Ponto & Vírgula - Ano 1 - Número 02 - Fevereiro de 2010

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Revista laboratório • Curso de Comunicação Social • Jornalismo / Publicidade e Propaganda Ano 1 • Número 2 • Fevereiro de 2010 • Belo Horizonte • Distribuição gratuita

Pão e circo!

Em nome do lucro e da baixa qualidade: quem são, o que querem e para onde vão os tablóides Super Notícia e Aqui. (Págs: 13 a 15)

Consumo, nada mais!

Foto: Pedro Gontijo

Adair Pedro, vende 500 jornais/dia.

Acima de tudo e de todos, a propaganda é o Diabo travestido de Deus. (Págs. 24 a 27)

o carma dos

“adêvogados” À revelia da ética e sem o menor pudor, os “adêvogados” crescem como ervas daninhas, maculando a profissão. (Págs. 6 a 8)

Cruel verdade! Se pode destruir, para que preservar? Vandalismo toma conta da região central de Belo Horizonte. (Págs: 16 a 19) Ponto & Vírgula 02.indd 1

Brasil! Da educação que temos, à que precisamos, resta o simulacro, agravado pela cumplicidade. (Págs. 20 a 23)

Até quando? Mesmo depois de 22 anos, a luta antimanicomial, no Brasil, é refém de seus próprios erros. (Págs: 28 a 32) 12/20/10 7:43:33 PM


Índice 03 04/05 06/08 09/12 13/15 16/19 20/23 24/27

Destaques P&V Fracasso do afeto A excrescência dos“Adêvogados” Floresta Amazônica: bela e maltratada Tablóides: triunfo do mal Belo Horizonte sofre com vandalismo Educação: o bê-a-bá da decadência Propaganda, da sedução ao embuste A ineficiência da luta antimanicomial

28/32 33/34 A paz de Kant Seções Farpas e Confetes 15 Frente e Verso 34 Expediente Universidade Fumec/FCH Presidente do Conselho Curador Prof. Air Rabello Filho Reitor da Fumec Prof. Antônio Tomé Loures Diretora Geral Prof. Thaís Estevanato Diretor de Ensino Prof. João Batista de M. Filho Diretor Administrativo-financeiro Prof. Antônio Marcos Nohmi

Coordenador do curso de Comunicação Social Prof. Sérgio Arreguy

Ponto & Vírgula Editor Geral Prof. Rogério Bastos - SJPMG/2375 Produção Gráfica Pedro Leone (7ºG de Jornalismo)

Caro Leitor,

A

o abrir mão de uma angulação jornalística mais leve, no estilo olimpiano, especializada no espetáculo das performances, como sempre fugazes e suspeitos, Ponto & Vírgula – à parte a excelente repercussão do lançamento de sua primeira edição – , não quis ser mais real que o rei, nem tão pouco criar uma atmosfera de publicação sisuda, distante, como alguns conservadores defendem ser própria do ambiente acadêmico. Sobre esse devaneio de meia dúzia de intelectuais chatos, carreiristas e espertalhões, vale um lembrete: há tempos que a academia no Brasil, asumiu de vez, por vontade própria ou não, sua condição de instituição ou empresa comum, com tudo que este status popular possa significar. Por tanto, os temas que servem de base para as entrevistas no estilo perguntas e respostas, quase sempre densos e áridos, não foram criados pela nossa revista, até porque eles a precedem e, se são escolhidos mesmo que não sejam novidades, e, com certeza, não o são, é pelo simples fato de que eles tratam da realidade que nos cerca e da qual não podemos nos esquivar. São repetitivos e enfadonhos? Sim. E a rigor, que realidade produzida pelo homem, esse projeto que não deu certo, que não contemple os adjetivos acima citados? E convenhamos: da para sublimar temas engajados, de pegada – o que não significa perda de ternura e bom humor –, para fazer jornalismo sobre o aniversário do big boss fulano de tal; do boom da psicanálise canina ou do novo amor do artista global, por mais estrátegicas que sejam estas pautas? Ponto & e Vírgula, deste fevereiro de 2010, selecinou sete temas que, queiram ou não, estão juntos e agarrados com a nossa insustentável fragilidade existencial. Portanto, nada que não conheçamos e que não sejamos cúmplices: da degradação ambiental da Floresta Amazônica e da região central de Belo Horizonte, que já foi considerada, não sabemos como e nem porque, “a melhor capital do Brasil para se viver”, à falência da educação no Brasil e à excrescência dos “adêvogados” que maculam a profissão; da morbidez e contravenção social dos tablóides sensacionalistas “SuperNotícia e Aqui” à combalida luta antimanicomial, passando pelo viés perverso da relação propaganda/consumidor, nossa revista tem de tudo um pouco, com a qualidade incondicional dos nossos entrevistados. Conta, ainda, esta edição, com os artigos “Fracasso do Afeto”, da psicanalista Inez Lemos e “A paz de Kant: utopia ou realidade”, da professora de direito, da Fumec, e ensaísta-revelação, Karine Salgado.

Apoio Técnico Marconi Edson Repórteres Pedro Leone, Amanda Lélis e Cláudia Lapouble (6º G de Jornalismo); Tarsila Costa, Juliana Pizarro, Bárbara Rodrigues, Bárbara Camargo e Felipe Chimicatti (7º G de Jornalismo) (31) 3228-3127 / redacao.monitoriafumec@gmail.com

Boa Leitura.

As entrevistas e artigos aqui publicados não expressam, necessariamente, a opinião da Ponto & Virgula.


D E S TA Q U E S PONTO & VÍRGULA

Racismo pouco é bobagem! Imagem e legenda abaixo reproduzidas de O Globo

Constrangida com a “troca” da cabeça de um homem negro pela de um homem branco, numa foto, a Microsoft veio a público pedir desculpas e anunciar que vai investigar quem foi o responsável pela alteração. No site da empresa, nos EUA, aparece a foto de um homem, negro, numa mesa de reuniões, ao lado de um asiático. Já no site da empresa, na

Polônia, a cabeça do negro foi trocada pela de um branco. A mão, no entanto, não foi alterada. As duas imagens circularam amplamente há alguns meses, na internet.

Sérgio Lucarelli/Fumec

Equipe Ponto &Vírgula Em sua segunda edição, Ponto & Vírgula contou com a atuação interessada e competente da equipe de alunos e técnico (foto ao lado) do curso de jornalismo da Fumec. Da esquerda para a direita: Carlos Eduardo Doné, Marina Rigueira (8ºG); Alexandre Carvalho (6ºG); Ana Lúcia Bahia (8ºG); o técnico de laboratório, Marconi Edson; Lorena Fortini (8ºG); e de Álvaro Castro (7ºG).

Foto: Geraldo Magela (Collor), Blog do Farid (Renan) e André Dusek (Sarney).

“Um homem e uma mulher se casam porque não sabem o que fazer com si mesmos”, do escritor Anton Tchekhov. A B R E A S PA S

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REPRISE DE ARTIGO Arquivo pessoal

Fracasso do afeto *INEZ LEMOS

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amorar, demorar, morar. Namoro implica compromisso afetivo, sexual. Não estamos falando de fidelidade, mas de parceria entre dois que, unidos pelo desejo de habitar o coração do outro, propõem estabelecer um vínculo amoroso. Se namorar é verbo meio fora de moda, o que leva jovens à rua engrossando o coro dos solitários, descontentes com o rumo que as relações afetivas estão tomando? Cansaram-se da efemeridade das relações, quando bacana era “ficar” juntos sem compromisso? O Movimento dos Sem Namorado, veiculado na mídia há algum tempo, nos surpreende e merece reflexão. As palavras de ordem eram: “cansei de ser sozinho” e “quero namorar”. O que mudou na sociedade que leva uma multidão a reivindicar, em ato público, afeto e amor? O amor, ao se tornar palavra de ordem, revela estranhamento. Se sempre houve demanda por parceria amorosa, por que o namoro e o amor se tornaram raros? O que, na sociedade atual, contribuí para o fracasso do amor, do afeto? Vivemos a sacralização da mercadoria quando a vida afetiva é contaminada pela lógica do consumo, do custo/benefício. Tudo incentiva o sucesso profissional, financeiro e não afetivo. As propagandas estimulam o desejo por objetos - não por pessoas. O amor se coisificou - o objeto de desejo é mais o carro do namorado que o próprio namorado. Como poderia 4

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ser diferente se esta geração foi educada e alfabetizada pela TV, absorvendo propagandas com imperativos categóricos como o “compre já”? A publicidade é elaborada por psicólogos, que se empenham para que a propaganda atinja as crianças de forma contundente. Há muito, o marketing utiliza psicólogos para fisgar crianças para o mundo do consumo, explorando a ingenuidade delas. Crianças e adolescentes, inseridos na mania consumista, dificilmente conseguem dela se livrar. Explorar a vulnerabilidade dos adolescentes é estratégia antiga. Lembramos que a adolescência é fase delicada da vida: inseguros, muitos apostam na aparência para solucionar conflitos e temores. Explorado, isso é rentabilidade garantida. É comum ouvirmos que as crianças já nascem sabendo o que querem. Pouco adianta tentar demovê-las de seus desejos. Ora, se desde que nascem são bombardeadas pela indústria de marketing, propondo um estilo de falar e de se comportar, como poderia ser diferente? O grande mestre da atualidade é o publicitário, que nos dita a maneira de ser, de vestir e de pensar - sujeito desejante forjado na vídeomania. Desde cedo, somos convocados, como consumidores, ao lugar do gozo, a permanecermos na ilusão de completude pela via da aquisição. O que ocorre é a eternização na insatisfação. Consumir se tornou um ato de fé. Vamos ao shopping com a mesma

fé com que antes íamos à Igreja. O grande Outro da publicidade, com suas palavras de ordem, intromete-se em nossas vidas, influenciando gosto, desejo e escolhas. A indústria cultural de massa atua no psiquismo manipulando imaginários e mobilizando paixões. O laço social é promovido por um emissor de imagens que oferece uma identificação calcada no gozo sem limites. Gozo é quando temos prazer e desprazer. No ato da compra, descarregamos nossa pulsão sexual, ele nos eleva e nos deixa felizes por estarmos adquirindo algo. Uma ilusão de completude por alguns minutos, para depois voltarmos ao momento anterior de insatisfação. Quando não interrompemos a cadeia viciada de satisfação/insatisfação, quando não questionamos a compulsão que nos domina e nos leva às compras, nos eternizamos na repetição - sintoma que circula sob gozo mortífero. Saudável é agir fora do gozo. Para tanto, devemos saber mais sobre nossas pulsões, essa coisa que não cessa de se inscrever, de pulsar. Ao analisarmos a demanda dos “sem namorados”, devemos fazê-lo em consonância com o momento que vivemos, quando o amor surge vinculado a objetos. Várias propagandas associam o casal apaixonado à mercadoria, transmitindo a idéia de que o amor só se realiza por meio da matéria - o sentimento é excluído da relação. O encontro amoroso é mediado pela linguagem, que vai fazer


a conexão entre os dois enamorados. A linguagem se apresenta sob a forma de objetos que a cultura elege como representantes do amor - o carro, o vinho, a loira de cabelos esvoaçantes. A loira entra como metáfora da mulher amada - cultuada pela mídia como objeto de desejo dos homens. Os objetos ocupam o lugar da falta, a partir da qual o desejo circula. Significa dizer que somos estimulados a tamponar a falta de amor com objetos de consumo. A mercadoria entra em nosso imaginário como o objeto que simboliza o amor.

“Hoje, muitos jovens se sentem excluídos por não portar o tênis da moda, a jaqueta do momento. A ilusão da inclusão pela aquisição de mercadorias é devastadora e atesta o lamento do poeta, ao denunciar nossa inocência quando nos posicionamos como demissionários de nós mesmos, aderindo a modismos e tendências.” Quando substituímos a pessoa por mercadoria - a mulher ou o homem como acessório - o alvo é o objeto que opera como gozo. Nesse momento, o mestre da publicidade intervém na estrutura do desejo humano. Se algo no campo da parceria amorosa não vai

bem, isso significa que a demanda deveria recair sobre a forma que a sociedade de consumo elegeu para viver os sentimentos, o afeto. Trata-se de questão anterior, estrutural. As garotas e os garotos não estão demandando apenas namorados, eles estão demandando um outro mundo. Um mundo que valorize os sentimentos, que acolha o desejo e a necessidade de amar e acariciar. Um mundo cujo mestre é o afeto. Consumir objetos não satisfaz as necessidades do coração - contente é o coração cheio de gente. O amor se torna supérfluo diante de tantas palavras de ordem emitidas pelo Outro do mercado. Diferentemente das histéricas freudianas, que não sabiam o que queriam, as moças de hoje pensam saber o que querem ao demandar objetos de consumo. Se soubessem não estariam na rua, reivindicando namorado. Marx criou o conceito de fetiche (que Freud levou para a psicanálise) ao analisar o valor excessivo que os industriais passaram a atribuir à mercadoria, um brilho a mais para torná-la sedutora e enfeitiçar corações. Fetiche, feitiço. No mundo da mercadorização, o objeto de consumo é apresentado como condição indispensável para concretizar a relação sexual. A fantasia se deslocou do inconsciente para tudo que é vendido como objeto de desejo: carro, bebida, seios, bunda. Instaura-se a crença da satisfação via aquisição do modelo de vida veiculado pela mídia. Como se fosse possível um objeto capaz de acionar o desejo sexual entre duas pessoas, unindo-as em perfeita harmonia, sem conflitos, sem estranhamentos. A idéia romântica de almas gêmeas cabe bem em publicidade de carro e de uísque, mas no real do sexo deixa a desejar. No centro do fetiche está o deslocamento da pulsão sexual para o objeto, aquele que captura olhares sôfregos e desejosos de amor e de sexo. A forma como nos relacionamos com os objetos revela aspectos de nossa sexualidade. Antigamente, ir às compras era ritual que incluía dia e hora. Tudo era planejado com antecedência, inclusive o dinheiro, pois, geralmente,

as compras eram à vista - crediário era muito chato e demorava ser liberado, implicando carnês a serem pagos mensalmente. Com os cartões, todo dia é dia de compras. Esperar, saborear. O dia de escolher o vestido da festa era uma epifania. A escolha dos objetos era um ato original, cerimonioso - quase religioso. Convocávamos os deuses e consultávamos as entranhas, pois a escolha equivocada implicava termos de usálos mesmo assim. O psicanalista Charles Melman recorre a Lacan para denunciar a devastação que o dinheiro provoca no sujeito quando esse ocupa o lugar do objeto perdido - lugar original, de onde emana o desejo: “Quando Lacan diz que o dinheiro é o significante mais aniquilante que há, ele não diz outra coisa senão que é o lugar onde todas as significações se anulam. É a operação onde se acha enfim dada a resposta à questão do ser, esse famoso “Quem sou eu”? O que queremos obturar, ao aderirmos ao destino traçado pelo mestre do merchandising? Não é nada fácil recusar as ofertas de consumo, de endividamento, de estilo de vida e de ideal de afeto e amor que nos querem vender. Não é fácil descobrir o que realmente nos agrada e nos faz bem, o que está em consonância com a forma que gostamos de ser e viver. “Em minha calça está grudada um nome/ que não é meu de batismo ou de cartório/ Um nome...estranho/...Com que inocência demita-me de ser/ Eu que antes era e me sabia tão diverso dos outros, tão mim-mesmo/ Ser pensante, sentinte e solitário”. Em “Eu, etiqueta”, Drummond manifesta sua indignação com as grifes que desapropriam o indivíduo de sua morada interior. Hoje, muitos jovens se sentem excluídos por não portar o tênis da moda, a jaqueta do momento. A ilusão da inclusão pela aquisição de mercadorias é devastadora e atesta o lamento do poeta, ao denunciar nossa inocência quando nos posicionamos como demissionários de nós mesmos, aderindo a modismos e a tendências. Afeto não é coisa para cair de moda.

*Psicanalista

“Não importa com quem se case, sempre se acorda casado com outra pessoa”, de Marlon Brando. A B R E A S PA S

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E N T R E V I S TA Arquivo pessoal

Pai, afasta de nós os “adêvogados”, pai! Segundo diagnóstico da própria categoria, 30% dos dez mil bacharéis / ano que formam e inundam o mercado, constituem-se de aventureiros, sem lenço e sem documento, dispostos a tudo, até que se transformem, sem sacrifício, nos “adêvogados” de amanhã. Em quanto isso, reféns de seus próprios limites, embora indignadas, a OAB e as faculdades de Direito, em Minas Gerais, não têm outra alternativa senão copiar Pôncio Pilatos. GLADSTON MAMEDE Professor

ANA LÚCIA BAHIA 8º G DE JORNALISMO

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ois assuntos vêm pautando, com frequência e desconforto, as conversas, encontros e debates dos advogados mineiros: o número exorbitante de reprovados pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-MG), que chega a 70% dos cerca de 24 mil inscritos para os exames que anualmente realiza. O outro, tão ou mais polêmico que o primeiro, diz respeito ao crescimento, também exorbitante, do contingente de profissionais do direito sem escrúpulos. Por causa de alguns vinténs a mais, e em “nome da lei” e da “democratização da justiça”, essa turba de profissionais, aqui denominados de “adêvogados”, embaciados e de posse do registro da OAB, espécie malograda de salvo-conduto, não conhecem limites éticos, não se constrangem em tripudiar sobre a ignorância e servilismo de sua clientela, cuja maioria integra as classes C, D, e E, e nem tão pouco estão preocupados com o fato de macula a mais antiga das profissões. A mercantilização do ensino é citada como causa de tudo isso, além, é claro, da própria degradação do caráter desses profissionais, por mais que preceda os bancos universitários e a própria OAB mineira. Em entre6

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vista concedida à Ponto & Vírgula, o bacharel em Direito e doutor pela UFMG, professor da Universidade Fumec, Gladston Gomes Mamede da Silva, autor de livros e artigos acadêmicos, e apresentador, há dez anos, do Direito em debate”, cobiçado programa da TV Comunitária de Belo Horizonte, fala com a propriedade de quem domina o assunto. Polêmico como sempre e desolado às vezes, nada escapa à acidez e competência do entrevistado. À parte a complexidade do Direito, porque não é este o enfoque desta entrevista, o senhor acha que a multiplicação dos cursos desta área profissional em Minas Gerais, para atender uma megalomania do mercado, é uma das principais causas do incontrolável número de advogados que se formam sem a devida qualificação? Obviamente, quando o ensino jurídico tornou-se um negócio – e, em muitas escolas, não mais que um negócio – a busca desenfreada por “clientes” levou a uma distorção no número de bacharéis. Pior: como o objetivo é “vender” o curso (e o diploma) e não ensinar, a esmagadora maioria dos bacharéis não tem condições mínimas para o grau que receberam.

