detalhe que lhe custou a vida. Catimbau era um velho pescador. Ou será que minhas memórias me traem e o apresentam em minha recordação mais velho do que realmente era? Que idade teria quando faleceu? Nunca saberei. Nem seu verdadeiro nome, ao menos, sei. Tampouco conheço a origem de seu apelido. Talvez fosse apenas um homem dos seus quarenta e poucos anos brutalmente envelhecido pela vida dura e pelo vento inclemente. Em minhas lembranças de criança, vejo um senhor de cabelos sujos, encaracolados e desgrenhados. Os dentes desalinhados e amarelados pela nicotina. Vejo-o sempre rindo. Creio que nunca o vi de mau humor ou triste. Tinha um grande coração, o Catimbau. Possuía um senso de humor formidável. Sua visita diária ao boteco era folclórica. Religiosamente, quando voltava do mar, passava no bar de meu tio Norberto com o pretexto de esquentar o coração ou refrescar a garganta, beber para esquecer ou para recordar, comemorar ou afogar as mágoas, ou qualquer outra justificativa de seu vasto repertório para encher a cara. Vinha com o blusão de lã desfiado e uma surrada touca do Grêmio, também de lã, por onde tentavam escapar seus cabelos rebeldes. Eles, os cabelos, escapuliam por baixo da touca e se projetavam para o céu desafiando as leis da gravidade. - Me dá uma cachaça – pedia. - Um pente? – questionava Norberto fingindo-se de surdo. A mão em concha ao redor do ouvido. O corpo curvado. - Não. Uma cachaça – elevava a voz o cliente. - Ô, nega! Traz um pente pro Catimbau – gritava o dono do botequim para a esposa. - Não, caralho! Quero uma cachaça! – o cliente, por fim, aos berros. Todos riam, principalmente o dono do boteco enquanto servia três dedos de aguardente no copo ensebado. Bebia sua pinga e seguia pelo bairro vendendo seu pescado. Ao final da tarde, todos os dias, nosso futebol – que era disputado em um beco – sofria uma baixa. Milton, filho de Catimbau, tinha a tarefa de ensinar o pai a ler. Lá ia o guri, revoltado. “Não adianta, mãe! O pai é burro. Ele nunca aprende.” Certamente essas duras palavras ditas no passado hoje doem em seu coração. Mas ele era um bom menino. Só não tinha a 40

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CONTOS


sabedoria, ainda, de perceber que o pai não era burro. Era um herói. Um dia, saiu para pescar e não voltou. O nordestão chegou muito rápido, surpreendendo até mesmo os velhos lobos do mar. A embarcação naufragou na saída da barra, onde o mar é traiçoeiro. Catimbau lutou para salvar um companheiro que se afogava. O detalhe, que lhe custou a vida, era que não sabia nadar. Nunca aprendera. A despeito disso, morreu tentando salvá-lo, pois era seu dever. Era seu destino. E o destino não liga para detalhes.

Carlos Barth (São Leopoldo, Rio Grande do Sul, 1979). É engenheiro de profissão e escreve nas horas de folga. Teve trabalhos publicados nas revistas Philos, Subjetiva e Subversa. 1

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LITERATURA BRASILEIRA Rotas da lusofonia

O ENGRAXATE por

Vicente de Melo1

Roberto é um homem extremamente amedrontado, arredio e retraído. Isso vem desde

criança quando, sempre rejeitado, nunca conseguira brincar com as outras crianças, pois fugiam dele. Com um olhar oblíquo de estrábico, coxo da perna esquerda, ele ainda carregava uma protuberante corcunda nas costas. Na escola, que frequentou apenas até a segunda série primária, ganhara o apelido de Frankenstein; mas, na realidade, a sua feiura peculiar lembrava mais a figura de Quasímodo. Obviamente tudo se deve ao fato de a personagem da escritora britânica Mary Shelley haver se tornado mais popular do que a célebre personagem do escritor francês Victor Hugo. Como todos os dias, com muita dificuldade, após despedir-se da mãe octogenária e cega, que cochilava numa cadeira de rodas, Roberto deixou o barraco paupérrimo. Entrou no ônibus lotado. No canto, totalmente isolado, sentou-se em cima da caixa de engraxar. Olhando torto de um lado para outro, procurou alguns clientes, mas usavam apenas tênis. O veículo balançava em solavancos. Vários passageiros cochilavam, enquanto outros discutiam futebol, novelas e política. Todos, inclusive motorista e cobrador, já conheciam o engraxate. Na rodoviária, o ônibus estacionou na baia. Roberto foi o último a descer. Em meio aos transeuntes azafamados, com a caixa de engraxar nas costas corcunda, ele caminhou em passos lentos. A maioria das pessoas, num misto de asco, preconceito e medo, evitava passar perto do engraxate de cabelos desgrenhados, corpo esquálido e deformado, que vestia roupas esfarrapadas. Nas lanchonetes lotadas de fregueses fazendo desjejum, Roberto procurou algum cliente para engraxar o primeiro sapato do dia, enquanto seus olhos tortos observavam as pessoas mastigando avidamente as iguarias gordurosas. Com o estômago doendo de fome, sem nenhum êxito, ele seguiu seu caminho lentamente. Subindo a escada rolante, no meio da babel de vozes e sons, Roberto dirigiu-se a um bar localizado na plataforma superior. Aproximou-se dos clientes, com a mão em concha, pedindo uma moeda. Um homem com grandes olheiras, de tez vermelha, que bebia cerveja, encostado ao balcão, ofereceu os sapatos para engraxar. Roberto caprichou em seu primeiro trabalho do dia. Ganhou uma nota de cinco reais, sem precisar devolver o troco, e saiu com os olhos estrábicos brilhando. Roberto seguiu caminho rumo ao "shopping" Conjunto Nacional. Tentou mais alguns clientes do lado de fora, já que não podia entrar no prédio frequentado pela classe mais abastada. Desanimado, sem conseguir nada, observado de perto pelo truculento segurança, seguiu taciturno para o lado oposto. Chegou ao "shopping" Conic. Ali sim, podia andar à vontade em busca de clientes. Frequentado principalmente pelas classes sociais mais baixas, o local abriga igrejas, bares, boates, cabarés, faculdades, livrarias, far43

