Favelas
Santificadas ou endemoninhadas, o número de favelas continua crescendo e desafiando Deus e o Diabo
Inconcebível
Enfermo, o SUS se agarra onde e como puder para não cair de quatro em praça pública Revista laboratório • Curso de Comunicação Social Jornalismo / Publicidade e Propaganda Ano 2 • Número 4 • Fevereiro de 2011 Belo Horizonte • Distribuição gratuita
Faculdade de Ciências Humanas, Sociais e de Saúde Oj Simpson Amy Winehouse
Goleiro Bruno
Desconhecendo qualquer limite e vaidosos ao extremo, os falsos ídolos acabam por derrapar, quase sempre sem volta, no lamaçal das grandes tragédias. Algozes e vítimas, eles não entendem ou fingem não entender: o mundo fashion que os idolatra é o mesmo que os condena
Michael Jackson
Ídolos às avessas: dignos de dó? Ponto & Vírgula 04.indd 1
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Índice 03 04 05
Destaque Ponto & Vírgula Reprise: Condição ‘sine qua non’ Seção: Farpas & Confetes
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O preço da idolatria
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Seção Frente & Verso
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Favelas: utopias e realidades
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Salvem o SUS!
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A dor de envelhecer
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Fumec: Janela Acadêmica
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Escola e violência
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A farsa da emancipação municipal O Senado e o escárnio da suplência Reprise: Por que não reescrevem tudo? Ensaio
Expediente Universidade Fumec/FCH
Presidente da Fund. Mineira de Ed. e Cultura Prof. Custodio Cruz de O. e Silva Reitor da Fumec Prof. Antônio Tomé Loures Diretora Geral Prof. Thaís Estevanato Diretor de Ensino Prof. João Batista de M. Filho Diretor Administrativo-financeiro Prof. Antônio Marcos Nohmi Coordenador do curso de Comunicação Social Prof. Sérgio Arreguy
Ponto & Vírgula Editor Geral Prof. Rogério Bastos - SJPMG/2375 Editor de Fotografia Franco Serrano (5ºG) Produção Gráfica Victor Duarte (5º G) e Ana Clara Maciel (6ºG) Apoio Técnico Luis Filipe Andrade
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Caro Leitor
A
fila anda. Reservamos, com especial cautela, as páginas 06 a 10 para tratar de um assunto que é tão antigo quanto a história do mundo e, nem por isso, desatualizado: O sucesso e o fracasso retumbantes dos nossos falsos ídolos. A pscicanalista Inez Lemos, simplesmente, arrasa na entrevista. E as favelas, eufemisticamente, chamadas hoje de aglomerados? Palco das mais diferentes e inusitadas incursões do poder público, das ONGs, igrejas, políticos e do tráfico de drogas, elas continuam crescendo e pautando o populismo, os gestores, as universidades, as artes e a violência. Nada disso, porém, desanima a socióloga e diretora da organização “Favela é isso aí”, Clarisse Libânio. Há dez anos ela se entrega de corpo e alma ao assunto e aos favelados. A entrevista que nos concedeu, nas páginas 12 a 15, nos surpreendeu pela competência e sensibilidade, razões mais do que suficientes para brindar aos nossos leitores. É ler e gostar. O SUS (Sistema Único de Saúde) e sua idiossincrasia de grandeza e ineficiência continua sendo um desafio para os brasileiros que dele dependem e para os gestores que dele são responsáveis. O certo é que, quanto mais fala-se do SUS, mais se descobre sua enfermidade. Mesmo assim, Ponto & Vírgula ouviu o presidente do Sindicato dos Médicos de Minas Gerais (Sinmed-MG), ninguém menos que o anestesiologista Cristiano Gonzaga da Matta Machado. Profundo e certeiro, ele encara o assunto de maneira critica, sem perder a confiança. Não precisa nem dizer: a entrevista do médico e sindicalista tornou-se imperdível. A seguir (págs. 20 a 24), a dolorosa e instigante arte de envelhecer, num mundo do espetáculo que só e apenas privilegia o novo, o são e o belo, é tratada com requinte e competência por quem sabe o que fala: Karla Giacomin, presidente do Conselho Municipal do Idoso (CMI), que se desdobra em mil na luta cotidiana de defender os interesses dos idosos e de suas lutas, onde o preconceito social encabeça o leque dos maiores obstáculos que enfrenta. Haja fôlego: a violência contra as escolas, segundo os especialistas, decorre da violência fora delas. O professor Marco Eliel de Carvalho, diretor do Sindicato dos Professores de Minas Gerais (Sinpro-MG), que sofreu na pele os efeitos deste constrangimento, fala sobre o assunto (pág. 26 a 29), baseado em pesquisa encomendada pela entidade que dirige. Nesta densidade toda, como não falar de política? Reservamos as páginas 30 a 33 e 34 a 37, para abordar, respectivamente, os assuntos emancipação municipal e suplência política, irmãos gêmeos e univitelinos na arte de iludir e corromper, claro, com o dinheiro público. A suspeita emancipação dos municípios mineiros é o tema de Suzanne Bouchardet, economista e pesquisadora do assunto. A suplência política no Senado ficou por conta do subprocurador do Estado, já aposentado, Carlos Victor Muzzi. Vale a pena ler as entrevistas. Para compensar o peso dos assuntos abordados nesta edição, sugerimos as reprises publicadas nas páginas 4 e 38, sob responsabilidade do cantor e compositor Caetano Veloso, e do cronista João Ubaldo Ribeiro. Em função da pertinência do assunto, fechamos a Ponto & Vírgula com um belo e polêmico ensaio sobre os últimos acontecimentos no Rio de Janeiro e sua relação com a mídia, de autoria do antropólogo Luiz Eduardo Soares.
