Philos PORTUGUÊS CATALÀ ESPAÑOL FRANÇAIS ITALIANO ROMÂNĂ junho 2016 · REVISTA DE LITERATURA DE LA UNIÓN LATINA 5 junio 2016
REVISTA DE LITERATURA DA UNIÃO LATINA 5
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LUCRECIA WELTER FRANCISCO CARVALHO VAGNER SILVA EMANUELA RODRIGUES VICENTE DE MELO CAIO LOBO
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REVISTA DE LITERATURA DA UNIÃO LATINA 5
EXPEDIENTE
REVISTA DE LITERATURA DA UNIÃO LATINA REVISTA DE LITERATURA DE LA UNIÓN LATINA
Souza Pereira
EDITOR CHEFE | EDITOR EN JEFE
Sylvia de Montarroyos
COMITÊ EDITORIAL | COMITÉ EDITORIAL
Lucrecia Welter
REVISÃO DE TEXTOS | SUPERVISIÓN DE TEXTOS
Maus Hábitos
DESENHO E DIAGRAMAÇÃO | DISEGÑO Y DIAGRAMACIÓN
Emanuela Rodrigues ILUSTRADOR | DIBUJANTE
SOBRE A OBRA DESTA EDIÇÃO | SOBRE LA OBRA DE ESTA EDICIÓN
Publicado originalmente em junho de 2016 com o título Philos, Revista de literatura da União latina. Os textos desta edição são copyright © de seus respectivos autores. As opiniões expressas e o conteúdo dos textos são de exclusiva responsabilidade de seus autores. Todos os esforços foram realizados para a obtenção das autorizações dos autores das citações ou fotografias reproduzidas nesta revista. Entretanto, não foi possível obter informações que levassem a encontrar alguns titulares. Mas os direitos lhes foram reservados. Philos, Revista de Literatura da União Latina é registrada sob o número SNIIC AG-20883 no Sistema Nacional de Informações e Indicadores Culturais com Certificado de Reserva outorgado pelo Instituto Nacional de Direitos do Autor sob o registro: 10-2015-032213473700-121. ISSN em trâmite. Revista Philos © 2017 Todos os direitos reservados. | Publicado originalmente en junio de 2016 con el título Philos, Revista de literatura de la Unión latina. Los textos de esta edición son copyright © de sus respectivos autores. Todos los esfuerzos fueron hechos para la obtención de las autorizaciones de los autores de las citaciones o fotografías reproducidas en esta revista. Sin embargo, no fue posible obtener informaciones que llevaran a encontrar algunos titulares. Pero los derechos les fueron reservados. Philos, Revista de Literatura de la Unión Latina es registrada bajo el número SNIIC AG-20883 en el Sistema Nacional de Informaciones e Indicadores Culturales con Certificado de Reserva otorgado por el Instituto Nacional de Derechos del Autor bajo el registro: 10-2015-032213473700-121. ISSN en trámite. Revista Philos © 2017 Todos los derechos reservados.
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Philos, Revista Philos Revista de de Literatura Literatura da da União União Latina Latina || Revista Revista de de Literatura Literatura de de la la Unión Unión Latina. Latina.
EDITORIAL
REVISTA DE LITERATURA DA UNIÃO LATINA REVISTA DE LITERATURA DE LA UNIÓN LATINA Em nossa quinta edição, talvez seja melhor passar em revista o caminho percorrido: não há nunca univocidade em nossas edições, o que se anseia é transpor os muros. «É na alma do ser humano que está sua essência.» Nela mora a beleza do divino, fonte das manifestações do amor, da compaixão, da humildade, da gratidão, do altruísmo, da felicidade, valores universais, nos quais o homem busca inspiração para sua tarefa maior, a transcendência na existência. De nossos autores emana o inesgotável manancial de possibilidades originais que apresentam em constantes processos de criação e sensibilidade, elemento fundamental do trabalho poético. Nas mesmas nuances, não esquecendo a difusa atividade minimalista e a quebra do senso lógico, Emanuela Rodrigues fotografa e ilustra nossa edição em dois eixos artisticamente semânticos: o da criação e o da observação; por outras palavras, o do sujeito e o do autor, que (se) opera à sua volta, o do eu e o do uso. Esta publicação é parte do Philos Reposter, um projeto de republicação de todo o material lançado pela editora Camará Cartonera em novo formato gráfico, com colaborações de novos ilustradores, fotógrafos e artistas visuais. Desejamos uma ótima leitura,
Souza Pereira
EDITOR CHEFE | EDITOR EN JEFE
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Philos Revista de Literatura da União Latina | Revista de Literatura de la Unión Latina.
