Philos v.2 n°.6 (2016)

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Philos PORTUGUÊS CATALÀ ESPAÑOL FRANÇAIS ITALIANO ROMÂNĂ julho 2016 · REVISTA DE LITERATURA DE LA UNIÓN LATINA 6 julio 2016

REVISTA DE LITERATURA DA UNIÃO LATINA 6

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REVISTA DE LITERATURA DA UNIÃO LATINA 6

PÂMELA CÔRTES FRANCISCO CARVALHO BHARROS DE OLIVEIRA RÂNDYNA DA CUNHA ESTER CHAVES

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REVISTA DE LITERATURA DA UNIÃO LATINA 6

EXPEDIENTE

REVISTA DE LITERATURA DA UNIÃO LATINA REVISTA DE LITERATURA DE LA UNIÓN LATINA

Souza Pereira

EDITOR CHEFE | EDITOR EN JEFE

Sylvia de Montarroyos

COMITÊ EDITORIAL | COMITÉ EDITORIAL

Lucrecia Welter

REVISÃO DE TEXTOS | SUPERVISIÓN DE TEXTOS

Maus Hábitos

DESENHO E DIAGRAMAÇÃO | DISEGÑO Y DIAGRAMACIÓN

Mariana Oushiro

ILUSTRADOR | DIBUJANTE

SOBRE A OBRA DESTA EDIÇÃO | SOBRE LA OBRA DE ESTA EDICIÓN

Publicado originalmente em julho de 2016 com o título Philos, Revista de literatura da União latina. Os textos desta edição são copyright © de seus respectivos autores. As opiniões expressas e o conteúdo dos textos são de exclusiva responsabilidade de seus autores. Todos os esforços foram realizados para a obtenção das autorizações dos autores das citações ou fotografias reproduzidas nesta revista. Entretanto, não foi possível obter informações que levassem a encontrar alguns titulares. Mas os direitos lhes foram reservados. Philos, Revista de Literatura da União Latina é registrada sob o número SNIIC AG-20883 no Sistema Nacional de Informações e Indicadores Culturais com Certificado de Reserva outorgado pelo Instituto Nacional de Direitos do Autor sob o registro: 10-2015-032213473700-121. ISSN 2527-113X. Revista Philos © 2017 Todos os direitos reservados. | Publicado originalmente en julio de 2016 con el título Philos, Revista de literatura de la Unión latina. Los textos de esta edición son copyright © de sus respectivos autores. Todos los esfuerzos fueron hechos para la obtención de las autorizaciones de los autores de las citaciones o fotografías reproducidas en esta revista. Sin embargo, no fue posible obtener informaciones que llevaran a encontrar algunos titulares. Pero los derechos les fueron reservados. Philos, Revista de Literatura de la Unión Latina es registrada bajo el número SNIIC AG-20883 en el Sistema Nacional de Informaciones e Indicadores Culturales con Certificado de Reserva otorgado por el Instituto Nacional de Derechos del Autor bajo el registro: 10-2015-032213473700-121. ISSN 2527113X. Revista Philos © 2017 Todos los derechos reservados.

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Philos, Revista Philos Revista de de Literatura Literatura da da União União Latina Latina || Revista Revista de de Literatura Literatura de de la la Unión Unión Latina. Latina.


EDITORIAL

REVISTA DE LITERATURA DA UNIÃO LATINA REVISTA DE LITERATURA DE LA UNIÓN LATINA «E cada instante é diferente, e cada homem é diferente, e somos todos iguais.» E mais uma vez iniciamos a Philos com pedaços de versos destacados da obra de Drummond, desta vez, ressoam as palavras de seu poema Os últimos dias, que vão de encontro com o fim de nosso primeiro volume e a chegada do novo. Que nos permite o prazer de estender-se; o de enrolar-se, ficar inerte e perceber o irredutível prazer dos olhos; certas cores: como se desfazem, como aderem, certos objetos, diferentes a uma luz nova. Nessa nossa segunda edição, mudaram-se os arranjos, mas a sinfonia continua bela e encantadora, nem tão seca, nem tão morna. É tempo de conhecer mais algumas pessoas, de aprender como vivem… de descobrir seus movimentos, suas forças não sabidas, sobre o papel deixar que a mão deslize, ou melhor, sobre a tela, deixar que os olhos se encantem. Nossas páginas ganham o colorido surreal, particular entre mil, da artista Mariana Oushiro, onde cada instante é diferente, um desenho que se produz ao infinito de forma diferente. «A vida é bastante, o tempo é boa medida, irmãos, vivemos o tempo.» Esta publicação é parte do Philos Reposter, um projeto de republicação de todo o material lançado pela editora Camará Cartonera em novo formato gráfico, com colaborações de novos ilustradores, fotógrafos e artistas visuais. Desejamos uma ótima leitura,