Boa leitura e feliz 2011.
As entrevistas e os artigos aqui publicados não expressam, necessariamente, a opinião da Ponto & Vírgula.
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Destaque Ponto e Vírgula
No picadeiro da política
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ada simbolizou tanto as últimas eleições do que a figura canhestra do Tiririca (Francisco Everaldo), o candidato mais votado no país para ocupar uma vaga na Câmara dos Deputados. “Um absurdo!”, denunciaram os incautos e politicamente corretos; “um soco na alma!”, definiram os niilistas. O certo, é que a repercussão que o personagem nordestino provocou com a sua eleição, e que os moralistas tentam impugnar sob o argumento do analfabetismo este só vale para quem elege -, esconde, dentre outras graves sintomas, o desprezo que separa eleitores e eleitos.. Tiririca não é, nada mais, nada menos, e muito menos o único no cenário da política brasileira. Ao lhe prestar esta homenagem, publicando-o nesta seção, Ponto & Vírgula, simplesmente, reconhece, com um gosto amargo, que o palhaço-parlamentar, guardadas as devidas proporções, representa cada de um nós neste festival de absurdos que contempla o fardo de viver. Dá-lhe Tiririca,” porque pior não fica!” Sérgio Lucarelli
De vento em popa
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m sua quarta edição, Ponto & Vírgula continua sendo uma referência entre os alunos de jornalismo e publicidade/propaganda da Fumec. Vencendo os obstáculos de sempre, nossa revista não estaria no patamar que está junto aos seus leitores, se não contasse com mais uma equipe de alunos- guerreiros (foto ao lado), obstinados pelo aprendizado e talentosos por natureza. Foram três meses de ininterrupto de trabalho, pesquisando, selecionando os assuntos e os entrevistados; produzindo e reprouzindo as entrevistas até a fase inicial da edição, que implica um esforço redobrado dos editores. Afinal de contas, os assuntos são polêmicos e igual postura intelectual exigimos dos entrevistados, sob pena de produzirmos entrevistas chapa branca, o que seria um suicídio. Valeu a pena? A foto ao lado responde.
No fundo, da esq. para dir.: Augusto Duarte, Juliana Pio, Luis Andrade, Lucas Rage, Victor Duarte e Eduardo Zanetti. À frente, da esq. para a dir,: Carolina Costa, Paula Sampaio, Franco Serrano, Ana Clara Maciel e Andrea Basão.
Erramos Na edição 03 de Ponto & Vírgula, na seção Frente & Verso, onde se lê Lícia Queiroz Santos, leia-se Lícia Mara Dias Penna, professora de psicologia da Fumec e autora do brilhante artigo contra a descriminalização das drogas.
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Reprise Artigo
Condição
‘sine qua non’ Arquivo pessoal
está mil furos acima do meu. Para dizer o mínimo. Me espanta que nem Torquato, nem Capinam, nem Gil, nem Tom Zé, nem Duprat, ninguém tenha parecido notar. “Verdade tropical” foi publicado nos anos 90 e só nesse encontro recente me dei conta de que o erro era muito maior do que eu percebera. Ana de Oliveira foi quem me chamou a atenção para o “c” que sempre esteve ali em lugar do “s”. Mas como eu escrevi toda aquela conversa sobre a frase romana e não me dei conta de que maior problema do que o “is” em lugar do “es” era o “c” em lugar do “s”? A expressão correta é “panis et circenses”. CAETANO VELOSO
A
cena (que pode ser vista no YouTube) de Lula usando, em meio a um discurso, a expressão “condição sine qua non”, e comentando “isso é pro Caetano ver como o Lula está” é uma cena adorável. Era sua reação a eu ter dito que ele era analfabeto. Ali aparece concentrado tudo o que há de irresistivelmente atraente no Lula de “Entreatos”, o filme de João Moreira Salles, que só vi anteontem. Curioso ver esse filme pela primeira vez agora. Lembro que Salles não quis que ele saísse em DVD durante o mensalão para não ser usado como arma contra o governo. De fato, a famosa cena de um antipático Dirceu falando de dinheiro com Gushiken e mandando parar a filmagem (e Salles sendo o alvo da fúria e o Gilberto Carvalho, do sarcasmo de Dirceu) cairia muito mal à época. Gozado é que no mesmo dia em que assisti ao filme tive um encontro com Ana de Oliveira, que organizou um livro sobre o álbum “Tropicália ou panis et circencis”. O Décio Pignatari já tinha rido do erro no latim do subtítulo, falando em “provincianismo de vanguarda”. Eu mesmo comento tudo isso em “Verdade tropical”, onde volto até Wanderlino Nogueira Neto, meu querido colega do curso clássico. O fato é que se trata de um erro de verdadeiro analfabeto. O latim do Lula
Como é que a turma de Serra admitiu, incentivou ou produziu essa obscena volta da Marcha da Família com Deus pela Liberdade em versão virtual? Como é que isso se dá? Afinal eu conhecia o adjetivo “circense” desde sempre — e sabia que ele se escreve como “santamarense” ou “fluminense”. De onde me veio o “c” que está lá até hoje? Analfabeto é isso aí. Então os romanos diziam “kirkênkis” (sim, porque o “c” latino era sempre gutural: “Caesar”, por exemplo, era pronunciado “Káisar”)? É de amargar. Eu sempre me orgulhei de ter feito tudo no album “Tropicália”. Sugeri as canções, compus muitas delas, escolhi “Coração materno” e “Três caravelas” para entrarem exatamente como entraram — e até escrevi os diálogos que aparecem na contracapa, “psicografando” Duprat, Rita, Torquato, Tom Zé ou Gil. Não será o erro grosseiro que dividirei com eles. Ninguém me alertou, é verdade (Xexéo era pequenininho), mas eu suponho que tenha sido por timidez. Cicero e
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Wanderlino, com quem conversei sobre o caso quando “Verdade tropical” saiu, nada me disseram sobre o “c”. E esses evidentemente estavam cientes (Wanderlino é juiz e filho de juiz, conhece a expressão latina desde que nasceu — e Cicero lê poemas e tratados em latim), mas são ambos demasiado amáveis para não evitarem me ver constrangido.