Até que ponto a dialética quantidade versus qualidade pode ser atribuída, também, à tradição cartorial brasileira? Afinal, abaixo da linha do Equador, do diploma de um curso superior a uma procuração, do certificado de mestrado a um registro profissional, além de sua valorização canônica, tem um significado que nem sempre corresponde à qualidade profissional e ética de seus signatários. Quais as conseqüências sociais deste imbróglio? Em que medida essa farsa legalizada macula a advocacia? Visceralmente. Uma das primeiras preocupações do Parlamento Brasileiro, ainda no Império, foi com o ensino jurídico: formar bacharéis para ocupar funções no Aparelho de Estado. Assim, em 1824, o Brasil ganhou a sua primeira Constituição e os seus dois primeiros cursos de Direito. Somos, sim, a República dos Bacharéis. Este status do significante que predomina sobre o significado, pode justificar a relação quase que deificada das camadas populares menos favorecidas com os “adêvogados” de esquina? Acho que sim. Importa o título de doutor, não o conhecimento da teoria respectiva. No entanto, não acho que haja uma deificação dos advogados, há uma


deificação dos doutores: advogados, médicos, dentistas, engenheiros etc. E essa deificação é a valorização do conhecimento, lamentavelmente, identificado com o diploma, com os certificados da vida, o que é um erro. Há um discurso hegemônico, alimentado pelo cinismo e comodidade, que debita às faculdades de direito a responsabilidade exclusiva sobre o boom dos “adêvogados”. Essa fala reforça a máxima popular de “vestir um santo para desvestir outro”? Como o senhor analisa essa questão? Onde começa e termina a responsabilidade da formação acadêmica pela aptidão ou inépcia dos alunos, pela ética ou não dos futuros profissionais do Direito? Essas fábricas de diploma têm responsabilidade sobre a quantidade e a qualidade de bacharéis, não sobre o seu caráter. Aliás, nem há uma relação direta entre qualidade técnica e caráter. O que mais se encontra são brilhantes doutores desonestos. E advogados incompetentes, mas bem intencionados e honestos, há às pencas. Bobagem. A humanidade ainda vai perceber que Rousseau estava errado em relação ao bom selvagem; Sade foi mais fiel ao descrever o ser humano. A má formação acadêmica dos bacharéis em Direito não é, necessariamente, uma porta de entrada para advogados inescrupulosos. O senhor concorda? Perfeito. Não há uma relação direta entre escrúpulo e má formação. Aliás, há bacharéis honestos que são analfabetos e, de outro lado, juristas brilhantes que são cafajestes. Aliás, não são poucos, nos dois casos. O fato do ensino brasileiro funcionar à reboque do mercado de trabalho, com suas idiossincrasias perversas, aninhado, simultaneamente, por um Estado sinistro e uma sociedade doentia, que se confunde nos papéis de vítima e algoz, explica a existência e o crescimento desta figura grotesca destes representantes da lei? Data vênia:

onde mora a diferença entre estes, que atuam e transgridem no limbo do cotidiano, e os seus iguais dos gabinetes suntuosos? O ensino, como as outras atividades humanas, atende às demandas da sociedade. Não vejo nada de mal nisso e nem me parece ser uma característica exclusivamente brasileira. Concordo que vivemos um “Estado sinistro”, mas isso é o resultado direto de nossa “sociedade doentia”, ou seja, da minha doença e da sua. De resto, nada disso é específico da advocacia, mas próprio da sociedade, espraiando-se dos templos aos hospitais, passando pelas redações de jornais e, é claro, pelos tribunais e repartições públicas em geral. Informações extra-oficiais dão conta de que está no Direito do trabalho, o maior índice dos advogados sem escrúpulos, como se esta especialidade fosse uma manjedoura da categoria. Como o senhor avalia esta preferência? Não tenho essa informação. Mas, se for verdadeira, a explicação é bem simples: já há uma tradição litigiosa nas relações de trabalho. Assim, o cidadão lesado vê o litígio com mais naturalidade. De resto, o sistema de remuneração também estimula o recurso ao Judiciário Trabalhista: os advogados cobram um percentual sobre a vitória. Se o cidadão perde, nada paga. Em Minas Gerais, existem, aproximadamente, 130 faculdades de direito, das quais 25 estão em Belo Horizonte. Este número resulta em um alto contingente de formandos a cada final de semestre. Como professor, o senhor conhece de perto o que isto significa. Este grande número de formandos implica prejuízo da qualidade profissional? Embora seja provável que a quantidade implique redução da qualidade, essa relação não é necessariamente proporcional. Infelizmente, no caso do ensino jurídico, a probabilidade tornou-se realidade. Mesmo com as exceções de praxe, o ensino superior tornou-se um negócio lucrativo e o Direito é um ótimo produto

para se vender. O custo é baixo e o interesse é grande, principalmente em função dos concursos. O resultado disso é um escândalo. A grande maioria daqueles que bacharelam em Direito, hoje em dia, não tem a mínima condição de ser advogado, juiz, delegado, promotor etc. É um escândalo. Esta produção por atacado não significa, necessariamente, profissionais no mercado de trabalho, atuando como advogados, já que para isto é necessário a aprovação no exame da OAB. Atualmente, os números de reprovação nos exames da entidade têm feito fama pela sua exorbitância. Em 2008, a OABMG teve 24 mil inscritos, e, deste total, 70% foram reprovados. A possibilidade de melhorar o índice de aprovação estaria onde? Na elevação da qualidade do ensino jurídico ou na redução do nível de dificuldade do exame, embora a redução ainda maior na qualidade dos profissionais nos conduza para um cenário no mínimo grotesco. A reprovação não é exorbitante. Exorbitante é o número de graduados. Veja: estima-se que haja 2,5 milhões de advogados no mundo. Só no Brasil, são 500 mil. Ou seja, 20% dos advogados de todo o mundo estão no Brasil. Pior: há cerca de outros 2 milhões de bacharéis em Direito, no Brasil, fora da OAB, resultado das reprovações no exame de Ordem. Acabando com ele, teremos 2,5 milhões de advogados no Brasil, num total de 4,5 milhões em todo o mundo. Isso é surreal. Segundo a OAB-MG, as reprovações em seus exames acontecem, em sua maioria, nas questões ligadas à prática jurídica. Esse problema poderia ser resolvido com menos aulas expositivas? Ou tudo isso é mais uma forma de escamotear a gravidade do problema que, para muitos, precede as escolas? Não acho que seja um problema de prática jurídica. Acho que é má formação, mesmo. Péssima formação. Lastimável. E, definitivamente, não acredito em prática sem teoria: isso é tentativa e erro

“Prefiro divertir as pessoas na esperança de que aprendam, do que tentar ensiná-las e fazer com que se divirtam”, de Walt Disney A B R E A S PA S

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E N T R E V I S TA e o resultado, habitualmente, é terrível. Acredito que os alunos precisam dominar os institutos jurídicos para, então, praticar o uso desses institutos. Do contrário, aprenderemos como os animais, ou seja, por tentativa e erro. Os delitos mais corriqueiros cometidos pelos “adêvogados” são a retenção dos autos além do prazo legalmente previsto; a apropriação indevida de dinheiro do cliente e a superposição de procuração em desrespeito ao profissional que já vinha atuando. O que significam estas três infrações? Vamos pelo mais fácil: a apropriação de dinheiro do cliente é um crime contra o patrimônio. É ato que aproxima o advogado de larápios e meliantes em geral, embora a apropriação de dinheiro alheio, principalmente dos cofres públicos, seja um esporte nacional. Infelizmente. A retenção dos autos, por seu turno, reflete uma tendência generalizada nos processos brasileiros: prolongar a demanda para evitar o pronunciamento judicial. Lamentavelmente, o processo, no Brasil, é usado como meio para permitir quem está errado “ganhar tempo” para não cumprir com seus deveres. Por fim, a superposição de procurações nada mais é do que um efeito direto do excesso de advogados do mercado: a disputa por um cliente tornou-se um vale-tudo assustador. Por mais que a OAB-MG venha trabalhando, nestas oito décadas, para o saneamento do meio jurídico – a administração atual é rigorosa nesse sentido-,o número desses “adêvogados” que enxovalham a profissão, com destaque para os que atuam na área trabalhista, cresce assustadoramente. Com um agravante: são alimentados pelos bolsões de pobreza no país. O senhor enxerga alguma perspectiva para reverter esta situação crônica? Acho que tudo só vai piorar. Antes de mais nada, estamos achando muito normal esse número exagerado de faculdades e sua péssima qualidade. Portanto, mais e mais bacharéis semi-analfabetos vão chegar ao mercado. Depois, temo que os bolsões de pobreza vão continuar no país. Talvez tenhamos que passar por um banho de sangue para que haja justiça social na Terra de Vera Cruz. 8

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A situação é tão grave, que a atuação da OAB-MG, pelos limites que tem, se restringe a punições burocráticas, do tipo suspensão por 30 dias e coisas do gênero. Em 2008, 1014 condenações foram aplicadas, contra 853 neste primeiro semestre. Mesmo assim, passa a idéia

“Não há uma relação direta entre escrúpulo e má formação. Aliás, há bacharéis honestos que são analfabetos e, de outro lado, juristas brilhantes que são cafajestes”. de uma atuação sem grandes desdobramentos, na base da razão instrumental. Essa atitude não reforça mais e mais a ocorrência de delitos? Sanções burocráticas? Não acho. Para as infrações menos graves, censura. Para as mais graves, suspensões de 30 dias a 12 meses. Para as gravíssimas, exclusão da OAB. Daí pra frente, são crimes e quem tem que punir é o Judiciário. Agora, se aumenta o número de advogados, será inevitável que aumente o número de infrações. O senhor não se assusta, então, com esse número de punições, superando mil por ano? Acho pouco. A OAB vai precisar alterar suas estruturas disciplinares para dar conta de tantos advogados e punir adequadamente. Não é só. Já está na hora de criar um exame de proficiência para excluir da Ordem àqueles que, por não terem se atualizado, já não têm mais condições de advogar. Fugindo um pouco da angulação da entrevista. Há um assunto recorrente que pauta as melhores discussões do seu programa “Direito em Debates”, na TV Comunitária, que são os dois principais modelos da ideologia jurídica: o iurisnaturalismo e o positivismo. O primeiro define-se pelo conceito de Justiça, considera o direito natural como su-

perior a qualquer legislação. O segundo define-se pelo conceito de ordem, e se subordina à legislação, considerando que há justiça apenas quando há ordem. Atualmente, a maior parte dos juristas adota o positivismo como modelo de ideologia. O senhor concorda com esta adoção? Acho que é a solução mais democrática e republicana. Assusta-me a idéia de um “direito natural”. Afinal, o que é natural? Tem muita gente que acha que a homoafetividade é contra a natureza. Muitos dos jusnaturalistas são cristãos e, então, a “camisinha” poderia ser um problema, tanto quanto a “escapadinha” com uma colega de trabalho para relaxar um pouco. O Direito Positivo é fruto do que é votado pelo Congresso Nacional, sancionado pelo presidente da República, debatido pelos teóricos e aplicado pelos tribunais. Valoriza-se o debate democrático e a construção republicana da sociedade. Apesar de adotarem o positivismo, percebe-se que nos momentos de tensão, próprios da prática profissional, estes mesmos juristas se vêem atropelados entre os dois modelos, isto é: entre o direito de leis e o direito natural. O senhor concorda que este embate pode culminar num problema ético? Não acho que os modelos se atropelem. Mas concordo que há, sim, um embate, e que, neste debate, alguns atores tem o direito de expressar sua posição sobre o que seja “natural” ou que seja “justo”. Esse debate é democrático, as crises sociais são democráticas e o “problema ético” é inerente ao ser humano em sociedade. É só abrir um debate sobre o aborto ou sobre a pena de morte para que possamos percebê-lo. “O contato com a ética vem da nossa formação familiar e profissional. Há duas grandes oportunidades de fazer florescer os princípios éticos na nossa vida. Primeiramente, em casa, em seguida, na escola”. O senhor concorda com esta fala do presidente do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB-MG, Eduardo Machado Costa? É uma redução simplificadora, mas não está errado.


E N T R E V I S TA

Arquivo pessoal

Amazônia ainda é possível, apesar dos homens Tão ou mais difícil que a luta pela preservação da Floresta Amazônica, onde o desmatamento encabeça o leque de sua degradação ambiental é o uso político e econômico que dela fazem, por mais que saibamos que a sobrevivência da espécie humana depende da mudança de comportamento frente ao ambiente natural. ALEXANDRE CARVALHO 6º G DE JORNALISMO

MARIA DALCE RICAS Ambientalista, presidente da Amda

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o lado da corrupção política e violência urbana, é bem provável que o assunto Amazônia seja, hoje, o que mais ocupa a pauta das discussões nacionais. Não é para menos: em torno dela, gravitam, na mesma proporção de tamanho e intensidade, os mais diversos interesses que vão do radicalismo ecológico a diversos tipos de exploração. Infelizmente, a Floresta Amazônica que, ainda e apesar dos homens, ostenta o maior reduto de biodiversidade do mundo, onde residem quase 30 milhões de pessoas, continua sendo objeto involuntário dos mais expúrios desejos da raça humana. Na luta para salvá-la, que implica proteção de seus habitantes - pelo menos é esse o discurso oficial -, o governo brasileiro lançou, recentemente, os programas Terra Legal e Mutirão Arco Verde, que preveem a

regularização de aproximadamente 300 mil imóveis rurais, até então ocupados irregularmente. A inicativa, antes mesmo de ser implantada, já recebeu uma saraivada de críticas de ONG’s, que chama de grileira a Medida Provisória 458, instrumento que ancora e legaliza os terrenos. É dessa e de outras questões ambientais, que a presidente da Associação Mineira de Defesa do Meio Ambiente (Amda), Maria Dalce Ricas, cujo currículo dispensa apresentações, se dispôs a falar para a Ponto & Virgula, deixando claro que é possível a coexistência pacífica entre as atividades econômicas e o uso consciente e sustentável dos recursos naturais. “Das crises nascem as soluções”: com esta afirmativa, publicada em artigo no jornal Hoje em Dia, a senhora parece vislumbrar a possibilidade de que um dia, o governo brasileiro vai encarar de fato o desmatamento da Floresta Amazônica, mesmo com toda a sua complexidade. Isso procede?

Sim. Penso que cada vez mais o governo ficará acuado, principalmente pela opinião pública internacional. A angústia é pensar que até que a pressão fique insuportável, a floresta continuará sendo jogada no chão e sua vida destruída. É pena que a população brasileira seja tão omissa frente à destruição da Amazônia. Fato que, para mim, pode ser classificado, sem vacilo, de crime contra a humanidade. A história não perdoará o Brasil por isso. No Brasil, o que é mais fácil? Ser gestor ambiental engajado ou desmatador? Por que? Ambos são fáceis. O mercado para profissionais da área cresce muito porque aumenta o número de empresas que necessitam de seus serviços, em função de fatores diversos como pressão da sociedade, ação dos órgãos ambientais e mesmo mudança de mentalidade de empresários. Quanto a ser desmatador, os números indicam que também é fácil, porque se fosse difícil, o desmatamento já teria parado. No caso de Minas, por exemplo, restam

“Beleza é o poder pelo qual uma mulher encanta o amante e aterroriza o marido”, de Ambrose Bierce. A B R E A S PA S

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E N T R E V I S TA

Embora o discurso oficial não admita, a questão ambiental no Brasil, a exemplo da educação, há muito que já saiu do seu universo para ocupar, com destaque, o mundo da economia, onde os interesses hegemônicos do capitalismo falam mais alto. Como a senhora interpreta essa questão? Esses interesses, que contam com a condescendência do poder público, tem amesquinhado a política ambiental no país? Queimada na Floresta Amazônica é porta de entrada para outros crimes ambientais Dilapidar recursos naturais não é privilégio do capitalismo. Na vi- preferência toda semana), sapatos, ter usam isso para desmerecer a ação gência do socialismo na URSS, e tam- carro, ir a restaurantes etc. E todos têm das entidades ambientalistas. Mas bém na China atual, o uso dos recur- direito a isso. Só que mesmo que con- não acredito que tenham êxito frente sos naturais de forma irresponsável e seguíssemos reduzir pra valer a desi- às pessoas informadas, que já perceo desprezo pelas outras formas de vida gualdade no consumo, o planeta não bem necessidade de conciliação ensão marcas do sistema. E não dá para tem recursos para isso e não suporta tre atividades produtivas e proteção debitar a culpa somente aos governos, mais os resíduos gerados pelos huma- do meio ambiente natural. Para mim, porque o consumo virou verdadeira nos. Então a solução passa por redu- existe nessa postura um certo saudofebre. A roda da economia gira a partir zir o número de habitantes e mudar sismo da ditadura militar, que via em da demanda, o marketing garante a in- os hábitos de vida. Nós, seres huma- qualquer manifestação da sociedade dução ao desperdício. Ou seja, quanto nos, criados "à imagem e semelhança civil ameaças a seu poder. Praticar demais desperdício, mais consumo de de Deus", temos dois caminhos para mocracia parece ser difícil ainda para supérfluos, maior será a demanda de aprender: vendo o que está diante dos muitos empresários e representantes recursos naturais, maior o número de nossos olhos ou pela dor. Infelizmen- do poder público. Por isso ficam tão empregos gerados. O mundo ainda te, a história mostra que raramente furiosos quando os criticamos e dizenão aprendeu que o planeta é limi- agimos através do primeiro, o que sig- mos que desenvolvimento não pode tado. Poucas foram as vozes, e não nifica prevenir. Preferimos nos matar. destruir a natureza e acabar com os foram ouvidas, que alertaram sobre E é o que vai acontecer para preservar recursos naturais. necessidade de aproveitarmos a crise a espécie. econômica para buscar outro modelo Com a mesma veemência e simmenos insustentável. Ao contrário, a A senhora não acha que a primei- patia, o presidente Lula anistia os receita da solução da crise é aumentar ra conseqüência desta perversida- desmatadores do passado, defende a novamente o consumo. de superestrutural é o menosprezo MP458, chamada pelos ambientalisAs leis da natureza são implacáveis. pelos ambientalistas, tratando-os tas de MP da Grilagem, proclama os Quando uma espécie se prolifera em como simples idealistas? A ex-mi- usineiros de heróis, destina miserádemasia, logo se dá jeito de eliminar nistra e atual senadora, Marina Sil- veis 1% do orçamento do governo ao boa parte dos indivíduos, para que o va, e mesmo o atual ministro Carlos Ministério do Meio Ambiente, e acaequilíbrio novamente se restabeleça. Minc, não carregam esta pecha na ricia o presidente do Senado, José No caso da espécie humana, a reação visão dos poderosos? Sarney (PMDB-AP), atribuindo-lhe já começa a acontecer porque o plaConvivo muito com representan- características especiais, incomuns, neta não suporta seis bilhões de pes- tes do setor produtivo e posso dizer portanto não merecedor das críticas soas. E ainda tem gente que é contra que essa visão não é de todos. Mas ela que tem recebido. O que a senhora controle populacional, como se as ainda predomina, inclusive no poder tem a dizer sobre esta “habilidade” pessoas precisassem apenas de mo- público. Dilma Roussef, por exemplo, política? radia, comida e escola. Todo mundo se não diz, mostra com atos, a todo Que o governo do PT está sendo quer viajar, comprar roupas novas (de o momento, que pensa assim. Eles uma das maiores decepções em nos10