Souza Pereira

EDITOR CHEFE | EDITOR EN JEFE

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EDITORIAL

REVISTA DE LITERATURA DA UNIÃO LATINA REVISTA DE LITERATURA DE LA UNIÓN LATINA «Y cada instante es diferente, y cada hombre es diferente, y somos todos iguales.» Uma vez más iniciamos la Philos com versos destacados de la obra de Drummond, esta vez, resuenan las palabras de su poema Los últimos días, que van de encuentro con el fin de nuestro primer volumen y la llegada del nuevo. Que nos permite el placer de extenderse; lo de enrolar-si, quedar inerte y percibir el irredutível placer de los ojos; ciertos colores: como se deshacen, como adhieren, correctos objetos, diferentes a una luz nueva. En esa nuestra segunda edición, se cambiaron los arreglos, pero la sinfonia continúa bella y encantadora, ni tan seca, ni tan tibia. Es tiempo de conocer más algunas personas, de aprender como viven... de descobrir sus movimientos, sus fuerzas no sabidas, sobre el papel dejar que la mano deslice, o mejor, sobre la pantalla, dejar que los ojos se encanten. Nuestras páginas ganan el coloreado surreal, particular entre mil, de la artista Mariana Oushiro, donde cada instante es diferente, un dibujo que se produce al infinito de forma diferente. «La vida es bastante, el tiempo es buena medida, hermanos, vivimos el tiempo.» Esta publicación es parte del Philos Reposter, un proyecto de republicación de todo el material lanzado por la editora Camará Cartonera en nuevo formato gráfico, con colaboraciones de nuevos ilustradores, fotógrafos y artistas visuales. Deseamos una óptima lectura,

Souza Pereira

EDITOR CHEFE | EDITOR EN JEFE

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SUMÁRIO | SUMARIO CONTOS | COLUNAS | ARTIGOS CUENTOS | COLUMNAS | ARTÍCULOS

8 Assim eu

quereria a minha primeira crônica, por PÂMELA CÔRTES

11 Faíscas de um mergulho,

por

BHARROS DE OLIVEIRA

14 Frágil corpo de pomba,

17 O gênese da anfitriã,

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por

RÂNDYNA DA CUNHA

por ESTER CHAVES

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20 Pequenos

pontos acesos,

por

FRANCISCO CARVALHO


Mariana Oushiro

Estudos sobre Picasso Cadernos originais de Mariana Oushiro (2017)