...
Quando me dou conta de uma canelada dessas mais de 40 anos depois, não apenas dou razão aos jornalistas cariocas que se sentiam mal com a chegada desses baianos por aqui (provincianismo e “vanguarda”...): começo a desconfiar de que a paulista (quem disse que ela é paulista?) que exorta a elite urbana à violência contra os nordestinos, se está totalmente errada em relação a Lula e ao eleitorado de Dilma, está certa em relação a mim. Senti grande alívio com o fim das campanhas. Primeiro supus dever-se isso à mudança na expressão da Dilma. De fato, o segundo turno nos deu uma Dilma cansada e pesada. Isso foi melhorando à medida em que as pesquisas confirmavam que sua subida, resultado do esforço redobrado da militância em todos os níveis, se mantinha. Mesmo assim, ela estar motivada exigia-lhe uma atividade que ela parecia não aguentar mais. Então, vê-la relaxada depois de eleita foi um encontro com alguém real: no lugar da boneca programada para sorrir e que resultara numa carcereira dura e gaguejante, surgiu uma mulher vocacionada para o mando a dizer coisas razoáveis. Um gozo, para quem já estava irado com as abominações do Tea Party à brasileira que rodeou a campanha tucana — de que a sugestão de, digamos, extirpar os nordestinos é um eco sinistro. Como é que a turma de Serra admitiu, incentivou
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ou produziu essa obscena volta da Marcha da Família com Deus pela Liberdade em versão virtual? Não gosto dessa marcha nem descrita por Elizabeth Bishop. Mas descubro que o uso universal do Photoshop produzia mais infelicidade. Photoshop é pior do que auto-tune. Talvez seja assim para mim, porque, apesar de viver de música, sou mais visual do que auditivo. Em meio à criação de timbres e ritmos em que se transfor-
mou a canção popular, uma voz humana afinada artificalmente é apenas um elemento a mais. Dá raiva a gente não poder mais elogiar mentalmente a afinação de um cantor novo cujo nome esperamos o locutor anunciar: ela não vem mais do talento de quem canta, mas da perícia no uso dos computadores. Muitos amigos meus conhecem logo se o auto-tune foi usado — e como. O pior é quando ele funciona como
Farpas & Confetes
Photoshop: a voz da pessoa fica parecendo a pele das moças da “Playboy”. Mas no caso visual a coisa me incomoda mais. Os cartazes de campanha exibiam sérgios cabrais como se fossem coelhinhas, faziam das minhas ruas um trem-fantasma interminável. Sou um homem muito mais feliz sem eles. (*)Transcrito do jornal O Globo, de 07/11/2010.
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“Sempre me incomodou a falsa imagem que projetei no mundo de que era santo. Nunca fui santo. Nem na definição de santo como a de um pecador, que tenta se livrar das tentações”. Do líder africano, Nelson Mandela , na revista Veja, de outubro de 2010.
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“Ao ver o filme “ 5xFavela”, produção dos cineastas Cacá Diegues e Renata Magalhães, percebi um olhar cinematográfico riquíssimo, pela diversidade e qualidade que suas histórias nos despertam.” Do ator Lázaro Ramos, na revista O Globo, de setembro de 2010.
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Agência Estafo
“O cinema, nos últimos anos, se banalizou de uma forma abjeta. Não vou competir com “Avatar”, “Chico Xavier”, “Se eu fosse você”. Eu não pertenço a esta tribo.” Do cineasta Hector Babenco, na revista Bravo, de outubro de 2010. Rei Pelé
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“A Erenice é mais católica que o Serra, porque sempre levava um terço na Casa Civil. Essa é a católica do ano!”. Do humorista José Simão, no jornal Folha de São Paulo, de 21 de outubro de 2010.
