Revista laboratório • Curso de Comunicação Social • Jornalismo / Publicidade e Propaganda Ano 1 • Número 1 • Agosto de 2009 • Belo Horizonte • Distribuição gratuita
orgia de salários Indiferente à miséria de seus municípios, prefeitos mineiros ganham salários superiores aos do presidente Lula e do governador Aécio Neves. (Págs.: 8 e 9)
Fonte: Jornal Estado de Minas
Vade retro!
Precatórios
Banalização?
Novo código de ética é o fim dos erros médicos? Cuidado: a esperança nem sempre é a última que morre. (Págs. 22 e 23)
Inadimplência e indiferença do Estado deixam mineiros a pão e água. A OAB-MG que o diga. (Págs. 18 e 19)
Shows sertanejos, sorteios de brindes e assistencialismo marcam comemorações no Dia do Trabalho. (Págs: 20 e 21)
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Índice Destaques P&V 03 04/05 Carnaval da superficialidade 06/07 Transgressão 08/09 Salários de marajá 10/11 Monografia 12/13 Aniversário de O Ponto 14/15 Boal sai de cena 16/17 Bolívia em foco 18/19 O caos dos precatórios 20/21 1º de Maio: novo perfil 22/23 Erros médicos. Até quando? 24/25 Violência feminina 26/27 O perigo da obamania 28/29 Política mineira 30/31 Literatura, cinema, educação
Expediente Universidade Fumec/FCH Presidente do Conselho Curador Prof. Air Rabello Filho Reitor da Fumec Prof. Antônio Tomé Loures Diretora Geral Prof. Thaís Estevanato Diretor de Ensino Prof. João Batista de M. Filho Diretor Administrativo-financeiro Prof. Antônio Marcos Nohmi Coordenador do curso de Comunicação Social Prof. Sérgio Arregui
Ponto & Vírgula Editor Geral Prof. Rogério Bastos Produção Gráfica João Paulo Borges (7ºG de Jornalismo) Apoio Técnico Marconi Edson Monitores Pedro Leone, Amanda Lélis e Cláudia Lapouble (6º G de Jornalismo); Tarsila Costa, Juliana Pizarro, Bárbara Rodrigues, Bárbara Camargo e Felipe Chimicatti (7º G de Jornalismo) (31) 3228-3127 / redacao.monitoriafumec@gmail.com
Editorial
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onto & Vírgula Vírgula, que há anos adormecia com os olhos vigilantes à espera de uma oportunidade, é, na feliz interpretação de Bárbara Camargo (7° G de jornalismo), monitora do laboratório de Redação-modelo, a filha pródiga do jornal O Ponto. Até que possa caminhar com seus próprios pés, sua periodicidade será semestral. Neste mês, nasce sua primeira edição, com o orgulho de ser pensada pela Redação-modelo, de ter a chancela institucional da Fumec/FCH, de ser produzida pelo e para os alunos dos cursos de jornalismo e de publicidade/ propaganda, além de ser ancorada nos princípios acadêmicos de gerar aprendizagem e de reforçar o laços da interdisciplinaridade, a exemplo do que já faz, há dez anos, seu pai-coruja, hoje, reconhecido muito além dos muros da FCH. Ponto & Vírgula é uma revista opinativa, sem ser sisuda, criativa, sem arroubos, leve, sem ser inconsistente, bela, mas não fútil, apaixonante, sem perder a razão, que faz pensar, sem ser presunçosa, especializada em entrevistas no estilo pingue-pongue (perguntas e respostas) sobre os mais diversos assuntos, com profissionais e especialistas de peso. E para que as entrevistas, mesmo com a sua importância indiscutível, não sobrecarreguem o leitor, a solução encontrada foi mesclar sua edição com seções que possam unir o útil ao agradável: nos rodapés das páginas impares, o destaque fica por conta da Abre Aspas, com frases ou citações que mereçam ser republicadas. Nas páginas quatro e 30, a seção Reprise de Artigo brinda o leitor que procura por assuntos de grande densidade. A seção Fumec / Janela Acadêmica, Acadêmica dedicada, exclusivamente, às notícias da instituição, com ênfase para a FCH, será publicada na página 13. Na página 25, Farpas & Confetes reproduz, de maneira geral, as críticas e os elogios produzidos no cenário nacional, envolvendo figuras de projeção que mereçam destaque, evidentemente, sem cair na banalização. E para fechar com chave de ouro, Frente & Verso aparece na página 29, onde especialistas, com pontos de vista antagônicos, sobre um mesmo assunto, defenderão suas posições. À exceção da Entre Aspas Aspas, as seções serão diagramadas na vertical, ilustradas, na medida do possível, e publicadas sempre nas mesmas páginas, para facilitar o hábito do leitor. Esta é a Ponto & Vírgula Vírgula: um ideal acadêmico colocado em prática, resultado de um trabalho coletivo, intenso e despojado. Encorpada em suas 31 páginas, sua primeira edição vem com 500 exemplares. Vale lembrar, que as entrevistas e artigos aqui publicados não expressam, necessariamente, a opinião da revista. Que seja bem vinda!
D E S TA Q U E S PONTO & VÍRGULA
REPERCUSSÃO
Importância da Ponto & Vírgula
“É mais um projeto pedagógico que a FCH lança com o objetivo de atender aos alunos no seu processo de aprendizagem. E isso basta para justificar a produção desta revista”. Profª. Thais Estevenato, diretora-Geral da FCH.
“Pela sua proposta e importância acadêmica, seu sucesso estará garantido, o que será bom para todos nós”. Prof. João Batista de Mendonça e Filho, diretor de Ensino.
“Ponto Ponto & Vírgula veio para somar ao O Ponto, Ponto, e brindar alunos e professores da Comunicação. É mais do que bem vinda”. Prof. Antônio Marcos Nohmi, diretor Administrativofinanceiro.
“A exemplo de outros produtos acadêmicos do curso, esta revista será um excelente espaço de aprendizagem, do qual não poderíamos prescindir”. Prof. Sérgio Arreguy, coordenador do Curso de Comunicação Social.
A criação e edição da revista Ponto & Vírgula foram desafios que valeram a pena, graças ao talento e disposição da equipe dos estudantes de jornalismo. Acima, em pé, da esq. para a dir., Pedro Leone, Cláudia Lapouble, Marconi Edson (técnico), Amanda Lélis e Tarsila Costa; sentados, Juliana Pizarro, Bárbara Rodrigues, Bárbara Camargo e Felipe Chimicatti.
Senado: a necrose congênita
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osé Sarney e Renan Calheiros, pelo insaciável PMDB, que cresce como uma erva daninha no comando dos principais cargos do governo brasileiro e dos R$370 bilhões de reais de verbas públicas, e Fernando Collor, cujo prontuário político todos conhecemos, pelo combalido PTB, formam hoje- porque amanhã, não se enganem, serão outros-, o triunvirato nefasto à frente do chafurdado Senado brasileiro, sob a conivência bipolar e estratégica do presidente Lula. Pior do que isto: neste outono-primavera, que brinda a contemplação estética, os três, pelo o que significam de repugnância política, queiramos ou não, são notícia. O rei Sarney e seus dois notáveis vassalos nunca se mereceram tanto em tão pouco tempo. As infidelidades, acusações e perseguições trocadas entre si num passado recente, hoje, não passam de futricas, embora com um agravante para todos nós: os motivos que os tornaram inimigos mortais, ontem, são os
mesmos que agora os unem em nome do poder. Aos leitores de Ponto & Vírgula, cabe, neste momento, um pedido: não desanimem, porque dos 500 anos de cultura política brasileira patrimonialista e fisiológica, não se pode esperar nada além do que um parlamento desfigurado moralmente. Seus atores, portanto, são elos quixotescos de um sistema necrosado.
Foto: Geraldo Magela (Collor), Blog do Farid (Renan) e André Dusek (Sarney).
“O sujeito da pós-modernidade é performático, vive só o momento, está voltado para o gozo a curto prazo e a qualquer preço, é o sujeito perverso”, do jornalista Joel Birman. A B R E A S PA S
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REPRISE DE ARTIGO
O carnaval da superficialidade Novas publicações reforçam o mundo da fantasia e do besteirol disfarçado com a técnica *ROBERTO MENDONÇA
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utrica, superficialidade, o mundo idealizado de delícias que telenovelas temperam com o maniqueísmo para retardar o final feliz. Isso vende bem. Quem está rico, é o Zé sertanejo que fez da viola uma guitarrinha medíocre. O recordista em livros pode ser “mago”, impostor que os incautos veneram em vários idiomas A nova face vem impressa na safra de revistas tipo “Caras”, “Interview” etc. Experimente ler rapidamente manchetes, fotolegendas e destaques de textos destas publicações ditas de “variedades”, e saberá da amante ao ministro fulano, do tamanho do pênis do ator beltrano, como será a “primeira vez” da atriz ciclana; verá a marca de carro importado preferida pelo seu superstar, o dinheiro que pagam a um bem sucedido garanhão das altas rodas ou como arrebatar a “lebre” mais cobiçada com vinho, música e cama ideais. Depois no carnaval, que as câmeras noturnas priorizam como festival de bundas, teremos em fitas e páginas o festival de vedetes nuas, bebedeiras e vulgaridade sendo vendidas como ápice de alegria e prazer. A mediocridade não para, aproximase das “respeitáveis” revistas e jornais que caíram de nível. Nestas edições, são mais perceptíveis a defesa dos interesses de minorias abastadas, a realidade cruel omitida em cada tramóia justificada, em cada crítica omitida, 4
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em cada cent que entra no caixa. Trabalho duro, altar da filosofia, do capital, pouco se recomenda foi-se o tempo de repórteres do “O Cruzeiro” e “Manchete” caindo na selva em busca de histórias sensacionais, de artigos e opiniões das maiores expressões da intelectualidade, defendendo, contra tudo e todos, ideias políticas e sociais profundas e envolventes. Mal curtimos o gosto desta imprensa que, quando alçava maiores voos técnicos, deu de nariz na ditadura militar e na obrigatoriedade do diploma para o exercício da profissão.
O Dia Vemos exemplos do declive: hábeis articulistas, vindos de revistas de informação e jornais de destaque, mergulham no mundo falso e distante das colunáveis e das globais que se reúnem numa ilha especialmente reservada às beldades que ofereçam dotes físicos e ideias rasteiras e estereotipadas sobre signos de amor, liberdade e bem estar. Isso vende, há quem compre, cada vez mais. É a imprensa que merecem. Poucos das classes médias e altas – as que consomem – querem saber de mazelas, e agruras, tônicas deste fim de mundo, exceto quando dá um pulinho na banca e compra “O Dia” para saborear o sangue. Entre os jornalistas mais questionáveis de agora costumam estar pósgraduados, robôs aos quais ensinam
a vender, vender e vender jornais com disfarces de intelectualidade e vanguarda, mesmo com português medíocre e crendo que a pós-graduação os distingue, quando tantas vezes prolonga o império de incompetências das faculdades de comunicação. As vedetes dum mercado editorial de contornos perceptíveis inclinam o jornalismo à gente torneada para crescer na vida do modo mais fácil, mesmo que necessite, discretamente, de bajular o diabo e vender a alma a Deus. Vale usufruir ao máximo da fantasia, desfrutar a intimidade de líderes e estrelas, experimentar champanhas, deleitar-se com belas mulheres, mandar problemas para os quintos. Você paga para entrar no mundo de sonho especialmente, diagramado para você, onde é proibido sofrer. Esta realidade pré-fabricada é tão atraente que nos impõe como experimento real dos tais prazeres: lendo-os, sem gastar nada, é possível estar numa ilha em Angra, ao lado das mulheres mais gostosas do país. Eis um problema do fim do tempo: tudo é produto e está à venda – a Demi Moore de “Proposta Indecente”. Nas filas dos cinemas, as pessoas concordavam com aquele milhão de dólares; nas redações dos jornais e revistas, críticos indignados desciam a lenha no filme, conquanto poucos recusariam esse milhão – sem distinção do meio.
Por muito menos, se vende o homem. O jornalismo de caras e similares não passa de impresso bonitinho, graficamente correto, em cores, ação entre meia dúzia de celebridades cuja importância não deveria ultrapassar os limites das colunas sociais. Vendem como água – porque se dá a César o que é de Cesar. Nossa sociedade é mais do que injusta: ela oficializa, legaliza e institucionaliza esta injustiça, a da realidade pré-fabricada, realizando a metamorfose das imagens – impõe miséria e pobreza, palpáveis, reais, indubitáveis, no rol de incrédulos, indolentes e incultos, justificando assim toda riqueza supérflua que há. Enquanto se vê na tevê a evolução científica, ousadia de técnicas e computadores, mais se morre de fome, menos se planta ou se colhe, menor é o conforto e mais árdua a tarefa de sobreviver dos cidadãos comuns. Os doutores: crêem na perfeição teórica – convencem-se mesmo da praticidade – das leis e sistemas inventados, aperfeiçoados e administrados. Os políticos enfrentam o caos com as pavimentações, sopões. Da política faz-se profissão rentável ao bolso e ao ego, porque foi-se o tempo do idealismo e do espírito comunitário, da palavra dada. Os cidadãos reclamam do governo, por seus impostos, pela indiferença, mas caem porque despreparados, como patos nas armadilhas do consumo e das urnas, na rede das ideologias hipócritas que a televisão divulga.
Cruel O mundo é a casa onde falta pão: todo mundo briga, ninguém tem razão. Sobra egoísmo, vaidade e arrogância na meia dúzia que se apresenta como técnica, profissional, especialista capaz de, apesar de sua superioridade, ser complacente com os desafortunados. Eis a façanha, cria-se a realidade que convém, contra a deficiência, o infortúnio, o diabo. Muita gente detesta o racista, desde que sua filha loura não se meta com o negrinho da escola; ironiza o papel do casamento mas defende
até à morte o papel do diploma e da reserva do mercado; ama os amigos, desde que não ganhem mais dinheiro do que ela; é profissional, sempre e nunca menos do que os outros; odeia o rico metido a besta, mas esforça-se para ser como ele. O mais cruel é o tratamento que dispensa aos pobres. Que um deles experimente reclamar da vida – e motivos não faltam – e receberá petardos do tipo “Pare de reclamar e vá trabalhar”, “batalhe que você chega lá”, “pobre tem que ralar..”. É como se dissessem: vendemos a realidade que interessa.