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Tiago Iatesta; projeto Brasil das Águas

menos de 15% da cobertura vegetal do Estado, e, mesmo assim, empresas de ferro gusa e setor ruralista querem continuar derrubando esse pouquinho.


sa história. A lista de citações acima ilustra muito bem isto. E bato palmas para Lula. Consegue manter seus índices de popularidade, apesar de estar patrocinando a destruição da Amazônia (não que o governo anterior tenha sido muito diferente), a liquidação das leis ambientais e dos processos de licenciamento e defender Sarney. Ele é muito esperto. Mas dizem que quanto maior a altura, maior o tombo. A senhora poderia indicar três principais obstáculos que dificultam a política ambiental no Brasil, especialmente com relação à Floresta Amazônica? O governo mantém políticas de estímulo a deslocamento populacional para a região. E onde chega gente, chega destruição. Considerando que fora da Amazônia o restante do país está quase todo desmatado, a conclusão é que se mantém a intenção de jogar a floresta no chão. Outro obstáculo é a ausência do Estado na região, o que, de certa forma, confirma o anterior. Se o governo quer mudar a situação, o Exército, Marinha e Aeronáutica já deveriam ter assumido a fiscalização na região, que, aliás, constitui a maior fronteira com países vizinhos. Certamente não será por Minas Gerais, onde temos alguns batalhões do Exército, que o país "seria invadido". Quando se diz que a Amazônia é "terra de ninguém", é a pura verdade. Os minguados fiscais do Ibama não têm muita opção: ou se tornam coniventes, ou assumem que podem morrer a qualquer momento. A situação é muito difícil porque a cobiça de empresas madeireiras, mineradores, garimpeiros, fazendeiros, posseiros é muito grande. A riqueza está na frente deles. Ficam alucinados diante da floresta, que é vista somente como gigantesco estoque de madeira e outros recursos naturais. É a mesma sensação que tiveram Cabral e sua turma quando chegaram ao Brasil. Pero Vaz de Caminha fala do deslumbre diante da Mata Atlântica, das aves ma-

ravilhosas e dos curiosos habitantes que da praia olhavam seus navios. Ele pode até ter ficado deslumbrado com a beleza, mas o governo português e muitos outros passaram a olhar (e atuar) a floresta somente como fonte de recursos. Quinhentos e nove anos não foram suficientes para mudar isso. Segundo o ministro Carlos Minc, a pecuária é o maior agente de desmatamento da Amazônia. Ou seja: mais uma vez o gado é apenas o sintoma de um contexto maior. A senhora concorda? Minc conhece melhor a situação e deve ter razão, portanto. Mas os posseiros são como formigas e sua contribuição para a derrubada da floresta é muito significativa. Só que não é politicamente correto dizer isso porque, no Brasil, "ser pobre é ser bom" necessariamente. Em grande parte das áreas, eles chegam primeiro, botam fogo, derrubam, matam os animais, depois vendem ou são expulsos por outros mais poderosos e seguem em frente. Se o governo legalizar as terras ocupadas, deveria manter estatísticas, pois aposto que, em poucos anos, muitos venderão e partirão para novas invasões. As madeireiras também são um arraso. As imagens dos rios cobertos por milhares de toras são de doer o coração e esquentar o sangue de indignação. Dói mais ainda por saber que o maior mercado de consumo da Floresta Amazônica está aqui, em Minas, RJ e SP. Arquitetos, engenheiros, construtoras e proprietários não estão nem aí quando querem entupir suas construções de madeira nativa. Nem as donas de casa quando resolvem trocar todos os móveis porque estão fora de moda. Para o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Renováveis (Ibama), o crime ambiental na Floresta Amazônica se assemelha a uma espiral: a destruição tropical reduz a biodiversidade do planeta, que causa erosão dos solos, degrada

as bacias hidrográficas, libera gases, culminando com a tragédia geral. O que fazer diante disto? Continuar lutando. Apoiando o Imazon, Greenpeace e todas as entidades que lutam desesperadamente para mudar a situação. Denunciar ao mundo. Boicotar consumo de madeira da Amazônia. Não há outro caminho. Outra crítica que os ambientalistas não cansam de fazer: as unidades de conservação são desmatadas e viram cidades a qualquer preço, sem a menor infra-estrutura. A senhora diria que a miséria é uma das principais barreiras para a preservação ambiental? No que se refere ao desmatamento, não diria que é uma das principais,

“Pela doutrina religiosa e modelo econômico vigentes, não somos mortais comuns. Somos deuses, com direito a liquidar o planeta e a nós mesmos.” mas certamente interfere. Não adianta criar Unidades de Conservação no papel. Ainda mais na Amazônia, onde o Estado é ausente e o risco de vida é constante. Por isto, quando Lula diz que grande parte da Amazônia está protegida legalmente, esquece-se de informar que as UCs criadas não têm proteção nenhuma ou o que foi feito é insuficiente. Desmatamento, fogo, gado, garimpo, caça, captura de animais silvestres para tráfico são comuns. E essa depredação é praticada por pobres, remediados, ricos e milionários. Quase todos nós vimos o filme do Bambi, choramos quando os "homens" chegam, ateiam fogo, e se-

“Qual a coisa mais humana para você? Poupar alguém da vergonha”, do filósofo Nietzsche. A B R E A S PA S

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E N T R E V I S TA param-no da mãe, que é morta a tiros. Seu pai, imponente e valente, o salva, levando-o para onde os “homens” não chegaram. Enquanto escrevo isto, alguns milhares de animais já foram mortos ou capturados e milhares de árvores derrubadas. Os habitantes da floresta vivem em permanente terror. Em recente pesquisa, o Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon) divulgou que 86% dos crimes de desmatamento da Floresta Amazônica ficam impunes, e um crime ambiental tem apenas 14% de chance de sofrer punição. Isso não é desanimador? É uma realidade que não é privilégio da Amazônia. Por aqui, também, isso acontece. O que não é de se surpreender, pois reflete omissão da sociedade, poder público, judiciário, legislativo e a cultura de que crimes contra a natureza são secundários diante de assassinatos, roubos etc.

Que fim tomou a Lista suja? A Lista Suja (LS) da Amda foi divulgada de 1982 a 2006, com o objetivo de denunciar os maiores responsáveis pela degradação ambiental em Minas Gerais. A idéia era mostrar à sociedade que a degradação ambiental "não cai do céu". Ao contrário, tem responsáveis que devem ser denunciados e cobrados. O fim da LS, anunciado no dia 5 de junho de 2007 se deve ao fato de que as grandes corporações industriais e minerárias, até então maiores responsáveis por problemas ambientais no Estado, adequaram-se às leis ambientais. A entidade reafirma que ainda há muita poluição industrial, mas praticada por milhares de peque-

nas e médias empresas. É bom deixar claro, que a extinção da Lista Suja não significa recuo da Amda no que se refere à utilização da denúncia, protestos públicos e ações judiciais contra empresas e órgãos poluidores. O que o meio ambiente pode fazer por nós, mortais comuns? Pela doutrina religiosa e modelo econômico vigente, não somos mortais comuns. Somos deuses, com direito a liquidar o planeta e a nós mesmos. Para a natureza, somos parte dela e, se agirmos como tal, estaremos em equilíbrio. Quando lutamos em defesa do meio ambiente, estamos lutando em defesa da espécie humana. A luta ambiental é também social. A recíproca, no entanto, raramente é verdadeira. Curioso é que, a cada dia, mais pessoas sonham em viver "perto da natureza". Mas poucos estão dispostos a mudar seus hábitos de vida e, menos ainda, lutarem por ela. Por outro lado, esses poucos estão aumentando. Nesse cenário, existem, em meu entender, despreparados, radicais, chatos etc. Mas, pelo menos, tentam fazer algo. E, como disse o poeta Gonçalves Dias, "viver é lutar". Então, vamos em frente! Gérard Moss: projeto Brasil das Águas

É possível citar alguns acordos nefastos assinados pelo governo brasileiro, na área ambiental? Lula assina tudo que seus ministros "cinzentos" colocam em sua mesa: modificou decreto que havia assinado, exigindo cumprimento do Código Florestal; revogou a legislação que protegia o rico acervo de cavernas brasileiras; dispensou, através de medida provisória, licenciamento para ampliação e asfaltamento de rodovias; transformou o teto mínimo de 0,5% da compensação ambiental em máximo; recusa-se a criar unidades de conservação que possam prejudicar projetos econômicos e políticos, e para completar, institucionalizou a grilagem de terras na Amazônia.

do desmonte da política ambiental no país. Lula e sua equipe, de forma geral, não conseguiram entender ou entendem (mas são imediatistas e irresponsáveis) que utilizar recursos naturais de forma correta é passaporte para o futuro. Acredito também que consideram besteira de ambientalistas e acadêmicos pensarem que as demais formas de vida que compartilham o planeta com a espécie humana, têm direito à vida.

“Beijo no coração de quem luta pela sustentabilidade do crescimento no Brasil”. O que significa esta pérola citada pela ministra Dilma Roussef, durante evento político em Porto Velho (RO)? Falsa e teatral. Digna de quem quer se candidatar. A não ser que tenha se referido à sustentabilidade do capital. Aí sim, foi muito autêntica e coerente, pois ela tem sido o principal baluarte Quase 280km2 da Floresta Amazônica foram devastados em 2008 12

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E N T R E V I S TA

SuperNotícia e Aqui “O deserto da sub-cultura” Arquivo pessoal

Seguindo uma tendência nacional, os tablóides sensacionalistas da capital mineira negligenciam a qualidade editorial, distribuem simplórias premiações, empulham seus leitores, batem recorde de venda, comemoram e revivem o imperador Adriano, para quem “ao povo, basta pão e circo”. ÁLVARO CASTRO

VERA CASA NOVA

7º G DE JORNALISMO

Professora e pesquisadora

Q

ue eles são sucessos de venda em Mina Gerais, já não é novidade para ninguém. Ao preço de R$ 0,25 o exemplar, somado à distribuição de prêmios aos seus fiéis leitores, o resultado não poderia ser outro: os tablóides SuperNotícia e Aqui, respectivamente, sub-produtos jornalísticos de O Tempo e do Estado de Minas, estão “bombando”, no linguajar de seus próprios consumidores, como se fossem mercadorias em final de feira popular. Pautados, sobretudo, pelos acontecimentos trágicos, exposição sexual e futebol, tudo ancorado por uma narrativa sensacionalista e vulgar, e pelo expressionismo de cores e imagens agressivas, os dois folhetins são voltados para as classes mais populares, que, com se sabe, encontram nestas publicações, a projeção estampada de suas próprias vidas, forjadas pelo senso comum. Verdade seja dita: o sucesso e venda destes tablóides, ainda que justificado pelo cinismo da “democratização da informação”, é igualmente proporcional à sua baixa qualidade. Tudo reforçado pelo hábito dos milhões de brasileiros excluídos, que insistem em confundir leitura com informação.

A professora da UFMG, doutora em semiótica pela UFRJ e pós-doutora pela Ecole dês Etudes Sociales, de Paris, em antropologia visual, Vera Casa Nova, ao ser ouvida pela Ponto & Vírgula, fala a respeito do sucesso do SuperNotícia e do Aqui e, sobretudo, do que ele esconde. O jornalismo popular sensacionalista surgiu na França, no início do século XIX, através dos canards (panfletos informativos que divulgavam catástrofes). A partir daí, é possível afirmar que este tipo de imprensa, com seus horrores e bizarrices, é uma extensão do ser humano? Extensão do ser humano? Talvez se possa pensar numa espécie de jogo perverso, numa espécie de transferência de desespero que existe no meio humano. Por detrás deste tablóides, que são criados para as classes C,D e E, camufla-se uma postura perversa, isto é: nivela seus leitores na vala comum da superficialidade da notícia, do abominável, do grotesco, em nome da democratização da informação. O que a senhora acha deste cinismo ético?

Realmente há um cinismo ético com relação à classe dirigente das mídias. Se pensarmos no que é a perversão (eu sei, mas mesmo assim...”), talvez possamos compreender que existe um espelho que nos reflete refletindo esse cinismo. Ao moldar sua narrativa e imagens às características culturais de seus leitores, os jornais Aqui e SuperNotícia parecem eximir-se de qualquer outra responsabilidade, de qualquer outra função jornalística. A senhora concorda? Por que? O que podemos pensar, hoje, em termos de características culturais? A Indústria Cultural conseguiu fazer com que os mass mídia homogeneizassem as culturas. Esses jornais não têm identidade nem responsabilidade de informação. Selecionam o material conforme o jogo de interesses de venda, para as classes C, D e E. Mas o que eles sabem dessas classes? Continuam a manipulá-las, através de pacotes alienantes. Vemos hoje um boom de reality shows, a começar pela televisão, que é um pouco do que vemos nos tablóides. Sob quais pontos de vista se

“Em geral, o homem só é sociável na medida em que foi intelectualmente pobre e ordinariamente vulgar”, do filósofo Schopenhauer. A B R E A S PA S

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E N T R E V I S TA justifica essa valorização e sede de audiência pelo o que há de pior? A morbidez social passa por este caminho? A TV é um buraco de fechadura por onde se espia a vida alheia.Olha-se o que se quer ver. Morbidez social? O outro lado dessa morbidez pode ser o que esse leitor deseja: “meu time”, “mulher boa” e crime. Mulher boa que aponta para o erotismo, que, implicitamente se apresenta como violência. A curiosidade em ler sobre os crimes se relaciona a um estado de morbidez inconsciente, mas sobretudo a um modo de ver a vida.Estamos sempre diante da morte, no presente e no futuro. Diferentemente da tradição dos tablóides ingleses, que pregam um sensacionalismo voltado para a vida das celebridades, os jornais populares de BH se pautam, sobretudo, por violência, sexo e futebol (a ordem aqui altera o produto). Como a senhora explica este fenômeno? Violência, sexo e futebol, antropologicamente, se tocam porque se espelham através da própria violência que há em nós, latentemente. Aqui as celebridades são mostradas em revistas especializadas nisso. Apelar sempre foi mais fácil. Esse tipo de imprensa como Super, Aqui e outros fazem parte do que podemos chamar de deserto da subcultura. Trata-se do avesso obsceno da cultura de massa no Brasil. Crime, sexo e futebol constróem o ritual de iniciação do machismo, aliás, do Supermacho de nossa cultura. Esses signos trazem os traços de uma identificação excessiva com o sistema de poder, poder gerador de seu próprio excesso. Esses três signos fazem parte da máscara ideológica e das formas de regulação e controle da sociedade. “Aproximar-se cada vez mais do leitor” é a tese defendida para justificar a existência desta imprensa. Parece que, em nome dela, tudo é possível: mulheres nuas, exposição da miséria humana, linguagem vulgar, informação minimalista etc. A senhora acha que tudo isso é um reflexo da espetacularização da vida humana? Por que o leitor comum se 14

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identifica tanto com este formato? O leitor comum desses tablóides se identifica com a morte em todos os seus aspectos. A imagem possibilita isso. As pin-ups fotografadas glorificam o corpo nu (aliás, desde o século XIX). Esses tablóides funcionam como verdadeiras máquinas de propaganda ideológica que se mascara em cada página lida e virada. Nada como uma boazuda para levantar o moral do time que perdeu e do crime que deprime. Apoteose da nudez e da mulher-objeto, sem falarmos da sociedade do espetáculo que já é um clichê. O crime é um espetáculo, Reproduçõo

nalistas acabam por reificar uma imagem de insegurança. O Estado faz uso desta situação? Insegurança e medo, ao mesmo tempo que imagens mostram um certo tipo de poder a defender os indivíduos dessa sociedade. Violência e poder sempre andaram juntas. O empresário Vitório Medioli não cansa de enaltecer o SuperNotícia pela vendagem astronômica e pela oportunidade que abriu para a massa. Contudo, é sabido que uma das estratégias de venda são os brindes distribuídos. Como a senhora avalia esta questão? E viva o capital!! Poderíamos dizer

Sensacionalismo e baixa qualidade editorial: receitas de recorde de venda

a mulher nua é um espetáculo e o futebol é outro espetáculo. Se o leitor se identifica com esse formato é sinal que seu desejo anda abafado e massacrado pelo cotidiano e pelas faltas que se mostram. Pode-se afirmar que este tipo de mídia é algoz e vítima do macabro? Penso numa animalidade crescente no meio social. Se pensarmos no erotismo, por exemplo, isso é claro. E uma das características dessa violência se relaciona à opressão ou à luta (guerra). Guerra entre tribos ou times de futebol. No trato com a vida urbana entregue aos caos, os tablóides sensacio-

isso. Brindes que são brinquedos (carrinhos em miniatura) nos mostram como os donos da mídia consideram o leitor. Um medíocre, uma criança grande, ou mesmo um imbecil. Quais as virtudes que a senhora encontra na introdução da leitura destes tablóides pelas camadas populares? Só a de criar um hábito de leitura. O escracho não deve ser levado a sério, sobretudo, porque o leitor não tem poder de crítica. Tanto o SuperNotícia quanto o Aqui são jornais de notícias curtas, quase


ARTIGO um grande apanhado de leads. Isso é uma resposta à velocidade e simplicidade de informação na internet? Acredito que sim. Embora, sem consistência é informação perdida.