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CONTOS


mácias, salões de jogatina, bancas de jogo do bicho, além de sedes de partidos políticos. Trata-se de uma verdadeira democracia onde sagrado e profano, riqueza e miséria, luxo e lixo se misturam numa dialética maniqueísta. No restante do dia, Roberto não conseguiu faturar mais nada. Sentado na caixa de engraxar, voltou à rotina de pedinte. Aliás, na era moderna do tênis, quase todos os engraxates se tornaram mendigos. A caixa de engraxar, carregada nas costas, tornara-se apenas uma espécie de ícone. A noite, de um luar tênue, cobriu a cidade com um véu negro. Com os poucos trocados que conseguira, esquecendo-se totalmente da fome que corroía seu estômago, Roberto reuniu-se com outros mendigos debaixo de uma árvore. Bebeu cachaça no gargalo da garrafa que passava pelas mãos de unhas negras de sujeira. Fumou algumas pedras de ""crack"" com outros viciados. Filou um cigarro de um transeunte assustado diante da cena horripilante, que mais lembrava um campo de concentração nazista, protagonizada pela horda de seres esquálidos e esfarrapados, exalando um odor forte de sujeira, cachaça, urina e suor. O frio invernal, de vento cortante, castigava a cidade no mês de junho. Prostitutas e travestis, apesar do clima hostil, iniciavam a disputa de clientes ávidos por algumas horas de amor clandestino. Automóveis, entre buzinas, sirenes e fumaça negra, desfilavam pelo trânsito caótico. Um grupo de rapazes, e algumas moças, berravam, xingavam e gargalhavam alto. Dois deles, com vozes roufenhas, tentavam acompanhar a música que saía do som estridente de um automóvel de luxo. Cigarros de maconha, além de muita bebida, completavam o cenário de loucura. Roberto deixou os companheiros de miséria, passando pelo grupo sinistro de bêbados ricos. Um dos homens, exibindo uma tatuagem da suástica no braço forte, fumando um cigarro de maconha, bastante exaltado, acertou do nada uma tapa na cabeça do engraxate, que quase caiu com o rosto no meio-fio. Os outros membros da confraria aplaudiram a cena tétrica, gargalhando ainda mais alto. O pobre coitado, impotente diante da situação, apenas encarou seu agressor com os olhos tortos, lacrimejantes, ensaiando um sorriso pálido que deixava transparecer os dentes podres. E, sem hesitar, com medo de apanhar mais, saiu coxeando sem olhar para trás. Em passos trôpegos, longe dos bêbados fascistas, parecendo mancar com mais intensidade, Roberto finalmente chegou à estação do metrô, que se encontrava totalmente deserta. Na escada de granito negro, ele se deitou, ajeitando a cabeça na caixa de engraxar. Minutos depois, com frêmitos de dor, soergueu o corpo com dificuldade. Seu rosto se transformou numa palidez de cera. Os lábios se moveram trêmulos, tentando dizer alguma coisa em vão. Subitamente, diante de uma crise de alucinações, o engraxate inclinou a cabeça para trás e, em seu último estertor, sucumbiu na madrugada gélida de Brasília. Dois pombos, arrulhando assustados, em voos rasantes, abandonaram o corpo solitário estendido sob a noite lúgubre. Ninguém sentiu falta de Roberto, nem mesmo sua velha mãe, que fora enterrado como indigente numa cova rasa. Ninguém sentiu falta de Roberto como ser humano, e como cidadão, que sempre sofrera preconceito, que sempre fora discriminado. Quantos Robertos ainda existem e vão sofrer o mesmo? Quantos vão apanhar? Quantos vão ser queimados vivos?

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Vicente de Melo (De Uberaba para Brasília, 1960), é contista e romancista. Venceu o "Prêmio SESC de Contos Machado de Assis", edição 2005, realizado pelo SESC-DF. Publicou "A Saga de Um Candango" (romance), "Contos Federais" e "Vidas Vazias" (contos). 1


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LITERATURA PORTUGUESA

CONTOS

Rotas da lusofonia

NÓS VIVEMOS OS MESMOS Daniela Pedro Ferreira MOMENTOS, MAS APARENTEMENTE VIVEMO-LOS DE MODO DIFERENTE por

Toda a tarde, um progressivo desapontamento. A excitação inicial minada de dúvidas,

pautada por perguntas surdas, por desconforto velado e uma vergonha teimosa. Um Porto tão desconhecido como aquele dia, tão novo como aquele sentimento. Acho que pensei várias vezes qual a desculpa mais adequada para abrir caminho até ao conforto da minha casa. Mas estava perdida. O sol já ia baixo e a companhia era tão agradável como a dor de cabeça que se me aflorava às têmporas. Que má decisão! Horas antes, soara excitante, temerário, diferente. Teria que haver uma primeira vez para tudo, e não me queria reconhecer na pessoa que tão frequentemente não passava da palavra à ação. Começámos bem. Uma qualquer desculpa para te acompanhar, uma dificuldade em encarar-te e um nervoso miudinho escorregando placidamente pelas minhas vértebras. Tu e eu e um contexto diferente. Eu e tu e uma história do teu passado que me fazia sentir como se possuísse um segredo. Estava ali algo que fora teu; agora nosso; e quanto muito teria aquilo. Engraçado como já nessa altura encontrávamos no mundo as mesmas piadas e eu já te tocava inconscientemente, atraída como a um íman. Verdadeira vontade de te beijar, no entanto. Encostado ao caixote da reciclagem no metro. Demasiado alto para o meu próprio bem. Metias-me medo. Juro que naquela tarde me senti assustada. Poderia tão facilmente ser uma daquelas histórias em que ela acaba violada ou espancada. Ainda me pareces verdadeiramente ameaçador, tosco até, mas a medula dos teus ossos estende-se na direção certa, o sangue das tuas veias conforta com calor autêntico. Uma viagem como tantas outras (sem tópico propriamente dito), mas agora já descodificava a alienação nos teus olhos. Era bom saber que afinal entendias português. Era ainda melhor saber que reparavas mesmo que eu estava na carruagem. Tanta vez fui eu, no meu sítio habitual, perguntando-me porque falarias tu com toda a gente menos comigo, repreendendo-me por sequer olhar para ti. Mais velho, sem nenhuma extraordinária beleza, parecendo completamente deslocado, extraordinariamente aleatório. E eu, pouco mais que uma sombra de mim mesma, isolada 46