“O jornalismo de caras e similares não passa de impresso bonitinho, graficamente correto, em cores, ação entre meia dúzia de celebridades cuja importância não deveria ultrapassar os limites das colunas sociais. Vendem como água – porque se dá a César o que é de Cesar”. Nos consultórios, ministérios, universidades, criamos “intelectuais” em tubos de ensaio, gente que acha que sabe do mundo e que trabalha muito – mais do que deveria, para receber menos do que merece. O lixeiro trabalha muito e ganha pouco porque não estudou... Mas como têm importância os lixeiros! Agora vêm essas revistas, conseqüentes do caráter que produzimos. Haverá “mestres” de mentes iluminadas rechaçando o que consideram retrógrado e preconceituoso, aos que rebatemos com a vacina contra chavões – “cada um faz o que quer”, “se o corpo é bonito é para mostrar”, “se Playboy vende é
porque há quem compre”. Pensamentos superficiais ao menos são mais fáceis, atendem às necessidades do marketing e do boteco da esquina. A preocupação com o progresso humanístico nunca é a tônica – isso se deseja da boca para fora, mais se pensa no próprio umbigo. O mundo é negócio que não deu certo, é preciso investir nas cartas marcadas ou se fecha as portas à freguesia. A nova geração editorial pouco valoriza a profundidade dos temas, sua utilidade, por razão muito simples: destina-se a pessoas com estrutura para consumir, pretende mais divertir que informar, objetivando vender, vender e vender. É esse mundo de sonhos que os jornalistas do campus estão aprendendo. É o preço que se paga pela competição elitizante das universidades. Em Minas, curso noturno de jornalismo é raridade. O jornalista não é mais selecionado pelo vestibular, mas antes: com o programa na mão, quem trabalha para sobreviver é forçado a optar por cursos noturnos, pagos ou não. Não se trata de preparo, de intenção ou vocação, mas de possibilidade. Qual é a razão para que o curso de jornalismo seja somente pelas manhãs, na PUC e na UFMG? O resultado é que o jornalismo – um bem social, um instituto que deveria participar – vira casa dos ricos, ou falando de si próprio, ou bajulando-os, ou difundindo as aberrações, o noticiário policial dos miseráveis. Nesta década do apocalipse, colhemos novos frutos desta árvore plantada há mais de vinte anos. Os galhos da superficialidade, dum festival de banalidades, alcançam os céus. Um besteirol disfarçado com a qualidade gráfica e visual dos novos tempos. *Editor de Cultura do Jornal Hoje em Dia.
“Você me persegue no papel de vítima; e me impede de ser livre para que eu o salve”. Publicitário Roberto Menna Barreto, sobre a relação do consumidor com a propaganda. A B R E A S PA S
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E N T R E V I S TA ASTRÉIA SOARES
Transgressão e samba: melodia de um mesmo enredo Dos mortais comuns aos que habitam os salões do poder, o comportamento transgressivo vira traço cultural brasileiro, sob o beneplácito do “deixa a vida me levar”, em sua versão mais insidiosa. FELIPE CHIMICATTI 7º G DE JORNALISMO
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scorraçado do cargo de relator do Conselho de Ética da Câmara dos Deputados, o deputado federal Sérgio Moraes (PTB-RS), que disse “estar se lixando para a opinião pública”, mesmo tendo uma biografia comprometida por denúncias junto ao Supremo Tribunal Federal (STF), simboliza a transgressão em toda a sua grandiosidade. Essa postura, brilhantemente debatida por Sérgio Buarque de Holanda, na sua obra Raízes do Brasil, mostra que esse pernicioso modo de vida, materializado nas mais diversas formas, que encontra acalento e receptividade em nível nacional, não é prerrogativa do poder: ele está presente a cada esquina, a cada repartição pública ou empresa privada, independentemente do tamanho e da natureza do produto ou serviço que presta. Parte considerável dessa característica, segundo os estudiosos do assunto, está ligada à própria formação histórica portuguesa, alocada no verbo usurpar, verbo este que se constituiu no maior arroubo do Brasil – colônia. A seguir, com o brilhantismo de sempre, a professora de sociologia da Universidade Fumec, Astreia Soares, dá uma geral no assunto, razão pela qual esta entrevista da Ponto & Vírgula se torna imperdível. Estudos, teses e discussões promovidos à exaustão, na tentativa de pelo menos explicar o poder de contaminação da transgressão, já não surtem mais o efeito esperado, porque não encontram contrapartida. A senhora acha que há solução por um processo educativo ou pela coerção? Há trabalhos muito relevantes sobre o caráter nacional brasileiro que abordam o tema da transgressão, mas não temos produção “exaustiva” nesta área. A meu ver, estes trabalhos cumprem com os objetivos aos quais se propõe. O que deve “surtir efeito”, como vocês dizem, são as políticas públicas e, neste caso, é muito desejável que elas sejam, orientadas por estudos teóricos. Políticas educativas e punitivas podem ser adequadamente combinadas, mas é preciso cuidado para a coerção não ser endereçada aos transgressores pobres e a educação aos ricos. 6
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Há uma tendência generalizada, até mesmo como forma de defesa, de achar que a transgressão é prerrogativa dos políticos. Como a senhora explica este fato? Qual é o verdadeiro DNA da transgressão? Pode ser que haja esta tendência no debate público, mas não na academia, que não restringe seus estudos á análise do comportamento político no Brasil. O comportamento desviante é explicado tanto por uma conjuntura social e cultural, quanto por uma escolha individual. A combinação destas duas perspectivas nos explica o motivo da transgressão ser mais ou menos percebida em determinados grupos, como parece ser o caso dos atuais políticos brasileiros. A senhora vê alguma associação entre a transgressão com o aspecto geopolítico do brasileiro. Por exemplo: é possível afirmar que
este ou aquele Estado tem mais ou menos transgressores? È possível comparar sociedades com mais atitudes transgressoras do que as outras. Aquelas que conseguem manter com mais êxito sua desejada ordem social são, geralmente, as que mais apostam em direitos de cidadania, ou seja, aquelas em que o sujeito tem muito a perder se descumprir as regras sócias. Contudo, estas diferenças entres sociedades não são determinadas por aspectos geopolíticos. Há os que atribuem ao capitalismo a culpa pelo problema. E há os que culpam o Estado. Como a senhora decifra este imbróglio? Não vejo como separar Estado de seu modo de produção nesta questão. Mas podemos observar que a transgressão à ordem estabelecida é um fenômeno presente em qualquer tipo de sociedade, até mesmo nas chamadas
sociedades primitivas. Aliás, a transgressão política se resolve nas urnas? Ou este discurso não passa de uma razão instrumental, de uma retórica que busca penalizar os eleitores? A urna é um instrumento muito eficaz de controle da transgressão política, embora não seja único. Não vejo como punição contarmos com uma sociedade civil e com eleitores mais conscientes. Os cidadãos são tão responsáveis quanto o Estado e as esferas jurídicas, por exemplo pela constituição de uma sociedade melhor. Não há sociedade equilibrada sem responsabilidade social de seus membros.
“Nem sempre a transgressão política leva à corrupção. Devemos lembrar dos políticos “transgressores” contra o regime militar, por exemplo, que foram cassados em nome de uma ordem totalitária e não democrática”. Parte da mídia chegou a elogiar a fala do deputado federal Sérgio Moraes (PTB-RS) pela sinceridade de sua fala no plenário. Qual sua opinião sobre esse posicionamento da mídia? Acho que fiz uma leitura mais favorável à mídia. Quando um deputado que assume responsabilidades éticas em nome de seu país diz que esta se lixando pelo opinião pública, chamá-lo de sincero pode ser uma tremenda ironia. De uma forma retórica foi sinceridade mesmo. Obrigada senhor Sérgio Morais, por nos avisar o que pensa de nós. Que razão histórica a senhora encontra para explicar aos leitores de
Ponto & Vírgula, a transgressão ou o patrimonialismo? A transgressão não é um fenômeno específico do mundo da política. Não podemos nos esquecer de aspectos transformadores da sociedade que se iniciam com a transgressão, sobretudo no campo da cultura e das artes. Glauber Rocha foi um transgressor, Hélio Oiticica, Tom Zé, Itamar Assunção... Será que não estamos sendo bonzinhos demais ao chamar um Estado patrimonialista, que desrespeita as fronteiras entre o público e o privado de transgressor? Por que a transgressão se mostra tão recorrente na seara do poder? A propósito, é certo afirmar que o poder trabalha com a transgressão burocrática, daí sua maior crueldade? No sentido weberiano do termo, seria impossível criar esta expressão “transgressão burocrática”. Preferi trabalhar com um conceito ideal de burocracia que define fronteiras claras entre o sujeito e os funcionários burocráticos do Estado. Para entendermos a recorrência de desvio no meio político sugiro perguntamos a nós mesmos o que estes sujeitos que vocês estão chamando de transgressores têm a perder, ou seja, o custo da corrupção tem sido bastante alto para definir a escolha deste políticos pela ética em seus mandatos? O antropólogo Roberto Da Matta afirmou, em recente artigo publicado no jornal O Globo, que se torna intolerável para todos que pagam impostos conviver com políticos aristocratizados. Você concorda? Em tempo: você admite que a transgressão é a porta de entrada para a corrupção? Roberto Da Matta é um intelectual indispensável para se pensar o Brasil e um dos mais brilhantes em compor o quadro brasileiro em torno da tripé Carnavais, Malandros e Heróis. A reflexão dele completa o que disse na questão 5. Nem sempre a transgressão política leva á corrupção. Devemos
lembrar dos políticos “transgressores” contra o regime militar, por exemplo, que foram cassados em nome de uma ordem totalitária e não democrática. É pessimismo em demasia atribuir à história as causas da transgressão e se quedar diante delas? Os leitores da Ponto & Vírgula que me desculpem a resposta direta, mas acho uma bobagem este raciocínio de determinismo histórico. E é uma bobagem perigosa, imobilizadora. Se esquecermos o papel das revoluções sociais e políticas estaremos condenados ao “Bonde do Tigrão”: tá dominado, tá tudo dominado. Vale a pena ressaltar: à parte a teoria, como você enxerga a repressão como um instrumento para diminuir a transgressão? Entendo que vocês estão sugerindo que eu me posicione a este respeito, não é? Pessoalmente não vejo muitos benefícios a longo prazo em projetos baseados em repressão. Educação e controle são dois elementos que combinam muito bem para lidar com a transgressão, deixando espaço para as irreverências, a vanguarda e as revoluções. Nunca vi uma sociedade chegar a nenhum lugar desejável por meio da “ponta da baioneta”. No caso brasileiro, especificamente, estamos ainda aprendendo democracia, ética, distinção entre público e privado e a educação para a cidadania passou a ser vista como uma coisa careta. Tudo isso passa pela educação, sobretudo no âmbito da formação pessoal, do contrário será muito difícil. O que a antropologia pode fazer pelos transgressores e transgredidos no Brasil? A antropologia é uma ciência que trata deste assunto como um elemento da diversidade cultural dos povos. Ela pode iluminar a reflexão sobre o lugar da transgressão em diferentes sociedades e na sociedade brasileira em particular.
“Sem samba-enredo, Lula é um perigo”, de Élio Gaspari, em sua coluna de O Globo, de 15.02.09. A B R E A S PA S
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E N T R E V I S TA JOÃO BOSCO FONSECA
Prefeitos mineiros recebem salários de marajá Conluio com as Câmaras de Vereadores sustentam os abusos; miséria dos municípios não passa de um detalhe. JULIANA PIZARRO 7ºG DE JORNALISMO
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s altos salários que recebem muitos prefeitos do interior de Minas Gerais, segundo denúncias do jornal Estado de Minas, mostra que os desmandos éticos da administração pública se assemelham a uma metástase que, aos poucos, atinge o organismo social do poder, que nasce ou se reproduz nas prefeituras municipais e graça até os altos escalões, com o agravante sistêmico que o câncer não traz: o desencanto da população ou a sua inclinação em ceder aos apelos da imoralidade face aos exemplos que se multiplicam e se escancaram apoiados pela impunidade e pela legislação em causa própria. Prefeitos de cidades miseráveis, que não dispõem do mínimo necessário de serviços nas áreas de educação, saúde e saneamento básico, chegam a ganhar de salários mais do que o presidente Lula (R$11,4 mil) e do governador Aécio Neves (10,5mil). Neste mar de lama, executivo e legislativo formam um pacto pernicioso, com certeza, proporcional à pequinês ética de seus principais atores. Melancólicos atores! Para falar sobre estes desmandos, com aparência provinciana, Ponto & Vírgula ouviu o advogado especializado em Administração Pública, e ex-professor emérito do curso de direito da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), por 41 anos, juiz do Trabalho e Federal, João Bosco Leopoldino Fonseca. Sua entrevista é uma verdadeira aula com a qual brindamos o leitor.