EDITORIAL
REVISTA DE LITERATURA DA UNIÃO LATINA REVISTA DE LITERATURA DE LA UNIÓN LATINA En nuestra quinta edición, tal vez sea mejor pasar en revista el camino recorrido: no hay nunca univocidade en nuestras ediciones, lo que se ansía es transponer los muros. «Es en el alma del ser humano que está su essência.» En ella vive la belleza del divino, fuente de las manifestaciones del amor, de la compasión, de la humildade, de la gratitud, del altruísmo, de la felicidad, valores universales, en los cuales el hombre búsqueda inspiración para su tarea mayor, la transcendência en la existencia. De nuestros autores emana el inagotable manantial de posibilidades originales que presentan en constantes procesos de creación y sensibilidad, elemento fundamental del trabajo poético. En las mismas concepciones, no olvidando la difusa actividad minimalista y la quiebra del senso lógico, Emanuela Rodrigues ilustra nuestra edición en dos ejes artísticamente semânticos: lo de la creación y lo de la observación; por otras palabras, lo del sujeto y lo del autor, que (se) opera a su vuelta, lo del yo y lo del uso. Esta publicación es parte del Philos Reposter, un proyecto de republicación de todo el material lanzado por la editora Camará Cartonera en nuevo formato gráfico, con colaboraciones de nuevos ilustradores, fotógrafos y artistas visuales. Deseamos una óptima lectura,
Souza Pereira
EDITOR CHEFE | EDITOR EN JEFE
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SUMÁRIO | SUMARIO CONTOS | COLUNAS | ARTIGOS CUENTOS | COLUMNAS | ARTÍCULOS
8 Meu cão meu velho amigo,
por
LUCRECIA WELTER
11 Aquela,
por
FRANCISCO CARVALHO
13 Desamor,
realidade,
por
VICENTE DE MELO
20 O escritor por
VAGNER SILVA
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15 Depois da
patológico,
por
EMANUELA RODRIGUES
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22 Reflexões
sobre a sociedade do espetáculo, por
CAIO LOBO
Emanuela Rodrigues
LITERATURA BRASILEIRA
CONTOS
Rotas da lusofonia
MEU CÃO MEU VELHO AMIGO
Lucrecia Welter1 por
No dia em que eu nasci, minha mãe pagou por ele noventa réis. Sua pelagem malhada e seu porte médio faziam dele o mais bonito da vizinhança. Com muito jeito, ele se aproximou de mim e eu tomei conta do coração dele. Parecíamos entender cada desejo um do outro. Nos meus primeiros passos, eu fazia a alegria dos meus pais e a empolgação do meu cãozinho. Cresci na companhia dele. Aliás, nós nos sabíamos crescendo um no outro e nos querendo sempre. Ele não foi somente o meu maior amigo. Foi também o meu companheiro inseparável. Eu o desejava só para mim. Assim também ele se comportava. Durante o dia, nas horas de estudos, nos perigos, nas travessuras, nas surras, lá estava ele, ao meu lado. Atendia por “Pitoco”, nome que lhe fora dado por conta do seu rabo que cortaram assim que nascera. Judiação! Sua rotina diária era intensa. Além de caçar o frango que ia pra panela e furtar guloseimas na loja de meu pai, punha-se em alerta nos cuidados com as crianças (éramos onze) e anunciava a chegada de estranhos. Na volta da escola, ele vinha nos receber no portão dos fundos de casa. Sua faceirice era tanta que não se contentava em abanar o quase rabo, nem em lamber nossas mãos. Latia e saltava alto, rolando conosco por terra muitas vezes. Ao cair da tarde, na área coberta junto à porta da cozinha, ele se acomodava, montando guarda, fosse qual fosse a temperatura da noite. Não lhe era permitido entrar em casa. *** Aos dez anos, viajamos para conhecer os Saltos das Sete Quedas em Guaíra – PR. Mais de cem quilômetros rodados em estrada de chão, nivelada por patrolas. Foi a única vez que ele viajou com a família, dado o mal estar que sentira. E nem ali apareceu na foto oficial. Lamento por não ter nenhum retrato dele. À época, fotografia era coisa rara. Artigo de luxo em passeios ou comemorações. *** E o dia em que completei quinze anos, comemorado apenas com um bolo simples, em casa? Pela felicidade estampada em seu focinho, parecia que era ele quem estava em festa, e não eu. Afinal, havia poucos meses, ele também fizera quinze anos. Naquela tarde, sentei ao lado dele e falei dos meus sonhos de menina, dos meus planos e anseios. Pela cara que ele fazia, parecia entender cada palavra, cada suspiro meu, cada vontade escondida. Eu estava no primor da idade, e ele no declínio da vida, perdendo os pelos, a coragem e o brilho natural. Dividi com ele o meu pedaço de bolo. *** Passados mais alguns meses, ele decaiu de vez. Apesar de quase cego, os seus olhos, tomados de cansaço, continuavam me seguindo, enquanto a cabeça pesava sobre suas patas e o toquinho de rabo se movia ao ouvir a minha voz, ou com a minha simples pre8