LITERATURA BRASILEIRA

CONTOS

Rotas da lusofonia

ASSIM EU QUERERIA A MINHA PRIMEIRA CRÔNICA Pâmela Côrtes por

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Ele desce do ônibus assustado. “Que lugar enorme!” - é o que pensa sua pequena cabeça, enquanto as mãozinhas ainda em construção seguram firmes na porta do ônibus. Os demais passageiros o pressionam, querem seguir a vida que para na estrada, mas que reinicia na cidade, nessa grande cidade que o assusta. E ele desce, assustado demais para proferir qualquer palavra. “Para que lado eu vou” - é o que se pergunta. Sua vontade era de se sentar bem ali, na fila que começa a se formar para a próxima viagem. Se ele pudesse, se sentaria bem ali e esperaria sua mãe chegar, junto com os seus irmãos, reclamando da vida e da falta de dinheiro, da sobra de filhos e da falta de amor, da dura vida de uma mulher abandonada pela vida e pelos amores. Mas ela não chegaria. Seus irmãos não estariam ali para brigar com ele, para roubar-lhe o melhor pedaço do pão, aquele no qual ele passou mais margarina e onde tem mais miolo, que ele sempre deixava para comer por último. “ Você já está bem crescido, já tem 12 anos meu filho” - foi o que disse sua mãe, aos prantos. “Você já é um homem, e precisa agir como tal. Vamos, levante esse rosto, moleque, e não chore, que filho meu não foi feito para chorar. Você vai viajar, vai ganhar a vida na cidade grande, e há de voltar trazendo muito orgulho a sua mãe, tá bom?” - foi o que ela disse antes que ele embarcasse. Ele, ele só queria um carrinho. Ele não queria ganhar a vida, essa já lhe veio de graça, sem esforço, sem Papai Noel ou bom comportamento. Mas ele agora não podia mais acreditar em Papai Noel ou brincar de polícia e ladrão, sempre em dúvida se deveria querer ser o policial que oprimiu e levou seu irmão mais velho, ou o ladrão que o padre da paróquia dizia que ia para o inferno. Agora ele é um homem, sozinho nessa rodoviária, de mãos tão pequenas que não conseguiriam segurar a arma do policial ou do ladrão. Na prática não fazia diferença. Suas mãos eram pequenas demais para os ofícios dos homens adultos. “Mas sua idade não queria mais em suas mãos o carrinho, ou não deveriam querer” - era o que pensava sua mãe. Suas mãos agora estavam ocupadas, uma se apoiava na parede, a outra estava sobre a barriga, que já chegava à cidade grande exigindo. Era esse o gesto que fazia quando estava com fome. Sua mãe sempre sabia. “Você não para de comer moleque” - era o que sempre ouvia enquanto tentava achar algo na geladeira. Então pisou firme. Era um homem agora. Um homem! Limpou discretamente a lágrima que teimava em denunciar sua meninice e saiu daquela rodoviária com passos certos e cabeça erguida, como um homem. Atravessou a rua estreita que daria numa grande praça,

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a praça da rodoviária. Andou por ela destemido, corajoso, desejoso em abrir e engolir aquele mundo todo que o esperava. Mas a praça desdobra-se em múltiplos caminhos, outras tantas ruas longas e estreitas, rios de gente que atravessavam todos os lados, tantos carros e barulhos e luzes, ruas de gente e rios de asfalto. Tanta coisa para aquelas mãozinhas... Aquela mochilinha nas costas era a única coisa que o abraçava e o acompanhava agora. Seus olhos pretos e redondos não davam conta de tanto novo. E foram com esses grandes olhos que me deparei. Grandes olhos de jabuticaba que assentavam numa pequena cabeça de criança. Grandes olhos tão assustados, tão desamparados que atraíram meus olhos desatentos de passageira de ônibus. A mochila rosa devia ser da irmã. Nossos olhos se cruzaram, pegaram um ao outro, e a única coisa que eu queria era poder abraçar a ele e a mochila, pegar aquelas mãozinhas e dizer que vai ficar tudo bem. Comprar o melhor carrinho do mundo, ajudar a escrever a cartinha no Natal. Mas não, não ia ficar tudo bem. Eu segui, ele ficou. Ele, a rua e a mochila. Eu e o papel, que o acolhia sem que ele soubesse, que o abraçava sem que ele se desse conta, que poderia virar no máximo barquinho caso ele o encontrasse, seguimos viagem. Assim eu quereria minha primeira crônica: que fosse densa como esses grandes olhos pretos.

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Pâmela Côrtes

(São Paulo na teoria, Minas Gerais na prática, 1989). Mestranda em Direito e escritora de qualquer coisa nas horas vagas, ou mestranda nas horas vagas e escritora de qualquer coisa em tempo integral. Tem um blog, nem sempre atualizado: emrecortes.word press.com.


Mariana Oushiro

Estudos sobre Picasso Cadernos originais de Mariana Oushiro (2017)


LITERATURA BRASILEIRA

EXPERIM.