O primeiro semestre deste ano se transformou em um inferno astral político, alimentado por divulgações da mídia sobre corrupção e abuso político na Câmara dos Deputados e Senado. Como se não bastassem, surgem os megassalários dos prefeitos do interior de Minas, denunciados pela ONG Transparência Brasil e jornal Estado de Minas. A que o senhor atribui tamanho caos? O caos sempre existiu, bastando para isso ler o capítulo primeiro do livro do Gênesis. Deus, ao criar o mundo, colocou a ordem no caos. Acontece que criou também o homem e lhe deu liberdade. O homem pode agir segundo seu livre arbítrio. Mas essa liberdade de cada um pressupõe a liberdade de todos, no âmbito de uma coletividade. E 8
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esta cria deveres de respeito mútuo, de educação, de moral, de ética. Se cada cidadão, se cada político fosse cumpridor de um mínimo ético, não haveria corrupção nem abuso político. O mais grave nesta discrepância absurda é que ela, embora tenha origem municipal, reflete outros absurdos em nível nacional, como se fosse uma espiral crescente de corrupção. A partir daí, não fica impossível qualquer tentativa de reversão? É sempre possível melhorar. A espiral crescente de corrupção tem hoje como barreira a transparência. Os órgãos de comunicação têm nisso um papel importante. Eles devem mostrar para os jovens que é possível construir um mundo melhor, em que cada pes-
soa, cada cidadão cumpra fielmente seus deveres. Não se trata de “reversão”, porque o mundo não caminha para trás. Deve-se pensar em edificar um futuro em que se aprimore um pensamento holístico. A possibilidade de legislar em causa própria, geralmente em conluio com as Câmaras dos Vereadores, esconde uma profunda perversidadesobretudo porque se trata da coisa pública- que é a imposição da moral constituinte (pessoal) sobre a moral constituída (conjunto de regras). Como o senhor avalia esta equação no caso em questão? O legislador procura sempre ser o reflexo da vontade geral. E esta tem em mira uma sociedade de bem estar
para cada um e para todos. Como legisladores, senadores, deputados e vereadores, ver-se-ão sempre na contingência de legislar sobre sua atividade, seus direitos, seus deveres, sua remuneração. Mas devem fazê-lo sempre pensando no que a sociedade deles espera, em termos de trabalho, e no que essa mesma sociedade lhes pode pagar como remuneração. Em outras palavras: estas contradições, que se fortalecem e se enraízam especialmente entre os políticos, não são outra coisa senão o culto à defesa de interesses pessoais? Os detentores de funções políticas devem ter presente o interesse público, não seu interesse pessoal. São eleitos para trabalhar em proveito da coletividade. Os escândalos a que assistimos não devem ser generalizados. Não podemos atingir as instituições nem a totalidade dos que exercem de cargos públicos. Há políticos honestos, sérios, capazes, trabalhadores. Seria melhor que a mídia procurasse também divulgar o trabalho que estes desenvolvem. Isso seria muito proveitoso. Houve uma época em que a política era praticada, segundo relatos históricos, como arte e ciência do poder, destinada a beneficiar aos povos em suas demandas. Ao migrar-se para a economia, transformou-se num apêndice deste setor. Isso explica uma cidade de Grupiara (Alto Paranaíba), dentre tantas outras, com apenas 1,4 mil habitante (jornal Estado de Minas, 17.05.09, ED. Política) desassistidas de tudo, pagar um salário mensal de R$ 9 mil aos prefeitos? Como explicar tamanha desfaçatez? O papel que desempenha a economia no contexto das relações sociais é de fundamental importância, e com resultados muito positivos. A arte e a ciência do poder exigem daquele que ocupa funções públicas o conhecimento de diversas áreas. O caso citado, da cidade de Grupiara, é uma excrescência, é a manifestação de total
perversão política. Os que votaram e aprovaram aquele salário revelam um total desconhecimento de um mínimo da Ciência Econômica, qual seja a proporcionalidade entre receita e despesa. Mas este não é um problema da Economia, e sim de ignorância primária de seus princípios.
“Essa população não deve contentar-se em ficar ‘escandalizada e fragilizada”. Há diversos casos de prefeitos que ganham salários maiores que o do governador Aécio Neves (R$ 10,5 mil) e do presidente Lula (R$ 11,4 mil). Pasme: cada morador de Grupiara (a grande maioria deles vive com R$ 465 por mês) gasta R$ 82,81 com o salário do prefeito, o que significa 800 vezes mais do que os belohorizontinos pagam para manter o salário de Márcio Lacerda (R$19 mil). Quem se responsabiliza por este absurdo? Onde está a brecha moral que alimenta esses desmandos? A resposta a esta pergunta está implícita no que respondi no item anterior. Certamente, a falha está na percepção que têm muitas pessoas de que os cargos públicos se destinam ao enriquecimento dos que os desempenham, perdendo-se de vista sua finalidade primordial que é a de prestar serviços eficientes à coletividade. Num certo sentido, o jornalista e deputado estadual de São Paulo, João Melão Neto, atribui à “tentação do populismo brasileiro” que “em nome do povo, julga-se fiel intérprete de suas vontades” (jornal Estado de São Paulo, de 08.05.09, seção Espaço Aberto, pág. A2). O senhor concorda? A tentação de populismo não é uma peculiaridade dos governantes brasileiros. Vemo-la no mundo inteiro, sob as mais variadas formas. É preciso
analisar se esse populismo visa trazer benefícios reais ao povo, ou se tem finalidades eleitoreiras. Nem sempre as “vantagens” que o governante populista concede ao povo são aquelas de que o povo realmente precisa. O voto seria uma arma contra esses e outros absurdos políticos? Ou seria mais um discurso? O voto não é uma arma, é um instrumento de mudança. Deve ser visto e utilizado como uma forma de criar mudança. Para isso é preciso que ele seja esclarecido. É preciso que o eleitor conheça muito bem as qualidades das pessoas que precisam ser eleitas. Daí a importância do acompanhamento da atividade dos políticos. Daí a importância da mídia. Ela deve, além de apontar os corruptos, projetar luz sobre os competentes, os honestos, os trabalhadores, os cumpridores de seus deveres, os que se preocupam com o bem estar da coletividade. Escandalizada e fragilizada, a população destes municípios, onde professores em início de carreira ganham uma miséria entre R$ 465 ou R$ 517,45 de salário, questiona-se se a solução não estaria nas mãos dos deputados estaduais. O senhor concorda? A solução está nas mãos dos eleitores. Essa população não deve contentar-se em ficar “escandalizada e fragilizada”. Ela tem potencial para construir uma nova realidade nas próximas eleições. Como o Direito Administrativo interpreta todo este caos? O Direito Administrativo, de uma forma positiva, estuda as formas pelas quais a Administração se pauta. Estabelece as normas que regem o exercício da atividade pública. Se os princípios e as normas são observados sempre ter-se-á uma organização que impedirá a formação de um caos, ou, mais positivamente, contribuirá, de forma normativa, para que haja observância dos princípios éticos capazes de imprimir ordem.
“A politicagem está para a política como a exploração está para o sexo ou a escravidão para o trabalho”, do escritor mineiro, Israel do Vale. A B R E A S PA S
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Quando jornalismo e humor se encontram Custe o Que Custar Irreverente, o CQC mostra que é possível fugir do convencional e ser audacioso na transmissão das informações AMANDA ARAÚJO FLÁVIO CAMPOS NATASHA MUZZI 8º G DE JORNALISMO
A
ampliação dos meios de comunicação fez com que o jornalismo explorasse áreas que vão além dos limites do simples relato diário dos acontecimentos. O programa
Custe o Que Custar, exibido pela TV Band, recorre ao humor para fazer jus a este desenvolvimento midiático. A atração trabalha com um humor inteligente, ácido e informativo, conforme
Da esquerda para direita: Natasha Muzzi, Rafinha Bastos (CQC), Amanda Araújo e Flávio Campos.
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o próprio site oficial tem divulgado, comentando livremente os principais assuntos da semana, seja no cenário político, econômico ou social do país, por meio da sátira dos apresentadores e repórteres. Desde a estreia, abriu-se uma questão por parte da crítica televisiva sobre se o programa possuía realmente caráter jornalístico ou somente humorístico, colocando em cheque a sua credibilidade, já que um dos recursos utilizados pela atração recorre a uma linguagem irônica e espontânea. A atração, no entanto, tem indicado que é possível fazer jornalismo com criatividade e irreverência, a fim de promover a informação de um modo mais “leve”, porém não menos crítico, atendendo ao compromisso social, denunciando e questionando os fatos que permeiam a sociedade. Reunindo informação e humor, o quadro “Proteste Já”, com as reportagens de Rafinha Bastos, é um exemplo notório que define a presença jornalística na atração, conforme o próprio apresentador afirmou em entrevista exclusiva ao nosso trabalho de conclusão de curso: “O quadro ‘Proteste Já’ é o mais jornalístico do programa. Ele aborda os problemas, levanta e vai atrás de soluções, conversa com os governantes. Eu acho que esse é o quadro mais jornalístico, mas não sig-
nifica que as matérias de ‘balada’ não sejam jornalísticas”, afirmou. O humor informativo do CQC, embora não seja um modelo novo, apresenta características bem próprias. O elemento cômico, presente a todo momento na atração, geralmente se destaca no meio televisivo por ser associado ao entretenimento, ao divertimento das pessoas. Entretanto, não se pode confundir a junção entre humor e jornalismo como uma prática exclusiva do entretenimento. O fato do programa proporcionar prazer a quem o assiste por meio do riso não significa que ele seja pautado somente pela diversão. O CQC consegue apresentar muito mais que isso: retoma e lança luz sobre a função histórica do riso.
“O fato do programa proporcionar prazer a quem o assista, por meio do riso, não significa que ele seja pautado apenas pela diversão.” Procuramos mostrar como o humor pode ser uma ferramenta útil e de grande eficiência para os relatos jornalísticos, tendo como exemplo o programa Custe o Que Custar. A história do riso e sua aplicação em distintas épocas auxiliaram nossos estudos sobre a função que o riso ocupa no programa. Mikhail Bakhtin descreve as finalidades do riso e de seu desenvolvimento ao longo dos anos. O humor foi sendo percebido como uma prática de defesa contra as grandes instituições e ordens de época, como a Igreja e o Estado, e como ferramenta de promoção do senso crítico humano. O riso serviu como forma de contestar aquilo que o homem questionava e julgava sem resposta em determinado momento de sua história. Talvez seja
este o ponto em que a função do riso se aproxime do que o programa Custe o Que Custar tem apresentado: fazer jornalismo, tendo o humor como matéria prima, informando e promovendo a crítica do pensamento. Como pontuamos no trabalho “Sátira e Jornalismo: o humor do CQC a serviço da informação”, o conteúdo da atração só pode ser compreendido se quem o assiste tiver referências do tema abordado, possibilitando a interpretação da sátira incutida no fato noticiado. Esta racionalização é favorecida também pela utilização de recursos audiovisuais, presentes nas animações que permeiam as reportagens.
Duplo sentido O figurino dos apresentadores e repórteres (roupas e óculos pretos), a ousadia da edição e apresentação das imagens, contribuem para estimular e chamar a atenção dos telespectadores por meio de uma linguagem mais simples e irônica, sem deixar de lado a informação. O humor do programa é caracterizado com perguntas de duplo sentido, abordagens irônicas e sarcásticas, que muitas vezes “desmascaram” as personalidades diante das câmeras. É sob o olhar atento deste humor que, estrategicamente, os homens de preto do CQC conseguem promover suas críticas. A atração recorre também à perspectiva do jornalismo Gonzo, ao rompimento claro com a objetividade, à investigação e à denúncia, à crítica ao próprio meio, à linguagem informal, ao improviso e à irreverência para a configuração do que seria a promoção do debate público. Em nosso trabalho de conclusão de curso, procuramos mostrar que o CQC transcende as exigências do jornalismo. Mesmo a política, considerada “chata” por boa parte da população, pode ganhar uma abordagem cômica e informativa, com uma boa dose crítica própria do programa. Mas, afinal, perguntamo-nos: o que seria mesmo um jornalismo “sério”?
Formaram, e aí? Natasha Muzzi “O jornalismo é a minha vida, principalmente o produzido em TV. Sei dos obstáculos que terei pela frente, mas estou disposta a encarar esse desafio, até porque não se realiza um sonho sem luta.”
Flávio Campos “Minha perspectiva é a melhor possível, apesar das dificuldades que encontrarei. De posse da formação acadêmica, fica mais fácil enfrentar o mercado de trabalho. Garra não vai faltar.”
Amanda Araújo “O rádio é a minha grande paixão. Com certeza, vou batalhar, mais do que o suficiente, para viabilizar esse ideal. Estou preparada para as dificuldades e para administrar o tempo de superá-las.”
“O melhor vinho é aquele que tu bebes, calmamente, com teu mais velho e silencioso amigo”, do poeta Mário Quintana. A B R E A S PA S
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ARTIGO
10 anos de O Ponto *ROGÉRIO BASTOS
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produziu um total de 1.160 páginas por quase 50 turmas de jornalismo e de publicidade/propaganda, o que equivale a um ávido contingente de cerca de 1.500 alunos, com uma tiragem mensal de 5 mil exemplares. Criado para ser mais um espaço de aprendizagem do curso, entre tantos outros disponibilizados pela Faculdade de Ciências Humanas (FCH), embrião do sistema Fumec de Ensino, O Ponto, Absorv entes ecológ icos sem perder suas especificidades acadêmicas, em tão pouco tempo, e, silenciosamente, como recomenda a sabedoria mineira, rompeu com uma Crise certa timidez peassustque a dagógica que cercou suas primeiras edições, integrou-se FunSt ation ao cotidiano dos alunos e transformou-se, hoje, numa vigorosa, atraente, engajada e cobiçada publicação mensal, sem nenhuma presunção, bem melhor Const ituição Brasile ira com do que muitos dos acapleta 20 ano s nhados jornais do interior
74ª edição do jornal O Ponto deste mês, agora, plenamente, adaptado às reformas gráficas que sofrera, dentre as quais se destaca a substituição do formato standard para tablóide, sai com uma ponta a mais de orgulho em razão de uma comemoração especial: completa dez anos de vida – apenas um a menos que o curso de comunicaLentes da sust ção social -, ao qual entab ilidad e está subordinado. Grosso modo, desde 1999, nosso jornal O con curso virt mente trabal ual de foto sileiro hos de grafia Ch Rios de ristian Cra todo o mundoPrix Pictet , que pre , teve os pro Lágrima". vo, com o mia anu a par O tra blema s ambie vencedor do balho "Ág ticipação do aluas ntais foi o canconcurso que da Espera brança adense tev Benoit e como tem , a Aquin .
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de Minas Gerais, sabidamente, vitimas da falta de diversas limitações, incluindo o ranço provinciano. A comemoração é mais do que justa. Dez anos de jornal laboratório, produzido sob a esteira da consolidação do curso que o contempla, e atento á polaridade acadêmica/realidade social, com todas as suas implicações que esta dicotomia (existe mesmo ou não passa de uma peça da retórica do academicismo?) acarreta, convenhamos, não é fácil. Tanto é que, apesar de sua tenra idade - o que não significa nenhuma síndrome de envelhecimento precoce -, sua trajetória já se assemelha a percorrida pelos vinhos de boa qualidade.