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sença. Dele eu cobrava ainda a energia e o vigor que um dia esbanjara. Mas ele já não conseguia me alcançar. Não tinha mais forças pra correr. Seu caminhar, de garboso, passou a ser arrastado e dolorido. Falseava-lhe uma ou outra perna quando se erguia. Aos poucos, passei a negligenciá-lo, a deixá-lo de lado, a me esquecer dele e do quão importante fora para mim e para minha família. Jamais imaginei que isso o deixaria tão sentido. Passei a palpar o peito dele todos os dias, apenas para sabê-lo ainda vivo. Embora melindrado, seu coração disparava com o toque. Ele achava que eu o estava acarinhando como quando jovem. Ledo engano! As suas feições sofridas me pareciam dizer que eu continuava sendo o seu refúgio. Que o seu fim estava próximo e gostaria de estar comigo até o último momento, sem reservas. Eu me fazia de desentendida, e me afastei dele de vez. Havia decidido que não o queria mais pra mim. Visivelmente abatido, ele continuava pelas noites junto à porta da cozinha. Cada dia mais frágil, mais prostrado e mais vulnerável, por conta da velhice, somada ao meu desapego. Via-o não mais como um prazer, mas como um estorvo, um velho debilitado, sem nenhuma utilidade. Até as marcas de suas patas na calçada passaram a me incomodar. Eu percebia, porém, que o respeito e a admiração que ele tinha por mim permaneciam inalterados. Eu procurava não pensar nos anos de extrema fidelidade que a mim dispensara. Nem nas provas de amor intenso. Muito menos nas inúmeras alegrias que me facultara. Ou no dia em que, por ter ouvido gritos sufocados sob a sacaria de grãos que desmoronara sobre mim e duas irmãs, com os dentes fincados na barra da calça de um empregado do armazém de papai, ele nos trouxe o socorro. Não relevei nem mesmo o atropelamento que ele sofrera, por nos salvar das rodas de um caminhão, e que o deixara gemendo dias a fio, com ferimentos expostos. Assistência médica naquele tempo era privilégio não estendido aos animais. A única coisa que nunca lhe deixei faltar foram duas porções diárias de comida. E foi na sua última refeição que confirmei a minha real ingratidão para com ele. Notei-o se engasgando com um pedaço de osso e nem ao menos tentei socorrê-lo. Empurrei-o, com a vassoura, para detrás de casa, pois me fora difícil vê-lo morrendo, com os olhos marejados de desespero e a boca espumando. Sufocado. Com ajuda das minhas irmãs e meu irmão, ajeitei o corpo dele sobre uma tábua. Com direito a cortejo fúnebre, flores e cantos sacros, nós o deitamos em cova profunda na parte alta do quintal. A imagem da agonia do meu leal parceiro, com o olhar vidrado, implorando a minha ajuda, ainda hoje me incomoda. Sabe Deus em quantos pedaços eu parti o coração dele... Por que tão tarde fui reconhecer o valor do meu cãozinho? Por que não dei ouvidos a seus suplícios e lamentos? Tento compensar a minha culpa, zelando pelos animais que tenho, depois de ensinar a meus filhos e netos a bem tratá-los, pelo quanto são importantes para nós e para nossa saúde, em especial para a natureza. Sei que vou levar comigo para sempre, no fundo do peito, a lembrança do meu mais afetuoso amigo. E tenho plena certeza de que ele me levou dentro do coração, para que nele eu fique bem guardada. Eternamente.
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Lucrecia Welter (Paraná, 1953). Escritora multipremiada e presidente da Academia de Letras de Toledo, Paraná. É Revisora de textos da Revista Philos e Curadora de Literatura lusófona da mesma Revista. Tem diversos livros lançados e publicações em coletâneas poéticas. 1
Emanuela Rodrigues
LITERATURA BRASILEIRA
EXPERIM.
Rotas da lusofonia
AQUELA por
Francisco Carvalho1
Aquela pichação que fiz no muro da tua casa, durante a madrugada. Aquela madrugada em que eu jurei amor em um inglês ruim. Aquele inglês ruim que você gostou de ouvir porque parecia aquela música internacional. Aquela música internacional que tocava no rádio, no quarto daquele motel onde tivemos a nossa primeira vez. Aquela vez que, depois do sexo, te prometi uma pichação no muro da tua casa. Aquela casa de onde expulsaram a tua família para construir um estádio para a copa. Aquela copa em que o Brasil perdeu para a Alemanha de sete a um. Aquele 7 a 1 que assistimos na rodoviária, rindo de todos que choravam, antes que eu chorasse te vendo partir de volta pra Exú. Aquela tua partida que foi pior que qualquer 7 a 1.
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Francisco Carvalho (Maceió, 1988). Escritor, contista e poeta; é professor de História nas horas vagas. 1
Emanuela Rodrigues
LITERATURA BRASILEIRA
EXPERIM.
Rotas da lusofonia
DESAMOR por
Vagner Silva1
Admito que, de fato, você mudou muito. Mas, parece que se esqueceu de uma coisa: eu também me metamorfoseei. Então, vir com todo esse discurso, que permeia o arrependimento e se debruça na sua falta de maturidade, não vai mais funcionar comigo, com o meu novo eu. Só estou te ouvindo agora, porque ainda resta certa consideração. Realmente, não sei o que passou pela sua cabeça quando resolveu sair, desvairado, por aquela porta. Porém, mesmo com esse desconhecimento, vejo que não sopesou as consequências das suas falas e ações. Naquele dia, eu fiquei te esperando por algumas horas... Ai se você retornasse a tempo... Com certeza, receberia o meu perdão. Fico extremamente incomodado em ouvir que a nossa atual situação se concretizou em razão da ironia do destino. Não adianta, neste momento, torná-lo culpado. Na realidade, o destino é coerente. Ele rege as nossas vidas conforme o fluxo de verdade que exalamos na terra. Ele traça o nosso caminho equacionando os elementos x, y e z contidos no nosso ser e estar no mundo. Aliás, o mundo dá voltas, meu caro! O luto é superável. As lágrimas, um dia, secam. A ausência deixa de ser sinônimo de dor e passa a ser de livramento. A autoestima se reestabelece, é fortalecida. A vida nos presenteia com alguns ombros amigos. Ou, simplesmente, nos surpreende com um novo amor. Caso reatássemos a nossa relação hoje, tudo seria diferente entre nós... O beijo irreconhecível. O abraço distante. O sexo forçado. A nossa união já não se justificaria. E o “Eu te amo” deixaria de ser representativo dos meus sentimentos. Portanto, reconheça, o desamor é a melhor decisão.