Rotas da lusofonia

FAÍSCAS DE UM MERGULHO Bharros de Oliveira por

Era noite, e não apenas isso. A lua tornava noite a noite. Seu vestido branco dava ao mar eterno a vida e os sabores. Sem aquela lua, a noite não seria nada mais do que um pouco de pó, imperceptível, em um canto da janela. Eu estava em uma festa, pelo que me lembro... Não posso dar essa certeza, porque não encontrei nenhum aniversariante. Uma pena? Não necessariamente! Mas, voltemos à história – da minha breve memória. Estava numa festa – e que bela festa! Era um castelo em forma de casa. O tamanho da sala correspondia ao de um estádio de futebol, os lustres pareciam planetas radiantes, bolas de fogo que esquentavam o ambiente e os meus olhos, tamanho era o calor emanado de seus corações. O mais engraçado é que eu não queria estar no meio da agitação. Logo quando cheguei, deparei-me com uma vontade avassaladora de seguir, como um vento cortante, no meio de todos, ao ter sido acertado em cheio por imensos quadros, encontrados no interior do vasto corredor que me inundava com a sua profundidade. Eis que fui. E, de repente, todos aqueles colares de pérolas, todos aqueles vestidos verdejantes, todos aqueles cachos, todos aqueles bigodes e todos aqueles charutos nada mais eram do que cores. As vozes nada mais eram do que um silêncio, e as belezas das faces mais afrutadas se tornaram enfeites de segundo plano. Onde é que parei? Ah, voltei! Enfim, fui sendo sugado. Cada quadro derramava sobre mim uma cachoeira transbordante, e assim fui descendo para o interior do "castelo". Sim, aquilo que, a princípio, assemelhava-se a um castelo em termos de tamanho, no que diz respeito à modernidade, em seus interiores, assemelhava-se mais a uma mansão clássica. Era, na realidade ou em meu sonho, um castelo: ou talvez tenha se transformado – e foi o que agora eu posso afirmar com certeza o que aconteceu depois. Mas antes aconteceram outras coisas, e como não consigo guardar segredo, já resolvi contar um pouco do que aconteceu agora. Então, a questão é que, depois de ter descido todos aqueles degraus de pedra, sentei-me numa cadeira dourada, e veio uma pessoa ao meu encontro. Era uma dama generosa. Queria saber o que eu estava fazendo ali. Tive uma impressão estranha. Parecia que já a conhecia de algum lugar, e não estou dizendo isso por acontecer em muitas historinhas. Quem já não sentiu isso, que atire a primeira pedra... O fato é: eu sentia que ela queria me ajudar por algum motivo, e talvez eu esteja confundindo sensações e sentimentos. Estava então eu, ela e os monstruosos – porque eram gigantes – e magnificamente belos quadros. O que ela me disse mesmo? Uhmm... Lembrei! Primeiro me perguntou o que estava fazendo ali. Disse que era por causa dos quadros, e que estava me sentido muito bem. Foi então que todo aquele cenário clássico definitivamente transformou-se num cenário medieval. Os quadros transformaram-se em pedras, os lustres sumiram. Antes eu estava no térreo e, do nada, fui parar no segundo andar do castelo, não sei se foi por causa do medo que me arrebatou ao escutar um cavaleiro, ou algo do gênero, dirigir a palavra a mim.

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E, quando olhei pra ele, percebi que era realmente comigo. Ele não falava minha língua, mas eu entendi a sua mensagem, não faço a mínima ideia como. Aliás, segundo diz uma teoria, existe uma linguagem da alma – ou então, pode ser mesmo a reação ao seu berro e a sua expressão que dizia: “É ele, o traidor, vamos pegá-lo!”. Foi assim que aquela sensação de que a moça queria me ajudar se profetizou. Se ela não me tirasse dali, certamente eu iria virar um frango assado ou picado. Só sei que ela me levou rapidamente para um esconderijo, e se foi. Todos lá fora gritavam, me procuravam feito tubarões, com fome por devorar-me. Depois de algumas horas, eles desistiram e sumiram, acredito. O cansaço da madrugada chegou, e acabei pegando no sono. Quando acordei, vi que havia duas pequenas janelas na parede. Levantei-me e fui diretamente ver o que eu iria ver. Então... O que é que vi? Prédios... Prédios dos tempos de hoje. O que posso concluir? Que, ou todo o tempo medieval havia ido embora, ou que estava entre a modernidade ou pósmodernidade ou, ou, ou, alguma coisa atual... E a época medieval. O que achei mais estranho é que havia pessoas protestando em suas sacadas. Estavam com faixas brancas. Parece que o protesto era porque todos os porteiros do mundo haviam entrado em greve. Era isso mesmo! Estava com vergonha de falar, devido à tamanha absurdidade, mas é a mais pura verdade! Deu a entender que o mundo inteiro protestava contra isso. Dormi de novo. Quando acordei, havia passado mais um dia, e já era tarde. Fui à janela de novo: e o que vi, o que vi? Uma sala de aula, à distância de um metro mais ou menos... Havia lá um professor que tinha me dado aulas tempos atrás e, por conta do meu grande interesse por suas aulas, fiquei – alegremente - tentando pescar suas palavras, bailando de tal forma, com uma profunda intensidade poética, dificultando a captura das esculturas. Nunca havia ouvido nada parecido, era como se fosse uma nova linguagem. Mas deu pra sentir o quanto o assunto era surpreendente. Porém, minha alegria durou pouco... O professor me viu, e olhou com uma cara do tipo: “não era para você estar escutando isso, você está invadindo um terreno proibido, e não lhe diz respeito!” E então ele fechou a janela... E dessa viagem despertei, não de um sonho sonhando lá, mas do sonho sonhado sonhando daqui.