“O Ponto transcende o tecnicismo e reforça, de forma definitiva, a concepção mais ampliada da educação em toda sua simbologia” Por que está reflexão? Pelo simples fato de que O Ponto não nasceu do espontaneismo e diletantismo docentes, o que implica compreender que sua produção mensal, da concepção da
pauta, passando pela complexidade do processo de edição, até culminar com sua distribuição em centenas de segmentos de Belo Horizonte, exige um esforço sobrenatural de coordenação e disciplina, necessário para amainar o ânimos, evitar os demônios da vaidade e cumprir objetivos e metas dentro do rigor e da prepotência do dead-line. Tudo isso, sem perder de vista os incondicionais fundamentos de sua criação: ser um instrumento catalisador da vinculação teoria/prática, já que é uma extensão das salas de aula, assegurar sua existência no bojo da interdisciplinaridade do curso e, fazer de suas edições o resultado árduo, porem prazeroso de um processo reflexivo, sem arroubos; critico, sem maniqueísmos; criativo, sem anarquia; plural, sem extravagância, sustentados, sempre, com um pé na academia e outro na turbulenta realidade das ruas, onde os fatos, em sua miséria ou grandiosidade, sempre clamam em ser noticias. Tanto esforço o fez por merecer alguns destaques: em 2005, no Rio de Janeiro, prêmio de melhor jornal laboratório, concedido pela Expocom (Exposição de Pesquisa Experimental em Comunicação), o ano depois, primeiro lugar internacional, alcançado por ocasião da 3ª Expocom Mercosul, evento realizado em Santa Cruz de La Sierra, na vizinha Bolivia, e ou PQN de Ouro/2006, desta vez, concedido pela revista newsletter Pão de
Queijo Noticias. Completam, ainda, esta galeria, o reconhecimento de outras instituições de ensino superior e citações que, quase sempre, ocupam o noticiário especializado da grande imprensa especializada. Sem nenhuma sisudez: o sucesso de nosso jornal laboratório, o qual debitamos a todos que participaram da sua criação e dos que ainda hoje o constroem diariamente, vai muito além dos importantes e bem vindos troféus recebidos e do reconhecimento publico, porque nele esta embutida a crença singular de que sala de aula, desde que integrada às diversas formas de comunicação, como sugere a pedagoga Joana Cavalcanti Pontual, em seu livro, O jornal como proposta pedagógica (Ed. Paulus, SP, 1999), “multiplica a capacidade de conhecimento dos nossos alunos, já que permite o caminho da troca”. Esta ênfase, às vezes despercebida face ao ambiente febril, embora descontraído, que caracteriza uma redação – e a nossa redação – modelo não foge a este estigma-, ancora O Ponto, que transcende o tecnicismo e reforça, de forma definitiva, a concepção ampliada da educação em toda a sua simbologia. Parabéns à direção da FCH, professores e alunos por esta década vencida. Que venham outras! *Jornalista. Professor da Fumec/FCH.
Fumec Janela Acadêmica Fumec/Incra-MG Programas de rádio, dirigidos especificamente para as cinco mil famílias rurais assentadas em Minas Gerais pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra-MG), é o que prevê o convênio assinado, recentemente, entre as duas instituições. Com a produção a cargo dos alunos dos cursos de jornalismo e de publicidade/ propaganda da FCH, sob coordenação do professor Antônio Marcelo de Melo e dos produtores do Incra-MG, as famílias terão, semanalmente, acesso a informações e orientações diversas sobre questões ligadas à vida na agricultura, veiculadas por rádios comunitárias. “A rádio Fumec, avalia Melo, será uma força duplamente mobilizadora, porque atenderá as demandas dos assentados e, ao mesmo tempo, servirá de ponte na formação profissional e social dos alunos”.
Prof. Antônio Marcelo de Melo
Com isso, o curso reforça o atendimento à comunidade, que é uma de suas principais atividades de extensão. Para o professor Gerson Alves Vieira, com esta ampliação, as inúmeras atividades de campo, voltadas para a população de baixa renda (crianças, adolescentes e adultos) nas áreas de psicoterapia, aconselhamento, orientação profissional e avaliação psicológica, ganham uma nova dimensão. “A prioridade de estágio, explica Vieira, era para os alunos do 8º ao 10º períodos. Agora, podem iniciar o atendimento no 6º período”. São realizadas, em média, 200 consultas por semana, de segunda a sexta-feira. Fonte: jornal Universidade Fumec, março de 2009.
Ampliação Neste ano, o serviço de Psicologia da FCH/Fumec reforça o atendimento à comunidade, com o aumento de vagas (de 40 para 180) para estágio profissional.
Prof. Gerson Alves Vieira
“E assim, torto e de verdade, com amor e com maldade, um abraço, até outra vez”, de Raul Seixas, pouco antes de morrer. A B R E A S PA S
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E N T R E V I S TA PAULO BICALHO
Leucemia tira Boal de cena para sempre Perseguido e exilado, o ator, criador e diretor teatral viveu entre ódio e paixão, reconhecimento público e desdenho. BÁRBARA RODRIGUES 7º G DE JORNALISMO
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leucemia, que o atingiu por inteiro, tirou de cena, no início de maio deste ano, o criador e diretor do Teatro do Oprimido e líder do Teatro de Arena, Augusto Pinto Boal. Durante quase cinco décadas, o ex-químico ganhou notoriedade no cenário artístico, dentro e fora do Brasil. Com ousadia e indignação, ele formou gerações e defendeu, acima de tudo, a arte como um instrumento de libertação, que “só será possível quando houver uma plena interatividade entre atores e público”. Defensor intransigente dos oprimidos, independentemente da natureza e forma de opress ão, definia seu teatro como um conjunto de exercícios que ensinam o homem a usar sua característica teatral inerente, no palco e na vida. Após ser exilado no período militar da década de 60, retornou ao Brasil trazendo as técnicas que mais tarde deram origem ao Teatro do Oprimido. “Rato e homens”, “Opinião” e “Arena conta Zumbi” encabeçam uma imensa lista de suas principais peças, que marcaram época pelo o que significaram de reforço talentoso à sua proposta pedagógica teatral transgressora. Boal partiu aos 78 anos. Entre o drama e a comédia, sem fazer concessões, ele foi Deus e o diabo, turbulência e mansidão, como convém às pessoas especiais. Em Belo Horizonte, o autor, diretor e pesquisador teatral, Paulo César Bicalho, com a autoridade de quem conheceu Boal de perto, concedeu uma entrevista à Ponto &Vírgula. Uma homenagem mais do que justa.
Como se deu seu primeiro contato com o dramaturgo Augusto Boal? Conheci Augusto Boal na década de 80, mas já conhecia suas peças e publicações desde antes, a trajetória intelectual dele e as discussões de suas propostas, pois já estava engajado nos movimentos contra o regime militar. No final dos anos 70, tive contato com Haroldo, um ator que tinha trabalhado com Boal e dava aulas práticas das técnicas de seu mestre. Também participei de palestras onde Boal falava de suas propostas e fazia jogos, exercícios. Em alguns destes eventos tive a oportunidade de conversar com ele. Também, desde aquela época, eu já lia suas publicações, que geralmente eram relatos de experiências que deram certo lá fora, quando Boal estava exilado na Europa. 14
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Pelo o que se sabe de sua biografia, Boal amanhecia teatro, dormia teatro e sonhava teatro. Esta obsessão, própria da genialidade, não dificultava seu relacionamento no dia a dia? Pelo contrário. Ele era um “tiozão”. Se comovia com os relatos dos outros e tentava modificar o modo das pessoas enfrentarem as situações através de seus exercícios. Ele tinha facilidade de trabalhar, embora demonstrasse certa dificuldade de conversar com quem não entendia de teatro. Às vezes ele ficava sem graça quando falava de Stanislavisk e Brech e alguns não sabiam quem eram, mas quem entende de teatro não tinha problemas. Qual a importância de Boal para o teatro nacional? O que fez de Boal , sua obra e ideias serem re-
conhecidas internacionalmente no cenário artístico? Seus estudos em Nova Yorque, na época do exílio, se deram com Stanislavski, o maior pesquisador da história do teatro, que tinha como proposta básica o indivíduo basearse na experiência pessoal para criar o personagem, evitando, dessa forma, o teatralismo, a esteriotipagem. A experiência pessoal deveria complementar o personagem. Então, a maior contribuição de Boal foi trazer isso para o Brasil. Aqui conhecíamos Stanislavski pelas publicações, em teoria, mas as técnicas foram trazidas por Boal. Ele foi o primiero gancho, o canal, e sabia fazer isso. O ator brasileiro é muito hoje o que ele é devido ao trabalho de Boal e com quem ele trabalhou. Ele mostrou que o traba-
lho do ator pode ser vivo, inteligente, interessante, novo. A partir dele, o teatro brasileiro passou a ser outro, um trabalho único; cada ator tinha um tipo de interpretação única, que não se repetia, com a própria sensibilidade do ator. A segunda coisa importante: engrossou o caldo da crítica à sociedade. Suas propostas vieram em uma época em que o público pedia crítica, época de frenesi. Dizia para os atores e o público: “perceba o mundo, seja vivo”. O expectador deixava de ter pena do personagem e vivia a cena também, e era convidado a discutir as questões. Augusto Boal foi considerado um dos mais importantes agitadores culturais da época, a exemplo de Oduvaldo Viana Filho, Plínio Marcos e, o ainda vivo, José Celso Martinez Corrêa. Você acredita que sua obra e o seu legado estão fadados ao ostracismo? Acho muito difícil. O que Boal fez com o teatro se entranhou nos atores, nos diretores que trabalharam com estes atores e com o próprio Boal. Eu o tenho dentro de mim e já o passei para várias pessoas. Todo diretor brasileiro tem Boal dentro dele, mesmo que não saiba ou que acredite que veio de outro mestre, porque estes mestres aprenderam com Boal. E isso não se limita ao Brasil. Depois que voltou do exílio, continuou o contato na Argentina, Alemanha, com as pessoas que tinham começado a construir uma série de atividades, que não pararam. Ele deixou de existir como pai, como autor, mas a coisa está ali. Como você define o Teatro do Oprimido? Seu maior sucesso pode se atribuir às peculiaridades políticas da década de 60? A luta contra opressão através da arte é uma característica inerente e exclusiva do TO. Na época do regime militar as propostas eram engajadas no movimento contra a ditadura, então a definição do Teatro do Oprimido
era bem clara: técnicas que provocam os alunos e o expectador para se libertar e incentivam a libertação. Hoje é um sentido mais pessoal, de libertação das travas pessoais, criadas pela Educação, pela família, sociedade, etc. As pessoas são travadas de diversas formas e as técnicas permitem esse destravamento . Praticando os jogos, exercícios, a pessoa se percebe e percebe onde está esse travamento. O Teatro do Oprimido, mais que um movimento de esquerda, consagrou-se e se transformou em uma espécie de grife cultural. O que você acha disso? Concordo que é uma grife cultural , a grife do “pratique Boal”. Entretanto, o Boal era de esquerda, do lado dos pobres, tinha um carinho muito grande com os oprimidos, mas era muito aberto, não ditava regras. Há professores que dizem que o TO é assim, assado, quando o próprio Boal não fazia isso. Ele sempre trabalhou com propostas, pesquisas, sugestões, experimentações, e ajustava às situações de cada grupo. O TO não é um método para ser repetido simplesmente, cada um é cada um, cada grupo é único.
“O que Boal fez com o teatro se entranhou nos atores, nos diretores que trabalharam com estes atores e com o próprio Boal. Eu o tenho dentro de mim e já o passei para várias pessoas. ” Do ponto de vista ideológico, seria um absurdo comparar o TO com o movimento Jovem Guarda, Tropicalismo e Hippie? Não. Todos os movimentos, incluin-
do o TO, têm uma proposta de libertação, ligada ao surrealismo, e foram influenciados pelos movimentos americanos. Há sim um paralelismo, há um diálogo, que sempre houve, e que a partir da 2ª Guerra Mundial ficou mais intenso. O TO, que tinha como paradigma uma aversão à arte pela arte, voltada para a manipulação das massas, também não alimentou um certo maniqueísmo ideológico , meio que auto-referente? O que a maioria das pessoas conhece de Augusto Boal é através de seus livros, que são resultados de processos, das experiências mais bem sucedidas dele. Então os livros dão a impressão de manual de regras, mas quem trabalhou com ele sabe que ele nunca repetia. Ele criava junto com as pessoas os processos, deixava que elas fossem elas mesmas, não manipulava. Temos visto que o tempo e sua avidez acabam por desfigurar os movimentos culturais engajados, que se estruturavam e aconteciam por uma causa maior. Se, no período do golpe militar, a pauta se resumia na busca pela liberdade política, hoje ela se resume em seu excesso. Como você analisa essa trajetória? Acredito que a liberdade existe até o ponto em que há ameaça, até quando ela é conveniente, e quando isso acontece o que luta vira opressor também. Existe e sempre existiu na história do homem uma procura constante da libertação pessoal. Ela se manifestou de várias formas ao longo do tempo, e Boal e o Teatro do Oprimido são uma delas. A diferença é que o TO objetiva Augusto também a libertação Boal. do sujeito enquanto ator e do sujeito enquanto expectador. Por isso resistiu ao fim da ditadura, pois são muitas as formas de opressão.
“Afora o poder, tudo é ilusão”, do líder da revolução Russa, Lênin, durante um de seus discursos. A B R E A S PA S
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ENSAIO FOTOGRÁFICO FELIPE CHIMICATTI
Fragmentos: Bolívia e las islas de los Uros DA REDAÇÃO
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ensaio fotográfico produzido por iniciativa pessoal, em janeiro deste ano, pelo acadêmico dos cursos de Jornalismo, na Fumec/ FCH, e de Letras, na UFMG, e fotógrafo Felipe Aguiar Chimicatti, 23 anos, é uma prova bela e contundente de que “tudo vale a pena, quando a alma não é pequena”, lembrando o poeta Fernando Pessoa. Sem grandes recursos materiais, o irrequieto e sensível Chimicatti produziu nada menos que 120 fotos sobre o que viu e gostou na Bolívia: cenas urbanas e suburbanas, personagens e natureza, contemplados pelo altiplano andino. O resultado deste trabalho, que já começa a render merecida repercussão ao artista - por que não? - não poderia passar despercebido da Ponto & Vírgula, já que, segundo ele, a fotografia constrói discursos e adquire uma força enorme em sua simbologia contemporânea. No entanto, o jovem não para: mal acabou de retratar os encantos e desencantos da Bolívia, realizou a exposição Ilha Grande - Ruínas D’uma Histórica Política, durante a Semana da Comunicação da Fumec ocorrida em maio.