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“Quando rompi, abertamente com Cuba, parecia que eu tinha contraído a peste. Eu era atacado por todos os lados.” Do escritor peruano, Mário Vargas Llosa, na revista Veja, de 20 de outubro de 2010.
“Pelé podia virar-se para Miguel Ângelo, Homero ou Dante e cumprimentá-los com a mais íntima efusão.... como vai colega?” Do jornalista e dramaturgo, Nelson Rodrigues, no jornal O Globo, de 23 de outubro de 2010.
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“O Brasil vive no mundo que o escritor inglês George Orwell previu e descreveu, há mais de meio século, no romance 1984. É um mundo do Estado-espião e policial, em que os cidadãos são sovieticamente vigiados e ameaçados. O próprio Estado viola, impunemente, os direitos constitucionais.” Do escritor Lêdo Ivo, na revista Veja, de setembro de 2010.
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“Marina Silva chegou tão alto com uma combinação rara de encontrar no meio político: uma inabalável aura de integralidade e habilidade de se comunicar com as mais diferentes platéias.” Dos jornalistas, Malu Gaspar e Ronaldo Soares, na revista Veja, de 13 de outubro de 2010. Thays Cabette
“Um dia a gente se olha no espelho e enxerga um rosto envelhecido e amargurado. Não existe GPS que assegure se estamos no caminho certo. Só nos resta prestar mais atenção.” Da colunista Marta Medeiros, na revista O Globo, de 10 de outubro de 2010.
Marina Silva
“Ainda que rotulado de bálsamo escapista da dura realidade vivida, o amor continua imprescindível neste desencantado século XXI”, da professora da UFMG, Ana Lúcia Andrade. 5 Ponto & Vírgula 04.indd 5
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Entrevista Inez Lemos
[ Das vitrines aos porões]
Falem mal, mas falem de
mim!
É sabido que pés de barro tendem a deixar rastros de sujeira: permitir suas entradas em nossas “casas” é conformar-se com as marca e respingos que eles, fatalmente, deixaram no ambiente , e que nem sempre podem ser varridos para “debaixo do tapete” Franco Serrano
Sua entrevista, que mais parece um ensaio, dada à sua profundidade e abrangência, é exata como um corte cirúrgico, que acorda os incautos e flerta com os indignados, com a sedução intelectual dos grandes mestres. Também, pudera, nosso leitores merecem.
Por: Augusto Duarte 8º C - Psicologia
Inez Lemos, psicanalista
C
erta dose de licença poética nos permite, talvez, considerar o inconsciente como uma espécie de “tapete” para debaixo do qual varremos automaticamente o que não deve ficar à mostra. Nossa sociedade narcisista valoriza mais o aparentar do que o ser, e o homem se arvora a Deus e cria mundos em uma semana. Celebridades são forjadas (o termo não é usado em vão) em velocidades que não permitem aos “ídolos” e a quem os idolatra, um amadurecimento saudável. O resultado é um dejá vu, nem sempre tão elegante quanto o termo francês. Pés são as bases, as estruturas. Se tais estruturas são de barro, a sustentar todo o peso do imaginário e esperanças depositados sobre os ídolos, é natural que venham a ruir numa velocidade maior ainda. O caso recente, que envolve, por exemplo, o ex- atleta do Flamengo Bru-
no, é o retrato 3x4, em branco e preto, deste cenário macabro que habita a alma e a cabeça dos falsos ídolos, construídos pelo mundo da aparência e destruídos pela aridez contundente da realidade. Para falar sobre a complexidade deste insinuante assunto, que atravessa a história humana sem fraquejar, a Ponto & Vírgula ouviu ninguém menos que a idiossincrática psicanalista Inez Lemos. Graduada em história e mestre em educação pela UFMG, a autora do livro “Pedagogia do consumo: família, mídia e educação”, pela editora Autêntica, e colaboradora permanente do caderno Pensar, do jornal Estado de Minas, além de criadora do blog amoresurgentes.blogspot.com, Lemos não para: ainda encontra tempo e disposição para trabalhar numa clínica em psicanálise, simultaneamente à realização de palestras na interface da psicanálise com outros campos de conhecimento.