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Vagner Silva (São Lourenço, Minas Gerais, 1994). Graduando em Direito e bolsista do PETI pela UFLA. Participou das coletâneas literárias 15º Concurso de Poesias (2015), organizado pela CNEC de Capivari/SP, e Coexistência: antologia de poesias, contos e crônicas (2016), pela editora Porto de Lenha, e Trilha de Lótus (2016) e Ponto de criação (2016), da Andross Editora. Tem textos publicados nas Revistas Literárias Philos e Subversa. 1
Emanuela Rodrigues
LITERATURA BRASILEIRA
CONTOS
Rotas da lusofonia
DEPOIS DA REALIDADE
por
Vicente de Melo1
O júri popular, perfilado em suas cadeiras, aguardava somente o anúncio do veredicto. O advogado de acusação e o promotor trocavam algumas palavras, sempre sorrindo. O público, de um lado, formado por familiares e amigos da vítima, de outro, por familiares do réu, aguardava ansioso o final do cansativo julgamento. Um silêncio súbito tomou conta do local. O homem calvo, de bigode branco, vestido com uma toga preta, assomou pela porta da sala retangular, de paredes brancas e tapetes vermelhos. Devagar, ele sentouse junto à imponente mesa de mármore negro, que contrastava com sua pele pálida de cera, juntamente com os olhos azuis miúdos, atrás dos óculos fundo de garrafa. - Declaro que, por sete votos a favor e um contra, o réu foi condenado a dezoito anos de prisão, em regime fechado. Assim, o velho juiz bateu o martelo pela última vez, encerrando a sessão. De um lado, suspiros de alívio, de outro, choros e lamentações. A população e a imprensa se dividiram quanto às opiniões. Uma organização de Direitos Humanos ensaiou alguns protestos, acusando os jurados de parcialidade e preconceito racial contra o réu, que era negro e pobre. Tudo em vão. Não havia mais recurso a favor do homem que matara, depois de estuprar, uma adolescente de apenas quinze anos de idade. No outro dia, após o último julgamento, já com a aposentadoria compulsória, o Dr. João Velasquez esvaziou o seu gabinete, limpando as gavetas dos seus poucos pertences. De cima da mesa retangular, ainda com alguns processos que ficara de herança para seu sucessor, retirou a foto da moldura de vidro quebrado, olhando fixamente para o casal de filhos abraçados à mãe. Antes de sair, benzeu-se diante do crucifixo pendurado na parede de um branco impecável, apesar de não ser muito religioso. Sempre fora assim. Até porque, diante de qualquer julgamento, a emoção jamais deve se sobrepujar à razão. Agora de pijama dentro de casa, como um ex-juiz, João Velasquez andava de um lado para o outro entre os móveis coloniais caríssimos do belo apartamento, que uma diarista limpava uma vez por semana. Da biblioteca, com as estantes abarrotadas de livros jurídicos, livros de história da arte e livros de literatura nacional e estrangeira, nada o interessava naquele momento. Na mesa da sala, passou a contemplar uma foto dos dois filhos ainda pequenos de quem, sempre ocupado com processos, ele não acompanhara a infância nem a adolescência. A filha, formada em Direito, depois de se casar com um executivo de uma multinacional de petróleo, que ela mesma ajudara a se livrar de um processo por sonegação de imposto, mudou-se para Dubai. Já o filho, um estroina pervertido, que nunca gostara de estudar, passou a viver nos Estados Unidos à custa de jogatinas e de mulheres, depois que sua mesada fora cortada. Ambos nem chegaram a participar do funeral da mãe, que morrera há três anos. João Velasquez começou a caminhar pelas ruas da cidade. De calça “jeans”, camisa colorida, usando uma boina preta e óculos escuros, tudo para ele parecia desconhecido. Desde o intenso comércio no centro da cidade, entre lojas, camelôs e lixos
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nas calçadas, até as ruas, com esgoto a céu aberto, das casas amontoadas da favela. O ex-juiz andava ziguezagueando, olhando os rostos e os gestos das pessoas de todas as classes, cores e procedências. Trabalhadores comuns, autônomos, funcionários públicos, desempregados, vendedores ambulantes, homens, mulheres, velhos, crianças, negros, brancos, homossexuais, travestis, prostitutas, pederastas, gigolôs, banguelas, mendigos, viciados em drogas, alcóolatras, pedintes, imigrantes ilegais, ladrões, facínoras, assassinos, contrabandistas, traficantes, agiotas, padres, pastores protestantes, muçulmanos, judeus, pais de santo, ciganos... Todos com seus problemas, gestos e peculiaridades, formando uma babel de sons, vozes e lamentações, na luta pela sobrevivência. Certa hora, muito cansado, João Velasquez parou num bar, sentando-se junto a uma mesa. Bastante ofegante, ele pediu uma água mineral com gás ao garçom. Enquanto bebia devagar, começou a pensar na vida que passara rapidamente. Realmente ele não conhecia nada do mundo ao seu redor. Durante os mais de trinta anos de trabalho, nunca ultrapassara as salas e os corredores do Tribunal de Justiça. Sua vida sempre se constituiu em sair de casa num carro oficial com vidros fumês blindados, dirigido por um motorista, acompanhado de dois seguranças bem armados. Já no prédio do Tribunal, ele subia pelo elevador especial reservado somente às autoridades, entre juízes, promotores e alguns advogados mais influentes. Quase não olhava e nem cumprimentava as pessoas comuns. Seu medo maior, além de algum conluio para assassiná-lo, era o de alguém tentar influenciá-lo em suas