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por opção (ou por falta dela), a saber que sonharia acordada durante a viagem de autocarro para casa. Mas aquela viagem foi diferente. Aquela tinha um destino que nos levava aos dois. Aquela tinha o formigueiro que as tuas mãos já haviam implantado na minha cintura e a curiosidade que se acentuara com o teu escrito. Só que agora o sol já ia baixo, num vértice da cidade que ainda não era o meu, e o arrependimento latejava por trás dos meus olhos. Ninguém te tirará a razão quando disseres não ter jeito p’as raparigas. Mas a vista era bonita, e senti-me ligeiramente menos objetificada quando a vi da tua varanda. Uma confusão de impulsos, entre explorar atentamente as tuas prateleiras ou dedicar a alma ao rio. No final de tudo, é sempre a luz que leva a melhor de mim. Tenho consciência que o teu meio riso e o teu toque nas minhas omoplatas, que ao de leve impediram o meu próprio relógio de me estrangular, obliteraram os remorsos pelo chocolate que, por hora, ainda não arrancara da tua mão com os dentes. O vento afagava calmamente o céu cinzento e a dor de cabeça cessou enquanto absorvia a paisagem. Será para sempre uma das melhores molduras que o Douro tem para me oferecer. A respiração evadiu-me quando estendeste o braço e ficaste a pairar atrás de mim. Não me tocavas tu, tocava-me a antecipação. Sei que falámos. Rotineira e desinteressadamente, sobre o mais fácil dos temas de entre todos os que temos em comum. Naquele espaço, eu queria apenas prolongar o momento. Deixá-lo invadir-me, preencher-me, até que a sua presença fosse tão intensa que esmagasse o que restava de coerente no meu raciocínio. Em algum momento, te apoiaste no meu ombro, sem dúvida o despontar de um Titanic. Encarar-te foi fruto da pressão, talvez da que o meu coração exercia nos meus pulmões. E lá estavam, outra vez, as tuas mãos e a minha cintura, e as saudades que vou ter da sensação dos teus braços. A minha testa encontrou idioticamente o teu peito por duas vezes, enquanto eu tentava em vão concetualizar o que era um beijo. Mas tu sorrias, e o mar dos teus olhos reluzia, e os meus pulmões precisavam de uma injeção do teu oxigénio, já que desaprenderam a sua autonomia. Acho que me perdi: as sensações eram de mais e em tanto lado; e o único neurónio funcional gritava instruções que não faziam sentido. Deixar-me levar parecia tangivelmente inalcançável. Mas pegaste-me na mão, disseste ‘anda’, e eu fui, fitando o meu reflexo no vidro. Sei que me sentei ao teu lado e que, algures em mim, uma célula velha perguntava às restantes se estavam a delirar. Foi um coro de “sim” e lá estavam as tuas mãos outra vez e a tua boca e o primeiro gesto do teu caráter que vi. Percorreste-me o corpo sobre a roupa, e eu deixei. Percorreste-me o corpo sob a roupa, e eu deixei. Percorreste-me o corpo sem roupa, perguntaste se eu deixava, e eu deixei. Pensei, mais que o que senti, o ato em si. É uma desilusão que não surpreende, honestamente, e não é ofensa a nenhuma das partes. Deixa a expectativa de uma próxima e enfatiza a tua postura. Ainda tenho a vertigem da tua mão na minha coluna e finalmente entendo porque dizes ser um lobo, embora agora saiba que sangue de lobo também conforta. Também cada vez me desaponta menos ser boneca de plástico em vez de porcelana, e não retiro o beijo que a analogia te ganhou. Aliás, não retiro nada do que tu ganhaste de mim.   II O mundo é uma bola de neve. Os locais sucedem-se, repetem-se, e os mesmos momentos estendem-se por situações que não são unas. Soube há tão pouco... Aquele beijo de despedida soube há pouco. Talvez já aí tudo fosse simplesmente pouco. Os fiapos do meu espírito ainda se debatiam em opiniões e tu conquistavas para Norte de mim o território