Ponto & Vírgula - A psicanálise tem um pé na Grécia , através da tragédia de Édipo. Assim imagino ser pertinente recorrer à mitologia grega, na figura de Aquiles, para discutir os chamados “ídolos com os pés de barro”. Para a psicanálise, qual é o “calcanhar de Aquiles”, a partir do qual vários ídolos mostram sua vulnerabilidade? Inez Lemos - O filósofo Guy Debord apregoou, já no início dos anos 1960 em “A sociedade do espetáculo, a fissura por transformar tudo em show, em espetacularizar a vida humana. Esse traço da sociedade pós-moderna cria o sujeito consumidor de fetiche. O ídolo é um produto arquitetado, por meio de um conjunto de artifícios, a ser lançado no mercado para torná-lo célebre. Todos anseiam por seus quinze minutos de fama – outro efeito da cultura narcísica mencionada por Andy Warhol. Se somos narcisistas e gostamos de ser reconhecidos, nossa vulnerabilidade está na forma obsessiva com que buscamos “esse lugar ao sol”. Ídolo é aquele que melhor soube explorar algum talento ou atributo físico. Atualmente, a mídia tem transformado bundas preponderantes em celebridades ( vide
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mulheres melancia, pêra ). A mercadorização do corpo humano deflagra miséria interior, pobreza simbólica. P&V - Alternam-se as atividades nas quais se observam essas figurasmúsica, esporte, teatro, cinema, teledramaturgia, política, mídia, etc-, amplia-se o gradiente da faixa etária – do garoto recém ingressado na adolescência e logo guindado à condição de ídolo, ao político cujo caráter se imaginava “bem construído e consolidado” e que, pego com as calças nas mãos, exige respeito pelo seu passado. Para a senhora, o que se pode observar em termos de compulsão, inibição e sublimação, nos comportamentos desses ídolos? IL - A sociedade de consumo, centrada no deslocamento do sujeito, o disponibiliza para agir segundo o imaginário social que determina o comportamento. Quando terceirizamos o desejo, permitindo que um outro o conduza, nos tornamos vulneráveis aos interesses deste grande outro, no caso, o mercado. Abrimos mão de nossas convicções, inibimos nossa subjetividade, e, de forma descabida, adotamos o código de conduta orientado pela mídia. Se estamos sofrendo a banalização, na produção de ídolos, é porque somos condescendentes com a atual condução, pelo mercado, da vida humana. Ao submetermos às ordens sociais, aceitamos negociar o desejo pela demanda, o sublimar pelo trapacear. Iludimos nossas angústias nos shoppings e não mais sublimamos com o belo. Seja em museus, contemplando Picasso, ou no teatro, inundando de sabedoria oferecida por Shakespeare. P&V - Um arte - educador, conhecido como Tio Maurício, afirmou ser muito fácil tirar uma pessoa das ruas. O difícil é tirar a rua de dentro da pessoa. Casos como o do goleiro Bruno e outros mais parecem ratificar tal pensamento. Em que a fama e a fortuna, alcançadas meteoricamente, contribuem para fazer aflorar o que anteriormente se encontrava recalcado? IL - Sim, não é fácil tirar “a rua dentro da pessoa”. A rua metaforiza excesso de liberdade e ausência de lei. O jovem
que foi estruturado na falta de interdição, dificilmente vai aceitar as restrições impostas pela cultura, principalmente quando aliamos “liberdade excessiva com riqueza material”. O dinheiro provoca no indivíduo uma ilusão de poder. Esse, ao se sentir um privilegiado, age acima da lei, julgando ser a violência um direito que lhe assiste. Ao se potencializar na falsa idéia de supremacia, arrogância absoluta, o sujeito atua como cego e convicto de que, entre ele e o céu, restam apenas pobres mortais. Cabe àquele que cumpre com a função paterna ou materna operar com a interdição à criança. A maioria dos crimes resulta da ausência de lei, de limites. Algo falhou na educação. O caso Bruno metaforiza o sujeito que não foi inserido na cultura, faltou alguém para exercer a autoridade e frustrá-lo em seu gozo.
“Vivemos o vazio ideológico; o ato de pensar, refletir e propor saídas honrosas está em declínio” P&V-Não se pode dizer que apenas pessoas menos favorecidas economicamente lidem mal com a nova condição de ídolos. Para a psicanálise, pés de barro são democraticamente distribuídos entre menos e mais favorecidos? IL - A questão do “ídolo de pés de barro”, o ídolo fajuto, que convence poucos, não é um sintoma de classe social, não reflete a condição econômica, mas a cultura em que está inserido. Esse é mais um aspecto de nossa miserabilidade, a precária condição em que estamos estruturando o sujeito do inconsciente. O capitalismo colonizou o inconsciente. Os jovens estão sendo educados para o consumo alienado e se ocupam mais em ter do que ser – investir numa profissão, gastar com livros e cursos. Vivemos o vazio ideológico, o ato de pensar, refletir e propor saídas honrosas está em declínio. Não há espaço para ídolos
revolucionários. Chê Guevara, Lênin e Rosa Luxemburgo estão fora de catálogo, estão fora do código de valores pela moçada da tecnocultura. Cultua-se o ídolo que melhor defender o sistema, e não o que, com ele, deseja romper. P&V-Segundo Laplanche e Pontalis, em seu “Vocabulário de Psicanálise”, o termo egoísmo serviu a Freud para caracterizar os sonhos. Muitos ídolos vêem-se , de repente, em condições de realizar vários sonhos. O psicanalista diferencia egoísmo de narcisismo. Em nossa sociedade, especificamente nos caso dos ídolos com pés de barro, essa distinção acha-se mais evidenciada ou confunde-se cada vez mais. Por que? IL- Egoísmo é um conceito da psicanálise, é uma expressão utilizada pelo senso comum que caracteriza comportamento individualista. O individualismo burguês representa o início do capitalismo, a sociedade centrada na propriedade privada. Egoísta é quem só pensa em si, em defender seu interesse descaracterizando o do outro. Narcisismo é um conceito freudiano que diz da sexualidade do sujeito. Toda criança, ao estruturar o narcisismo primário, precisa ser amada e elogiada. Depois, então, ela suportará as críticas e frustrações. Quando os pais não restrigem o filho, limitando-o em seu amor próprio, ele pode crescer e agir como egoísta, como cantou Caetano: “narciso acha feio o que não lhe é espelho”. Freud elaborou o conceito de narcisismo baseado no mito grego – Narciso, o jovem que apaixona pela própria imagem estampada na água do rio. P&V- Segundo o senso comum, os desejos podem se realizar. Segundo a psicanálise os desejos nunca se realizam e, sim, as demandas. Como a senhora vê a relação entre um ídolo com os pés de barro e esse vazio que parece caracterizá-lo? IL - A psicanálise trabalha com o conceito de desejo, e aponto que todo desejo revela aspectos inconscientes, que estão recalcados. Contudo, uma das contribuições da análise é desvendar, junto ao analisando e por meio da
“Só os gays não têm problemas com as mulheres, porque são indiferentes a elas”, do escritor e filósofo Luiz Felipe Pondé. 7 Ponto & Vírgula 04.indd 7
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linguagem, dos significantes e dos sonhos, desejos reprimidos. A sociedade de mercado não convoca o sujeito a falar de seus sentimentos e fracassos, daquilo que o incomoda e o faz sofrer. Ela o quer circulando fora de sua via desejante, se angustiando e se deprimindo por não realizar os sonhos. Insatisfeito, perdido e em crise de identidade, ele se submete aos interesse de fora, às demandas impostas pelo grande outro do capitalismo. Cria-se, a todo momento, estratégias discursivas que induzem o sujeito a demandar objetos de consumo como se fossem objetos de desejo. Confundir desejo com demanda é uma das formas mais eficazes de trabalhar para o capital.