Farpas

Os dois jornais são extremamente carregados em termos visuais. Essa opção é uma forma de compensar a falta de conteúdo?

Confetes

“M

www.silvani.tk

ichael Jackson, esse mutante, esse misantropo, era um dos últimos humanos modernos a acreditar e viver, antigos teoremas da inconveniência de ter nascido”. Do jornalista e filósofo francês, Bernard Lévy, revista Ciência & Vida Filosofia, nº 39.

“Violência, sexo e futebol, antropologicamente, se tocam porque se espelham através da própria violência que há entre nós”.

“N

ão há verdade absoluta na política. Isso é coisa de planície, onde mentir é feio, indigno e vergonhoso”. Do jornalista Marcel Debrot, jornal Hoje em Dia, de 29.08.09, página 2.

“A

cada dia, mais pessoas desaprendem sobre o que é um bom jogo de futebol. Outros sabem, mas fingem que não sabem para não cair a audiência. Qualquer pelada é um grande jogo, de muita intensidade”. Coluna do Tostão, jornal Estado de Minas, de 11.08.09.

Há interesse em conteúdo? O conteúdo está na forma e vice-versa. A imagem diz tudo. Distribuição de prêmios e preço irrisório por exemplar, bem no estilo pão e circo do imperador Adriano. Qual análise a senhora faz deste maquiavelismo? Desde sempre foi assim. Sobretudo na pós-ditadura brasileira. Mas pensando no que o capitalismo se transformou, onde a cultura de um povo não é mais vista como um bem simbólico... só valendo a cultura de massa. A degradação está aí. Podemos vê-la a olho nu. Fanatismos de todas as espécies. Mais um pouco nos tornamos fundamentalistas. Já não nos transformamos em vitimas de nossos fantasmas?

“M

arina Silva representa a utopia, simboliza a agenda do futuro, que é o desenvolvimento sustentável. Dilma é a mãe do PAC e a candidata das empreiteiras”. Do jornalista Leonardo Attuch, revista Isto É, de 19.08.09.

“A

voz, o olhar e o dedo de Dilma Roussef, e a segurança com que ela vocifera suas verdades, são quase tão apavorante quanto a voz e o olhar do Collor, quando está possuído”. Da jornalista Danusa Leão, jornal Folha de São Paulo, de 16.08.09.

“A

patética afinidade entre Lula, Chávez & Morales explica-se, em parte, pelo imediatismo e pobreza da visão dos três. Nenhum deles jamais confiou na democracia”. Do jornalista Tião Martins, jornal Hoje em Dia, de 20.08.09.

commons.wikimedia.org

Que expectativa a senhora nutre em relação à mídia dos tablóides sensacionalistas? Nossa vida urbana é um tablóide melhorado? Nenhuma. Esse tipo de imprensa abutre que vive de comer restos e de vomitálos estará sempre aí, mostrando seus dejetos. Nossa vida não deve se pautar por esse tipo de mídia medíocre.

&

“E

u venho obrando, obrando e obrando em sua cabeça, para que alguma graxa possa melhorar seus neurônios”. Do senador Collor de Mello, referindo ao jornalista Roberto Pompeu de Toleto, revista Isto É, de 19.08.09.

“Minha idéia de uma pessoa agradável é a de uma pessoa que concorda comigo”, do aristocrata inglês Disraeli A B R E A S PA S

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E N T R E V I S TA

Região Centro-Sul de BH

O caos com aparência de ordem

Arquivo pessoal

Sufocada pela concentração urbana de 260 mil habitantes e pelo tráfego de quase um milhão de pessoas por dia, que significa, no mínimo, mais problemas que soluções, a região padece com os roubos, a danificação e a destruição de seus bens públicos. FERNANDO CABRAL Secretário Municipal Regional Centro-Sul

LORENA FORTINI 8º G DE JORNALISMO

P

rogresso e urbanidade, paradoxalmente, são coisas distintas e não assentam na mesma mesa. Pelo menos é o que se pode concluir ao deparar com os problemas de degradação que atingem em cheio a regional Centro-Sul de Belo Horizonte. Da violência entre as pessoas, da aridez do trânsito de veículos, passando pela destruição de logradouros públicos e roubos de equipamentos, a região, que conta com 49 bairros e uma população estimada em 260 mil pessoas, é um verdadeiro caos social com aparência de ordem, por mais que a Secretaria de Administração Regional Municipal – à frente o incansável gestor Fernando Cabral, tente mudar este perfil. Como se fosse uma estranha no ninho, a regional cria e implanta projetos, recupera o patrimônio, constrói novos espaços, encabeça campanhas educativas, fiscaliza, repreende e multa. O resultado de tamanho esforço? É pífio, se considerarmos que em pouco tempo tudo volta como antes. A Centro-Sul, outrora ordeira e recatada, a exemplo de tantas outras regiões das grandes capitais brasileiras, gasta R$ 100 mil 16

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/ mês com vandalismo que, em síntese, reflete o descaso da população com os bens públicos, a deseducação social e o desrespeito, o que faz lembrar a pertinente observação do sociólogo e urbanista polonês, Zygmunt Bauman, autor do exemplar livro Confiança e medo na cidade, recentemente lançado pela editora Zahar: “As cidades, nas quais vive hoje mais da metade da população mundial, são, de certa forma, os depósitos onde se descarregam os problemas criados e não resolvidos no espaço global”. O professor e biólogo Fernando Cabral, ex-vereador pelo PT de Belo Horizonte, e secretário municipal da Regional Centro-Sul, nos concede a entrevista abaixo. Pela qualidade do entrevistado, um otimista por excelência, e contundência do assunto, os leitores de Ponto & Vírgula, desde já, agradecem. O senhor está há sete anos à frente da Regional Centro-Sul, que abrange 49 bairros, onde habitam cerca de 260 mil pessoas, com uma enorme diversidade cultural (educação, profissão, hábitos, interesses, sensibilidades, perspectivas etc). Isso

torna sua administração difícil, voltada apenas para as ações terapêuticas? Administrar não é fácil, mas não podemos ignorar que lidamos com seres humanos e por isso temos que ter uma paciência pedagógica. Nós temos um problema cultural, enraizado, que não é peculiar só de Belo Horizonte. Nestes sete anos que estou à frente da Regional Centro-Sul, tive a oportunidade de montar uma excelente equipe e juntos estamos mudando a cultura dessa região central. As pessoas que achavam que tudo podia, em função do poder econômico, estão percebendo que hoje tem lei e que essa lei precisa ser respeitada. Agora, não posso ignorar que há uma fragilidade do poder judiciário e que essa fragilidade, às vezes, dificulta o nosso trabalho, mas eu me sinto realizado e não me sinto fazendo ações terapêuticas. Eu acho que a região central tem mudado de maneira bastante significativa. Ao trabalhar sobre os sintomas da degradação urbana, pelas imensas dificuldades de atuar sobre as causas, o senhor não teme que a região Centro-Sul de Belo Hori-


zonte se transforme num novo Rio de Janeiro, e que venha necessitar de um “choque de ordem”, no estilo Eduardo Paes? Ou o que acontece naquela cidade é prerrogativa da idiossincrasia carioca? Primeiro eu queria desmistificar um certo aspecto, Belo Horizonte não chegou a uma realidade próxima à do Rio de Janeiro que venha requerer um choque de ordem. Na realidade, há sete anos caminhamos na tentativa de coibir toda forma de abuso e desrespeito à lei. Agora, tem uma realidade na região central que vem sendo corrigida. Essa região foi objeto de uma equivocada política governamental, assim como outras cidades também foram vítimas disso, de se abandonar o centro e investir em regiões mais nobres, mas isso mudou. A região central de Belo Horizonte vem hoje recebendo inúmeros investimentos. Praças degradadas foram recuperadas, alguns hotéis já foram reabertos, muitos moradores estão voltando a morar no Centro e eu não me canso de falar que quem toma conta de cidade são os moradores e não a polícia e nem a prefeitura. A presença de moradores na região central de Belo Horizonte já vem assegurando uma melhoria significativa dessa parte que antes estava muito degradada. Ainda temos muito a fazer, mas se fizermos uma retrospectiva do passado recente, veremos que muita coisa já melhorou, e muito. O cidadão que rouba lixeiras, pisoteia jardins e picha muros e habitações, segundo uma certa condescendência sociológica, só age assim porque é um excluído social, razão pela qual deve ser educado, mais do que punido. Em contrapartida, o ex-prefeito de Nova York, Rudolph Giuliani, prega a ação repressiva permanente, sob pena das cidades perderem sua autoestima. Com quem o senhor fica? Eu fico com o ex-prefeito de Nova

York. Eu acho que existe hoje uma certa condescendência dos pais com os filhos, de não impor limites e aqui retrato algumas situações que ocorrem na infância e que acabam influenciando na fase adulta. Uma criança quando furta um lápis e as pessoas se omitem não aplicando uma punição, do lápis ela passa para o livro, mais tarde para uma mochila, bicicleta, carro e depois para o bem alheio de uma maneira geral. Para

“No Brasil impera a impunidade para os agressores, para quem pega o bem alheio. A partir do momento que tivermos uma legislação que dê conseqüência a todo ato delituoso, acredito que esta sociedade vai mudar”. cada ato tem que ter conseqüência, a nossa legislação é muito condescendente, mas eu acho que a partir do momento que essas famílias não estão educando, nós temos que agir em cima da repressão mesmo, pois se a pessoa não respeita os pais, os professores, ela vai ter que respeitar a polícia. O bem público é para todos e não apenas para alguns. Para aqueles que praticam vandalismo, a lei tem ser severa e a repressão tem que existir para todos eles. Em nenhum momento quero colocar que essa prática é dos excluídos, pois eu não faço nenhuma exceção de classe social de quem pratica o vandalismo em Belo Horizonte, pelo menos que eu tenha conhecimento. A Lagoa Rodrigo de Freitas, no

Rio de Janeiro, é uma maravilha, no cartão postal. Algumas regiões sofisticadas sob sua administração parecem padecer do mesmo engodo. Como resolver esta questão? Se fizermos uma comparação entre o Rio de Janeiro e Belo Horizonte, nós vamos perceber que a região central de Belo Horizonte difere bastante da região central do Rio de Janeiro. É comum presenciarmos pessoas usando celular nas ruas de Belo Horizonte sem serem incomodadas. Aquela turma muito comum no Rio de Janeiro e em São Paulo de abraçar cidadãos no meio da rua para tomar deles a carteira ou bolsa, isso não acontece em Belo Horizonte. A presença policial, o sistema do olho vivo, a retirada do comércio informal das calçadas ofereceram um grau de segurança bastante significativo para a população, razão pela qual nós temos demanda de empresas querendo vir para Belo Horizonte. Essa é a nossa realidade, agora se alguém considera isso fantasia, eu pessoalmente não considero. Eu vejo Belo Horizonte como uma cidade agradável, que está cada vez mais segura, confortável para se viver e morar. Eu não vejo, portanto, nenhuma região na Regional CentroSul que possa ser comparada com a Lagoa Rodrigo de Freitas, no Rio de Janeiro, ou como engodo. É claro, que não da para avaliar a degradação urbana apenas pelos crimes localizados. O senhor acredita que esta violência é uma forma de projeção da desigualdade social? É neste fenômeno que habita a perversa indistinção entre o público e o privado? Eu não acredito nisso. Eu não acho, inclusive, que pobreza seja motivação para criminalidade. Se analisarmos a Índia, por exemplo, a julgar por esse parâmetro, ela seria um dos locais mais violentos do planeta, o que não é verdade. A questão é realmente cultural, de aprendizagem, de querer levar vantagem em tudo. No Brasil

“A burrice, no Brasil, tem um passado glorioso e um futuro promissor”, de Roberto Campos, em 1990. A B R E A S PA S

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E N T R E V I S TA impera a impunidade para os agressores, para quem pega o bem alheio. A partir do momento que tivermos uma legislação que dê conseqüência a todo o ato e delito, acredito que essa sociedade vai mudar, mas enquanto houver impunidade, vai existir o reforço. O ser humano é movido por prazer e sofrimento e se ele tem a oportunidade de chegar ao prazer sem nenhuma conseqüência dos atos que ele pratica, então realmente ele vai continuar procurando o prazer, tomando do outro aquilo que não lhe pertence e molestando as pessoas quando achar conveniente.

Adão de Souza/PBH

O sociólogo polonês Zygmunt Bauman, em entrevista ao jornal O Globo, refere-se às cidades urbanas como “campos de batalha”. O vandalismo em Belo Horizonte, que custa aos cofres públicos quase R$100 mil por mês, só na região Centro-Sul, passa por esta concepção de Bauman? Não acho não. Não vejo a cidade como campo de batalha. Cidade é um local de convivência, onde as pessoas têm que respeitar o campo alheio e os seus limites. A questão do vandalismo é uma questão de conseqüência, que não é dada a alguns atos. As pessoas que hoje fur-

Pichações são rotina na Centro-Sul

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tam lixeiras, gradis, enfim, tudo que é possível de se carregar, têm acesso aos ferros-velhos e a partir do momento que esses estabelecimentos não se julgam na obrigação de verificar a origem desses produtos, acabam como receptadores, facilitando o furto. Se não existisse a receptação, esses furtos seriam dificultados, pois as pessoas não teriam a quem vender. Há também uma certa “ingenuidade”: muitas pessoas acham que o que é público não custa nada. Quando uma senhora arranca uma muda em um jardim público, ela não avalia que aquela espécie custa dinheiro. A realidade é outra, a prefeitura não planta dinheiro, assim como o Estado também não planta, isso tudo deriva de impostos. Toda vez que um dano é praticado, eu costumo falar que não existe almoço grátis, alguém está pagando. Recentemente, o senhor denunciou numa entrevista à Radio Itatiaia, que a classe média e os ricos, também, degradam as vias públicas, chegando, inclusive a furtar mudas de árvore. É verdade? Como isso acontece? Vamos pegar casos extremos. Uma residência em um bairro nobre de Belo Horizonte chegou a furtar água da via pública para encher sua piscina. Temos também notícia de um processo que correu contra um profissional de curso superior que arrancou 18 mudas de Palmeira na Avenida Nossa Senhora do Carmo. Agora, quem quiser observar esses fatos é só parar na Avenida Augusto de Lima, na praça próxima à Santa Casa ou em outras praças e verificar a marca do carro das respeitadas senhoras que param, muitas vezes, nesses locais para fazer coleta de flores, como se os mesmos fossem feiras grátis. Bares ocupando espaço público, outdoors instalados irregularmente, panfletos de propaganda comercial inundando as ruas centrais da cidade, passeios danificados e por aí vai. O senhor diria que a região

Centro-Sul é uma “resposta nervosa” da violência urbana? Eu não vou considerar como violência, eu vou considerar como falta de educação. Se fizermos uma pesquisa em Belo Horizonte, entenderemos o raciocínio. Vamos pegar como parâmetro a questão da limpeza, eu tenho certeza que as pessoas questionadas ou entrevistadas sobre a limpeza 100% são a favor de uma cidade limpa, no entanto, esse mesmo contingente pesquisado joga uma tonelada e meia de lixo, em média, na região da Praça Sete. As pessoas quando moram nas vizinhanças de um bar e esse estabelecimento as incomodam, elas reclamam, no entanto, essas mesmas pessoas se assentam em outro bar, numa outra região, em que esse mesmo tipo de barulho acontece. Os indivíduos, às vezes, são muito individualistas e eles precisam ter em mente que as coisas que os incomodam também perturbam os outros. É uma questão de educação, as pessoas são favoráveis à limpeza, mas poluem os espaços públicos. São favoráveis às calçadas ficarem liberadas para os pedestres, mas também as ocupam. São favoráveis ao silêncio, mas ao lado de suas casas, pois acabam fazendo ruído nas vizinhanças da casa do outro. Tenho consciência do meu papel ao governar uma região desse tipo, tentando harmonizar as partes no sentido de que o direito de um termina onde o direito do outro começa. O cidadão que picha e destrói, hoje, o patrimônio público, pode ser o mesmo que amanhã, assalta e mata. Como gestor público, de que forma é possível enfrentar esta aspiral delinqüente? Essa situação seria conseqüência do perfil das sociedades contemporâneas, marcadas que são pelo individualismo, pela fragmentação, pelos excessos e impunidade? A pichação hoje em Belo Horizonte não parte de maneira simplória de alguns adolescentes ou de alguns rapazes e moças. Hoje nós temos gran-


Divino Advincula/PBH

de parte da pichação em Belo Horizonte com a demarcação de área feita por quadrilhas perigosas, digase de passagem. A legislação é muito leniente com relação a esse tipo de comportamento. Particularmente eu acho que todas as vezes que o pichador fosse pego ele deveria desfilar em praça pública limpando aqueles locais em que ele andou pichando. Teríamos, no entanto, uma outra situação em que particularmente o pessoal dos direitos humanos acharia essa alternativa uma violação de direitos. Na minha opinião, violação é uma pessoa pegar uma edificação pública ou privada e danificá-la sem que nada venha ocorrer a ele. Eu acho, inclusive, que as penalidades destinadas a pichador tinham que partir do lado econômico. Os infratores deveriam ser obrigados a limpar os locais por eles pichados, assim como as suas famílias também deveriam ser responsabilizadas pela restauração do patrimônio público ou privado danificado. Se isso vier a ocorrer, tenho certeza que a pichação vai diminuir bastante. A regional Centro-Sul, pela infinidade de problemas que enfrenta, é uma realidade que vive entre “a confiança e o medo”, uma espécie de laboratório para os problemas globais. Como sua administração enfrenta este impacto? A descentralização urbana seria uma solução? Na realidade eu não considero a região Centro-Sul por esse parâmetro. Nós temos aqui seres humanos habitando e de uma maneira geral essa convivência é bastante harmônica entre os diversos atores que aqui residem. Tudo é um processo de construção. A partir do momento que nós culturalmente formos modificando e percebendo que o bem-estar da gente passa pelo bem-estar também dos outros, eu tenho certeza que essa cidade como qualquer outra será uma cidade mais agradável. Nós temos

Limpeza do Pirulito da Praça 7 custa, em média, R$10 mil aos cofres públicos

uma região em que habita nela 260 mil indivíduos e que por ela passam, por dia, mais de um milhão de pessoas, é claro que algum tipo de incômodo isso vai provocar, mas é perfeitamente possível conviver com isso. O estrangulamento da região Centro-Sul é um obstáculo que já era previsto. O que faltou a administração pública para enfrentar o inevitável? Na realidade Belo Horizonte foi planejada para 200 mil pessoas, cabendo todas elas dentro do circuito da Avenida do Contorno. A cidade, no entanto, explodiu na parte externa da Avenida do Contorno. Houve falta de planejamento na criação da cidade. O seu traçado facilita muito esse tipo de confusão urbana, mas eu acredito que as últimas administrações têm conseguido contornar um pouco desse problema, no entanto, o futuro desse planeta vai passar por transporte de massa e não pelo transporte individual. O dia que tivermos um transporte de massa eficiente, confortável, pontual e que as pessoas acreditem nele, eu penso que muitos desses problemas venham a ser sanados.