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que perdias para Sul. Não sei como te atreveste a explorar tanto em tão pouco. Eras brusco e engraçado, misteriosamente desajeitado, tão indefinível, tão indeterminável. Foste inominável como as minhas emoções, e guardo aquela noite como símbolo da nossa indefinição. Os vultos vagos que se amontoavam, as vozes indistintas, a liberdade da interação são joanina e o frémito que me possui quando o fogo ilumina os céus. Mas em tudo a noite foi incompleta enquanto não estiveste lá também. Entre as estrelas e as lanternas, o apito foi um ímpeto. Não achei que durássemos, mas queria um pedaço teu. Queria colher mais uma história. Símbolos, frases, fotografias, … eternizar instantes porque não posso assegurar estados. Um carpe diem corporalizado, já que é tão raro ele tocar-me o génio. Há tanto que podia ser dito que os flashes sucedem-se cabisbaixos, lamentando a sua não eternidade. Quero tudo, menos saltar as instâncias do poema que somos, mas tenho que me relembrar que nem todos os versos são citações. Espero que recordes tudo também, pois não quero pesar as memórias sozinha.   III Venero este momento com a adrenalina e a culpa que a criança que tu um dia foste, deve ter sentido ao devorar os chocolates que, presumo eu, roubaste da árvore de Natal. É nestas analogias que percebo o quão pouco sei de ti, e foi nesta tarde que percebi o quão mais tinha vontade de conhecer. Permiti-me sonhar que a vida era um livro e a tua presença a companhia mais antiga do mundo. Tão simples, tão despreocupado, tão prazeroso, tão novo, tão eu e talvez tão tu. Ainda acredito que nos surpreendi aos dois. Eu, o malfadado prodígio do isolamento físico; eu, o pináculo dos silêncios infinitos, nos quais até a minha garganta se surpreende por conseguir conter metade dos pensamentos que me acometem; eu, que atraí de volta o curto circuito que me provocas de cada vez que te aproximas, qual campo de forças, presente, mas indistinto. Aqueles debates postos à mesa, servidos com uvas e olhares, prelúdio à dança cinemática da culinária; o tempero das minhas expressões no à-vontade dos teus movimentos; as provas da tua pele; o degustar ébrio da minha liberdade; a tentação no sorver do teu desejo; a emancipação do meu Pessoa afetivo. Caricatas perdas, despropositados telefonemas e uma fusão do teu sentido de humor com a minha inusitada felicidade. Serendipidade guardada num frasco, uma pequena sobra para quando faltar a vitalidade à preparação da merenda. Soube, na promessa de futuro que selou aquela noite de luzes, vinho e filosofia, que me seria muito difícil reclamar a hipoderme.   IV Se me arrependo de algo foi de não ter te fotografado mais. Ai… a parte de mim que não te quer largar anseia por imortalizar-te! Deve ser um curioso instinto de artista. Guardo docemente o primeiro dos três trágicos dias, aquele em que me contemplaste digna do teu caderno de esboços. Guardo a raiva da tua incredulidade, a minha dificuldade de expressão, a frustração desiludida que exauria os meus poros. Não sei repetir o que disseste, mas sei que nessa tarde te vi pela primeira vez. Guardo o choque do carinho no colo daquele abraço e ilumino-me naquela gargalhada solta ao auge da tua irrazoabilidade. Não, não o somos. Nunca o fomos. Valha-me um deus que não existe, se alguma vez fizemos fosse o que fosse com sensatez. Escravos dessa fraqueza humana que é a carne, dirias tu; servos desse alento humano que é o toque, digo eu. Recordo o palpitar nas pontas dos meus dedos, no desejo de te tatear; o pulsar do sangue na minha língua, no de-

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sejo de te tatear; o pulsar do sangue na minha língua, no desejo de te falar; o incessante discorrer de pensamentos que barrou passagem a estas ações. Sei da parte de mim que se amaldiçoou pela temível incapacidade de me revelar, entregar, confiar, que me fez fundir com a penumbra. Sei do nosso adeus e da primeira vez que me senti incompleta, do fim de noite que passei naquela esplanada que odeias, tentando elencar o que foi que perdera. É por impulso que menciono o quão repetitivo eu não sonhava ainda que se tornariam aqueles telefonemas no percurso até casa, em que as hormonas me inebriavam as consequências das nossas falhas, e a irritação alheia pulsava nas minhas veias febris.   V Acho que o filho de um pirilampo futurista me avisou que a luz, quando vem de dentro, não se apaga ao botão. Não sei ao certo o que esperava daquela noite, mas lembro-me de me saber bem estar ali contigo. Depois de contida a pontada irritante que me espicaçava o ego, relaxei o suficiente para devanear sobre aquela primeira noite, meses antes, quando me era já impossível não ver a mutualidade das minhas fantasias. Levas sempre a melhor de mim, porque negar-te é negar-me a felicidade, e o meu crivo moral é uma besta ténue. Mas as tuas piadas arrapazadas são confortáveis e ainda me fascina a descoberta de que vives neste século, neste mundo, e não num plano espiritual paralelo onde o passado e o futuro são uma névoa indistinta. Não sei tornar lírica uma noite de copos. Mas sei que me deixei embalar na inconsequência e que apenas considerei vagamente o que seria dizer adeus à noite nos Aliados. Ir para casa comer uma taça de cereais e sentir-me adulta. Sabia a resposta antes de subir metade da rua, antes sequer de atravessar a estrada, e sabia que me iria condenar quando o metro partisse sem mim. Também sabia que não voltaria atrás e que não me negaria uma segunda vez aquele cenário. Tudo se desenrolou com a estupidez que sempre está associada a estes eventos, mas tu sorrias por entre a conversa banal e adivinhaste mancheias dos meus pensamentos. Sou uma louca iludida, mas achei-te detalhes que desconhecia, numa faceta tua que ignorava, e mais uma vez senti-me possuidora dos segredos do universo. Não te perdoo o clique de espírito que me provocaste no entendimento, e agradeço o nascimento de inspiração para a prenda que não sabia ir dar-te, durante aquela caminhada animada nos meandros de um Porto noturno e novamente desconhecido. Marco a primeira vez que afoguei a parte de mim que me dizia que não devia estar ali. Oh, eu sabia bem no meu íntimo que é difícil negar a um passarinho o seu primeiro voo do ninho. Há algo poderoso que vem de saber que influenciamos outrem, que mexemos com essa pessoa, que temos um qualquer impacto. Saber que podemos ser desejados até ao âmago, ser desejados pelo âmago. Parece uma futilidade carnal e, porventura, não transcende isto mesmo, mas é uma refrescante redenção. Naquele momento, eu senti que já não enganávamos ninguém e que não queria combater-me. Havia a desculpa das horas, do álcool, da irrazoabilidade, …, a desculpa do nada porque não eram precisas desculpas. Recordo a calma com que me tocaste, o desejo a ensombrecer-te o azul dos olhos. Recordo o formigueiro na minha pele e o tempo que demorei a deixar-te beijar-me, como se precisasse de ser persuadida a ceder à mais íntima tentação. Há atos teus que me consomem, e a ternura com que me aconchegas o cabelo é um deles. Desde aquela primeira vez, sou viciada na simplicidade desse gesto, e senti esta profusão meiga encher cada suspiro daquela noite. Não sei se sentias que me perderas e que muito ficara por fazer, mas me deste um trono e uma coroa e me elevaste acima de