La Paz (acima) e Feira de Las Brujas (abaixo).
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Deserto de Sal (à esquerda), Cerro Rico (à direita) e Igreja de San Benito (abaixo).
“Saudade é arrumar o quarto de um filho que já morreu”, do compositor e cantor, Chico Buarque de Holanda. A B R E A S PA S
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E N T R E V I S TA JOSÉ BARACHO
Estado se “lixa para seus credores” Bilhões em dívidas de precatórios se acumulam no governo mineiro, o mesmo que prega moralidade pública. PEDRO LEONE 6º G DE JORNALISMO
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evo não nego, pago quando puder”. Este ditado popular que se encaixa como luva às tradições e costumes brasileiros – que o diga o mundo político- retorna à pauta pública. Entidades de classe, imprensa e outros segmentos, unidos pela indignação, estão mobilizados e cobrando do Estado, uma solução definitiva- o que significa quitar seus débitos-, para o problema dos precatórios, definidos como dívidas públicas contraídas, reconhecidas e assumidas pelos governos municipal, estadual e federal, embora cinicamente postergadas há séculos, sem nenhum constrangimento. E, para agravar ainda mais a situação, o Estado conta com a ancoragem das famosas PECs (Proposta de Emenda Constitucional) que, votadas pelo Legislativo Federal, transformam-se na legalidade imoral de levar à banhomaria os milhares de brasileiros, seus credores, segundo decisão judicial irrecorrível. Só em Minas Gerais, a dívida alcança a marca de R$3,5 bilhões, motivo pelo qual a OAB-MG tenta, embora sem muita esperança, mais uma vez, acionar o devedor inadimplente, o melancólico Estado, exatamente o mesmo que cobra moralidade pública dos cidadãos mineiros. Ao conceder esta entrevista exclusiva a Ponto & Vírgula, o professor em direito na PUC-MG e presidente da Comissão Especial de Precatórios da OAB-MG, José Alfredo de Oliveira Baracho Júnior, esclarece este absurdo ético. Qual a origem dos precatórios? Quando se iniciou essa dívida? O instituto “precatório” foi criado no Brasil em 1934, para evitar favorecimentos no pagamento de dívidas judiciais do Poder Público. Foi, entretanto, desvirtuado e hoje transformou-se em um subterfúgio para proteger ógãos públicos inadimplentes contra sentenças que os tenham condenado ao pagamento de dívidas. Os precatórios hoje devidos por Estados e municípios surgiram de sentenças judiciais de diversas naturezas - falta de pagamento de vencimentos de servidores públicos, de pensões ou proventos de aposentadoria, desapropriações ou falta de pagamento de fornecedores. Tais precatórios remontam, no Estado de Minas Gerais, a dívidas criadas, em alguns casos, há mais de vinte anos, as quais constam 18
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de precatórios que deveriam ter sido pagos em 2003. Qual é o montante da dívida dos governos de Minas e de Belo Horizonte? O montante da dívida do Estado de Minas Gerais é de R$3,5 bilhões e do município de Belo Horizonte, de aproximadamente R$400 milhões. Há um senso comum de que o setor público é bom para cobrar e ruim para pagar. Historicamente se fala em má fé por parte dos administradores no pagamento dos precatórios, sendo a emenda proposta pelo senador Renan Calheiros chamada de PEC do calote. Quais são as ferramentas da sociedade civil para barra esse processo? A sociedade civil, liderada pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e
com o apoio de dezenas de entidades como a Associação dos Magistrados Brasileiros, associações de credores do Poder Público, associações de servidores públicos ativos, inativos e pensionistas realizaram em Brasília, o mês de maio, uma Marcha contra esta Proposta de Emenda à Constituição. Em razão dela, conseguimos a garantia do presidente da Câmara dos Deputados de que serão realizadas audiências públicas com representantes da sociedade civil para discutir o texto da PEC e modificar sua redação. Precisamos agora estar atentos à realização destas audiências públicas para evitar a aprovação do texto aprovado no Senado e garantir o pagamento dos precatórios em atraso. Apesar de severas críticas tanto por parte da OAB quanto de outros
setores da sociedade civil, a PEC dos Precatórios foi aprovada no Senado com votação massiva e tem apoio de prefeitos, como demonstrou Marília Campos (PT-MG) prefeita de Contagem. Há o que se aproveitar da proposta do senador Renan Calheiros? Há apenas dois aspectos na proposta aprovada pelo Senado que poderiam ser aproveitados: a vinculação obrigatória de receita orçamentária para o pagamento de precatórios até a quitação do estoque da dívida, vinculação esta que deveria ser em percentual superior ao previsto na Proposta, aprovada no Senado, e o pagamento prioritário para pessoas idosas.
“Os maiores prejudicados serão os credores mais pobres. Eles não podem esperar muito tempo pelo pagamento e aceitarão ofertas menores.” A ordem dos Advogados propõe mudanças no projeto, que foram defendidas na marcha de abril. Quais são essas alterações? O percentual destinado pelos orçamentos estaduais e municipais para pagamento de precatórios deveria ser superior ao previsto na proposta aprovada; o leilão de precatórios não deve ser admitido e caso seja admitido deve permitir a participação ampla de setores econômicos, para que o valor da oferta para o credor seja melhor; o valor da receita de precatórios destinado ao leilão não deve ultrapassar a 40%; o leilão deve ter o controle do Poder Judiciário; a possibilidade de nova moratória através de Lei Complementar deve ser excluída do texto; respeito à ordem cronológica para precatórios expedidos antes A B R E A S PA S
da promulgação da Emenda. Uma das propostas do Senado é se alterar a ordem dos pagamentos, passando a ser feitos por ordem de tamanho, e não cronologicamente. Quem são os maiores credores da máquina pública? Os maiores credores no Estado de Minas Gerais são servidores públicos ativos e inativos e pensionistas. No Estado de São Paulo são proprietários de bens expropriados e realizadores de obras públicas. Alguns dos prefeitos e governadores que se manifestaram a favor do PEC afirmam que os altos juros cobrados sobre os precatórios supervalorizam a dívida, tornando-a impagável. Por isso defendem a nova taxa, corrigida segundo a caderneta de poupança. Esse valor, mais de 90% menor do que o que se costumava ser aplicado, é um valor justo? Essa afirmativa é falsa. Os juros pagos pelo setor público em decorrência de suas dívidas judiciais correspondem à metade do que é pago pelo setor privado. Os juros de mora pagos pelo setor privado, de acordo com o novo Código Civil é de 1% ao mês. O Supremo Tribunal Federal, entretanto, decidiu que, para o setor público, os juros de mora são de apenas 0,5% ao mês, o que já significa uma outra vantagem indevida para o setor público. Com a proposta tal qual foi aprovada pelo Senado, qual parcela da sociedade sai mais prejudicada? Os maiores prejudicados serão os credores mais pobres, geralmente servidores ativos ou aposentados e pensionistas, pois como não podem esperar muito tempo pelo pagamento aceitarão no leilão ofertas menores. É bom lembrar que a lógica apresentada pelos defensores da Emenda de que as pessoas com créditos maiores precisam menos do pagamento é falsa, pois em muitos casos o credor vive em condições de pobreza exatamente
porque o ente público deixou de lhe pagar o que era de direito por um longo período de tempo. Diante da crise financeira, enfrentando a necessidade de cortar gastos, foi feito pelo Estado um corte de 90% no orçamento previsto para o pagamento dos precatórios. A OABMG discorda do valor e defende uma redução na navalha para um orçamento 22% menor. Esse valor não continua elevado? Vinte e dois por cento é o valor que o Estado afirma ter perdido em sua arrecadação no primeiro trimestre de 2009. Aceitamos que, para aquele período, primeiro trimestre, a redução seja equivalente a este percentual, elevando-se nos meses seguintes à medida em que a arrecadação aumentar. Até então os valores de reajustes e prazos para o pagamento das dívidas eram definidos pelo Tribunal que condena o Estado a cumprir com os precatórios. Se esses valores são tão injustos como afirmam os prefeitos, não seria esse um processo de autofagia pública? O poder do Estado não estaria trabalhando contra o pagamento dos precatórios desde o início do processo? Os valores dos precatórios, na esmagadora maioria dos casos, não são excessivos. Claro que existem exceções e estas devem ser coibidas, havendo meios jurídicos próprios para isto. Os precatórios nascem após longos processos judicoais, decididos, no mínimo, por duas instâncias do Poder Judiciário (há casos em que a decisão judicial ocorre após três instâncias e até mesmo após quatro instâncias decisórias). O pagamento de precatórios é uma garantia do Estado de direito republicano, onde as autoridades e entes públicos são responsáveis pelos atos que praticam, ao contrário do que carateriza a monarquia, onde as autoridades e entes públicos podem estar isentos de responsabilidade.
“Voe, não deixe por menos”, autor desconhecido.
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E N T R E V I S TA CELINA AREAS
Comemorar o quê? Perfil tradicional da festa de 1º de maio é substituído por shows e assistencialismo; trabalhador teme por dias piores. BÁRBARA CAMARGO 7º G DE JORNALISMO
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crise econômica que o mundo ostenta deu um xeque-mate no dia 1º de Maio, data em que milhões de trabalhadores formais celebram e ratificam o avanço das lutas sindicais. No Brasil, não foi diferente: com um olhar nas demissões, no arrocho salarial e na falta de perspectivas, e outro na necessidade de permanente mobilização e fortalecimento da categoria, a data não deixou de ser lembrada nas praças públicas do país, mesmo que de forma nebulosa. Shows sertanejos, apresentações teatrais, sorteio de brindes e prestação de serviços fizeram a alegria da massa, embora, paradoxalmente, tenham acenado com a possibilidade da fragmentação do movimento e esvaziamento das lutas, sintomas que se configuram como portas de entrada para o surgimento inconcebível das práticas individuais. Para falar sobre este controvertido assunto – e bota controvertido nisso!-, Ponto &Vírgula foi brindada com a entrevista da professora e diretora do Sindicato dos Professores de Minas Gerais (SinproMG), Celina Alves Areas, que, há 25 anos, de forma incansável, atua nas áreas sindical e operária.
Quantos trabalhadores formais existem no Brasil e quantos sindicatos os representam? Com este contingente, é possível buscar uma homogeneidade nacional de participação e interesses? Este sonho não lhe parece impossível? No Brasil, há vários tipos de trabalho: informal, formal, terceirizados, cooperados e muitos outros. De um modo geral, há ainda muito a conquistar para que haja de fato e de direito um trabalho digno conforme prevê a nossa Constituição Federal. Quanto ao chamado trabalho formal, o trabalhador que tem a Carteira de Trabalho assinada, o último dado que temos é que há no Brasil mais de 30 milhões, dos quais 50% estão no mercado informal. Extra-oficialmente, há mais de seis mil sindicatos. Com isso, as dificuldades aumentam consideravelmente. No entanto, vivemos num paradoxo estrutural: de um lado, os trabalhadores se 20
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tornam acuados e, por outro, o clima de democracia em que vivemos e a não criminalização dos movimentos sociais levam-nos a acreditar que passaremos desse momento de resistência para um outro momento de uma maior participação. Tenho certeza de que esse sonho é possível, pois concordo com Raul Seixas quando diz que “sonho que se sonha só, é só um sonho, sonho que se sonha junto é realidade”. O Primeiro de Maio foi criado para formalizar a luta trabalhista e as reivindicações por melhores condições. No entanto, aqui no Brasil, há alguns anos, a data ganhou uma conotação festiva. O que explica esta mudança de foco? No movimento sindical, desde a sua origem, há várias concepções. No Brasil, não é diferente. Há sindicalistas que acreditam que é possível humanizar o capitalismo, praticam a conciliação de
classe, fazem o sindicalismo de “resultado”. Na minha concepção sindical, que é uma concepção classista, não concordo com a transformação do 1º de Maio numa festa apenas festiva. O 1º de Maio é o dia do trabalhador. Um dia de luta, de reivindicações por melhores condições de vida e trabalho, por uma sociedade justa, solidária e igualitária. A transformação em apenas um dia festivo, mostra a crise do movimento sindical. Como o empresariado quer ganhar os “corações e mentes” dos trabalhadores com festas, prêmios e passeios para que eles “vistam a camisa” da empresa. Muitos sindicalistas acham que devem entrar nessa concorrência e transformam a data numa festa. A senhora acha que este aspecto marqueteiro e até carnavalesco dos eventos sindicais de projeção traduz a fragilidade e incoerência das políticas das organizações trabalhistas?