sentenças. Subitamente, ainda imerso em seus pensamentos, João Velasquez foi abordado por um menino de apenas oito anos que pedia uma moeda. Do outro lado, dois mendigos discutiam por uma garrafa de cachaça. Ao lado deles, um cachorro esquálido retirava pedaços de pães duros de uma lata de lixo. Mais à frente, uma mulher gorda observava tudo, segurando uma criança no colo, enquanto pedia esmolas aos transeuntes. O ex-juiz tirou do bolso uma cédula, entregando ao menino que agradeceu com o manjado “Deus lhe pague”. O vaivém das pessoas continuava intenso, num movimento nervoso da cidade que parecia não descansar nunca. O Dr. João Velasquez, sempre especialista em ouvir depoimentos e flagrar contradições, passou a perceber a nebulosidade e a realidade do mundo exterior que até então desconhecia, sem conseguir decifrá-lo de uma vez. Lembrou-se de quantas pessoas humildes, ou muitos de seus parentes que agora por ali passavam, foram condenadas injustamente por ele ou por alguns de seus colegas. Enquanto que, do outro lado, formando uma confraria de intocáveis, membros do mundo burguês, do poder administrativo, do poder político, do poder empresarial e do poder financeiro, através de propinas, conchavos e tramoias, se livraram de processos, condenações e prisões por crimes de sonegação, corrupção e desvios de verbas públicas. Que justiça era essa que sempre fora cega e parcial? Saindo dos pensamentos sobre um passado recente, retornando à realidade à sua volta, João Velasquez olhou para os sapatos sujos de terra, que outrora permaneciam sempre limpos e luzidios. Depois de pagar a água, continuou a caminhar, agora mais devagar, pela avenida ainda mais movimentada, entre o barulho ensurdecedor das buzinas de automóveis, sirenes de ambulâncias, ronco de motores, gritos de vendedores ambulantes e latidos de cachorros. Virando em uma rua transversal, entrou numa bela igreja, ato que só fizera em alguns casamentos a que fora convidado ao longo desses anos todos. Ao subir os degraus da escada, deparou-se com um cego que pedia esmolas oferecendo o chapéu, junto a um fiel cachorro vira-latas que o acompanhava. Já no meio da nave central, olhou curioso a quantidade de santos barrocos pendurados nas paredes, sempre rodeados de anjos gorduchos e sorridentes. Ao lado deles
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Jesus Cristo chorava, exibindo suas chagas. À frente do confessionário, duas mulheres de véus negros na cabeça, rezavam ajoelhadas, concentradas em seus pedidos de promessas e indulgências. Enquanto isso, no altar-mor, um rapaz ainda imberbe, provavelmente o acólito do padre, limpava a poeira de uma Bíblia com as bordas de ouro, juntamente com o cálice de prata. Depois de benzer-se, pois não sabia nenhuma oração por inteiro, o ex-juiz deixou o recinto, no momento em que os sinos dobravam, quebrando o silêncio lúgubre, anunciando a “hora do ângelus”. Ao sair da igreja, em certo momento, tentando atravessar a pista movimentada, João Velasquez quase foi atropelado por um ônibus em alta velocidade. Distraído, nem percebera o semáforo fechado para pedestres. O motorista soltou vários impropérios contra o homem, fazendo sinais obscenos com a mão. Depois do susto, ele entrou em uma lanchonete, pedindo um café. Enquanto bebericava o líquido escuro, sem nenhuma pressa, passou a olhar curioso para um grupo de operários bebendo cerveja, acompanhada com torresmo, que participava de uma discussão acirrada sobre futebol. O dono do estabelecimento bocejava amiúde detrás do balcão. O sol já começava a se esconder atrás dos prédios imponentes e os barracos paupérrimos da periferia. Numa parada de ônibus lotada, depois de pedir informações a um vendedor de doces, João Velasquez pegou um transporte de volta para casa. Do interior do ônibus coletivo, o exjuiz voltou a admirar tudo que passava por ele. Automóveis cruzando em sentido contrário, trabalhadores voltando para casa depois de mais um dia estafante, crianças abandonadas pedindo esmolas, um grupo de evangélicos protestantes pregando o apocalipse em gritos histéricos, prostitutas e travestis disputando clientes ávidos por alguns momentos de prazer, garis recolhendo o lixo diário, dois policiais correndo atrás de um meliante, bicheiros recolhendo a féria do dia em cada esquina, um grupo de “punks” bebendo vinho barato e cantando músicas sem nexo que saía de um aparelho celular. Tudo ia ficando para trás, juntamente com uma parte da cidade que se preparava para adormecer, dividida entre o lixo e o luxo, a fome e a fartura. Num arranco súbito, o ônibus parou no enorme engarrafamento. Pela janela de vidro aberto, João Velasquez viu um motoqueiro, que fora atropelado por um caminhão, caído no asfalto quente. Alguns moradores de rua já dormiam nos colchões de papelão improvisados, debaixo de marquises das lojas já fechadas. Outros bebiam os últimos goles de cachaça, ladeado por mulheres e crianças que fumavam “crack” num cachimbo improvisado com lata de refrigerante. Os transeuntes desviavam da aparência tísica e assustadora dos párias, que mais lembravam os sobreviventes de guerra. O negror da noite chegou rápido, como um véu de luto cobrindo tudo. Finalmente o motoqueiro foi socorrido e recolhido pelo SAMU, com o trânsito passando a fluir normalmente. O ônibus voltou a sacolejar como se estivesse carregando gado. A silhueta da cidade, quase em silêncio, foi