Larry McConkey
P&V- Fazendo uma mea culpa, a mídia por vezes “direciona” os enfoques. Uma foto do jogador Robinho, chupando o dedo (em termos freudianos, uma fase oral) pode ilustrar extensa reportagem cujo teor seja “o ídolo que não cresceu”, quando o gesto expressaria apenas o dedicar o gol a um filho. Qual o impacto para a personalidade de um ídolo, ao ver um gesto seu, fruto de um gol, por exemplo, amplificado de forma negativa, como se não bastassem as próprias “bolas fora” que ele, porventura, dê? IL – A mídia age, muitas vezes, como um monstro sanguinário em busca de uma presa-oportunidade para extrair sangue, explorar o lado mórbido do leitor que ainda não trabalhou sua compulsão masoquista e age conduzido
O boxista Mike Tyson protagonizou esândalos que macularam sua vida profissional
pelo gozo, certo prazer no sofrimento e na dor. O que vende é crime, morte, aquilo que fracassou – o obsceno e o ridículo. Muitos se deliciam com a desgraça alheia, sejam eles perversos ou neuróticos. Essa tendência masoquista pode tanto ser combatida e tratada em análise, como potencializada pela cultura midiática, que não perde a oportunidade de explorar o sofrimento alheio. Há algo erótico no masoquismo, e a mídia, sabendo disso, espetaculariza o sofrimento, o estupor. É quando a perversão torna-se a regra e a falta de ética e de escrúpulo se alastra por toda sociedade.
“Quanto mais uma sociedade cultua pavões, mais ela se distancia do belo” P&V- Recente episódio envolvendo o jogador Neymar, que se revoltou contra uma decisão do técnico de seu time, desencadeou uma enxurrada de críticas quanto à imaturidade de alguns de nossos ídolos. De injustiçado por não ter sido convocado pelo técnico Dunga para a Seleção Brasileira, o atleta foi taxado de monstro em potencial. Os pés ou as cabeças desses ídolos com pés de barro e de quem os idolatra é que seriam de barro? IL - Vivemos também a cultura da irresponsabilidade, poucos assumem seus erros e fracassos. Somos condescendentes com o outro e acobertamos suas falhas. O mundo do futebol metaforiza o imaginário social do Brasil machista e arcaico que cultua falsos ídolos. É mais fácil tamponas as mazelas do que assumi-las. Muitos se julgam o máximo, poderosos por jogar bem e ganhar muito dinheiro e se esquece de que a vida é muito mais que isso. A sociedade cria neles a ilusão de que estão acima do bem e do mal. Neymar não foi educado para a civilização, para respeitar o outro, apenas ao seu desejo. Ninguém nasce pronto, devemos nos educar o tempo todo. Freud nos lembra que há três ofícios que são intermináveis: educar, governar e analisar. Nunca terminamos de nos educar, uma cidade nunca
está pronta e sempre teremos algo a ser investigado em análise, um comportamento, uma mania, uma compulsão. P&V- Enfoca-se muito a queda desses personagens como se apenas eles fossem vítimas de uma base frágil. No entanto, o próprio Freud viu um desses ídolos ascender ao poder na Alemanha e, a partir do Reich (nada a ver com o terapeuta), levar o mundo à Segunda Guerra Mundial. Por que tais personalidades são, comumentes tão comoventes e carismáticas? IL - Hitler, um provável paranóico. O nazismo é fruto de um delírio inteligente, pois ele conseguiu persuadir quase toda a Alemanha em torno do racismo contra os judeus. Em grupo, muitos perdem o bom senso e acabam aderindo às aberrrações, absurdos apregoados pelos líderes. Freud nos alertou para esse perigo no livro “Psicologia das massas e análise do eu”. Muitos se deixam conduzir por um messias, que se coloca como o enviado por Deus para salvá-los, explorando o desepero, como Hitler, que usou da crise econômica na qual os alemães se encontravam. Furor nacionalista e fundamentalista é o que não falta em situações de crise. O desejo de se livrar do sofrimento disponibiliza o sujeito a aderir propostas insanas. Assistimos, hoje, ao fundamentalismo religioso apregoado por muitas Igrejas, quando pastores e padres conduzem os fiéis e exploram a condição de miséria, seja material ou intelectual, existencial e emocional. Vivemos um neonazismo. P&V- Todos os ídolos satisfazem nossa demanda quanto à ascensão do working class hero e costumam “anestesiar” nosso senso crítico, mesmo com um discurso pobre de conteúdo verbal ou, por vezes, sem discurso algum, ou seja: somos nós quem projetamos neles nossos ideais, numa simbiose na qual eles entram com a imagem e nós com o que imaginamos ser o texto? IL - Adoramos seguir modismos, aderir a comportamentos ditados pelo momento cultural. Há um discurso que atua como vetor, interferindo no imaginário social e produzindo nova subjetividade. Ele oferece modelos identitários e os ídolos operam como um destes modelos, modelando o pensamento e