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Bharros de Oliveira (São Paulo, 1988). Poeta. 1


Mariana Oushiro

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LITERATURA BRASILEIRA

CONTOS

Rotas da lusofonia

FRÁGIL CORPO DE POMBA Rândyna da Cunha por

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Amanhã ensolarada era um grande convite a um feliz passeio. Os raios de sol, esparramados pelo céu azul e limpo, proporcionavam um calor carinhoso. Os ruídos matinais não incomodavam tanto como nos dias anteriores. Todos os aromas juntos tinham um cheiro macio de pão quente e café fresco. O dia parecia uma nova proposta, aliás, uma promessa de que tudo seria diferente. A diferença tocava suave a superfície que envolvia todas as coisas, rasgando de leve a capa surrada e opaca. O tempo escorria por dias iguais, dias que esperavam ardentemente a diferença, ainda que não-muda, mas tremendamente silenciosa. O grito estridente das buzinas misturava-se ao ritmo, aparentemente ensaiado, dos passos dos pedestres. Esses sons aconteciam de modo a simular uma canção urbana meio seca, um pouco dura e quase harmônica. O sol estava firme, seus raios eram braços delicadamente estendidos, prontos a abraçar o asfalto duro. Ela respirava com calma, sorvendo o ar em pequenos goles, sentindo o gosto amargo que saía dos carburadores quentes. Os olhinhos brilhantes piscavam atentos a tudo, imersos no nada. Captavam as pernas, indo e vindo, em uma onda chata e enjoativa. Via a distância escondida ao longe, pelo azul do horizonte. Talvez seu horizonte fosse mais baixo. A língua estava levemente umedecida, tremendo suavemente, fazendo cócegas no céu da boca. Céu fundo, céu mole. Era uma existência tão simples. Em dias como aquele, olhar para o chão era uma heresia. Bonito mesmo era o céu. Ela estava parada, face voltada para cima, olhos imóveis. Respiração tão despreocupada que apenas se ocupava com o olhar. Fazia dias que ela não se sentia daquele modo. Normalmente sua rotina era agitada, repleta de planos cumpridos pela metade, interrompidos, trocados por outros. Interromper seus planos não era proposital, mas era rotineiro. As circunstâncias da sua existência faziam com que ela substituísse a todos, um a um. Acontecia o mesmo com seus sonhos. Ficavam velhos e precisavam ser renovados. Talvez ela não fosse paciente. A espera parecia a longa ânsia pelo nunca. Esperar que os sonhos se concretizassem não estava em seus planos, ela só queria desejá-los tanto, até que ficassem velhos e precisassem ser substituídos. Era assim que se sentia viva: desejando. Ela era feliz, estranhamente feliz, em uma vida tão anônima e com momentos tão difíceis. Quando pensava na solidão, ela sabia que seria feliz, por isso não se desesperava e nem se agitava com a possibilidade de continuar assim. Era uma solidão acompanhada, afinal estava sempre em multidão. Em um dia tão simples, comum e agradável, mais uma vez a mudança inevitável chegou. Estava parada, no meio do asfalto e não pôde se livrar dos pneus pesados e brutos, que esmagaram seus ossos. De repente, todos os planos, sonhos e alegria daquela manhã estavam estendidos em um frágil corpo de pomba agonizando no asfalto. O bico se abria e 14

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fechava, ensaiando um grito impossível de se realizar, pois ela já não tinha forças. Era agora uma massa de carne, sangue e ossos quebrados debatendo-se no asfalto. As outras apenas bateram asas e saíram do chão. Por algum motivo torpe, ela continuou, e agora sentia o nada se aproximar. Através de seus frágeis olhos percebia o carro seguindo incólume. O asfalto era quente. Tudo ao redor era indiferente ao adeus que ela construía ao seu redor. Suas últimas visões, suas últimas sensações, tudo resumido a um diminuto momento. As asas brancas com manchas amarronzadas jamais alçariam voo novamente, sequer se moviam. Não havia mais domínio algum sobre elas. Os longos passeios, de telhado em telhado, sob o calor carinhoso dos raios solares, acabaram, e ela era ainda tão jovem, tão feliz, tão pronta para a vida.