Sim. Como o movimento sindical está em crise, essa fragilidade se mostra em muitos pontos : não mobilização da categoria que representa; perda de direitos; burocratização de muitos sindicalistas; perda da perspectiva de uma outra sociedade – a sociedade socialista por muitos dos dirigentes, leva a práticas também burocráticas. As centrais sindicais foram legalizadas em 2008. Isto significou um avanço ou uma cooptação? Um avanço. Essa é uma reivindicação antiga do movimento sindical e só agora, em 2008, conquistamos. Em 1988, na Constituinte, apesar de toda a pressão junto aos parlamentares, não conseguimos conquistar a inclusão das centrais na estrutura sindical. Elas tem um papel muito importante. Devem debater com a sociedade questões de interesse dos trabalhadores e pressionar governo e empresariado para que o trabalho seja valorizado. Por mais organizada e fortalecida que esteja a classe trabalhadora, há sempre o medo da desmobilização frente à necessidade de sobrevivência material, da comida na mesa. Como a senhora interpreta esta situação adversa? Creio que esse é um dos principais motivos da crise do sindicalismo. E, atualmente, essa situação foi agravada com a crise do sistema capitalista. A demissão em massa leva os trabalhadores a se retraírem. O movimento sindical deve intensificar a campanha pela garantia do emprego e pressionar para que haja mais investimento e deixar claro que essa crise não foi causada pelos trabalhadores, portanto, não seremos nós, que pagaremos a conta. A senhora poderia citar três problemas infra-estruturais que dificultam a organização sindical? A) Não direito da organização por local de trabalho, porque a luta se dá principalmente neste ambiente, pois é nele que o trabalhador sente a ne-
cessidade da organização. Como ele não tem garantia de emprego e, não tem direito a organizar, tudo se torna mais difícil. Creio que só teremos um sindicalismo enraizado na base, quando conquistarmos o direito da organização por local de trabalho; B) como não tem uma lei que crie critérios para demissão, a rotatividade no Brasil é muito grande, dificultando o trabalho sindical. A nossa luta é pela aprovação da Convenção da Organização Internacional do Trabalho (OIT) contra demissão imotivada; C) organização sindical por ramo de atividade, porque a maioria dos sindicatos, hoje, é organizada por categoria e não por ramo. Às vezes, temos na mesma empresa, três, quatro sindicatos que representam categorias diferentes, fragmentando a luta.
“Tenho certeza de que esse sonho é possível, pois concordo com Raul Seixas quando diz que ‘sonho que se sonha só, é só um sonho, sonho que se sonha junto, é realidade”. Enquanto muitos lutam por melhores salários e garantia de trabalho, outros milhares imploram - e é este o verbo -, pela alforria. Como a senhora explica tamanho desnível? Penso que o essencial nessa questão é que, apesar de a Lei exigir que todo o trabalhador deva ter sua CTPS assinada, não é essa a realidade. Mais de 50% dos trabalhadores estão no mercado informal, terceirizados e precarizados. O trabalho infantil ainda é permitido. Tenho certeza de que, enquanto não houver convicção entre os trabalhadores da sua força, isso vai existir. Vivemos num mundo capitalista e este sis-
tema vive e sobrevive da exploração. Precisamos fortalecer o sentimento de pertencimento de classe. No mundo do trabalho da classe operária, como se não bastassem seus problemas específicos, há uma correlação de forças com os setores burgueses? Por exemplo: até que ponto a mídia dificulta ou facilita a luta nesse sentido? A mídia sempre estará a serviço da classe hegemônica e fará tudo para repassar para os outros a sua concepção de classe. No Brasil, ela exerce o papel de um partido político conservador, portanto, na minha opinião, a mídia muito dificulta nossa luta, seja escrita, falada ou televisada, leva sempre a sua versão sobre os fatos, na maioria das vezes, uma visão que prejudica a nossa organização. Que diferenças marcantes a senhora aponta entre a luta sindical classista, marcada pela combatividade, e a luta do chamado “sindicalismo amarelo”, marcada pelas conciliações patronais? O sindicalismo classista é o que leva a luta política, econômica e ideológica. Tem sempre um lado: o lado da classe. Faz a luta econômica, mas também atua na questão política e se preocupa com a formação, com o pertencimento de classe. Combina mobilização com negociação. O “sindicalismo amarelo” pratica a conciliação de classe, acha que é possível melhorar o capitalismo, que o sindicato serve apenas para atuar na questão econômica e assistência. O “resultado” é o principal motivo. De que maneira é possível vislumbrar alguma trégua para a luta sindical? A luta é inerente ao movimento sindical. Entendemos que, enquanto vivermos num sistema que tem no DNA, a exploração do trabalhador, não haverá trégua. Lutaremos até que consigamos alcançar a sociedade justa, humana e igualitária, a sociedade socialista.
“Só usa a razão quem nela incorpora suas paixões”, do escritor Raduan Nassar, em seu livro Um copo de cólera. A B R E A S PA S
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E N T R E V I S TA ANDRÉ ROQUETTE
Mea culpa e reforma do código para enfrentar erros médicos A despeito da defasagem de tempo, iniciativa do CFM visa adequar a atividade médica para atender novas exigências do mercado; população aguarda com um pé na esperança e outro na dúvida. AMANDA LÉLIS 6º G DE JORNALISMO
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uas décadas passadas incólumes desde a sua entrada em vigor, fato que reflete uma histórica marcada pelo distanciamento e por uma certa aura de poder em relação aos pacientes, especialmente, àqueles que dependem do Sistema Único de Saúde (SUS), o Código de Ética que disciplina a atuação dos médicos, segundo o Conselho Federal de Medicina (CFM), será reformulado e atualizado para se adequar às novas exigências sociais. Atualização tecnológica da profissão, melhoria nos procedimentos e na conduta de atendimento, este, um grande hiato, se constituem na esperança maior do órgão, embora ele saiba, melhor do que ninguém, que a reforma é apenas parte de um contexto maior. À parte os dados extra-oficiais (80 a 90 denúncias/mês) de erros médicos, materializados na negligência e imprudência, onde a ginecologia e obstetrícia aparecem com maior índice de problemas, o CFM, ao tomar a iniciativa de reformular seu código, assume que a eficiência dos profissionais de saúde, entre o diagnóstico e o procedimento final, não passa apenas pela reformulação de princípios, artigos e parágrafos. O médico do Instituto de Medicina Legal (IML) e ginecologista, exvice-presidente do CRM estadual e, hoje, professor de medicina legal do curso de direito da Universidade Fumec, André Luiz Barbosa Roquette, fala sobre o assunto, numa entrevista mais do que esclarecedora. Para os céticos de plantão, no Brasil, os códigos de ética são criados para não serem cumpridos, tamanha a sua ineficiência. O senhor concorda com esta versão? O CFM corre este risco? Para que nos situemos de maneira adequada ao tema, convém estabelecer a diferença entre o Código de Ética médica e a prática Médica em si. Enquanto o Código de Ética é uma cartilha reguladora do exercício profissional, a prática se apresenta como uma verdadeira interação entre o homem profissional e seu ambiente. Os determinantes para um bom atendimento médico exigem não apenas o conhecimento técnico, mas a plenitude humana do homem social. Acredito que os códigos são criados para serem cumpridos mas, algumas vezes, não o são pois a transgressão é inerente ao ser humano em qualquer área do conhecimento humano e com a medicina não é diferente. 22
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O senhor não acha que uma campanha educativa divulgada pela mídia, com o seu poder de capilaridade, não seria uma força a mais para alcançar os resultados que o conselho espera? Talvez sim. Entretanto o que se vê hoje é a publicidade espetaculosa de fatos isolados de mau resultado profissional que atendem ao sensacionalismo, mas que, na maioria das vezes, não contribui para uma construção mais efetiva e ética da prática médica. Segundo uma pesquisa da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), quase 70% dos erros médicos cometidos em três hospitais do Rio de Janeiro poderiam ser evitados. Em Minas, o quadro não deve ser diferente. Que avaliação o senhor faz destes dados? A estatística pode ser perversa e pouco edificante quando é mal interpretada. Esta não é a estatística de Minas Ge-
rais. Para a análise técnica verdadeira e coerente do dado apresentado, seria necessário inicialmente sabermos qual é o percentual de erro médico em relação ao total de casos atendidos. Mas a pergunta já está um passo a frente e indaga sobre o grupo onde se constatou o erro médico. Seria também necessário saber quem analisou os casos e os classificou como evitáveis. Acho essa estatística de 70% muito alta e, se a fonte for confiável do ponto de vista estatístico, acredito que o sistema precisa ser avaliado em seu todo (incluir maior número de Hospitais na amostra)e, caso se repita esse indicador, será necessário uma revisão urgente do sistema de saúde da cidade do Rio de Janeiro. O saber sempre foi um instrumento de poder. Na relação médico/ paciente ele se torna cruel, especialmente quando acontece na rede
pública de saúde, marcada por uma constrangedora subserviência dos usuários do SUS. As conseqüências desta disparidade são imensas e dolorosas. O senhor concorda? Como regra, evidentemente que não. O Sistema massificado de atendimento é desumano e cruel para ambos: paciente e médico. A conceituação do saber como um instrumento de poder é consagrada nas relações humanas (não apenas na área médica)desde os primórdios da humanidade. Com relação à prática médica, essa relação xamânica, desequilibrada em função do poder, pode ser ajustada entre as partes, médico e paciente, na medida da maior ou menor bagagem de humanismo do profissional, independentemente se sua prática se dá no sistema público, privado ou de saúde suplementar. Qual a melhor forma de controlar o indício de erros e abusos médicos? O paciente pode ser considerado cúmplice nesta situação? Acredito, salvo melhor juízo, que a melhor forma de controle das situações de mau resultado profissional é a sua prevenção. Pelo lado profissional, os Conselhos Regional, Federal e a Associação Médica, junto com suas sociedades de especialidades, estão promovendo cursos teóricos e tutoriais de educação médica continuada, interiorizando regionalmente suas ações e também fiscalizando a prática médica. Têm exigido atualização constante de suas habilidades através de revisão de títulos, exigência de publicações científicas, comprovação de participação em conclaves, seminários e congressos, para manutenção de seus registros como especialistas. Do outro lado, está o poder público constituído que nunca repassa ao sistema de saúde as verbas necessárias ao seu bom desempenho. A cumplicidade do paciente é indireta, no momento do voto, descomprometido com o contexto social e adotando atitude observadora pacífica. Há um desarranjo global, com diversos atores.
Qual a sua opinião sobre o atual Código de Ética Médica, e qual a razão para o tamanho atraso em sua reformulação? O Código de Ética Médica é um bom instrumento de controle das ações dos profissionais médicos. A crítica que se faz a ele é sua dependência direta às normas legais vigentes no país. Muitas vezes sente-se um certo “lavar de mãos” do Código em matérias conflitantes e complexas como aborto, ototanásia etc. Acredito que é necessário se avançar mais e fazer acontecer o fato social. O atraso decorre da necessidade de que os avanços sociais aconteçam para que depois haja a regulamentação legal e administrativa. No ponto de vista do senhor, quais as modificações imprescindíveis para o atual CEM? Qual tem sido a posição dos profissionais sobre este fato? Os profissionais médicos esperam basicamente que questões sociais avancem de maneira mais real e menos teórica. Pessoalmente, espero artigos mais completos que contemplem a ampliação dos casos de aborto para anomalias fetais incompatíveis com a vida; o reconhecimento da eutanásia frente à vontade dos pacientes e familiares quando não existir meio digno de se prolongar a vida; avanços no reconhecimento das técnicas de reprodução assistida para contemplar seleção de sexo em doenças cromossômicas ligadas ao sexo e técnicas de clonagem com finalidade terapêutica; maior rigor na punição da publicidade médica indevida; entre outros. É polêmica a situação da saúde pública. A proposta de reformulação do código levará em consideração as precárias condições de trabalho dos médicos? Neste caso, será dado ao médico o direito de recusar o atendimento? É de fundamental importância a exigência de melhores condições de trabalho aos profissionais de saúde, principalmente aos mais novos que têm no
Sistema Único de Saúde (SUS), o seu maior empregador. Não se pode exercer uma medicina de qualidade sem os meios necessários para tal. Quanto ao direito do médico de recusar atendimento. Em situações de urgência e emergência o médico está obrigado ao atendimento pois o elemento vida se sobrepõe a qualquer sentimento pessoal. Sobre a formação dos profissionais de hoje em dia, como você considera o ensino da medicina nas faculdades. Os jovens têm discutido a ética da profissão? A proliferação das faculdades será contemplada pelo CEM? A formação dos médicos no Brasil hoje está comprometida pela abertura de novas escolas médicas sem a devida autorização do MEC e sem condições técnicas de funcionamento. Tornou-se um bom negócio para o meio empresarial e um mau negócio para a sociedade. Os Conselhos levantam essa bandeira já há algum tempo, com ações na Justiça tentando impedir exames de vestibular e mesmo tentando a obstrução de funcionamento de algumas escolas. Entretanto, na maioria das vezes se vê derrotado pelo poder econômico. Aqui sim, as pessoas de nossa sociedade são cúmplices, pois não abrem mão de tentarem a formação de seus filhos a qualquer custo, em qualquer escola. O que a medicina pode fazer, sem cometer erros, para curar um Brasil doente? O erro é inerente ao ser humano. O erro toma visibilidade, na grande maioria das vezes, pela inabilidade do profissional em sua relação com o paciente. Ao médico diligente, atencioso, humano e respeitado pelo paciente, é dado até mesmo o direito de errar, sem que isso se constitua em uma ofensa! Como a ciência médica não é exata, não é perfeita, erros continuarão acontecendo na cota da fatalidade humana. O que se espera é que aconteçam apenas pela limitação da ciência e não por atitudes de omissão e desrespeito ao sofrimento das pessoas.