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o desejo. Adorar imagens que falam por nós, aderir às identidades imaginárias é cômodo, nos desincumbem de pensar, usar a própria cabeça. Criar o próprio estilo exige tempo, implicação no desejo e mergulho na interioridade. Tudo isso requer enfrentamento com o passado – revisitar memória, ultrapassar incômodos e feridas guardadas. Cultuar ídolos é um entretenimento eficaz, uma terapia breve que nos transporta a outros mundos, outras vidas e nos ajudam a distanciar do lado dura da vida. Saber fantasiar é fundamental, é ela que nos protege da loucura. P&V- Curiosamente, não são poucos os casos de resistência de tais ídolos em assumir paternidade e as responsabilidades a eles inerentes. Que relação se pode fazer entre tal atitude e o conceito psicanalítico do Nome do Pai? IL- Vivemos a ressaca do maio de 1968, quando os estudantes vão às ruas de Paris exigir liberdade sexual. A partir dele, presenciamos um processo de banalização das relações humanas. A concepção de casamento sofre transformação, os recasamentos tornam-se uma tônica. O respeito e o compromisso com o outro entram em declínio. Homens e mulheres conquistam o direito sobre o próprio corpo. O feminismo, ao jogar a mulher no mercado de trabalho, desloca o imaginário social. Ao conquistar a rua, ela passa a ocupar um outro lugar no ideário masculino. Muitos homens, talvez inconscientes, punem a mulher por ter descido do “altar”, onde a esposa e a boa mãe, aquela que dedicava todo o seu tempo à família, era reverenciada
Márcia Feitosa/VIPCOMM
“Os jovens, entediados e sem causa, justificam a existência se entregando às drogas, ilusões virtuais, consumo vazio. Sem arte, sem transcender o deserto, onde se apoiarem?”
e sacralizada. Com isso, a família, o Nome – do – Pai sofre um abalo. Quem hoje insere a criança nos limites da lei e da ética? Grande parte das crianças é educada apenas pela mãe em lares monoparentais.
P&V- Novembro passado, um documentário sobre Ayrton Senna chegou ao cinema. O piloto possuía uma personalidade forte, a despeito de suas fraquezas, o que não o impediu de tornar-se um ídolo mundial. O que difere o “humano”, a pessoa com os pés de carne e osso, daquela com os pés de barro? IL - Você está querendo saber o que difere um verdadeiro ídolo, a pessoa que cultivou fãs devido ao seu trabalho, es- O ex-craque Adriano, “acima do bem e do mal”, sempre forço e talento, daquele que confundiu idolatria com fracasso, em sua pior edição não passa de um produto miintelectuais e profissionais. O filme “Crediático? O mercado adora transformar púsculo dos Deuses” é entretenimento, lama em ouro. O que está em questão é produto do american way of life. Os como cooptar corações e mentes – des- EUA, ao optarem por ganhar dinheiro viar o indivíduo da rota que não seja a com cultura de massa, contrapõem à eruque interessa ao mercado. O verdadei- dição, ao culto à aristocracia européia. ro ídolo tem uma causa, é o condutor Disseminaram o lixo televisivo e cinemade bons sentimentos. Vulgarizar e ba- tográfico, viciou a humanidade em nulinalizar a vida humana é rentável, uma dades. A falta de sentido gera lucro aos vez que o sujeito que não reflete sobre distribuidores, uma vez que não hidrata o desejo e não se coloca como ser pen- a alma. O jovem sai do cinema tal qual sante, torna-se vulnerável às ofertas. O entrou, ou pior. Insatisfeito, continua dejovem, sem consistência ideológica, sem mandando. Criam-se as condições favoelaboração de pensamento e filosofia ráveis que eternizam o sujeito na lógica de vida, age como mero consumidor do consumo, uma vez que é nela que se de propostas alheias. Alienado e des- realiza o laço social. Os jovens, entediasubstancializado, segue o falso ídolo e, dos e sem causa, justificam a existência juntos, se candidatam ao futuro morto. se entregando às drogas, ilusões virtuais, P&V- Existe um filme, que no Brasil chamou-se “Crepúsculo dos Deuses”, sobre a não aceitação do acaso, levando a consequências trágicas. O apego desesperado ao “glamour”é uma característica do sistema capitalista ou uma vaidade natural do ser humano? IL - O “glamour”, a festa e o brilho fazem parte da vaidade humana. Não há nada de errado gostar de ser admirado, seja na beleza física ou nas qualidades