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qualquer banalidade. Pergunto-me se chegaste a perceber porque é que me congelas o cérebro, e se tens finalmente a certeza de que é algo indefinivelmente bom. Dormi menos de nada. O teu abraço nunca me sossegou os sentidos. Mas sei os cheiros e os sons da rua matutina, e sei da minha incapacidade de estender a mão para ti e de pronunciar o conteúdo do meu cérebro, agora em ebulição. Tudo o que se sucedeu foi uma mera antecipação à minha oportunidade de meditação, a outro telefonema de fundo até casa, a mais dúvidas a infiltrar as semanas seguintes.   VI Tudo o que se sucedeu foi um vácuo no meu mundo, o último fôlego antes de colapsar novamente, sabendo que mais uma vez ninguém lá estaria, mas esperando que te oferecesses para o cargo. A tua preocupação foi palpável, a minha dor tangível, e teria dado tudo pela liberdade de um abraço, por poder transferir parte do meu peso para o teu colo. Será que sabias? Será que viste nos meus olhos que nada era em vão? Ou será que até o magma de mim eu sei encobrir? Havia tanto que eu ansiava por dizer, mas as palavras não fluíam, as lágrimas não brotavam. Pensei que me pudesses devolver a capacidade de chorar. Queria ter te olhado pela alma adentro e deixar-te beber dos meus sentimentos, mas nem coragem para me expor mudamente tive. Mas tu ouviste. Não falaste muito, mas disseste o essencial; e ouviste. Se senti que o crepúsculo me roubou o ar e a ti to devo, também tu me deves a mim a faca que te dei liberdade de usar. Acredito piamente que foi um erro não te ter dito logo que magoaste mais que o que eu achava possível, mas eras ainda assim um mero espectro do futuro que não seria. Aquele mês foi um reconquistar e um reaprender. Doeu e saudou, mas me senti capaz de nos equilibrar. Acho que o fiz tão bem que não tardou assim tanto a que nos despenhássemos outra vez.   VII Somos um ponto de encontro desunido, e não sei se escrevo isto meramente porque as palavras ficam bem juntas, ou se realmente encontrei uma definição que nos é aplicável. É tudo muito tenso. Eu sou muito tensa, os olhares são muito tensos, os devaneios são muito tensos, tu és muito fraco e eu não quero propriamente combater nada. Havia eletricidade no ar, demasiada proximidade, tudo muito condensado num esforço de passar despercebido. Não sei em que ponto do dia é que disseste ‘fuck it’, mas exaspero teres-me levado atrás. Sinto a falta de um retrato como postal desse dia, mas sempre tenho o rio e o percurso e a tua confusão matinal. Ainda sinto uma seringa no coração por não ter juntado aquele instante à coleção, por ter blasfemado na calma do lugar com problemas insolúveis que merecem menos do que o menor grau atencional. Mas estive lá e tu também, com o jovial sol e o paciente rio. Tenho apreço por aquela tarde porque foi agradavelmente descontraída. Natural, embora igualmente irrazoável. Não tinha considerado que voltaria a saborear-te e não sabia que teria oportunidade de relaxar na tua presença. Foi uma conquista saber que me era mais fácil partilhar memórias, que era simples comentar histórias, que era possível ter iniciativa, que não magoava desinibir-me. Foi bom sintonizar e desprender do constante olhar ao futuro, viver aquilo porque sim, à sombra do quão caricato tudo era para mim. VIII Tens um modo muito próprio de me assegurar que não sou eu que estou doida, mas sim o mundo à minha volta. Uma forma muito tua de me ancorar a perspetivas que paradoxalmente me libertam. Às vezes penso se não terás as ligações feitas em sentido in50