“A vida matou Paulo Leminsk. Ele queria o futuro, ontem”, do jornal A Folha de Londrina, por ocasião da morte do poeta. A B R E A S PA S
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E N T R E V I S TA LAÍS MARIA SILVEIRA
Calvário sem fim? Violência física contra a mulher mineira é um sintoma da violência invisível (psicológica); as estatísticas aumentam e a Lei Maria da Penha ainda carece de solidez. TARSILA COSTA 7º G DE JORNALISMO
A
violência contra a mulher, que se remete à Idade Média, atingiu uma dimensão tal, que, hoje, ocupa os primeiros lugares entre os crimes de maior notoriedade no país, ao lado do tráfico de drogas, homicídios e assaltos. Em Minas Gerais, outrora ordeira, a situação não é diferente: cerca de 20% da população feminina (10 milhões) reclama com intermitência para a central de atendimento à mulher. O mais grave, no entanto, está no fato de que a agressão física começa com a violência invisível (assédio moral) que não é contabilizada pelo poder público e que significa a antesala das agressões propriamente ditas. À frente da Promotoria Especializada no Combate à Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, atua Laís Maria da Costa Silveira, dedicada e indignada promotora que Ponto & Vírgula entrevistou. Segundo a Secretária de Defesa Social de Minas Gerais, em 2008 foram registradas 25.692 agressões contra mulheres, enquanto em 2007 houve 24.972. Quais as possíveis causas da progressão deste número: o aumento da violência ou o aumento das denuncias? Analisando os números isoladamente, não considero que houve um aumento muito expressivo. Mas desde a entrada em vigor da Lei Maria da Penha em 2006, muitas campanhas foram feitas para dar publicidade à nova lei e o assunto da Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher entrou na pauta das discussões dos vários setores da sociedade, com ampla divulgação dos novos mecanismos de defesa, bem como estímulos para a mulher vítima de violencia denunciar seu martírio. Houve ainda incentivo a que pessoas estranhas ao caso pudessem denunciar agressoes deste tipo, sem serem identificadas. Tudo isto vem interferir diretamente no aumento das denúncias. Não acredito que houve aumento da violência, mas aumento das denúncias. 24
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Você poderia explicar a função da promotoria de Justiça de Minas Gerias frente ao combate a violência doméstica e familiar contra a mulher? O papel do Ministério Público é amplo neste setor de combate à Violência Doméstica. A Lei nos outorga vários poderes e deveres. A Promotoria de Justiça tem o papel de Defesa da Mulher vítima de violência doméstica, podendo propor medidas protetivas a seu favor, deve propor ação penal contra a agressor, bem como acompanhar todo o processo criminal. Neste aspecto judicial, o Promotor de Justiça pode e deve propor todas as medidas que possam beneficiar a vítima, protegê-la, bem como afastá-la de futuras agressões. O Promotor de Justiça pode requerer a prisão preventiva do agressor, por exemplo, em casos mais graves, bem como acompanhar todo o trâmite processual até final sentença. As atividades extrajudiciais também são inúmeras, como receber a vítima, ouvi-la, tomar as medidas cabíveis, encaminhar a abrigos quando for o caso, fiscalizar os estabelecimentos que cuidam de vítimas etc.
Como a Lei Maria da Penha, aprovada pelo Congresso Nacional em 2006, auxiliou, nas instâncias federal e estadual, a criação de políticas públicas para as mulheres? A Lei Maria da Penha (MP) é fruto de um trabalho árduo da sociedade civil organizada que levou a parlamentares o desejo de se ver no Brasil uma legislação específica para proteção da mulher vítima de violência doméstica e familiar. Ela é um dos resultados da política pública brasileira para a proteção das mulheres, vinculados que somos a organismos internacionais, especificamente a Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA. E a quantas andam a implementação das propostas previstas na Lei Maria da Penha? Em relação a processos criminais e medidas protetivas, estes já estão implementados, em todo o país. Em alguns Estados, já há Juizados da Mulher ou Varas da Maria da Penha, que são especializadas em violência doméstica contra a mulher. Minas Gerais, so-
mente este mês, depois de quase três anos da entrada em vigor da Lei MP, está inaugurando duas varas especializadas em Belo Horizonte. É muito pouco, e no meu entender, não atende os anseios da sociedade e a enorme demanda de feitos que já temos em andamento. É tudo muito precário em termos de estrutura. O Pacto Nacional de Enfrentamento da Violência contra as Mulheres tem o objetivo de reduzir os índices de violência. Como os poderes públicos trabalham para assegurar a viabilidade desta proposta? Não há qualquer problema que afete a soberania dos três poderes do Estado. Em verdade, há uma verdadeira união de esforços para resolver um problema antigo, sério e que, enfim, chegou a ser enfrentado como de primeira grandeza. O pacto é um grande avanço, uma demonstração de que o Brasil tem o real interesse de ver a violência contra a mulher banida de nossa sociedade. O atraso na aprovação da reforma política cheira a um certo machismo parlamentar contra a participação feminina na política do país. Esse fato, também, inclui-se no bojo da violência contra a mulher? Não sei ao certo se apenas a reforma política reflete este machismo no Congresso Nacional, mas penso que, em geral, os parlamentares vêm com reserva e ainda há preconceito em relação às propostas feitas por parlamentares femininas. Qual o significado da inauguração, pela Secretária Especial de Políticas para as Mulheres, do Centro de Atendimento a Mulher, em Belo Horizonte? Na verdade, haverá a inauguração de duas varas especializadas em Violência Doméstica. A delegacia de mulheres terá um espaço para os atendimentos, mas a sede da delegacia de mulheres continuará onde está. Haverá um lugar para que se faça um exame médico por um legista, o que já é ótimo, para que A B R E A S PA S
os laudos cheguem às mãos dos julgadores com mais brevidade, e a mulher não precise se deslocar ao IML. Embora tímida, a iniciativa não deixa de ser um avanço para Belo Horizonte.
Farpas & Confetes → “Lula é o cara”.
A violência contra a mulher representa o perfil cultural da nossa sociedade? Com certeza, a violência contra a mulher representa um forte traço cultural na nossa sociedade. Este fator tem que ser levado em conta quando vamos enfrentar este assunto. É preciso que todos entendam, mulheres e homens, que estamos, ao longo dos anos e anos, repetindo condutas violentas como se fossem parte normal de nossa cultura, sociallmente aceita. O nosso maior desafio é quebrar estes conceitos que já estão tão fortemente arraigados. O que a senhora nos diz sobre a violência invisível (psicológica) como porta de entrada da violência física? As duas questões representam violência: tanto a violência física quanto a violência moral e psicológica. A diferença é na forma de execução. Ambas deixam marcas muito fortes na vítima. O que ocorre é que a vítima de violência física tem mais elementos para identificar mais rapidamente a violência e pode se valer dos mecanismos de defesa com mais rapidez. A vítima de violência moral ou psicológica demora mais a tomar consicência da violência da qual está sendo vítima. A mídia, com seu viés machista, contribui com esta situação? Em relação à divulgação dos casos de violência sofrida pela mulher na mídia, depende da autorização da mesma, e pode surtir um efeito positivo para outras vítimas, que com ela se identificam e se encorajam para tomarem providência em relação a seu agressor. Mas não penso que a super exposição possa ser benéfica, uma vez que a vítima não deve tirar proveito de seu martírio para ter algum ganho secundário.
Presidente americano, Barack Obama, elogiando publicamente o presidente Lula, quando da sua última visita aos E.U.A.
→ “No início, os governantes restringem as contratações. Com o tempo, cedem aos lobbies dos sindicatos. Perdem a força e abrem as comportas. Essa é a regra. Mas, agora, as comportas se abriram demais”. Raul Velloso, economista e especialista em finanças públicas. Fonte: Revista Veja, de 28.01.09. Páginas amarelas.
→ “Dizer que é mais feliz na favela que num palácio italiano é de uma idiotice sem par. Além dos sociólogos de esquerda, mais alguém acha possível que as pessoas se sintam bem morando na favela?” Aguinaldo Silva, autor de novelas, comentando as declarações do jogador Adriano. Fonte: Revista Época, de 20.04.09. Seção Primeiro Plano.
→ “Não há um alívio em ver no pódio do mundo um rosto sorridente em lugar do sarcasmo permanente do Bush? Noga Lubcz Sklar. Fonte: Revista Veja, de 28.01.09.
“Tudo que é sólido se desmancha no ar”, do filósofo Karl Marx.
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E N T R E V I S TA MARCOS COIMBRA
A obamania entre o céu e o inferno A overdose de esperança que atinge a nação americana transforma-se em esquizofrenia; Barack Obama que se cuide! CLÁUDIA LAPOUBLE 6º G DE JORNALISMO
O
democrata Obama, depois da overdose emocional e patriótica que antecedeu e sucedeu sua posse, semelhante apenas ao que ocorreu com Mandela, na África do Sul, e Perón, na Argentina, sabe que o fenômeno obamismo, uma espécie de epidemia da esperança que transcende os Estados Unidos e se alastra por 24 outros países, dentre os quais o Brasil, conforme comprovou o Pew, respeitado instituto de pesquisa, pode ser tão fugaz quanto uma onda no mar. Ao menor sinal de fracasso – e a história é rica em exemplos-, o mundo, a nação americana e o séqüito que o acompanharam na campanha política, na posse e no governo até hoje, não farão concessões. Nesta entrevista concedida à Ponto & Vírgula Vírgula,, o sociólogo e e cientista político, dono do Instituto de Pesquisa Vox Populi, faz uma análise sobre o obamismo e os perigos que este sentimento acarreta, especialmente, no contexto político. Em artigo para o jornal Correio Brasiliense, publicado no ano passado , o senhor disse que Barack Obama é uma espécie de John Kennedy da era da internet. Isso é uma crítica ou um elogio? Recursos somo YouTube e sites de relacionamento foram importantes para a eleição de Obama e construção de sua imagem messiânica? É uma constatação, mas tem um conteúdo elogioso. Kennedy se tornou um marco de transição para o futuro na sociedade americana. Obama pode vir a representar algo parecido. A eleição de Kennedy de26
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pendeu da TV, sem a qual dificilmente ganharia. O mesmo vale para Obama com a internet. Sua campanha, desde o começo, usou a rede em toda sua potencialidade, incluindo sites de relacionamento e YouTube. Do ponto de vista da overdose de esperança que a candidatura e eleição do novo presidente representam, pode-se dizer que essa reação se assemelha ao peronismo na Argentina ou ao getulismo no Brasil ? Não há semelhanças entre o populismo da América do Sul dos anos 40 e 50 e o que ocorreu agora nos EUA. O primeiro se assentava na incorporação seletiva de setores urbanos de uma nova classe trabalhadora incipiente em economias de capitalismo tardio. O populismo pouco tinha a ver com esperanças e sim com acomodações e trocas de favores. Alguns analistas políticos chegam a afirmar que a consagração de um
político quase sempre é proporcional ao seu fracasso. Obama corre o risco desta ambigüidade, que , entre outras causas , situa-se entre os papeis simultâneos de algós e vitimas tão bem desempenhados pela opinião pública? É claro que ele pode fracassar, muito mais pela gravíssima crise que começou ano passado, em plena eleição. Mas parece mais provável que dê certo. Entre a enxurrada de elogios a afagos que Obama recebeu, um deles se destaca pela sua dimensão: o respeitado jornalista e escritor Gay Talese, afirma que ele é um verdadeiro self made man, isto é um homem que se fez por si mesmo, ao contrario do casal John e Jackie Kennedy. Por outro lado a família Obama é apresentada na imprensa como a mais famosa desde os Kennedy. Qual é a opinião do senhor a esse respeito? Na política americana, a família é mais importante que em outros pai-
ses, como aqui. Cônjuges e filhos de presidentes são sempre assunto da mídia, quem quer que seja que ocupe a Casa Branca. Obama é de origem familiar completamente diferente de Kennedy, que vinha do patriciado branco da Nova Inglaterra, de uma família aristocrática e rica. O simples fato de Obama ser negro, em uma sociedade como a americana, basta para deixar evidentes as diferenças entre os dois. A eleição do presidente americano ocorre num momento em que os ideais defendidos pela sociedade americana estão em crise, um declínio do american way of life. Como o senhor analisa esta questão? A sociedade americana é uma das mais vitais do mundo moderno. Seu way of life sempre teve enorme capacidade plástica, de se transformar e adaptar. Obama não o questionou e quem votou nele não queria seu fim. Negro, de origem muçulmano, filho de africano: Obama, na presidência americana, representa uma mudança de fato da sociedade americana ou é apenas a síndrome de uma catarse coletiva? Representa uma mudança imensa e não faz sentido desvalorizá-la suspeitando que não seja autêntica. “Há males que vem para bem”. Se não fosse Bush, Obama teria tido a mesma repercussão? É provável que o cansaço do eleitor americano com Bush tenha provocado o aumento da vontade de mudar o país. Isso pode ter ajudado Obama, mas não me parece ser a causa principal de sua vitória. Os EUA estavam prontos para alguém como ele. Como o senhor explicaria essa esperança desmedida de americanos e do mundo em relação ao presidente americano? É muito razoável olhar com esperanças para lá. É o maior país e a mais im-
portante economia do mundo, é onde mais se produzem avanços científicos e tecnológicos, lá existe uma cultura e uma arte em constante desenvolvimento. Que eles tenham um bom presidente, com boas ideias, é bom para todos. Com certeza melhor que quando lá estava Bush. Além da questão econômica há um consenso de que Obama tem pela frente, segundo o professor e escritor inglês Simon Schama, quatro grandes problemas : a questão ambiental, os conflitos religiosos, a reforma imigratória e as questões sobre a guerra. O que o senhor acha desta pauta da qual ele não pode fugir? Nessa lista existem cinco questões e não quatro, falta a crise do sistema internacional, posto em cheque pela situação financeira e econômica global. Isso basta para mostrar quantas são as questões importantes. Todas essas (e outras) terão que ser respondidas nos próximos anos. É desejo de todos que Obama não suponha que pode resolvê-las sozinho. Sem um novo entendimento internacional, nenhuma será enfrentada. “O poder é afroasiatico” disse certa vez o ministro Delfim Neto”. Mesmo assim vale a pena enfrentar a presidência de um país, seja ele qual dor, onde as crises e incertezas sobrepõem ao querer? Essa pergunta só pode ser respondida por esse tipo muito especial de gente, os que se dedicam profissionalmente à política, em tempo integral. Parece que, para eles, tudo vale a pena. Obama e Lula: unidos pela semelhança eufórica de suas eleições ou isso não passa de um discurso? Há semelhanças entre os processos políticos que levaram à eleição dos dois. Mas as diferenças são tão grandes que não faz muito sentido pensar que decorrem de causas iguais. Lula bem que gostaria de ser visto, mundo afora, como o Obama brasileiro.