Como gestor público, sua administração não lhe parece uma estranha no ninho. Não lhe da vontade de jogar a toalha? A nossa atuação tem que ser pedagógica, perseverante. Os comportamentos não são estáticos e o nosso trabalho é de insistir. A pessoa suja, nós limpamos; a pessoa depreda, nós consertamos; a pessoa tenta partir para o ilícito, nós fiscalizamos, notificamos. Se a notificação não for cumprida multamos e se mesmo assim o infrator não cumprir com as suas obrigações, recorremos ao poder judiciário. De uma forma geral, eu posso afiançar que a resposta dada pelos moradores da cidade à nossa administração tem sido bastante agradável e positiva. Administrar é preciso; viver não é preciso. O senhor concorda? Um pouco. Só é possível sobreviver debaixo de uma ordem, de uma situação civilizada, debaixo de respeito. Muitas dessas situações de convivência dependem da administração e se é esse o nosso papel, vestimos esta camisa, empreendendo todos os esforços para buscar essa finalidade, esse objetivo.

“A transformação da modéstia em virtude foi de grande vantagem para os idiotas; se espera que todo mundo fale de si próprio como se fosse um deles”, do filósofo Schopenhauer. A B R E A S PA S

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E N T R E V I S TA

Educação no Brasil, a pedagogia do flagelo Arquivo pessoal

Como moeda de troca política ou fonte inegostável de lucro financeiro, o ensino no país, público ou privado, do nível fundamental ao superior, no que ainda lhe resta de sobrevida, continua arrebanhando o bloco dos cúmplices e caricatos do setor: gestores públicos, proprietários de escolas, professores, alunos e sociedade, como se nada tivesse acontecendo. ANA LÚCIA BAHIA 8º G DE JORNALISMO

F

alar da educação brasileira é chover no molhado. Ponto & Vírgula sabe disso e não vê outra forma de contribuir para alguma melhoria, senão insistir na divulgação das mazelas do setor, que começam pela sua concepção mercantilista, passam pela precariedade das infra e super – estruturas, pelo descaso do poder público, até desembocarem no despreparo do comando das instituições, hoje, cada vez mais, transformadas, ora em escolas supletivas, ora em divãs por onde os alunos e seus familiares, ricos ou pobres canalizam, por equívoco ou esperteza, suas ultimas esperanças de recuperação moral e psicológica. São estas as questões que Ponto & Vírgula, modestamente, tenta responder por meio da brilhante entrevista com a antropóloga e educadora, Gilda de Castro. Com décadas de experiência docente, autora de centenas de artigos e ensaios sobre o assunto, publicadas com destaque pela imprensa brasileira, e de diversos livros, entre os quais o polêmico “Professor submisso, aluno – cliente: reflexão sobre a docência no Brasil” (RJ / DP&A, 2003) Castro, doutora em ciências sociais pela PUC de São Paulo, ressalta que, entre tantas distorções da Educação em nosso país, uma das mais caóticas e que merece 20

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um tratamento de choque está nas pedagogias modernas, reforçadoras do modelo escola – empresa e aluno – cliente. Por mais enfadonho que seja o assunto, e ele o é porque meche com as nossas entranhas e expõe nossas chagas, vale a pena conferir a entrevista abaixo. Como a educação pode contribuir com o aluno, preparando-o para enfrentar os desafios, superar obstáculos e criar soluções que o ajudem ao longo de sua vida? Escribas e intérpretes dos caracteres tinham, durante a Antiguidade, imenso poder diante de reis e generais, porque podiam manipular informações e intermediar as comunicações entre eles. Essa ascendência foi mantida durante a Idade Média, especialmente nos conventos que preservaram o conhecimento médico, filosófico e teológico desenvolvido no Oriente Médio, em Roma e na Grécia. O prestígio desses letrados aumentou, bastante, com a instalação das universidades européias, a partir do século XI. Vários jovens obtiveram, então, formação superior, mas o interesse

GILDA DE CASTRO Antropóloga e educadora pela erudição cresceu somente com o Renascimento no final do século XV. A formulação do método científico por Galileu viabilizou avanços do conhecimento que proporcionava superação de inúmeros obstáculos para a melhoria das condições de vida, convencendo muitas pessoas sobre a importância da escolaridade. A Revolução Industrial introduziu o manuseio de máquinas, que exigia conhecimento especializado, e a necessidade de decifrar, no espaço urbano, as informações em placas, jornais, boletins etc. No final do século XIX, diferentes países impuseram ensino obrigatório para crianças maiores de sete anos como medida indispensável de formação profissional para o novo sistema produtivo. Ficou delineada,


então, a categoria de analfabeto com alta carga de rejeição fundada na sua desqualificação para manusear diferentes instrumentos, assumir responsabilidades e ocupar inúmeros postos de trabalho. A escolaridade tornou-se, assim, condição indispensável para a plena integração do indivíduo à sociedade moderna, pois ele precisa adquirir habilidades que lhe permitam decifrar um complexo universo simbólico com instruções sistematizadas quanto à escrita, à leitura, ao manuseio de instrumentos e às atividades próprias das funções que ele pretende exercer no sistema produtivo. Isso é tão amplo que cada jovem permanece por vários anos na escola para vencer as diferentes etapas da sua formação, obedecendo aos níveis crescentes de dificuldade de cada ofício. Atualmente, ele precisa garantir também maleabilidade para readaptar-se às rápidas mudanças no mercado de trabalho decorrentes das inovações tecnológicas. Segundo a Unesco, os quatro pilares da educação são: aprender a conhecer, aprender a viver junto, aprender a fazer e aprender a ser. Para corresponder aos quatro pilares, a escola deve investir em uma disciplina rígida ou em atividades lúdicas? Não cabe, no momento atual, uma disciplina rígida, porque isso representaria um contraponto insuportável com a postura adotada pela sociedade, nas últimas décadas, de flexibilização das normas culturais para eliminar discriminação de categorias sociais distantes do modelo hegemônico e permitir constante ajuste da ação humana aos novos recursos tecnológicos, especialmente no que se refere aos meios de comunicação. Isso não poderia justificar, entretanto, a indisciplina que tem predominado nas escolas, porque ela compromete a aprendizagem e gera insegurança no ambiente. Esse problema surgiu, porque não houve orientação para assegurar o respeito aos direitos dos colegas e à hierarquia entre alunos,

professores e dirigentes da instituição, ao eliminar tratamento autoritário em organizações complexas. Adotaram-se também critérios muito elásticos para avaliação de desempenho escolar, permitindo que alunos com produtividade inexpressiva continuassem avançando sem corrigir as distorções na aquisição do conhecimento indispensável para sua titulação. Outra interferência severa foi a adoção do princípio filosófico do “aprender brincando” sem uma análise consistente sobre ludicidade. Atividades não acadêmicas são indispensáveis para cultivar a interação dos estudantes em clima solidário, harmônico e sereno, além da criação de oportunidades para descobrir talentos artísticos. Durante a crise econômica dos anos 1980, houve corte de despesas do sistema educacional para amenizar o impacto financeiro da ampliação de vagas, gerando eliminação de professores especializados em música, educação física, desenho, horticultura, trabalhos manuais e biblioteca e, por conseguinte, extinção de atividades que vinham conferindo formação plena dos alunos. Desde então, as regentes de classe tentam realizar algumas para quebrar a monotonia das lições acadêmicas, mas não dispõem dos métodos necessários nem dos recursos materiais para cumprir, metodicamente, todos os objetivos das artes na qualificação juvenil para o mundo moderno. Surge, então, um clima de irreverência ou aversão absoluta a um ambiente escolar estéril e desorganizado, afetando o interesse e os índices de aprendizagem. A educação no Brasil é precária e apresenta diversas falhas, que incluem péssima infra-estrutura, professores despreparados e mal remunerados, classes saturadas de alunos e planos de ensino mal formulados. Ao mesmo tempo, o investimento que o Brasil faz em educação é alto e corresponde a 4,6% do Produto Interno Bruto (PIB), enquanto os países desenvolvidos destinam cerca de

5% (dados do IBGE de 2007). Diante deste quadro, a senhora afirmaria que o sistema educacional adota estratégias para camuflar a realidade? Não sei se existe um movimento para camuflar a realidade, pois os indicadores da baixíssima qualidade do sistema educacional brasileiro são contundentes quando nos detemos em problemas como egressos analfabetos, alto índice de evasão escolar, situação ridícula dos jovens brasileiros em avaliações internacionais e péssimo desempenho dos graduados no curso superior. É inacreditável verificar que, aproximadamente, 75% dos bacharéis em Direito são reprovados no exame da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). Infelizmente, isso decorre do uso inadequado das verbas públicas para a educação e do desinteresse de governo, famílias e estudantes por uma boa escola, admitindo apenas a titulação representada pelo diploma. Eles não se constrangem com a deplorável situação ocupada pelo país no cenário mundial, mesmo quando se considera apenas a América Latina. Não se inquietam também com as conseqüências da desqualificação da mão de obra e da insignificante geração de conhecimento para assegurar a soberania nacional nas próximas décadas. Algumas escolas adotam, atualmente, um tipo de pedagogia que define que o ato de aprender deve estar relacionado ao lazer, enquanto outras apostam no modelo pedagógico que vincula aprendizado ao trabalho. Quais são as vantagens e desvantagens dos dois casos que a senhora destacaria para o aluno? Encaro a primeira tese como uma interpretação equivocada das teorias criadas por Maria Montessori e Jean Piaget, entre outros, quanto à importância do manuseio de material pedagógico bem diversificado para o processo da aprendizagem, pois alguns conceitos nessa direção têm reforçado a expectativa das crianças brasileiras de que a vida é um mar de rosas, podendo

“Se você correu, correu tanto e não chegou a lugar nenhum. Baby oh baby, bem vindo ao século XXI”, do cantor Raul Seixas. A B R E A S PA S

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E N T R E V I S TA fugir de responsabilidades sobre a sua própria subsistência e os destinos do país, por muitos anos. Elas incorporam uma postura de que precisam assumir apenas compromissos prazerosos em todos os ambientes.

“Se o professor não tem a prerrogativa de ensinar sempre e punir, quando necessário, ele se transforma em refém de membros nocivos à instituição, com desdobramentos indesejáveis”. Rejeitam, então, qualquer atividade escolar que demanda mais esforço para absorver conhecimento, buscar sua aplicabilidade e reter as lições para outras etapas da sua formação. Fica ainda o fomento da indisciplina com desdobramentos em rebelião se as cobranças dos professores são mais intensas. Defendo o princípio de que a criança e sua família devem reconhecer que a escola é um ambiente de trabalho e as atividades demandam esforço considerável, mas isso será plenamente recompensado pelo mundo que o espera como cidadão eficiente, probo e responsável pelo seu próprio destino e do país. Isso não significa que ele passe pelo menos 1.000 horas do ano num prédio destituído dos recursos mínimos de conforto, salubridade e segurança. Cada escola deveria ser magnífica, como se fosse um templo do saber, para demonstrar a relevância que Estado e sociedade conferem à educação, pois as dependências, o corpo docente, o material pedagógico e a metodologia têm alto nível. Além de todos os problemas já citados, o sistema educacional brasileiro sofre, também, com a violência. Alunos indisciplinados, agressão física e verbal e freqüentes ameaças caracterizam o cotidiano de muitas escolas 22

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do país. Adotar uma pedagogia lúdica, ao contrário da rigidez, desvinculando o professor de uma imagem de autoridade, não facilitaria o relacionamento entre o professor e aluno, culminando com a melhoria do aprendizado? Acredito que não, pois a proposição de pedagogia lúdica é justamente uma causa relevante para o problema da violência na escola. Refuto ainda a manobra de retirar a autoridade do professor. Ela é indispensável, como em qualquer ambiente com várias pessoas, para assegurar disciplina, produtividade e harmonia ao lidar com imaturos que têm variações significativas em seu perfil socioeconômico. O mestre precisa cumprir seu papel de ensinar, garantindo a integridade física e emocional de seus alunos, e isso exige, algumas vezes, punição de quem não acata as normas internas e prejudica a comunidade escolar. Se o professor não tem essa prerrogativa, transforma-se em refém de membros nocivos à instituição com desdobramentos indesejáveis. Nunca deve assumir, entretanto, uma postura intolerante, parcial e agressiva, porque precisa ser referência de isenção, maturidade e compreensão para seus alunos vida afora. Um grande problema da sociedade brasileira, na atualidade, é a contestação de autoridade, confundindo com autoritarismo que predominou durante a ditadura militar. São situações muito distintas e precisamos rever nossos conceitos sobre isso. A tentativa de criação de pedagogias que conquistem o aluno e que satisfaçam os seus interesses identifica-se com a lógica do capitalismo de conquistar o consumidor para que ele compre um determinado produto. Essas pedagogias modernas reforçam a visão do ensino como mercadoria? Sim, é lamentável que o Estado brasileiro tenha se omitido da sua missão de proporcionar uma escola pública para todos e incentivado a criação da escola-empresa, pois esta modalidade não tem compromisso para formar um cidadão íntegro, solidário e comprometido com o país. Apega-se à prestação

de um serviço essencial que será comprado pelos pais sem avaliar as distorções filosóficas inerentes a isso, como o fomento do individualismo e o saber como mercadoria, desconhecendo atribuições como formação do caráter, absorção de noções sobre cidadania e desenvolvimento de habilidades para viver em espaços restritos densamente ocupados, como ocorre nas grandes cidades. Os outros tipos miram o bem comum. Uma escola oficial é o espaço mais adequado para integrar os imaturos de diferentes segmentos sociais, homogeneizando suas experiências para formar um corpo coeso enquanto estiverem ali e, posteriormente, no trabalho, no bairro, nos estádios, na praia etc. As escolas confessionais têm pautado suas ações em valores cristãos que contemplam, por exemplo, a fraternidade, postura indispensável em grupos marcados pela desigualdade social. As escolas comunitárias traçam sua conduta a partir das escolhas de seus membros, definindo seus objetivos que estão centrados na harmonia interna, superação de desequilíbrios e formação de agentes sociais sintonizados com os interesses maiores de seu grupo. O número de instituições de ensino privadas no Brasil tem crescido muito. Isso reforça uma visão do senso comum de que o aluno é cliente da escola, já que ele paga uma mensalidade que, muitas vezes, supera os salários dos professores. O que a senhora acha disso? Isso tem interferido profundamente na relação professor-aluno, pois o agente socializador tornou-se subalterno ao imaturo, comprometendo seu papel na transferência de conhecimento e remodelação de atitudes de quem ainda não sabe circular em ambientes alheios à sua família. Os empresários da educação não se preocupam com essa distorção; pelo contrário, fomentam o conceito de aluno-cliente, em detrimento da imagem do professor, mesmo que seja necessário recorrer à intimidação do empregado com atribuições que, fatalmente, contrariam alunos e pais, como reprovação de es-


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nos com um discurso interminável por várias horas. Todos deveriam receber lições de psicologia educacional para aprender sobre o processo de aprendizagem e a capacidade humana para absorver e reter informações, integrando os novos conceitos aos anteriores. Sua exposição deve ficar atrelada a situações concretas que podem ser lâminas projetadas por um datashow, mas seria melhor que as aulas fossem enriquecidas com outros instrumentos. Um bom material pedagógico foi uma grande conquista e deve ser sempre utilizado, principalmente para vincular conhecimento à realidade. O problema maior reside na figura canhestra de mestres que têm tiques Sala de aula se transformou em divã do ensino nervosos, desconhecem princípios mínimos de retórica, usam tudantes relapsos. Isso afeta a lucratividade do negócio, roupas inadequadas e ignoram os ritos que seria como qualquer outro pres- sociais próprios do ambiente escolar. tador de serviço, independentemente Eles são ridicularizados pelos estudandos desdobramentos para a formação tes, mesmo quando dominam o conteescolar e absorção de noções de justiça, údo de sua disciplina, criando um clima desconfortável para o profissional e objetividade e compromisso social. comprometendo as atividades em sala Um dos maiores desafios dos pro- de aula. fessores é manter a disciplina em sala de aula. Alguns educadores resApesar do grande número de proponsabilizam o “choque de gerações” gramas educacionais criados pelo por esta situação. Segundo eles, há governo, da quantidade de recursos uma distância muito grande entre as financeiros destinados à educação e tradicionais aulas expositivas, com da criação de pedagogias modernas, as quais professores antigos estão os resultados continuam pífios. Os acostumados, e uma cultura digital alunos chegam às universidade e mal na qual os alunos estão imersos, que sabem ler e escrever e, na maioria da demanda aulas mais interativas e não vezes, estão desinteressados. Diante lineares. A senhora concorda com disso, os cursos superiores acabam assumindo funções supletivas, que não esta visão? Falta bom senso aos professores de são de sua responsabilidade. Para a que podem reter a atenção dos alu- senhora, qual seria o problema básico A B R E A S PA S

do sistema de ensino no Brasil? Muitos problemas vêm comprometendo a qualidade da escola brasileira e eles se entrelaçam, inviabilizando soluções rápidas por programas montados em gabinetes de Brasília ou das secretarias estaduais de educação. A questão fundamental está no pouco apreço que os brasileiros devotam ao conhecimento, embora alguns cultuem o diploma. Contentam-se, então, com escolas improvisadas, métodos equivocados e processos elásticos de avaliação. Outros problemas agravam esse quadro, como amadorismo da docência, professores mal remunerados, classes enormes, baixo compromisso da família e desrespeito aos docentes. É assustador pensar que os universitários não sabem, atualmente, redigir um texto e muito menos interpretar corretamente lições básicas da sua área, confundindo informações captadas entre a escola e a mídia sem reconhecer a falácia em seu raciocínio, pois tudo foi mal digerido como conseqüência de péssima metodologia pedagógica. Em síntese: as escolas, particulares ou públicas, se transformaram num divã. A senhora concorda? Acredito que elas sejam tomadas mais como lixeiras por alunos que não conseguiram adaptar-se a ela nem a outras instituições. Vêm de famílias ricas ou pobres que não oferecem orientação adequada para relacionar-se com outras pessoas, assumir seus papéis diante de diferentes grupos de referência e assimilar os valores sociais indispensáveis para interação profícua, serena e fraterna. Alguns procuram ajuda dos mestres, imaginando que eles possam lhe dar atendimento individual para seus conflitos. Outros despejam, entretanto, na escola, todas as suas frustrações para demonstrar sua aversão por uma instituição ineficiente, onde eles devem permanecer por várias horas, embora não consigam vislumbrar a relevância das lições apresentadas para seu cotidiano sem conexão com o saber e destituído de perspectivas para integrar-se ao mercado de trabalho pelos seus próprios méritos.