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verso: um circuito interno quase cego, e um circuito externo que vê amplamente a humanidade, explicando o seu funcionamento globalmente travesso através da transfiguração de uma ínfima peça. É como explicar o mais tecnologicamente complexo LEGO do mundo através do modo como um bloco de seis encaixa num bloco de quatro. Irritante de tão reducionista, mas irrefutável de tão metaforicamente lógico. Peço desculpa se o meu apaixonante discurso crítico tende a testar os alicerces das tuas aceções, e revelo que, efetivamente, já perdi mais batalhas que as que ganhei. Este meu modo alarve de nos conceber como únicos ultrapassa a arrogância dos meus atos, e talvez tenha sido arrogante fazer de ti fonte de consolo. Mas fi-lo e sei que foi uma boa escolha. Já me tinha levantado, faltava só a confiança para voltar a andar em público, e tu amparaste-me bem uma possível queda. E ainda assim não sabias o quanto eu queria depender de ti. Eu ansiava por mais e tu torturaste-me até ao fim, mas o que descobri de ti impulsionou-me para um ponto de não retorno. Deste-me um paraquedas e eu saltei; sei agora que o meu paraquedas nunca se abriu. E tens razão, foi tão intenso que nem sei se foi bom ou mau. Acho que me intimidou a vulnerabilidade que vi nos teus olhos, a necessidade que perpassou nos teus trejeitos. E vi-te saborear cada gesto meu, vi-te sucumbir ao meu toque. Deixei-me explorar cada centímetro teu e senti-me capaz de amar. Não com o fogo de uma noite ou com a imaturidade juvenil. Talvez seja demasiado jovem para saber o que digo, mas não houvera, até aquele dia, um sentimento de ternura mais profundo. Não houve, até aquele dia, nada que me doesse no peito, me tirasse o fôlego, me implorasse ao anseio de confortar e ser confortada. E, naquele momento, quis saber pedir-te que ficasses; quis saber dizer-te para vires ser vulnerável comigo, para ficarmos sozinhos juntos. Vi naquela a última oportunidade para te dar mais de mim. Precisava que soubesses que estava ali, a segurar uma porta aberta enquanto subias as escadas, sólida como o betão que as sustentava. Não sei se fiz tudo o resto ou disse tudo o resto, menos o mais importante, mas sei que fomos infinitos. Sei que somos ilhas gémeas, de levadas complexas, mas cada vez menos confusas. E ainda abismo com os barcos que se amedrontam de atravessar o nosso mar. Somos uma floresta ruim com um coração de ar puro, e temos tanto para aprender sobre o nosso lugar na Terra. E sim, oh sim, definitivamente sim, são momentos como estes que me estão a matar agora.   IX Pseudo-planos e expectativas multiplicam-se em ansiedades diversas, e o meu Eu desconexo teme a instabilidade com que suponho me perspetivas. Tenho medo de enlouquecer em algum ponto da vida. Vou defender o calor do sol pacato daquela tarde por mitigar a profusão de pensamentos da manhã que o precedeu, e vou dar vivas por ter finalmente apontado corretamente um momento. Tal como naquela primeira exploração em que me inteirei dos teus dotes para as panquecas, mordeu-me na língua “que me poderia facilmente habituar a viver assim”. Foram três dias de densidade variável, como um banho turco que sufoca mais que o que purifica. Desde o mais ordinário ao mais academicamente apetecível, à constante loucura de que a minha sensatez se alimenta e à indefinição do burburinho de medo que me recheava, um turbilhão de ininterruptos estados de espírito. Julgo que me autoavaliei mais vezes naqueles dias do que no último mês e levou-me todas as forças para encerrar a teimosa impulsividade. A indefinição dá cabo de mim. Aquela última vez levou o que restava entregar de mim. Tudo o resto que

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não conheças não é mais que acessório. Faltava levares-me as lágrimas. Essas fui ainda a tempo de não deixar despontar, não muitos sóis depois. Foste o equilíbrio de humor, revolta e compreensão. Foste, e és, respeito puro, e isso é um bem que poucos me dão. Talvez seja eu que não me fiz merecê-lo, talvez seja a vida que mo tenha conservado para tornar o teu mais especial. Quero saber se soubeste que me tiraste o chão uma vez mais. Quero saber se notaste como o teu corpo cálido aqueceu o meu espírito enregelado. Quero saber se adivinhaste o meu desespero naquele abraço, a minha carência naquele gemido. Quero saber se sentiste que me tiveste como nunca antes tinhas tido, que possuíste cada recôndito canto de mim. Não sei se tencionavas esvaziar-me tão completamente. Se te encheste do que devoraste de mim. Se sofreste a dor que eu sentia ser apaziguada depois de tantos anos. Valeu por todos os regaços que não tive em todos os momentos que os ansiei. Valeu por todos os futuros que não viveremos e por todos os passados em que acabámos sem começar realmente nada.   X Sinto que deveria recordar com precisão a última vez que os nossos lábios se encontraram, como se recordam as palavras ditas antes do último suspiro dos mortos. Mas a verdade é que não. Não sei como foi, ao que soube e que se lhe sucedeu. Consigo imaginar e recriar as circunstâncias, mas não há um ponto definido no tempo. Sei ao menos que não foi um beijo de despedida. Não foi uma árvore plantada para assinalar a instância de uma tragédia. Vou suprimir a fatalidade lírica, nada disto se presta a lutos. Acho que te disse tudo o que pensara dizer. Acho que fiz tudo o que pensara fazer. Acho que agora sabes tudo o que deves saber. Há uma parte de mim que chora baixinho ao contemplar essas memórias. É um vácuo imenso saber que a pior das dores ainda há de vir, quando o tempo se mostrar infrutífero a ganhar-me a paz. Sabes que trespassa ouvir as tuas razões. É tão batalhado e parece tão fácil de resolver. Apetece-me arrancar a parte de mim que não nos merece enquanto me apetece esmigalhar a minha consciência por se atrever a formular tal pensamento. Foste dos maiores propulsores ontogénicos que alguém algum dia teve, e embora isso seja feio como elogio, acho que apreciarias a metáfora. Tens que cessar as lições de vida e apreciar o pragmatismo da análise social. Ter, não tens, mas seria interessante ver-te fazê-lo. Abandonar o pessimismo causal da potência espiritual dos nossos genes, e provar o mundo pelo conteúdo da asquerosidade das ruas. Essa fé na humanidade, ainda estou para encontrá-la. Para já me mantenho do lado inquisidor. Talvez não por muito tempo. Ou talvez por tempo de mais. Presumo que me tiveste desde aquela tarde de junho, e que nunca abandonarei por completo a alegria que cultivaste em mim. Espalhaste gargalhadas, dando vida a uma satisfeita caça ao tesouro que jogo sem propósito. Fizeste de mim gaiata, abrangeste-me de sapiência e tenho a agradecer teres sido tu. Se fosse para ser alguém, que ao menos fosses tu. Sei que um dia irei partilhar a pessoa que me fez despontar, que desinibiu os grilhões de mim, e sei que terei um sorriso no rosto e carinho no peito.