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Rândyna da Cunha (Brasília, 1983). Graduada em Letras e Direito pela Universidade Católica de Brasília. Colunista na página “A Soma de Todos os Afetos”. Tem contos publicados em revistas literárias brasileiras, como Philos, Avessa e Subversa. Foi selecionada no IX Concurso Literário de Presidente Prudente. Participou da antologia Folclore Nacional: Contos Regionalistas da Editora Illuminare e das coletâneas literárias Vendetta e Tratado Oculto do Horror, da Andross Editora. 1


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LITERATURA BRASILEIRA

CONTOS

Rotas da lusofonia

O GÊNESE DA Ester Chaves ANFITRIÃ por

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Aquele era o dia perfeito para ela reagir, já que tantas vezes não havia tido tino para outros assuntos que não fossem relacionados à casa. Agora estava diante de uma oportunidade, ia receber visita. Logo ela que sofria tanto porque era sozinha, não sabia o que fazer de si e da sua solidão, imaginava-se ganhando uma amiga. Talvez futura cúmplice. Como se é quando se tem amigos? Nunca o soube. O que a gente faz após o chá? Jogam-se cartas, assiste-se a um filme ou joga-se um inocente dominó? A resposta era um fiapo de tecido preto na roupa preta. O exercício de lavar pratarias e deixá-las como espelhos d’água dava ao metal outra luz que não a iluminava nessa hora, era um brilho que não respondia a nada, apenas a confundia como a opacidade da pergunta. Ela era fanática anfitriã, dessas que fazem o próprio sabão e trazem os panos da cozinha asseados como roupa de baixo. A casa imitava direitinho o jeito dela e a expurgação dos antigos palácios. Era organizada como uma sinfônica. Os móveis negros e obedientes ficavam tão serenos enfileirados na sala que mais pareciam tocar o chão polido com perícia, na ponta dos pés. O único quarto trazia uma tela abstrata enorme, que ela mesma pintara num de seus rompantes de artista. A cama arrumada esperava pela hora da rendição de seu corpo miúdo. Os objetos da cabeceira ignoravam a soberba dos frascos de perfumes que se mantinham apáticos em cima da cômoda. A cozinha denunciava sem culpa sua solidão. Tão reduzida, escondia-se entre dois cômodos. Como um abismo entre duas montanhas. Talvez a visitasse mesmo só na hora da grande fome. Estendia-se um corredor cheio de fotografias ao longo de suas paredes e, no final, encontrava-se uma espécie de altar, onde se via o Cristo mutilado e outros santos cujos milagres se podia duvidar, pois eram de médio porte, ficando quase todos sumidos diante da grandeza da cruz do Salvador. Tão logo a visita entrou, a anfitriã perdeu a voz. O fato de a visita ter comparecido a chocara, estava sendo engolida pela ansiedade de não saber o que vinha primeiro. O beijo de boas-vindas, o chá ou o jogo. Passeou pelas três possibilidades desordenadas, embaraçando-se um pouco. O beijo agora ou depois não faz muita diferença, pensou, também não posso beijá-la a todo instante. Se a convido para tomar um chá agora, ela pode recusar dizendo que acabou de tomar um no caminho. O jogo também não, pode soar como imposição. Não quero fazer papel de chata. Sentaramse, entreolhando-se um pouco, como se no calor da expectativa uma delas fosse arranjar coragem para se adiantar numa palavra ou num gesto. A anfitriã enguiçara, seus olhos perderam o foco, procuravam vestígios, ela estava colhendo cada resíduo da sombra da outra para poder enfim se restabelecer e voltar de novo a ser uma pessoa. Em vão, cada tentativa era um passo na enchente, que começou a transbordar, alagando o sorriso da convidada. A água invadindo o palácio, ela inundada até o meio das pernas, e a outra esperando. A enxurrada trazia à tona a sujeira que ela não conseguia sugar com seu olhoaspirador. Estava se afogando no próprio vício de querer ser limpa. Era inverno, e a mulher 17

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em meio ao dilúvio, tentando separar o que podia salvar. O destino todo ultrapassando o limite, derramando água suja no futuro da outra. O futuro era o baque, as mãos tateando a resposta, o rosto comprimido à espera do tapa, a porta aberta e, a essa altura, a água não era mais sinal de pureza. Pouco a pouco, se foi estabelecendo a ordem, a tarde voltava com esforço a seu início, a rua descoberta retomava seu ritmo, o vento dava uma trégua. Na casa, somente o silêncio… Era o gênese… A outra chance da anfitriã. A convidada, refugiada na sala, parecia rir-se toda ao folhear uma revista, enquanto a dona da casa, entre a montanha e o abismo, riscava o fósforo, certa de que serviria o café.