ficando para trás. Já em casa, João Velasquez tomou um banho para relaxar o corpo do longo passeio. Debaixo do chuveiro de água quente, lembrou-se por alguns instantes que era gente e que tinha sentimentos como todas as pessoas. Que podia caminhar livre, misturando-se ao populacho que sempre evitara, seja por medo, por prevenção, ou até por um ignorante preconceito. Ao sair do banheiro, usando um roupão de seda azul, João Velasquez ligou a televisão, mudando várias vezes de canal, sem encontrar nada que o interessasse. Na mesa de centro, pegou uma foto da esposa ainda jovem. Descobriu que a sua única companheira nesses vários anos de processos, julgamentos e tensões, que sempre estivera ao seu lado mesmo nos momentos mais difíceis, agora lhe fazia muita falta. Depois que ela morrera, ele não arranjara mais ninguém que o compreendesse em seus piores momentos de crises, dúvidas, receios e talvez de algumas injustiças praticadas, mesmo que às vezes sem intenção 17
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ou má fé. Depois de acender um cigarro, com longas tragadas de deleite, João Velasquez dirigiu-se até a janela. A seguir, abriu as persianas de cor bege. Da luxuosa cobertura de um bairro nobre, ele voltou a contemplar a cidade agora totalmente adormecida. O brilho pálido da lua, juntamente com uma miríade de estrelas, encontrava-se misturado às luzes coloridas que emanavam de todos os lados, com destaque para as guirlandas do natal que já se aproximava. Deitado no amplo sofá, João Velasquez terminou de ler alguns capítulos do romance “Cem Anos de Solidão”, de Gabriel Garcia Marquez. Totalmente tomado pela lassidão, como que numa embriaguez, mas também com uma paz interna inexplicável, sem nenhuma dor ou angústia no coração, depois de um longo suspiro, ele dormiu um sono profundo. Seu corpo permaneceu banhado apenas pela luz tênue do abajur de louça chinesa.
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Vicente de Melo (Minas Gerais, 1960). Romancista e Contista, foi vencedor do “Prêmio SESC de Contos Machados de Assis”, do SESCDF, edição 2005. Publicou o romance “A Saga de Um Candango”, em 2013 e as coletâneas “Contos Federais”, em 2007 e Vidas Vazias em 2014. 1
Emanuela Rodrigues
LITERATURA BRASILEIRA
EXPERIM.
Rotas da lusofonia
O ESCRITOR PATOLÓGICO
Emanuela Rodrigues1
por
O escritor patológico o é mesmo antes de descobrir sua vocação para a escrita, antes de idear seu primeiro livro ou texto para publicação. Quais sintomas podem diagnosticar um escritor patológico? Primeiramente, ele é um viajante das ideias. Um mínimo fragmento de tempo, observado ou vivenciado por ele, recebe profundidade, significado e nuances possivelmente não atribuídas por olhares ‘desatentos’ – não me refiro só ao que olha e não vê, mas ao que vê e significa de modo ‘prático’ e ‘realista’ o que viu. Ilustrarei o que digo, descrevendo cenas desde a perspectiva de um escritor patológico, aqui denominado ‘Levi’. Levi conheceu alguém e apaixonou-se ‘perdidamente’. Eis o primeiro sintoma: apaixonarse pelo desconhecido, a partir de uma imagem somada à própria projeção. Levi anseia por reencontrar o fantástico alguém. Um dia, estando Levi na pequena biblioteca da universidade, o correr das portas de vidro, cujo som emitido é inconfundível, saca-lhe a atenção dedicada às letras vivas no papel. Levi suspende o olhar. Alguém, não qualquer alguém, mas ‘alguém’ acaba de pisar no mesmo espaço quadrado em que se encontra Levi. Por dois inesquecíveis segundos, o olhar de Levi cruza-se com o olhar de ‘alguém’. Seu coração acompanha o ritmo daquela fração de tempo, desacelerando-se consideravelmente para, em seguida, seguir o ritmo ‘normal’ da vida. Eis o segundo sintoma do escritor patológico: sentir que o tempo, o mundo e as relações seguem em ritmo frenético, irracional e surreal para ele. Afinal, o que faz um escritor senão ruminar experiências, pensamentos e emoções? O que é digerido vai ao estômago sensível, volta em refluxo à boca – esse órgão que digere e expressa -, torna a ser mastigado e retorna ao lento sistema digestivo interno. Foi dado o terceiro sintoma: o eterno ruminar. E a eternizada troca de olhares? Levi pensará, como se fosse um personagem do próprio texto, que todo o universo conspirou para que ele estivesse sentado ali, na cadeira posicionada de frente à porta de vidro - que se abre em rolamento -, no exato momento em que ‘alguém’ adentraria a biblioteca. “Ah, alguém, estava escrito!”, pensará Levi. quarto sintoma da patologia: crer que a vida é um livro escrito por alguma entidade provida das mesmas ferramentas que ele. Por um acaso injusto da vida, a história eternizada do par de segundos em que um par de olhares atraiu-se unindo um par de possíveis amantes, apenas estará escrito nos textos criados por ele, o escritor patológico. E, por algum tipo de equilíbrio vital, a frustração de haver vivido intensamente uma história unilateral justificar-se-á ao ser partilhada com olhos atentos à literatura, mais atentos à vida imaginada por Levi do que às pequenas cenas que o dinâmico palco do mundo pode oferecer. Logo, o quinto dos sintomas: escrever sem o pudor que lhe impede de expor-se. Escrever sem medo de pertencer, por algum julgo próprio ou alheio, ao grupo dos ridicularizados. Confirmado o diagnóstico, a prescrição será a escrita como antídoto, sem contraindicação ou qualquer efeito colateral.