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Daniela Pedro Ferreira (Viseu, Portugal, 1996). Correntemente a frequentar o mestrado em Psicologia do Comportamen to Desviante e da Justiça, na Universidade do Porto. 1


Daniela Spoto (2017)


LITERATURA ESPAÑOLA

COLUMNAS

Rutas Literarias de Iberoamerica – Ex professo

CORTOCIRCUITOS GENERACIONALES II: INCONSISTENCIAS1 por

David Ortega2

Vivimos un fast-time, una época en la que los cambios se denominan actualizaciones y estos suceden a toda velocidad y subrepticiamente. La tabla de valores de la generación X y la generación Y, que son los que actualmente dominan el mundo (son mayor número en el planeta) es muy diferente. Los valores de la generación X, cuyos padres vivieron dictaduras (Salazar murió en 1970 y Franco en 1975), y quienes son hijos de la transición democrática de los países imperialistas de la vieja Europa del Sur, es muy diferente a la de la generación Y. Los primeros vivieron la globalización en su etapa temprana e inadvertida mientras se gestaba su personalidad. La tecnología no era todavía nuestra mente extendida, en la acepción de Chalmers. Mientras los de la generación Y o millennials alcanzaban el sentido común (los estudios de Piaget dictaminaron que sucede a los 12 años) cuando acababan de derrumbarse las torres gemelas (en algunos casos ni eso), se asomaban al mundo inmersos en una crisis mundial (2008), anunciada simbólicamente (2001) con el cambio de paradigma, con el advenimiento del nuevo milenio. La diferencia también ocurrió en el cambio de la sociedad romántica del siglo XVIII a la realista del XIX, o el cambio a la relativista/posmoderna del XX. Muchos intelectuales que vivieron a caballo de un siglo a otro, sufrieron sus consecuencias. (Véase: Virginia Woolf, T.S Eliot, Edith Wharton, Thomas Mann, etc.) En la actualidad, la convivencia entre las dos generaciones se hace muy difícil. Sobre todo, si conoces los dos mundos, es decir, si eres de la generación X. Wittgenstein decía: “No podemos saber cuán maravilloso es este mundo sino conocemos otros mundos”. Puro y simple contraste. Siendo de la generación X, uno sí puede ver que le han dado la vuelta a todo. Los hechos físicos son irreversibles, y la reversibilidad de los movimientos sociales sucede por el efecto cíclico (Véase: “ Progreso y regresión en el desarrollo social”, de Toynbee). Todo se consume y no vuelve, sino de otra manera similar. Hoy en día, parece difícil vivir y pensar como un romántico, mientras todo se deconstruye hasta la irreversibilidad. Las aptitudes, el amor, la amistad, la compasión, la inteligencia, las emociones, etc. todo se mide de manera distinta a como se medía hace escasos veinte años. La tecnología ha acelerado el tiempo y los procesos se le escapan al más sagaz de los sociólogos. Los nativos digitales piensan el sexo, no lo practican. O lo practican, pensando. Venden su propia imagen, su apariencia estereotipada en las redes sociales. Mientras la pasión y la violencia han quedado obsoletas.

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Baby Boom: 1945-1964 Generación X: 1965-1984 Generación Y: 1985-2004

La palabra “inconsistente” tiene su origen en el latín. Proviene de consistens, consistentis participio presente del verbo consisto, consistere, constiti cuyo significado es situarse, ponerse, colocarse. Este verbo a su vez, está formado por con- que significa convergencia, reunión más el verbo sisto, sistere, stiti, statum que es detenerse, clavarse en un lugar. 1


Hace una semana me comentaba una amiga de mi generación que uno/a no puede deshacerse de ese vínculo con el contexto de lo que acaece. Es una obviedad que los de la generación Y no podrían admitir. Hay una fuente de la que beben y es el espíritu democrático, que confunden con el sistema democrático, y que les ha hecho vivir en un fondo racional, de seguridad, nula violencia, de igualdad, de civismo, etc. que, al mismo tiempo, les ha hecho la vida muy aburrida, y es por esa desidia que pretenden pervertirlo, es decir, llevar la metafísica de un problema a lo factual del sistema, sin comprender los términos y sin saber o empatizar con la lucha extenuante que supuso conseguir llegar hasta la dinámica actual del sistema democrático. Sin embargo, la palabra “democracia” les encanta. La permisividad y la laxitud que se logra gracias, fundamentalmente, a la perspectiva que da el “tiempo democrático” es la propia perversión de la democracia. El mismo “tiempo democrático” (el hecho de llevar 40 años de democracia) hace que la sumisión, el pseudoanalfabetismo (la falta de compresión y el egocentrismo de creer que se sabe), haga estragos, y las nuevas generaciones quieran romper, sin ser conscientes, el sistema que les auspicia en sus diatribas inconsistentes y les sobreprotege. Todo debe ser posible, hasta la ilegalidad, porque la Ley que ampara precisamente el sistema democratico, es el enemigo a batir. No hay nada que se pueda imponer. Tipología3 El otro día vi un grafiti que decía: “Be Vegan, Fuck the Capitalism!”. Y ese intento de “cabalgar contradicciones” (Término empleado por Pablo Iglesias, líder de Podemos) me hizo recordar el caso de una chica, que conocí hace un par de años y que sirve como estereotipo de la generación Y (El estereotipo se funda en la tipología y en las regularidades de casos similares) Quedé con una chica que no pensaba que me iba a gustar, resultaba ser muy joven para mí y yo siempre había necesitado que mis parejas fueran más maduras que yo. No en vano, las tres mujeres más importantes de mi vida promediaban una diferencia de diez años con respecto a mí. Me entendía con ellas a la perfección. Pero, aquella chica de unos veintidós años parecía increíble. No fue hasta charlar con ella abiertamente, que me di cuenta de que era francamente excepcional. Había viajado por todo el mundo, sabía cuatro idiomas a la perfección, tenía un posgrado en Humanidades, era vegana, feminista, sostenía la mirada, muy segura de sí misma, exponía sus ideas con absoluto aplomo, y al mismo tiempo estaba abierta a discutir y discurrir sobre ideas propias y ajenas. Tenía una serenidad bella, era amable, independiente, y sabía de lo que hablaba, había estudiado y reflexionado sobre ello, y parecía dirigirse con sentido en la vida. Además, parecía apasionada y racional, un equilibrio perfecto. Desde luego, recuerdo haber pensado que yo a su edad era un derroche de pasión y fuerza incontenibles, un animal cuya principal preocupación era salir de fiesta. Al lado de ella, yo hubiese sido un insulto a su inteligencia. Estábamos pasando una velada perfecta con el rumor del oleaje nocturno acariciando el perfil de nuestros rostros. Los ojos se humedecían y chispeaban con la brisa, nuestras palabras apartaban de sí el ruido ajeno, y construían diques etéreos a modo de burbuja, haciéndonos sordos de otra realidad que no fuera la nuestra, la de aquel instante. El tiempo transcurrió a velocidad terminal. Nos despedimos sabiendo que nos habíamos enamorado el uno del otro. Ella había sabido identificar lo que había en mí, y viceversa. Había sucedido esa transmisión, ese reconocimiento mutuo. Éramos uno… o podríamos serlo. Todo se trataba de volver a verse y comenzar con las tablas y el martillo a construir nuestro refugio personal e intransferible. Quedamos en volver a vernos pronto. Además, teníamos contacto por Whatsapp, Facebook, etc. 55