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Ester Chaves (Brasília, 1979). Escritora brasiliense. Graduada em Letras pela Universidade Católica de Brasília e Pósgraduada em Literatura Brasileira pela mesma instituição. Atuante na vida cultural da cidade, participou de vários eventos poéticomusicais. Já teve textos publicados em jornais e revistas. Em junho deste ano, teve o conto “Os Voos de Josué” selecionado na 1ª edição do Prêmio VIP de Literatura, da A.R Publisher Editora. 1


Mariana Oushiro

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LITERATURA BRASILEIRA

CONTOS

Rotas da lusofonia

PEQUENOS PONTOS Francisco Carvalho ACESOS por

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Sentei-me no muro do mirante do Jacintinho e fiquei vendo os prédios da cidade baixa enquanto fumava um hollywood. Ao meu redor, casais transavam, maconheiros fumavam, bêbados bebiam. De não longe dali, era possível ouvir o batuque do terreiro da Mãe Selma servindo de fundo musical naquela noite de sexta-feira treze. Olhei o celular, passava das três da madrugada, não tinha ligação perdida ou mensagem recebida. Mesmo cercado por casais de namorados, drogados e bêbados, eu me sentia sozinho. Pensei em pedir um táxi e voltar pra casa, mas, após contar os trocados que havia no bolso, me desfiz da ideia e resolvi esperar o primeiro ônibus do dia. O céu estava limpo, sem nuvens, lua e estrelas. Por ser tão tarde, quero acreditar que todas dormiam. As horas passavam sem pressa e eu fumava um cigarro após o outro. Em certo momento, enquanto acendia mais um cigarro, lembrei claramente da sua voz me dizendo que eu morreria cinza se não parasse. Não era uma cor ruim para um morto. O mirante não esvaziava, os casais se multiplicavam, os maconheiros se acumulavam em círculos, os bêbados saíam e, em seguida, voltavam com mais bebidas. O Jacintinho era naquela noite o que o Jaraguá, com seus prédios históricos e boêmios cults, tentava ser. Eu estava frustrado, aquele era o meu tipo de cenário. Eu amava aquele caos organizado, amava aquela gente que transava encostada nos muros, amava os maconheiros que sorriam de tudo, amava os bêbados que ouviam o batuque pra Iemanjá e cantavam Amado Batista, eu amava a vista dos prédios com pequenos pontos acesos, amava aquela vida, mas, naquela noite, naquela fatídica noite, eu amava bem mais a ideia de me atirar mirante abaixo. Quase cinco horas da manhã, e a carteira de hollywood estava vazia. Catei nos bolsos algum cigarro ou ponta de cigarro e não encontrei nada. Agora estava olhando o chão, procurando, entre os pés e calcinhas abaixadas, um cigarro que me distraísse os pensamentos. Nada! Parei, respirei fundo, me recompus, e concluí que deveria parar de fumar, deveria cuidar mais da saúde, deveria preservar uma cor alegre para quando morresse. Enquanto pensava isso, uma mão se estendeu na minha frente, segurando um charuto. Pai Antônio, vestindo branco e cheirando à cachaça, me salvava dos pensamentos mais caretas que tive nos últimos anos. Agora, fumando um charuto do santo, estava finalmente em paz com meus pensamentos. O ônibus apareceu exatamente quando o charuto acabara. Subi os degraus do ônibus me despedindo do Pai, do mirante, dos casais cansados, dos maconheiros felizes, dos bêbados tristes, de uma parte minha e sua, de uma parte nossa que, em outros tempos, transava nos muros olhando os pequenos pontos acesos na cidade baixa.

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Philos Revista de Literatura da União Latina | Revista de Literatura de la Unión Latina.

Francisco Carvalho (Maceió, 1988). Escritor, contista e poeta; é professor de História nas horas vagas. 1


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