“A ironia é o lirismo da desilusão”, do cronista carioca Paulo Barreto.

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E N T R E V I S TA Arquivo pessoal

Na propaganda, o consumidor de ilusão? No vale-tudo da propaganda, institucional ou comercial, não faltam recursos midiáticos e apelos emocionais, porque o que interessa é vender e perpetuar a farsa de que está no consumo, nossa felicidade e redenção moral.

MARINA RIGUEIRA

JÚLIO PINTO

8º G DE JORNALISMO

“C

ada um para si e todos pelo mercado” é o princípio neoliberal canônico que norteia o mundo há algumas décadas. Se ontem, esta divindade conceitual se disfarçava entre outras crenças e dúvidas, hoje, ela se escancara sem nenhum pudor, ancorada pela propaganda e pela obsessão doentia, de consumo, com seus ideais de felicidade, poder, liberdade etc. Graças à precariedade humana levada à exaustão pela sociedade do espetáculo, produtos, serviços e idéias trazem consigo valores ideológicos de tamanho apelo, que acabam por interpelar o sujeito a assumir posições via discursos publicitários. Em meio a este show patético de produção e consumo, não há ninguém bobo, porque a propaganda e o ser humano são faces iguais de uma mesma moeda, personagens quixotescos, algozes e vítimas que, moralmente frágeis, não suportam, em nome do “ter” e do “parecer ter”, o menor flerte de sedução. Face a este quadro caótico, resta-nos a seguinte 24

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Professor questão: o sucesso da propaganda, que hoje movimenta, bilhões e bilhões de dólares no mundo, passa pela completa alienação dos indivíduos por ela assediados, ou as compensações de natureza psicológica, trazidas pelo consumo, os tornam conscientes desta troca? Sobre a complexidade deste assunto, ouvimos, ninguém menos, que o mestre em literatura, Ph.d em semiótica (Universidade da Carolina do Norte) e em semiótica e imagem, pela Universidade Católica Portuguesa, aposentado da UFMG e atual coordenador do programa de pós-graduação em Comunicação Social, da Puc-MG, autor de livros e ensaios especializados, professor Júlio Pinto. Mesmo diante do caos que o mundo vive em todos os setores da vida humana, a propaganda, independentemente do produto, serviço ou idéia que pretende vender, continua faturando milhões de dólares e, cada vez mais, sendo cobiçada. O publicitário Roberto Menna Barreto, em seu livro “Análise Transacional da Propaganda” (Editora Summus) atribui este fenômeno

à aversão do ser humano em pensar, com base no fato de que a única verdade que ele deseja, é que a propaganda seja perfeita, isto é: clara, corretamente formulada e impecavelmente produzida. O senhor concorda? Não exatamente. Não deixa de ser verdadeiro que o mercado publicitário é enormemente rentável. Entretanto, não sei se concordo com o Menna Barreto, com essa percepção meio simplista de que o ser humano é avesso ao pensar. Sabemos muito bem que alguns de nossos congêneres não gostam muito dessa atividade, mesmo, mas a generalização é sempre algo muito perigoso. Além do mais, os mecanismos de persuasão e convencimento são muito sutis e complexos, e mesmo os melhores pensadores muita vez se vêem presos nas malhas da propaganda. Acrescente-se a isso que a percepção dos textos publicitários (e outros) é mais sentida que pensada. Aliás, para perceber que a propaganda é impecável, bem produzida, com bom texto e boa formulação, o cidadão tem que pensar – tem que ir além da relação puramente estésica com os textos -- e tem que ser, pelo menos em parte, conhecedor dessas coisas, o que, já por si, derrota inclusive o argumento do Menna


Barreto. O que está em jogo na publicidade é um conjunto de emoções que todos compartilhamos, desejos difusos, desejabilidades, que entram em uma relação meio que sinérgica com o anúncio.

giiblog.wordpress.com

Nos papéis de algoz e, geralmente, de vítima, sobretudo na propaganda, o consumidor, “que não pensa”, se compensa com ganhos de natureza psicológica. Como o senhor avalia esta patologia? Não gosto muito da delimitação de polaridades como essa de algoz e vítima quando se trata da questão comunicacional. Essa postura teórica ainda pensa o jogo comunicativo como partindo de emissor para receptor, numa perspectiva sistêmica em que se parte da premissa de que, só por estar na situação de emitir, o emissor se coloca em posição de superioridade e, portanto, de poder, com relação àquele que será o alvo (veja só como a linguagem metaforiza a suposta inferioridade do receptor) da mensagem. Toda essa conversa de público-alvo sempre me faz pensar em cidadãos com olhosde-boi pintados no peito e alinhados na frente de atiradores de elite que vão abatendo os receptores – os alvos – um a um. Na verdade, a relação comunicativa é muito mais reticular, muito mais difusa e mutante do que essa posição teórica nos quer fazer crer. Tanto é verdade, que muitos dos que vêm pensando a publicidade e o consumo na contemporaneidade (me vêm à mente Bauman e Lipovetsky, por exemplo) falam muito mais de circulação de sentidos entre os sujeitos e ressaltam o poder das subjetividades individuais no jogo comunicativo. Agora, com relação aos ganhos psicológicos, acho que isso é verdade para todos nós, que estamos imersos na sociedade de consumo. E, muitas vezes, a satisfação não está na compra do produto, mas na demonstração social de que se está “por dentro” e participante, como é o caso da adoção de frases retiradas de propagandas (“o meu carro não é uma Brastemp, mas quebra o galho”), ou até de muitas pessoas físicas, sujeitos civis, que contribuem para

a disseminação de anúncios (o exemplo mais evidente disso é o de um cartão de crédito, aquele do slogan “tal coisa assim assim não tem preço, para tudo o mais tem o ...card”, que chegou a utilizar textos e vídeos feitos por cidadãos comuns que se sentem participantes do processo publicitário). É lógico que muitas vezes o consumo é compulsivamente patológico, mas usar a internet também pode ser, e não acho que a doença seja a regra geral.

Privada ou pública, a propaganda é arte, sedução e perversidade

Ser fiel a uma marca ou mudar por mudar à procura de novidades, é o mesmo que ser infiel a si mesmo? Isso reflete a mesma alienação? O senhor encontra algum caminho que possa inverter este quadro? É bom que se esclareça que, em qualquer época, existe uma espécie de grande argumento, um dispositivo (uso aqui a concepção de Agamben para essa idéia) que mais ou menos conduz o comportamento social. Na nossa época, existe também esse dispositivo, uma espécie de terceireza (peço desculpas pelo termo semiótico), uma lei implícita, que envolve a idéia do consumir como sendo algo positivo. No conjunto de signos que compõem essa terceireza existe um, talvez dos mais importantes: o Novo. Claro que esse novo não é a mesma coisa que o inédito, ou o inaugural, aquilo nunca visto antes (embora a publicidade muitas vezes repise essa idéia do inaudito). Daí

que frases bombásticas como “amanhã o mundo não será o mesmo, porque chegou o novo carro tal e tal” são aceitas com a maior naturalidade, e não se percebe, pelo menos de imediato, que a grande novidade do carro tal e tal é que a traseira dele este ano é mais arrendondada que a do modelo do ano passado e que esse fato em si não tem o poder de mudar o mundo tal como o texto apregoou. Ora, movidos pelo mesmo novo que rege o resto da burguesia, tomamos decisões (conscientes em parte, inconscientes em parte) de trocar de carro. Não sei se isso é alienação, nos velhos termos marxistas. Talvez seja uma nova forma de pertencimento que se conforma ao novo paradigma / dispositivo / signo terceiro, assim como pensar a luta de classes já teve esse papel em outros tempos. Naturalmente, a própria sociedade se regula. Com o fato de que há outros poderes em jogo (não só o das instâncias produtoras e donas do dinheiro), colocados no quadro social pelas novas formas de subjetivação que a própria comunicação enseja, é possível discernir as flutuações dessa lógica do consumo. A própria noção de fidelidade faz parte desse quadro geral mercantil: não acho que exista uma relação entre coerência pessoal e escolha de mercadoria. Propaganda/consumidor: esta relação é mantida via um pacto psicológico, que contempla sedução, vitimização, amor, fetiche, manipulação, compensação, culpa, euforia, alegria, medo, ansiedade, vergonha, rivalidade, competição, narcisismo e por aí vai. A partir daí, o senhor acha que o sucesso dessa área profissional é proporcional à precariedade existencial do ser humano? Sendo assim, o senhor concorda que o produto em si, seja ele qual for, é apenas um valor agregado? Nâo há dúvida que o Baudrillard tinha razão quanto a isso. Realmente, o que está em questão é sempre o valor de signo, muito mais que uma mera mais-valia do produto, e, certamente, não o valor de uso nem o valor de troca da mercadoria.

“O dinheiro não traz felicidade, para quem não sabe o que fazer com ele”, de Samuel Langhorne Clemens. A B R E A S PA S

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E N T R E V I S TA É claro que quem compra uma Mercedes paga mais caro é pela estrela no capô do carro. Agora, daí a dizer que o sucesso da publicidade se deve à penúria existencial da humanidade é uma grande distância. Todos esses sentimentos já existiam antes da sociedade de comunicação e existiam da mesma forma. Sempre fomos carentes, ciumentos, invejosos, ansiosos, medrosos, narcísicos. O que acontece agora é a inserção dessa humanidade numa outra lógica, a lógica da mídia: esse é o fato novo.

Aliás, o Estado, que também se utiliza da propaganda institucional, tão ou mais predatória que a comercial, é de um cinismo a toda prova: com uma mão proíbe a bebida ao volante e decreta a lei antifumo; com a outra acaricia as indústrias de bebidas alcoólicas e de cigarro. Como o senhor interpreta esta ambigüidade moral? 26

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A propaganda não é outra coisa senão o espelho de uma cultura, movida, dentre outras coisas, pelo excesso, consumo, aparência e performance. Segundo o escritor Martin Barbero, autor do livro “Dos meios à mediação: comunicação, cultura e hegemonia” (Ed. UFRJ), a propaganda tem o papel de interpelar o sujeito a ocupar um lugar social. O senhor acredita que as pessoas são indefesas e inconscientes diante da convocação agressiva que a propaganda exerce sobre elas em relação ao consumo e às posições a serem assumidas na sociedade? Não. Numa das respostas anteriores eu me referi mais ou menos a isso. Acho que a publicidade tem o efeito de evocar estesias, relações sensório-emocionais que fisgam os indivíduos (mecanismo que a arte e o bom jornalismo também usam com eficiência) e os fazem aderir a uma idéia (ou não). O Martin Barbero está essencialmente correto, na minha avaliação. A publicidade conversa com cada um de nós e a interpelação é sentida de forma pessoal pelas razões que elenquei acima. Entretanto, os indivíduos não estão assim tão à mercê da mídia. Cada vez mais fica evidente que os sujeitos, mesmo respirando a atmosfera do consumo e se filiando ao seu tempo e à sua época, ainda mantêm a capacidade de escolha. O espetáculo e a sociedade se confundem. Informações, propagandas e até o consumo de divertimentos tornam-se representações. Segundo o senhor, quais são os aspectos negativos e as seqüelas de se viver na chamada “sociedade do espetáculo”? Um dos aspectos dessa espetacularização é a dissolução de fronteiras entre o público e o privado. Leva-se a máxima de Berkeley ao paroxismo (“ser é ser percebido”): o corpo se espetaculariza, a vida idem. O cotidiano adquire o glamour da tela e passa a ser avidamente consumido nos reality shows de um vazio enorme,

preenchidos apenas pela presença do banal que agora é espetáculo. Segundo Guy Debord, a sociedade contemporânea é uma imensa acumulação de espetáculos, espetáculo herdeiro da grande fraqueza do projeto filosófico ocidental. Assim ele o considera a reconstrução material da fantasia e afirma que a satisfação levada ao seu grau máximo, validada por um discurso ideológico, travestido de filosófico, é a certeza da democracia. O senhor acredita que o triunfo da democracia se deve a satisfações individuais da nossa sociedade? Debord e, mais tarde, Baudrillard retiram do projeto democrático tal como se desenha contemporaneamente a sua capacidade de galvanizar o indivíduo para uma real busca de igualdade de oportunidades. A sociedade centrada na migração de um conceito de felicidade, filosófico em sua essência, para um mero bem-estar (concretamente mensurável pelos bens de consumo) almeja fazer do cidadão que consome, um homem que se pensa feliz porque www.humanizabrasil.org.br

Para manter essa “alquimia perversa”, paga pelo próprio consumidor – a propaganda é o primeiro imposto indireto - , as empresas, públicas e privadas, não economizam em seus gastos. São bilhões e bilhões de dólares investidos na hipnose da felicidade. O senhor não acha ser esta uma questão ética, portando, que deveria passar pela responsabilidade do Estado? Creio que isso é muito complicado. Essa hipnose da felicidade está em outros lugares também: o cinema como fábrica de sonhos, a televisão como anestesia, a indústria da música como locus do escape, o próprio entretenimento que se insinua nos fazeres midiáticos mais sisudos, como o telejornalismo, até a badalada responsabilidade social das empresas que se confunde com o marketing mais barato e sem-vergonha. O próprio estado se insere nessa lógica de mídia, haja vista a forma como se conduz a política contemporaneamente. Por outro lado, há o cinema que revela o mundo, há a televisão comunitária, há a música séria e de boa qualidade. O que mais se vê é a pluralidade tomando forma, assumindo o lugar de monovisões. Por trás disso, deve haver uma ética, sim, que deve se manifestar por meio dos sujeitos civis em suas contraposições sistemáticas num novo espaço político, a polis midiatizada.

Isso é verdade. Mas sempre foi. Se pegarmos textos e livros antigos, veremos essa mesma avaliação. Estou me lembrando de um texto atribuído ao Padre Antônio Vieira, o “Arte de Furtar”, falando das mazelas da política baiana no século XVII.