Fonte: New York Times/CBS News Poll e Pew Research Center for the People & the Press
“O que há de mais mais terrível na comunicação é o inconsciente da comunicação”, de Pierre Bourdieu. A B R E A S PA S
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E N T R E V I S TA CARLOS LINDENBERG
Tudo vale a pena, quando a alma é o Palácio da Liberdade Disputa pelo governo de Minas é a obsessão dos candidatos assumidos, Fernando Pimentel e Patrus Ananias e, provavelmente, Hélio Costa. Até 2010, seja o que Deus quiser. DA REDAÇÃO
A
corrida às próximas eleições para governador, materializada em dezenas de reuniões-almoço, encontros formais e informais, sempre regados a versões e encenações, conciliações e descartes, como convém ao ambiente político de uma maneira geral, já demonstra em seu início que, até às vésperas do pleito, o dito tem e terá importância proporcional ao não dito. Por mais paradoxal e estranho que possa parecer, é esse o perfil que configura o exercício político, sobretudo quando estão em jogo cargos relevantes do executivo e os valores neles agregados, isto é: tão importante quanto ser governador, é a simbologia que este status contempla. Ninguém melhor para ser ouvido sobre esse assunto do que o renomado jornalista Carlos Lindenberg. Com passagem pelos principais veículos de comunicação do Estado, incluindo sucursais de O Globo e Veja, e assessoria de imprensa do governo de Minas Gerais, o entrevistado de Ponto & Vírgula acumulou 40 anos de profissão, dos quais a metade dedicada até hoje ao Jornal Hoje em Dia como diretor de redação e colunista político. Toda esta experiência resultou na produção do livro Quase História, lançado com sucesso em abril de 2007. Sua entrevista, embora seja um recorte do assunto, não perde sua importância, razão pela qual despertou nosso interesse. O senhor acha que o acordo Pimentel-Aécio, criticadíssimo pelos partidos, e que culminou com a eleição de Marcio Lacerda a prefeito de Belo Horizonte, prejudicou Pimentel em suas pretensões ao governo de Minas? Ou tudo isso não passa de um jogo de cena? Claro que prejudicou na medida em que criou dificuldades para o próprio Pimentel dentro do PT. É só ver o embate que ele trava com o ministro Patrus Ananias e com o diretório nacional do PT, que foi contra o tal acordo feito em Belo Horizonte. Agora, se essas dificuldades vão continuar, ninguem sabe. Podem permanecer ou não, vai depender 28
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das negociaões em curso. Política é a arte da articulação. Este eufemismo, levado às últimas conseqüências pelos candidatos, não cansa o leitor? Imagine Fernando Pimentel estendendo tapetes para o PMDB mineiro, depois do que aconteceu nas ultimas eleições. Como o senhor interpreta esta fidalguia utilitarista? Conversar com aliados ou com adversários faz parte do jogo político. Não há mal algum nisso. O problema é quando os programas e princípios partidários não são levados a
sério. O encontro de Pimentel com o PMDB não chega a ser uma fidalguia utilitarista. Na política não se deve fechar portas, a não ser para não transigir com princpípios e programas. A partir daí, o senhor confirma que em política, realmente, os fins justificam os meios? Na realidade é o que se vê. Mas não deveria ser. Trocaram a ética dos princípios pela ética dos reultados e isso é ruim. Mas tem sido assim no Brasil. Fazer alianças significa vender a alma ao diabo e alugá-la a Deus. Como o senhor avalia este encontro “cavalheiro” entre Pimentel e as bancadas do PMDB, PT, PC DO B? Como disse não há mal algum em conversar com os adversários. De fato, não deve ter sido uma conversa agradável. Afinal, o acordo do prefei-
to com o governador tirou o PT do comando da prefeitura, o embate com o PMDB foi forte e a aliada histórica do PT, deputada Jô Morais, foi desidratada financeiramente na campanha, a ponto de sair endividada.
Com sua experiência e importância de jornalista político, o senhor não cansa de escrever sobre o mesmo assunto? Não, eu gosto de escrever sobre política. Na verdade, eu gosto da sutileza, sobrtetudo, da política mineira. Ela é sempre surpreendente. Parece que é repetivia, mas não é. Colunismo político é um exercício da paciência pedagógica ? Não acho que seja exatamente um exercício de paciência. É mais um exercício de observação, de busca de informações, de poder de análise. Eu gosto, simplesmente. E vivo disso.
A favor
Contra Arquivo
“Conversar com aliados ou com adversários faz parte do jogo político. Não há mal algum nisso. O problema é quando os programas e princípios partidários não são levados a sério.”.
Extinção do Senado Arquivo
Pimentel definiu como “muito boa” sua relação com o PMDB, ou seja: rixas políticas, oposição são como uma onda no mar? Dizer que é a relação é boa não quer dizer necessariamente que seja. Mas também não dá pra dizer que é ruim. Tanto o ex-prefeito como o PMDB são bastante pragmáticos nesse sentido. E nem será essa conversa que irá definir a eleição de 2010.
Frente & Verso
Ronaldo Garcia
Juliana Andrade Professora de direito da Fumec/FCH
Professor de direito da Fumec/FCH
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democracia não existe sem a separação dos poderes, pois a concentração leva ao arbítrio que costuma ser avesso ao resguardo dos direitos fundamentais. Aristóteles já considerava perigoso atribuir-se todo poder a um só indivíduo. Montesquieu, ao propor a teoria da separação dos poderes, tinha em mente o aperfeiçoamento da democracia. Com relação ao Poder Legislativo o embate entre conservadores e liberais levou à criação de um sistema bicameral, como na Inglaterra com a Câmara dos Lordes e a dos Comuns. Tal idéia permeou a Constituição brasileira de 1824 que introduziu o bicameralismo representado pela Câmara dos Deputados e por senadores vitalícios, detentores do poder político e econômico das províncias. Alguns justificam a existência do Senado como fator de proteção dos estados membros da federação em face do autoritarismo do Poder Executivo, bem como, contra as leis da Câmara quando ela está tomada por um único partido político ou por alianças majoritárias. Num sistema em que o presidente da República e os deputados são eleitos democraticamente, o Senado perde a sua razão de ser.
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ou favorável à manutenção do bicameralismo do Congresso Nacional, ou seja, estrutura composta de Câmara dos Deputados e Senado Federal. É da tradição do constitucionalismo brasileiro este sistema, que foi alterado pelo unicameralismo da Constiuição de 1934. Desde a Constituição de 1946, seguindo-se a de 1967, a Emenda Constitucional nº 1 de 1969, e a Constituição Federal de 1988, o Congresso Nacional representa o conjunto das duas câmaras legislativas. A base do bicameralismo, possível com a atuação do senado, é a revisão legislativa. Uma das Casas inicia o processo legislativo e a outra o revê. A presença do Senado na estrutura do Congresso Nacional contribui para o aprimoramento da técnica legislativa, permitindo maior reflexão no exercício da função legislativa, além de contribuir para a maior efetividade do princípio representativo. É preciso entender, que a existência do Senado na estrutura do legislativo brasileiro serve para garantir o espírito de equilíbrio e prudência, contrabalançando o jogo de interesses e as paixões da vida pública que se refletem na forma de atuação dos membros da Câmara Federal.
“A grande vantagem da morte é que, se não deixa boca para rir, também, não deixa olhos para chorar”, do escritor Machado de Assis. A B R E A S PA S
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REPRISE - ARTIGO
Literatura e cinema fazem escola *JOÃO PAULO CUNHA
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escola no Brasil passa por momentos difíceis. Espelho da sociedade, ela incorpora parte das contradições sociais e, em vez de se tornar um agente que promove igualdade, se torna ela mesma discriminadora. Além disso a violência do mundo atravessou os muros e entrou nas salas de aula. Lá, alunos transitam como fazem nas ruas e em suas casas, com senso de propriedade e desrespeito aos mais velhos, atos que afrontam a idéia de civilização que acredita em seus valores e aposta em sua transferência às novas gerações. Há muito de saudosismo na avaliação das antigas práticas educativas. A ausência, hoje, de autoridade não transforma o que era feito em seu nome em algo válido por si. A educação ganhou muito com a liberdade, aprimorou com o respeito às diferenças, com a introdução do ensino laico e universal. As experiências pedagógicas libertárias acrescentaram mais que retiraram do jogo social. Na verdade, se hoje a escola padece de clima criador, isso se deve mais aos rigores da repressão que às promessas excessivas da liberdade. Por isso, ainda que a crítica ao que se vê hoje nas instituições de ensino seja pertinente, quanto ao nível do ensino e ao descalabro do comportamento, não se pode perder o horizonte das conquistas de outros tempos. A escola precisa ser reformada, mas não à custa 30
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da castração da liberdade e do estimulo à tolerância. O olhar retrospectivo costuma ser leniente e compassivo com os erros do passado. A educação não piorou porque os tempos mudaram, mas, ao contrário, ela é um sinal da transformação das expectativas vigentes hoje em dia. Um mundo que aposta no consumo, na competição e no poder estimula uma escola consumista, competitiva e atravessada por relações de poder. O debate sobre a escola que queremos para nossos filhos e netos há muito saiu do campo da pedagogia para ganhar a dimensão da política. Hoje, a saída deixou de ser meramente técnica para se conjugar num esforço maior de compreensão . Umas das grandes causas da crise do setor é exatamente o divórcio entre a ética pública e a privada, entre os valores sociais e o individualismo. A tradução dessa cisão tomou, na sociedade contemporânea, uma dimensão topológica e de classe: a marginalidade não é um processo ativo, mas o resultado de um procedimento anterior. Os marginais não são os que se situam contra a sociedade, agindo como marginais, mas o que são inseridos de forma marginal no sistema. A marginalidade não é um descaminho, é um projeto perverso e eficaz.
Outra Periferia Um filme e uma coletânea de literatura brasileira apontam alguns ele-
mentos que podem dinamizar as discussões sobre o setor. Entre os muros da escola, de Laurent Cantet, vencedor da Palma de Ouro de Cannes no ano passado, colocou o dedo na ferida da discriminação do sistema educacional francês. Quem acreditava que o Primeiro Mundo tinha uma escola que anulava as distinções em nome de valores universais foi apresentado a um contexto muito semelhante ao nosso com o agravante do ódio racial. O que, infelizmente, mais une os destinos das periferias francesa e brasileira é o ceticismo e a descrença no futuro. O filme de Cantet mostra como todos os professores parecem se sentir abandonados em seu empenho de ensinar. Entra ano, sai ano, tudo parece igual. O fato de o narrador, um professor de francês, assumir o projeto de fazer daquele ano algo transformador na vida dos alunos parece estar ligado à disciplina que ministra. Dominar o idioma, num país que separa os desiguais pela cor da pele, crença e classe social, pode ser o caminho primário de manifestação da identidade. Não se trata de aprender a língua do dominador, já que os jovens são tão franceses como seus professores. O que distingue não é a origem, mas a opressão dada como natural, ainda que sustentada por fatos culturais. A antologia A escola e a letra, organizada por Flávio Aguiar, também faz da arte uma via de compreensão do papel
da escola e das formas de educação no Brasil. Publicado pela Editora Boitempo, o livro reúne textos, de diferentes épocas, que têm a educação e a escola como tema. Os trechos de romance, contos e crônicas são estruturados em torno de quatro grandes eixos temporais: “Antes de tudo o mais”, que focaliza os povos nativos anteriores à chegada dos europeus; “Os tempos coloniais”, com textos que cobrem o período que vai do século XVI ao fim do século XVIII; “O império”, com escritos na época em que o regime era vigente no Brasil; e “A República”, que abrange as diferentes fases da vida republicana brasileira. O que chama a atenção na coletânea é a ampliação da dimensão educacional. A literatura brasileira tratou da escola em sua ligação com a religião; na dependência da colônia, quando o país ainda não tinha suas universidades; na sua ligação com as fases de aprendizagem da vida, inclusive a afetiva e sexual; na denúncia das marcas autoritárias; na identificação dos processos de massificação; nos retratos da violência dentro e fora da escola. Em alguns momentos, educação e escola parecem ser personagens díspares, como se a formação humana se desse, sobretudo, nas ruas. São histórias como as de João Antônio, que fazem dos bares e das mesas de sinuca o campo da formação de uma ética própria da malandragem.
Religião e Ciência A história da literatura é a narrativa de nossas dívidas humanistas. Fica fácil, hoje, criticar o ideal jesuítico dos primeiros tempos, em sua força doutrinadora. Como salienta Flávio Aguiar, o esforço catequético foi tão desagregador quanto constitutivo. Na sequência, a crença racionalista dos defensores do positivismo pode parecer ingênua frente a outras dimensões do poder das elites, que usurpa e corrompe para depois deixar com a escola a tarefa de repor o que tira com mão ambiciosa e violenta. Por fim, as experiências republicanas, já mais A B R E A S PA S
próximas da atualidade, incorporam pensamento crítico e teorias pedagógicas à tarefa de educar, que deixa de ser patrimônio da escola para ser de toda sociedade.
“Um mundo que aposta no consumo, na competição e no poder estimula uma escola consumista, competitiva e atravessada por relações de poder”
que ela tem de mais tacanho e transformador. Que os dois lados estejam sempre em mente é fundamental para que os projetos de mudança não se guiem apenas pelas brumas enganadoras do passado, nem pelo açodamento raivoso do presente. O futuro da educação está na nossa história, mas não precisa repeti-la. Recentemente, em Belo Horizonte, foi divulgado que a Escola Plural foi encerrada com um saldo de fracassos. É preciso mais atenção para que não se troquem os eventuais desvios pelo risco maior do autoritarismo. O momento continua sendo o do desafio da inclusão, não do descarte de jovens pela força dos erros pelos quais não são responsáveis. Educação para todos é o desafio: educação (não adestramento) para todos (e não para reforçar a apartheid social traduzido em guerra de competências). A tarefa é urgente, mas não pode prescindir de reflexão.
Todas essas histórias, mesmo com sua carga variável de ceticismo, parecem ter no fundo um desejo de recuperar uma era de ouro, na qual a escola era valorizada e as lições dos mestres aprendidas. O cinema e a literatura são *Editor de Cultura do Jornal Estado de bons campos de reflexão e representa- Minas. ção de nossas verdades. Neles, como num espelho, flagramos nossa incompetência e nossa sede de transformação. São elementos de Foto: Tuco Vieira (www. xikino.wordpress.com) aprendizagem poderosos, como os bancos da escola de qualidade, que tanta falta andam fazendo ao Brasil. Que a educação passe, novamente , a integrar a preocupações cidadãs é um avanço, mesmo que estimulado pelo que temos visto de pior. A coletânea de Flávio Aguiar, com textos de Anchieta e Jorge Amado, Cyro dos Anjos e Casto Alves, Murilo Rubião, Clarice Lispector e Carlos Drummond de Andrade, entre outros, é um apanhado do imaginário brasileiro sobre a educação, no
“Computadores são inúteis. Eles podem apenas dar a você respostas.”, de
Pablo Picasso. P O N TO & V Í R G U L A
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