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Previo al caso que he seleccionado comentar de aquí en adelante, existe una muestra de más de veinte casos similares (homogeneidad) , por lo que he elegido éste como “caso típico”, en la acepción weberiana del término. 3


Tiempo muerto Algo fundamental que jamás me ha ocurrido con las mujeres X es que el egocentrismo y las ínfulas de grandiosidad de las chicas Y no les deja tomar la iniciativa. Como en una involución, se anclan en la expectativa y el cortejo de la generación Boom. Algo que choca de pleno con el ideario feminista que tienen muy presente. No se me ocurre nada más machista y con olor a naftalina que el cortejo. Siguiendo la pauta, la chica jamás se pondría en contacto conmigo. Tenía que ser yo y solamente yo el que hiciera el primer movimiento. Independientemente de que ella supiera que era el hombre de su vida. Aunque también se piensa que las medias naranjas no existen y que el príncipe azul es una conspiración machista de Walt Disney para someter a la mujer a una delicadeza cosificadora. “¡Nos engañaron! ¡El amor no existe! ¡Es una trampa!” En realidad, todo lo que se haga en términos teóricos de jerarquías, dualidades, géneros, categorías, concepciones estancas, etc. es algo que rechazan de pleno. Es la época para pensar de ese modo, lógicamente. Pero ellos/as no lo saben. Un mes después de nuestra maravillosa velada, la escribí para saludarla, sin pretensiones de nada, ya que, a esas alturas, no tenía ningún interés serio en el tema. La chica Y contestó con una diferencia de una semana, haciéndome preguntas que perseguían contestaciones un tanto forzadas y antinaturales. El intervalo era ése. Podría conectarse veinte veces al día a sus redes sociales, que no cambiaría el patrón de sus intervalos. No fuera a ser que yo creyera que estaba pensando en mí. Circulaba un meme por internet que decía: “No contestes nunca a un tío que te gusta, hazle sufrir por ti” Los rodeos y devaneos inconsistentes, los flirteos inocuos, continuaban sin cesar, y yo decidí adaptarme a ellos, aunque sabía por experiencia propia y ajena que no significaban nada. Todo era un juego virtual profundamente banal, que trataba de ser un entretenimiento y un sustrato para retroalimentar su ego, de intervalo estrictamente semanal, que no requería voluntad, valentía, decisión, ni verdad. Simplemente era fácil y se podía hacer. La red virtual se lo permitía, era su coartada. Un día dejó de escribir, me enteré de que estaba en otro país, de viaje, como casi siempre. Se había tomado un año sabático en la universidad. Durante las conversaciones en las que nuestros cuerpos no podían hablar, había insinuado que le gustaba mucho, que quería verme… que no había conocido a nadie como yo. Frases que resonaban como un eco en el fondo de mi mente, ya que se habían repetido en mi vida algunas veces, y que con las mujeres X, había sido una explosión de realidad. Una celebración directa, espontánea, ilusionante y romántica, de la vida. Sin embargo, la chica Y no podía detenerse. Su ritmo de vida, la velocidad que persigue, y el hedonismo obsceno por la novedad de ver la siguiente ciudad, de conocer más gente, de cantidades y no de calidades, no podrían hacerle fijarse en un punto. Quedarse conmigo sería estancarse, podría darse el peligroso y patriarcal núcleo familiar de la generación Boom. En todo caso, era demasiado pronto, tenía que vivir, ya habría otros hombres o mujeres que le gustaran tanto como yo. O quizás no. Pero, eso sólo se da uno cuenta mucho más tarde.

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David Ortega (Bilbao, España, 1981). Es licenciado en Filosofía con Master en Filosofía teórica y práctica, UNED. Ha escrito un libro de viajes autobiográfico: El último viaje, sobre Alaska (USA); una novela de ficción: El secreto de Nina; y una novela negra que pronto estará disponible: Casi héroes. Sus tres escritos están basados en hechos reales. También ha realizado un ensayo sobre los fundamentos ontológicos de la estética: Diaphainon, que obtuvo la máxima calificación en la carrera. 2


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REVISTA DE LITERATURA DA UNIÃO LATINA 21 outubro 2017 · REVISTA DE LITERATURA DE LA UNIÓN LATINA 21 octobre 2017


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