Governo vende idéias e preserva hegemonia com propaganda ideológica

está temporariamente satisfeito. E consumir é o exercício da democracia par excellence. Nesse sentido, está correta a percepção de que se tratam de discursos em oposição. Só que todo e qualquer discurso é ideológico por natureza, já que todo discurso escolhe significados


dentre os disponíveis para os signos. O professor Carlos Ferreirinha, coordenador do MBA em Gestão de Luxo, da Faap, de São Paulo, afirma que o principal motivo para a aquisição de artigos de luxo não é mais a busca por status, mas a vontade não-racional de adquirir identidade, porque junto à etiqueta vem embutido o conceito de tradição. Que relação o senhor estabelece entre o consumo e a criação ou fortalecimento de identidade social? Essa fala do Ferreirinha é a constatação de que, do ponto de vista da propaganda, a patologia do consumidor não vê cara, coração, nem posição econômica? A afirmação do Ferreirinha é em parte correta. Mas nem tudo é tradição. Consome-se muito para garantir uma identidade social (uma máscara qualquer). Assim é que a posse de determinado tipo de bem funciona também como identificador. Isso também vale para a escolha do gosto musical. Dessa maneira, a música sertaneja – com todo o arsenal que a acompanha, isto é, vestuário, gestual, tipo de automóvel etc – funciona como índice identitário para uma grande massa de indivíduos que, de outra forma, não seriam reconhecidos como membros de uma classe que foi crescendo em importância no cenário sócio-econômico do país. A mesma lógica se aplica aos pagodeiros e outros grupos sociais. Mas, patologia? O consumo obsessivo chegou ao ponto de mediar as relações sociais, transformando os direitos fundamentais do cidadão em mercadoria. Tudo passa pela propaganda e pelo espetáculo que ela encerra. Como o senhor interpreta esta escravidão contemporânea? Por exemplo: o livre debate político é muito mais um objeto da propaganda, da publicidade e do marketing, do que das diferenças ideológicas. O senhor concorda? Em tese, sim. Isso tudo é fruto de um processo de interações, pelo qual a sociedade é embebida numa lógica de

fundo midiático. Não é exatamente uma escravidão, mas a presença de uma forma de organizar o mundo diferente das anteriores, o tal do dispositivo a que me referi anteriormente. Poderia dizer que a percepção social-realista do mundo, tal como preconizada pelos antigos regimes comunistas, também seria um mecanismo produtor de sentido análogo ao da contemporaneidade, tão ideológico quanto o de agora, mesmo que oposto

“Um dos aspectos da sociedade do espetáculo é a dissolução da fronteira entre o público e o privado”. do ponto de vista conteudístico. Nesse sentido, seria tão escravizador quanto a situação de agora. Mas a mim, como pessoa que observa semioticamente o andamento da sociedade (tentando discernir os mecanismos de produção de sentido e os sentidos que são produzidos) não cabe fazer juízo valorativo ou julgamentoso (a palavra não é ortodoxa, mas vale pelo que sugere). Tudo isso tem a ver com a construção do mundo possível, tarefa principal exercida pela comunicação (jornalismo, publicidade, propaganda etc), segundo suas conveniências, e sempre ancorado por artifícios sedutores. Em que medida esta postura hegemônica mundial, cuja base é o mercado consumidor, pode aprofundar ainda mais o abismo das cruéis diferenças econômicas e sociais? Esse tem sido realmente um fato observável. A globalização tem tido o papel de exacerbar diferenças e esse fenômeno tem a ver diretamente com a comunicação e as formas que ela tem assumido na contemporaneidade. Mas os desenvolvimentos recentes podem funcionar como um freio a este processo e, quem sabe, abrir caminho para uma reversão

desse quadro. Notamos que, junto com o global, ganha espaço o local. Junto com o geral, ganha espaço o particular: as mídias massivas estão cada vez mais cedendo terreno à singularidade dos usuários das redes sociotécnicas. Queiramos ou não: do esporte à religião; do sabão em pó à TV Plasma; da ideologia aos reality shows; da educação à política; do amor ao poderes públicos; do trabalho às artes; da violência ou paz à saúde; da Justiça à economia, tudo se transforma numa só coisa, aprisionada até o gargalo pelo tripé tirânico produção-mercadoriaconsumo, tendo como suporte a propaganda. O senhor enxerga alguma perspectiva de vida fora deste quadro? Pode ser quixotesco, mas acho que é possível que, pelo condão das redes sociotécnicas e pelo que pode ser discernido de embrião de novas formas de interação propiciadas por novas modalidades de acesso do indivíduo ao teatro geral, haja uma saída, sim. E enquanto houver pessoas que se fazem as perguntas que vocês me fazem, fica aberta a perspectiva. “Não ser ninguém-a-não-ser-vocêmesmo, num mundo que faz todo o possível, noite e dia, para transformálo em outra pessoa, significa travar a batalha mais dura que um ser humano pode enfrentar. E jamais parar de lutar”. Essa fala do poeta Cummings não lhe parece o último suspiro? Nâo é o último suspiro. É a percepção da mesma coisa que eu disse agora mesmo. Cummings é o poeta-antena da raça, é o homem que diz para não termos pena da humanidade que sofre de progresso, uma doença confortável: Pity this busy monster, manunkind, not: Progress is a comfortable disease. No final desse poema, em que ele descreve, no fundo, o que discutimos nesta entrevista, ele conclui: There is a hell of a good universe next door: let’s go. Ele não propõe o escape, ele propõe a alternativa da volta à simplicidade. Quem sabe é possível?

“Passei a vida tentando corrigir os erros que cometi na minha ânsia de acertar”, de Clarice Lispector. A B R E A S PA S

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Hidrocefalia! Substituindo os hospitais psiquiátricos pelos pífios Caps, o governo brasileiro, há 22 anos, finge que assumiu a política de saúde mental no país, em toda sua dimensão e complexidade. Enquanto isso, milhões de doentes são entregues à própria sorte, e os gestores e profissionais do setor, por mais que se esforcem, continuam amargando as ineficiências estruturais do movimento e o glamour ideológico que o cerca.

Arquivo pessoal

Mal congênito da luta antimanicomial

CARLOS EDUARDO DONÉ 8º G DE JORNALISMO

A

o fechar 70% dos leitos psiquiátricos no país, motivado como nunca pela luta anti-manicomial, o governo brasileiro não gerou nenhuma outra contra partida no conjunto de atendimento alternativo. Em síntese: na luta radical, quase maniqueísta, pelo fim das internações em hospitais especializados, os quase 17 milhões de doentes mentais, que precisam das vagas hospitalares, estão a ver navios, sobretudo nas camadas pobres da sociedade que não dispõem de recursos para tratar dos seus doentes. Não precisa nem dizer sobre os riscos que advém desse fiasco. Tão ideológica quanto polêmica, a luta contra ou a favor à desospitalização, que se transformou numa bandeira herdada do médico socialista italiano, Franco Basaglia, que defendia a chamada psiquiatria democrática contra o psiquiatria clássica, baseada na internação. O resultado dessa pendenga, especialmente em termos de Brasil, não poderia ser outro: na ânsia de copiar modelos, fecharamse leitos, não apresentaram alternativas, porque os Centros de Atenção Psicossocial (Caps) são comprovadamente insuficientes, gerando daí a 28

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desassistência. Nossa entrevistada é a psicanalista Fernanda Otoni de Barros. professora de Psicologia da PUC Minas, doutorando em ciência política pela UFMG, autora de obras como “Do FERNANDA OTONI DE BARROS Direito ao Pai” e “ContanPsicanalista do Causo”, Otoni trabalha há 18 anos na saúde mental em Belo Horizonte, objetivos eram fechar os hospitais psiquià frente do Programa de Atenção In- átricos, onde a cultura do isolamento e entegral ao Paciente Portador de So- carceramento predominava, e proporciofrimento Mental Infrator (Pai - Pj). nar aos portadores de sofrimento mental Contrária à internação hospitalar, a outro tipo de tratamento, de base comupsicanalista sustenta que o contato nitária, em convívio com a sociedade e a com a sociedade é a principal fer- família, visando alcançar a produção dos ramenta para curar os pacientes. A laços sociais possíveis e razoáveis para a despeito da solidez de suas convic- experiência da loucura. ções, Otoni acredita que o debate sobre a luta anti-manicomial é bem Em que medida sua implantação invinda, por isso, não abre mão de fa- discriminada no Brasil, não a transforzer parte dela. ma numa emenda pior que o soneto? Sua implantação foi possível depois da Quais são os princípios que norteiam aprovação da lei 10.216, que estabeleceu a forma e os meios para o Brasil abandonar a política antimanicomial? Esta política resulta do movimento po- o antigo modelo que era simplesmente lítico e social, conhecido como “Luta An- baseado na metodologia da internação timanicomial”. Este movimento surgiu no em hospitais psiquiátricos. A lei determiBrasil em 1987, em consonância com um na que a assistência deve, prioritariamenmovimento maior e mundial, inspirado te, se servir de recursos fora dos hospitais, nas ideias e práticas basaglianas, cujos através dos serviços substitutivos ao ma-


nicômio. Contudo, na pratica, estes serviços não foram ainda criados na proporção correspondente à necessidade da população brasileira. A demanda é superior à oferta da assistência e, por consequência, colhemos a desassistência. Isto é razão suficiente para fazermos a critica, pois é inadmissível qualquer forma de desassistência. Contudo, o problema não deve ser localizado na política antimanicomial, mas, sim, no fato do projeto de reforma não estar ainda completamente implantado, de modo geral, em nosso país. Nas cidades onde o projeto da reforma segue o previsto em lei, a qualidade da assistência em saúde mental tem sido notável.

(13.06.09), houve um aumento de 41% no número de mortes de doentes mentais no país. Como se não bastasse , nos últimos 20 anos, o governo brasileiro fechou 70% dos leitos psiquiátricos, com um agravante: sem nenhuma contrapartida. A senhora acha que esses dados são suficientes para comprovar as discrepâncias existentes e contempladas pela desospitalização psiquiátrica? Esses dados estão antigos, hein? Tem que ter muito cuidado com a sedução do dado... a omissão da temporalidade e circunstâncias de sua produção eterniza o dado, cristalizando uma situação complexa que está em constante movimento. Esse é um dado do Ministério da Saúde, durante uma pesquisa que realizou entre 2001 e 2006. Esse dado esta sendo exaustivamente utilizado pela Associação Brasileira de Psiquiatria, agregando-o a outra pesquisa que parece ter sido encomendada ao Ibope, durante os anos de 2006 e 2007, cujos resultados integrais, as categorias utilizadas e cruzamentos dos dados não foram divulgados publicamente ou se foram, o fizeram em algum veiculo que eu não tive acesso. O que tenho visto é um dado ali e outro acolá, assim meio solto, amarrado a dados antigos, que buscam impressionar pelas conclusões produzidas no cruzamento destes dados que vieram de fontes diversas. Do ponto de vista metodológico, estamos de acordo, não podemos atribuir credibilidade a este tipo de análise. Então penso que esses dados não são suficientes para comprovar supostas discrepâncias existentes e contempladas pela desospitalização psiquiátrica. Dizem que foi sem nenhuma contrapartida? O que é isso? Querem dizer que a lei não está sendo implementada, de modo adequado, em

“Todo o esforço deve ser feito no sentido de incluir o portador de sofrimento mental na sociedade, mas sempre existirão os sítios de exceção. E cada um tem mesmo é que aprender a tratar a exceção que lhe constitui”.

A senhora é considerada uma basagliana intransigente, na medida em que defende a luta antimanicomial, acima de quaisquer circunstâncias. Isso não lhe parece ser mais real que o rei? (Risos) Vocês me surpreendem... Outro dia, num jantar apos uma conferência na Bahia, junto a colegas psicanalistas, me contaram que eu era conhecida como uma lacaniana antimanicomial; outros colegas das ciências sociais confessaram que referem-se a mim como uma psicanalista foucaultiana... um paradoxo, hein? Agora, descubro que os jornalistas me consideram uma basagliana intransigente?!? (risos)... De fato, nunca sabemos como o desassossego das coisas se sossegam nas palavras, nas referências! Mas tenho que consentir que hoje, de fato, a minha orientação considera o real, mais além do rei, da realeza do mestre ou de qualquer outra referência! Segundo editorial do jornal O Globo

todos os municípios do Estado brasileiro? Que podem estar fechando leitos em hospitais psiquiátricos sem abrir serviços substitutivos? Onde isto acontece, gerando desassistência, estou completamente de acordo. Diante da diversidade e complexidade que determinam a realidade do Brasil, existe uma lacuna evidente entre a concepção da lei e a realidade de sua aplicação. A reforma deve acontecer e se estabelecer de acordo com os princípios da luta antimanicomial e o que determina a lei 10.216. Isto é o movimento razoável! Um dos princípios fundamentais desta política é o que diz: “a reforma psiquiátrica é no município que ela acontece!” Entretanto, o principal desafio tem sido constituir uma rede de serviços substitutivos, onde encontramos amarrados os serviços do tipo Cersans, Caps, interligados ao funcionamento efetivo do dispositivo de atenção à crise capacitados para acolher e dar tratamento à situações de emergência, bem como, sua articulação permanente com a rede de atenção básica à saúde. A interligação dinâmica e viva, entre essas redes, formam a rede de saúde mental, substitutiva aos manicômios. Isto não é simples, é uma rede em movimento e do seu dinamismo destacamos a sua complexidade. A criação dessa rede depende do investimento decidido de vários atores da arena publica, responsável pela promoção dos recursos políticos e sociais necessários para causar a decisão de criar e sustentar esta rede complexa em cada município. Nos municípios onde a construção desta rede ocorreu, a lei esta sendo implementada de forma viva e criativa, demonstrando que de fato a assistência em saúde mental é antimanicomial. O cuidado em saúde mental dispensa a segregação, pois o isolamento potencializa o adoecimento mental. Os resultados colhidos em municípios como Belo Horizonte e Campinas, onde o projeto da reforma está em pleno funcionamento, tornam pública a evidência de que saúde mental se faz no enfrentamento da segregação, ocupando as avenidas, ruas e vielas de cada cidade, em espaços de convivência, na rede aberta que potencializa o convívio da loucura com a sociedade. Isto

“ A alegria está na luta, na tentativa, no sofrimento envolvido, e não na vitória propriamente dita”, do líder indiano Gandhi. A B R E A S PA S

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E N T R E V I S TA não quer dizer a loucura largada na rua, ao contrário, encontraremos o tratamento responsável da loucura quando a expressão de sua diferença tiver cabimento no espaço público e na relação social. Quando se tem vontade política, formação de

“Mas o que de fato, mais me anima, é que quando a lei 10216 é colocada em prática, colhemos, por consequência, sociabilidade, convivência, vida criativa, tolerância...” rede etc, isto é possível. A rede de saúde mental, mesmo nestas cidades que citei como exemplo, tem problemas inúmeros. Como diz Guimarães Rosa: “Rede é uma monte de buracos amarrados com barbantes”, contudo, este é o trabalho do dia a dia, a amarração que se faz nesta costura, tendo por orientação o real de cada caso, sua singularidade e a complexidade social, no qual se aloja. Quando isto acontece, a exemplo dos municípios destacados, não tenho duvidas: alcançaremos qualidade e eficácia na assistência em saúde mental no Brasil, se não recuarmos diante desse desafio que é o de construir um mundo sem manicômios. O advento da Lei 10.216, de 2001, trouxe muita polêmica por restringir as internações de doentes mentais, dando preferência ao atendimento em serviços ex-hospitalares. O que a senhora acha desta lei. Quais as conseqüências práticas dela? Acho que é a lei que nós conseguimos construir coletivamente, a partir de inúmeras discussões com a diversidade das posições em jogo. Foi uma lei de consenso, um consenso que levou 20 anos para ser construído. Eu respeito esta lei! Sobretudo respeito o processo de sua construção. Sempre resta uma discordância aqui, outra ali, afinal, por que esta lei e não 30

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outra? Mas sossego minha inquietude respeitando o processo coletivo e democrático na costura da lei que foi possível. Mas, o que de fato, mais me anima, é que quando esta lei é colocada em pratica, colhemos, por consequência, de modo geral, sociabilidade, convivência, vida criativa, tolerância, avanço nos modos de condução do tratamento e é claro, colhemos saúde mental. Outra lei? Podemos discutir, temos muitos anos pela frente...mas antes disto, vamos lutar para colocar a que temos em pratica nas ruas das cidades deste país. Essa é a luta de cada um de nos. Alguns críticos desta lei acreditam que o Brasil diminuiu o atendimento em hospitais sem uma contrapartida, capaz de evitar a desassistência. Por outro lado, percebe-se que a quantidade de pessoas sendo internadas sem necessidade e em condições precárias, diminuiu. A situação atual do tratamento de doentes mentais no país é pior ou melhor do que aquela vigente antes de 2001? Para analisar os dados nacionais, é preciso tê-los atualizados. Não os tenho, como disse anteriormente. Penso que para realizarmos uma analise de fato, é preciso levantar os dados em cada cidade, pois a reforma que esta lei propõe, aloja no município a base de sua efetividade. Caso a rede não esteja montada em cada município, primeiro precisamos saber das razões que levam os municípios a não cumprirem a lei. Estes dados precisam aparecer, para que possamos levantar a causa da desassistência e atribuir responsabilidades e lutar para reverter esta situação. Antes de criticar a lei é preciso aplicá-la! Visto isto, outra coisa é levantar os dados dos municípios onde a rede está em funcionamento, conforme a lei, e destacar quais são os resultados no sentido da assistência. Acho que precisamos ter acesso a dados que se orientam pelas categorias determinantes da política antimanicomial, para realizarmos uma análise responsável do cenário brasileiro. Mas podemos responder esta pergunta, baseando-nos na situação do município de Belo Horizonte, que é uma cidade que trabalha no sentido da reforma, bem antes da lei nacional ser sancionada, pois aqui uma lei estadual antecipou-se à lei nacional. Quando a lei 10216/2001 foi

aprovada, em Minas ja tinhamos alguns anos de trabalho nesta direção. Em Belo Horizonte, não tenho duvidas, a situação atual do tratamento de portadores de sofrimento mental é muito melhor do que aquela vigente antes da lei 11.802, lei que iniciou a reforma psiquiátrica em Minas Gerais, em 1995. É comum na sociedade, a visão de que os hospitais psiquiátricos são terríveis em termos de infra-estrutura e tratamentos dos pacientes. Qual a situação dessas unidades? Em quais casos as internações nos hospitais, que ainda restam, e nas clínicas, seriam recomendáveis? Tenho visto e dito, por onde passo, que os hospitais psiquiátricos podem ser maravilhosos, tive oportunidade de visitar no Brasil e em outros oito países, estruturas maravilhosas do ponto de vista arquitetônico, infraestrutura, tecnologia e recursos materiais disponíveis ao atendimento. Mas, o que não muda nestes lugares é a segregação, o isolamento, a privação da liberdade. Nestes lugares assépticos, é evidente a extração da possibilidade inédita de cada um se arrumar com seu jeito no espaço publico. É sequestrado do sujeito sua capacidade de inventar soluções de sociabilidade que não foram previstas a priori pela tecnologia “psi”. Isso muda tudo, o sentido de humanidade, fica do lado de fora. Depois de um tempo, a porta se fecha. E o mundo fica longe... é da morte subjetiva que se trata aqui. Contudo, ali onde se previu um objeto de intervenção insiste um sujeito, sem igual. O sujeito esta vivo! Isolar pode ser uma solução para alguns da sociedade, para a equipe médica, ou seja, tratar em espaço fechado pode ser solução para alguns. Um certo sossego diante da loucura que desassossega a gente. Mas o é para o sujeito? A minha experiência com a loucura me ensina que o sofrimento mental se sossega quando é possível encontrar nas redes de sociabilidade algum recurso que o suporte. Nos espaços de isolamento o sofrimento se intensifica ou se mortifica. É o testemunho que posso dar da minha experiência! Nos últimos anos, outros tipos de atendimento, que diferem da internação em clínicas, ganharam força no Brasil. O número dos Centros de Atenção Psicos-


social (Caps) aumentou, assim como o das chamadas casas terapêuticas, que funcionam como espécies de república. Para a senhora, qual é a efetividade dessas alternativas? Elas são mais benéficas para os doentes do que a internação em hospitais? Sim, pois estes recursos, ao lado do tratamento em saúde mental realizado nos serviços substitutivos, produzem a ampliação dos recursos e espaços de sociabilidade. Nesses ambientes, a clientela adquire uma certa sensação de independência. Esse sentimento é positivo na cura dessas pessoas? Como lidar com o paradoxo dessa espécie de autosuficiência e no perigo que isso pode acarretar? Ao contrario, nestes ambientes o sujeito é provocado a estabeler laços, ali a oferta é para que ele não fique isolado e sim ligado ao mundo público do Outro. É isto que eu chamo de ampliar as redes de sociabilidade. Quando o sujeito fica isolado, entregue ao gozo do eu sozinho, ali sim, ele esta totalmente independente. Diante dessa liberdade absoluta que se impõe nos lugares de isolamento, ali o sujeito é completamente só e por isto mesmo terrivelmente livre, esta situação cria um estado completamente louco, o Outro não esta nem ai, nem ali, nem acolá e esta liberdade infinita é perturbadora, joga o sujeito no abismo do intenso sofrimento. Nosso esforço é para que o sujeito possa se apresentar um pouco menos livre, constrangido pelas exigências externas, acompanhado de outros, alguém ali ao lado. Esses encontros e desencontros exigem dele um esforço a mais no sentido do laço social, para que ele possa ser um pouco menos portador de sofrimento. De um modo geral, nas doenças mentais, qual seria o papel das questões congênitas e das ambientais, adquiridas ao longo da vida? O papel destas questões? Bem porque seria diferente no caso do portador de sofrimento mental? Constituir o que faz de cada um sujeito singular e que tem que se arranjar com

isto na sua relação ao Outro. Não é diferente no caso do portador de sofrimento mental. Isto é universal: ‘uma molécula disse sim a outra molécula... explosão... nasceu a vida!’ (Clarice Linspector)

ternação hospitalar subtrai do tratamento um elemento crucial para a saúde mental. Sabemos que neste campo, não são os medicamentos que tratam, é preciso conjugar o tratamento medicamentoso com a convivência... E mesmo na crise será preciso convivência para escutar a crise e extrair dela a sua solução. Para tanto, o campo da saúde mental inventou um outro conceito, no lugar do hospital, oferecemos hospitalidade. Vamos combinar, em casos de crise não falamos mais em internação em hospital psiquiátrico, mas de hospitalidade na rede. O que é isso? Nos casos de crise, o acompanhamento diário nos serviços da rede de saúde mental e, quando necessário, além disso, a solução da hospi-