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Emanuela Rodrigues (Goiás, 1983). Escritora, poetisa e artista visual. É autora autopublicada da obra ‘Metamorphose de Sophia’ dentre outras. Escreve temas diversos, entre os quais regionalismo e realismo fantástico. É a artista responsável pelas fotografias desta edição. Autora do livro Pelo andar da carruagem (2017). 1
Emanuela Rodrigues
LITERATURA BRASILEIRA
ENSAIOS
Rotas da lusofonia
REFLEXÕES SOBRE A SOCIEDADE DO Caio Lobo ESPETÁCULO por
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Acabo de ler um pequeno livro fantástico: A sociedade do espetáculo, de Guy Debord. Não vou fazer propriamente uma resenha do livro, embora trate, aqui e ali, de algumas de suas ideias. Ou do que interpretei como sendo as ideias do livro. Digo isso porque o texto não é simples, está escrito ao estilo de Nietzsche, em parágrafos que delimitam insights particulares, completos em si mesmos, e não como uma teoria formulada passo a passo ao longo da obra. Pra completar, a linguagem é extremamente figurada, o que sujeita sua compreensão a um esforço interpretativo intenso do leitor. Ilustrando essas dificuldades iniciais, Debord, por exemplo, não define o que é a sociedade do espetáculo. O livro inteiro são tentativas de lançar luzes sobre suas características, sem que, no entanto, se chegue a um conceito bem delimitado, ou sequer a uma tentativa de conceituação. A primeira impressão que se tem é que o espetáculo é a mídia moderna. Ou melhor, que a mídia moderna é um instrumento da sociedade do espetáculo. Essa sociedade representaria o ápice do capitalismo, o momento em que o sistema capitalista vira imagem constante, executada num “presente eterno” para o conjunto de seus espectadores. Ao criar o espetáculo, ocorre uma verdadeira cisão: agora há um mundo – representado pelas mídias – dissociado do universo das pessoas. Esse novo mundo se apresenta como o verdadeiro mundo, como a realidade da vida, como o que se deve ser e desejar. Essa divisão não é notada pelo espectador, que passa a adotar a visão do espetáculo como sendo o real, de maneira que sua própria existência deixa de ter qualquer significado. O sentido de existir não é mais uma indagação do sujeito, mas uma imposição de terceiros, imposição que não é questionada. A imagem construída e escolhida por outra pessoa se tornou a principal ligação do indivíduo com o mundo que, antes, ele olhava por si mesmo, diz Debord. «Aquilo que o espetáculo deixa de falar durante três dias é como se não existisse. Ele fala então de outra coisa, e é isso que, a partir daí, afinal, existe.» Guy Debord De fato, é impressionante a passividade do espectador diante do espetáculo. O mundo apresentado é aceito como sendo o mundo real. Não costumamos nos atentar para o fato de que o apresentado são trechos, partes do mundo real. E que são partes escolhidas para serem apresentadas. Alguém efetua uma escolha sobre o que apresentar aos espectadores, mas não se questiona, no final, por que se fez tal escolha, e não outra. A se acreditar nessa escolha, o mundo necessariamente é visto como uma sequência de tragédias e atos violentos, um eterno lançar de mísseis entre israelenses e palestinos.