A socialização de doentes mentais é considerada extremamente importante para o tratamento. Porém, por necessidade de cuidados médicos mais diretos específicos, e pela impossibilidade das famílias de tomaram conta dessas pessoas, a internação se mostra uma opção ao menos considerável, em alguns casos, e em outros, é a única alternativa. Como achar um equilíbrio benéfico para os pacientes, entre a sua socialização e a necessidade de internação? www.flickr.com/imagenesdominicanas Internação é um conceito médico indicado para os casos em que se acreditava que o isolamento era o único tratamento. Isto poderia funcionar, no caso de uma crise...etc... Mas hoje em dia, os médicos de diversas especialidades e, de modo geral indicam a internação apenas em casos extremos e por um período curtíssimo, pois o hospital adoece muito mais do que trata... Atualmente, é consenso que as modalidades de tratamento domiciliar estão sendo largamente adotadas no mundo inteiro, por apresentar as melhores condições para o restabelecimento da saúde. Parece ser de conhecimento geral que nos espaços fechados é maior a possibilidade de ocorrências como a infecção hospitalar e a fragilização dos corpos devido a ausência de ambiente familiar. Isto é severamente prejudicial à saúde! A política nacional do Programa Fim das internações psiquiátricas não garante de Saúde da Família - PSF -, é assistência plena aos doentes mentais uma resposta da saúde publica que acompanha este tipo de pensamen- talidade noturna têm sido fundamentais to. Mas, principalmente no caso de saúde para responder, a cada dia e a cada caso, mental, a internação é uma solução ainda como o sujeito tem se arranjado com seu mais contraindicada. Não é preciso inter- sofrimento e quais as pistas que ele vai nação. O modelo hospitalar, ou seja, a in- apresentando para sossegar-se com isto.

“Em vez de sobreviver nos corações e mentes dos meus semelhantes, prefiro sobreviver no meu apartamento, do ator e cineasta Woody Allen. A B R E A S PA S

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E N T R E V I S TA Essa é a resposta que está prevista e em curso no projeto de saúde mental de Belo Horizonte, enfim, uma resposta que não abandona o sujeito no acompanhamento responsável de sua crise. A direção do tratamento, dessa forma, está comprometida com o que o sujeito tem de mais singular; todos os recursos devem estar ao alcance, para que essa tessitura possa ser tramada: os medicamentos, os materiais de arte, as letras, as palavras, a escuta etc. Mas, principalmente e sobretudo, que essa oferta seja acompanhado do Outro ali do lado que, com sua hospitalidade, acolhe o sujeito, constrangendo-o a um esforço a mais quando ele ousar declinar do convite da convivência, anunciando sua saída. A ausência da garantia, não impede-nos de fazer a aposta na resposta de sujeito. Não é preciso apagá-lo do mundo, isolando-o e dopando-o, retirando a possibilidade de que em algum momento ele possa apresentar uma saída. Mas é preciso estar ali ao lado, esta é a experiência dos trabalhadores da rede em saúde mental. No projeto da reforma psiquiátrica não basta ao técnico aplicar o “sossega leão”, distribuir a medicação, fechar a porta e voltar no dia seguinte para ver os efeitos desta terapêutica sobre o sujeito. É exigido um pouco mais, é preciso estar por perto, secretariando a loucura! Em Belo Horizonte isto funciona. Mesmo em casos muito graves... é o que resolve! No nosso país, são poucas as famílias que podem fornecer assistência de qualidade aos doentes mentais, dadas as inúmeras dificuldades infraestruturais. Como o Estado deve atuar diante de obstáculos tão complexos, sem prejudicar os necessitados? A atenção à família é fundamental. A família sofre muito e é perturbadora a experiência da angustia do familiar sem tratamento. Devem ser ampliados os espaços de atenção à família e se colocar ao lado destes, orientando, acolhendo etc. A assistência em saúde mental inclui a assistência à família, é preciso cuidar de incluí-los nesta rede! Existem muitas doenças mentais com características e graus diferentes. Como a Justiça Brasileira deve tratar a inimputabilidade penal nesses casos, considerando-se a complicação dos 32

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diagnósticos e a imensa gama de situações diferentes? A inimputabilidade penal subtrai do sujeito a sua responsabilidade pelo seu ato além de presumir ali a periculosidade. Não tenho duvidas a este respeito, louco ou não louco, o sujeito é responsável! Responder por seu ato, seja qual for as situações que contribuíram para a sua produção e o diagnóstico que lhe for atribuído... isto é uma resposta humanizante! Desde sempre, vigoram na sociedade estereótipos a respeito dos doentes mentais, que se mostram equivocados e preconceituosos. Essa situação melhorou? Em que medida ela prejudica o tratamento? Isto existe. Todo o esforço deve ser feito no sentido de incluir o portador de sofrimento mental na sociedade, mas sempre existirão os sitios de exceção. E cada um tem mesmo é que aprender a tratar a exceção que lhe constitui. Lembro-me de um caso, onde o sujeito foi chamado para fazer uma entrevista sobre o louco infrator, e ele respondeu: Quero aparecer como trabalhador e não como doente mental criminoso. Acredito que o sujeito em tratamento tem recursos para responder aos preconceitos e equívocos que por ventura lhe cruzem o caminho. Isto em cada caso, porém do ponto de vista macro, somos todos responsáveis e estamos implicados em transmitir uma experiência da loucura capacitante e responsável no espaço político e social. Voltando a questão do preconceito: como fazer com que ele acabe, ao mesmo tempo em que se educa a sociedade no sentido de que o doentes mentais precisam de cuidados especiais, e, em alguns casos, podem se mostrar perigosos? De modo geral, dizem as estatísticas do mundo inteiro, que os portadores de sofrimento mental que cometeram crimes reincidem muito menos que os demais. Por que então são chamados de perigosos? Deixo a pergunta em aberto para que cada um tente responder de onde veio a idéia do louco como o “bicho-papão” que está solto na rua para fazer mal as criancinhas. Mas, eu também penso que é preciso que vocês jor-

nalistas possam parar de tratá-los como doentes. A política nacional é de saúde mental, não é de doença mental. Que tal apropriarmos deste conceito, com a responsabilidade que cabe aos veículos de transmissão. Esta é uma via de formação da cultura. Os portadores de sofrimento mental adoeçem como cada um de nós, mas isso passa e o que resta é o irredutível de seu sintoma, seu jeito particular de viver a vida, com suas excentricidades... A grande ameaça é a angústia sem tratamento e isto não é um privilégio da loucura. Qualquer um que experimentar uma angústia extrema, pode se encontrar numa situação muito perigosa, para si e para outros. Mas encontrar saídas para a angústia é um modo de tratamento no sentido da saúde mental. A senhora acredita que filmes como “O Bicho de sete cabeças” são fiéis à realidade dos doentes mentais e dos manicômios. Qual a influência desta e de outras obras sobre o modo como a sociedade vê este universo? Ela é positiva ou negativa? Cinema é sempre bom... Seja de um jeito ou de outro, traz para a cena pública a discussão das diferenças, dos opostos, dos consensos e universaliza o debate. Isso é bom! Eu adoro cinema! Só não gosto de filme ruim, mas um bom filme, com pipoca, é imperdível. (risos) “O Bicho de sete cabeças” é um filme, e a fidelidade do filme é para com a arte cinematográfica, que se serve de pedaços da realidade para montar um enredo que suporta uma idéia a transmitir. Neste ponto, é inegável que cada um que assistiu ao filme, reconheceu num ponto ou outro da fita, um pedaço de sua própria relação com a loucura. E isto é um bom filme, quando coloca uma pergunta, surpreende e coloca um certo intervalo, fazendo vacilar as verdades sobre a loucura de cada um que o assistiu! A dissidência entre os que defendem e acusam a luta antimanicomial terá um fim? Espero que não, pois todo projeto que suporta a vida como personagem principal, precisa da critica para sobreviver. Esse debate constante, esta tensão permanente, coloca o ponto e vírgula necessário à política da luta antimanicomial.


REPRISE DE ARTIGO

Kant e a paz perpétua: utopia e realidade

Marconi Edson

“Quando uma coisa tem um preço, pode-se por em vez dela qualquer outra coisa como equivalente; mas quando uma coisa está acima de todo o preço, e, portanto, não permite equivalente, então tem ela dignidade.” *KARINE SALGADO

E

m um mundo onde as grandes guerras parecem ter terminado, cedendo lugar a incontáveis conflitos tidos como menores porque menos importantes, o pensamento de Kant se reabilita diante da necessidade que se impõe. Embora nunca tenha sido abandonado, o que é natural aos grandes filósofos, sua obra torna-se especialmente importante e atual em nosso contexto. Kant viveu em Königsberg, Prússia Oriental, cidade em que nasceu em 1724 e da qual nunca saiu. Conhecido pelo temperamento excessivamente forte e pela rigidez de comportamento que ultrapassava os limites toleráveis a um ser humano, construiu uma obra que reflete sua personalidade. Seus escritos compõem um grande sistema que abrange temas de estética, gnosiologia, moral, direito e política, articulados para construção de uma obra coesa e coerente. Dentre suas obras, um pequeno opúsculo, intitulado À Paz Perpétua, se revelou particularmente imporA B R E A S PA S

tante e insistentemente revisitado pelos seus estudiosos. Tal fato se explica pela atualidade do tema abordado e pela pertinência de suas observações. A obra, muito sucinta, encerra o sistema kantiano, é sua conclusão e coroação, embora cronologicamente não seja seu último escrito. Em “A paz perpétua”, Kant discute a possibilidade de a humanidade estabelecer um convívio pacífico. Entretanto, a paz por ele almejada não é um simples armistício, temporária, mas perpétua. Seria possível à humanidade tal façanha? A esta pergunta, Kant responde positivamente e aponta, através de artigos, os passos que a humanidade precisa percorrer para alcançar a paz. Por esta resposta, ele foi muitas vezes colocado como sonhador excessivamente otimista e sua obra, tomada como uma mera utopia. Estas críticas, contudo, são impertinentes, apenas refletem uma interpretação equivocada de seu pensamento, fruto de um estudo fragmentado de sua

obra que, como já dito, só pode ser compreendida se for tomada como um todo. Ao estabelecer a paz perpétua como objetivo, Kant tem em mente o homem real, não um ser ideal, perfeito, mas o ser humano com todas as suas dificuldades e mazelas. Entretanto, este ser humano é também racional e pela razão ele pode muito, vale dizer, pode compreender o correto e o errado e os prejuízos e benefícios decorrentes de seus atos. Para um ser racional, a paz se impõe como uma necessidade, pois se trata da própria sobrevivência de cada um e da humanidade. Kant percebe o quanto os interesses econômicos interferem na consecução da paz e lembra que os Estados não podem ser tratados como uma mera propriedade, que a não ingerência e a não excessiva dependência econômica são fundamentais, assim como o é a necessidade de desarmamento. A organização dos Estados sob a forma de repú-

“O medíocre fala, o gênio observa”, do aristocrata inglês Disraeli.

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REPRISE - ARTIGO

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Luta antimanicomial A favor

Contra Felipe Chimicatti

*Professora de direito da Universidade Fumec

Frente & Verso

Felipe Chimicatti

blica também é fundamental, como garantia de que o poder não será utilizado para atendimento de interesses particulares. Por fim, o respeito à soberania dos demais Estados, fator impeditivo da ingerência, e o respeito ao ser humano, independentemente da sua nacionalidade, completam as etapas fundamentais para um convívio pacífico. A paz é possível, embora talvez nunca se realize por completo e Kant tinha plena consciência disto. Considerá-la uma utopia e, por conseguinte, minimizar a importância do tema e da obra de Kant é, contudo, um equívoco. Utopias se referem a um ideal inatingível e a paz não o é, a despeito de ser tarefa muito difícil, posto que depende da humanidade como um todo. Ainda que nunca se realize, este ideal não perde seu valor, continua sendo um imperativo para a humanidade, em outras palavras, a paz expressa um valor essencial para a humanidade e isto, por si só, justifica a sua incessante busca, o esforço contínuo pela sua realização. A possibilidade real ou não de concretização da paz agora ou num futuro distante é questão que não diminui a importância dela, que não nos autoriza a descartá-la da lista de objetivos que toda a humanidade persegue. Kant tomou a paz perpétua como uma idéia e, enquanto tal, expressa uma perfeição que o homem não concretiza. Ele compreendeu muito bem o significado da paz e encontrou seu valor não na possibilidade de efetivação, vale dizer, a paz não é algo significativo para humanidade porque pode ser alcançada logo adiante, em um futuro breve. O valor da paz está no seu significado, no seu conteúdo: o respeito a todo e qualquer ser humano em qualquer condição enquanto ser digno que é. A efetivação do respeito ao ser humano é já a efetivação da paz. Ainda que isto nunca se torne uma realidade plena, precisamos continuar a busca e a sua gradual implementação, esta sim, possível em um futuro sempre próximo.

Tadeu Sampaio Professor de psicologia da Fumec/FCH

Jaques Ackerman Professor de psicologia da Fumec/FCH

A

luta antimanicomial impõe uma dimensão ética que indica uma utopia viva, ativada através de uma prática assistencial/política que leva o campo da loucura, como positividade, para o interior de todas as relações sociais. A idéia de explodir categorias da hegemonia científica clássica como a normalidade e a doença fazem emergir saberes e práticas que tem, na inclusão do louco apenas sua face mais visível, pois propõe um movimento de reinvenção da própria estrutura do poder. A força e a relação razão/alienação devem ser substituídas pela delicadeza e pela colocação, em cena, de modos de existência singulares que apontam para a radical diferença. Não sustento minha posição numa pseudo-verdade testada e comprovada a partir de métodos ou paradigmas consagrados, que poderiam ser traduzidos numa boa relação custobenefício. Pelo contrário, o manicômio é potente na sua função de contenção e exclusão, dá menos trabalho e é mais barato. Não sustento minha posição a partir de uma divisão moral entre o bem e o mal. Por essas e tantas outras razões, sou a favor da luta antimanicomial.

J

á se passaram 40 anos dos primeiros passos e, hoje, é possível realizar um análise sobre a institucionalização do normal e da loucura, sem os bordões da militância apaixonada daqueles anos de ditatura militar. Que os hospitais psiquiátricos, “humanizados” ou não, não comportam nenhum tipo de terapêutica eficaz, não resta a menor dúvida. Afinal, quando Foucault afirma que a loucura triunfo sobre nós, ele destitui qualquer avalição dita científica sobre fenômeno. Que a grande maioria dos portadores de sofrimento mental possuem melhor qualidade de vida e expectativa de inserção social, por via das comunidades terapêuticas, não cabe mais dúvidas. No entanto, depois desses anos todos,é o momento de avaliar se os equipamentos terapêuticos atuais possuem capacidade de propiciar bem estar ao paciente e à sua família. Os Naps, Caps e Cersams desempenham, com eficiência, a inserção social e produtiva de sua clientela? E quanto ao dito louco infrator? Qual a resposta é dada à sociedade quando ele comete em crime? Enquanto essas e outras perguntas não forem respondidas com o mesmo vigor das décadas de 70 e 80, fica difícil defender a luta antimanicomial em toda a sua dimensão.


PÓS-GRADUAÇÃO

ESPÍRITO DE LIDERANÇA. O MUNDO ESTÁ PRECISANDO.


TRANSFERÊNCIA E

OBTENÇÃO DE NOVO TÍTULO ATÉ ONDE VOCÊ QUER CHEGAR?

Administração r Arquitetura e Urbanismo r Biomedicina Ciência da Computação r Ciências Aeronáuticas r Ciências Contábeis Design de Interiores r Design de Moda r Design de Produto r Design Gráfico Direito r Educação Física r Educação Física a Distância r Enfermagem Engenharia Ambiental r Engenharia Bioenergética r Engenharia Civil Engenharia de Produção/Civil r Engenharia de Telecomunicações Fisioterapia r Fonoaudiologia r Jornalismo r Negócios Internacionais Pedagogia r Psicologia r Publicidade e Propaganda r Terapia Ocupacional

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12/20/10 7:43:58 PM


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