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É claro que o mundo também é isso, mas não exclusivamente. Quando não se questiona a escolha, o espectador se aprisiona na visão de mundo dos outros e passa a agir como se o mundo fosse tão somente violento, como se se devesse desconfiar sempre da raça humana e tantas outras maneiras distorcidas de enxergar a realidade. Sem perceber, agimos influenciados pela visão do espetáculo. Debord não aprofunda a análise desses aspectos, diríamos “sociológicos”, porque está mais preocupado com a lógica do espetáculo como instrumento do capitalismo. O espetáculo promove a uniformidade que deixa o espectador psicologicamente atado a sua ideologia. Segundo Debord, o sujeito vive na falsa consciência da realidade, que é o espetáculo, já que a realidade em si está impedida de vir à tona. O fascínio que o espetáculo exerce, seu poder, seu alcance criam a sensação de que ele é o detentor da verdade. De que sua visão de mundo é a única visão de mundo possível, de que seus valores são os valores das pessoas. O espetáculo é um rolo-compressor de individualidades. No campo dos costumes, isso ainda é mais flagrante. O autor também não entra em detalhes sobre o assunto. Mas é evidente que os que vivem no seio de uma sociedade capitalista são bombardeados pelas imagens de como o indivíduo deve ser, como deve se vestir, que produtos tem que possuir (a mercadoria, segundo Debord, substituiu insidiosamente a necessidade biológica de sobrevivência, mantendo seu apelo), que padrão estético deve apreciar, que locais precisa visitar. O espetáculo oferece todas as respostas, e o indivíduo, confortável em sua preguiça intelectual, vai engolindo tudo sem questionar. Não é preciso ir muito longe para observar como os comportamentos, de modo geral, são a imitação desse modelo espetacular. E é óbvio, estar no olho do furacão, ser apresentado pelo espetáculo ao espectador, tornase a realização suprema do sujeito que não questiona o espetáculo, mas que, ao contrário, está inserto em sua realidade paralela. Não é necessário realizar mais nada de realmente importante para se viver o frisson da exposição. Basta, por exemplo, participar de reality shows como o Big Brother Brasil. A ascensão social é imediata, sem requisitos. Feios tornam-se belos de um segundo a outro; “fãs” surgem do nada. O mundo real, e todas as suas benesses, se oferece incondicionalmente ao indivíduo que colocou os pés na realidade irreal – no entanto, real para os iludidos. Debord faz também uma análise sobre a mercadoria, mas, provavelmente por não ter presenciado o momento atual, não levou o raciocínio até as últimas consequências. Teria visto, nos dias de hoje, que tudo é produto. Que tudo é realizado nos moldes capitalistas. Que até em hospitais, o atendimento é realizado segundo procedimentos típicos de uma indústria. Que médicos se parecem cada vez mais com operários: não se vê em seus olhos mais uma preocupação genuína com seus pacientes. Sem falar nos absurdos que advém da necessidade de se ser dono de posses para ter acesso a esse médico-proletário. Todos os empregos imagináveis, inclusive os intelectuais, viraram linhas de montagem. Montagem de textos, de discursos, de partes do corpo, de qualquer coisa que se imaginar. Não há diferença alguma – a não ser no campo da autoafirmação orgulhosa de algumas carreiras – entre o cara que executava uma única ação no fordismo e qualquer trabalhador, de qualquer área, do mundo atual. Os médicos são só o exemplo mais flagrante. A alienação, agora, é generalizada; não pertence propriamente a uma classe restrita. E é claro que o motor dessas ações, muitas vezes insuportáveis para certos espíritos, é o espetáculo. Porque ele precisa de você para consumir. Porque ele te ensinou que só isso importa. Mas não para por aí. Debord teria visto, no mundo atual, que pessoas também se tornaram produtos. A forma de seus corpos, diz-nos o espetáculo, deve obedecer a deter23
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minado padrão, taxa de gordura, altura, peso. Que cabelos femininos devem ser lisos; que algumas cores de peles são mais aceitas; que olhos, melhor tê-los claros. Evidentemente, todos os acessórios – a mercadoria ou produto no seu sentido usual – continuam aí: marcas, produtos, gadjets, aparelhos, comidas, destinos turísticos. O diferente, me parece, é essa expansão da qualidade de produto para as próprias pessoas. E quando uma pessoa se torna, espontaneamente, produto, como convencê-la de que não é? E quando tudo é mercadoria, que escolha resta ao indivíduo, para ser aceito, a não ser tornar-se uma? É claro que as consequências psicológicas de uma realidade como essa sobre a personalidade do indivíduo não são insignificantes, embora não sejam absolutamente claras. Debord aposta numa aniquilação da personalidade, o que me parece um tanto exagerado. Diz que a supressão da personalidade acompanha fatalmente as condições da existência submetida às normas espetaculares – cada vez mais afastada da faculdade de conhecer experiências autênticas e, por isso, de descobrir preferências individuais. Acho que a consequência mais plausível é uma certa dissociação da própria personalidade, que se vê em conflito entre o que ela deveria, em tese, almejar, e o que lhe dizem que deve almejar. Ao pressionar o indivíduo a sempre adotar as escolhas propostas pelo espetáculo, o resultado há de ser a infelicidade de muitos, que se encontram aprisionados em destinos que não enxergam como seus, exercendo atividades nas quais não encontram qualquer satisfação ou sentido. Bem, talvez nem haja tantos assim. Porque é preciso admitir que muitos não se sentem divididos. Adotaram a realidade ilusória do espetáculo como constituição real de suas existências. Debord não parece considerar que a imersão completa na lógica do sistema espetacular pode representar certa libertação individual, certo sentido de unidade, ainda que esta se dê em comunhão com uma realidade forjada, ficcional. Talvez ele não tenha notado – ou o notou muito bem, mas não quis dizer – que a maioria das pessoas necessita de um sistema que lhes diga o que querer, eximindo-as do difícil e doloroso processo de escolha. Isso em qualquer época. Talvez tenha se recusado a ver que agir assim, em qualquer cenário ou momento histórico, é o que se considera, até num sentido etimológico, normal.
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Caio Lobo (Recife, 1979). Colunista da Philos, é formado em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco e Mestre em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília. Leitor compulsivo e romancista. Lançou recentemente o seu livro Trôpegos Visionários pela editora Kazuá. 1
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