consumo vazio. Sem arte, sem transcender o deserto, onde se apoiarem? P&V- Como o assunto são pés, inevitável lembrar a observação quanto aos pavões terem pés feios. Mais inevitável, ainda é, lembrar da que pergunta que se segue, ao se ouvir tal observação: “e quantas pessoas você conhece que, na presença de um pavão, olham para os pés dele? Fica aqui a pergunta. IL - O que sei sobre pés, é que mui-
“Só existe uma coisa mais irritante que um homem que sabe tudo de futebol: mulher que sabe tudo de futebol”, do humorista Rafinha Bastos. 9 Ponto & Vírgula 04.indd 9
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tos fetichistas os elegem como objeto de desejo e sedução. Muitos desenvolvem uma fixação por pés, um sitoma de traço perverso. O fetiche sexual por alguma parte do corpo, quando levado às últimas conseqüências, acusa patologia. Contudo, se a intendção é debater o pavão de pés feios, metaforizando o arrogante que se julga superior e que não tem o hábito de se questionar, caberia afirmar que, quanto mais uma sociedade cultua pavões, mais ela se distancia do belo. A verdadeira beleza, a “suprema felicidade” reside nos sentimentos simples da vida. Aqui reverencio, junto ao cineasta Jabour, as emoções que se tornaram impalpáveis meio a tanta modernidade e tecnologia. Novas frivolidades ocupando a essência da vida. O mundo está carente de “tarados por sensibilidade com inteligência”.
Sem Pestanejar
P&V- Os herois de Cazuza morreram de overdose. Na opinião da senhora, o mundo tem precisado de uma overdose de ídolos, sem a qual ele morre? IL - A minha juventude cultuou belos heróis como: Beatles, Chico Buarque, Camus, Sartre, Marx, Freud. O barato era
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atravessar a noite, em casa de amigos e primos, conversando e ouvindo música. Sonhávamos em ser úteis, deixar algo eterno. Embalados pelo lema ”A vida só vale a pena ser vivida quando se tem uma causa pela qual vale a pena morrermos”, admirávamos os jovens que se lançavam contra a ditadura, sofrendo torturas, morrendo nas prisões. Necessitar de ídolos de forma desvairada é sintoma de solidão, desamparo – falta de rumo e de referência. Busca-se fora o que deveria buscar-se dentro. Neste particular, acredito que o cenário para o jovem não anda lá muito bom, sinto-os desiludidos, desvitalizados, pois viver tendo como horizonte crescer apenas materialmente, é angustiante. O dinheiro não transcende, nele todas as significações se anulam. P&V- As crianças, cada vez mais cedo, perdem suas fantasias outrora comuns à infância, para viverem uma realidade para a qual, por vezes, ainda não estão preparadas. Em contrapartida, não são poucos os adultos desejosos de vender roupas de “tecidos especiais” e aqueles que dirão estarem as “majestades” indescritivelmente, elegantes. Se
não são os olhos e as bocas infantis, quais olhos verão e quais bocas dirão que os reis estão nus? Como a psicanálise tem atuado em termos de fazer com que tal percepção aconteça? IL - Realmente, o segmento que mais sofre os efeitos deletérios da mídia, da proposta de sociedade centrada no consumo, é o infantil. Há um arsenal de publicidades voltadas para as crianças, induzindo-as a consumir “tranqueiras”. Principalmente, quando se trata de alimentos. Viciamos nossos rebentos, desde cedo, em refrigerantes, chips, congelados. A maioria contém produtos químicos que podem causar doenças como: hiperatividade, câncer. A criança, em sua ingenuidade, vai demandar mercadorias fashions e fascinantes. É o fetiche enfeitiçando a garotada. A Barbie simboliza o ideal de mulher poderosa, rica, corpo malhado, bem sucedida e que circula com namorado em carrões. Se, por um lado, a mídia expõe a nudez do rei, por outro, o capitalismo é a arte de transformar coisas irrelevantes em relevantes. Contudo, cabe a nós, pobres mortais, nos informar e recusar os engodos.
Um filme: impossível, entre muitos, o último que vi: “Um anjo em minha cama”; Um vexame: não desligar o celular em teatro, cinema, palestras etc; Um livro: “Confissões de um Burgues”, de Sandor Márai; Uma decepção: a falta de ética do ser humano; Uma música: “Chão de Estrelas”; Uma tristeza: desmatamento; Uma alegria: cachoeiras; Um sonho não realizado: viver um tempo na Europa; Um Ponto G: a psicanálise; Uma verdade: o sentimento; Uma mentira: o totalitarismo; Uma traição: a corrupção; Quem você deixaria para sempre numa praia deserta? A covardia.
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Frente & Verso
Voto
obrigatório
Denise Falcão
A favor Cientista político e professor dos cursos de Comunicação e Direito da Fumec/FCH
Advogada e professora do curso de Direito da Fumec/FCH
A
V
Franco Serrano
Pedro Cunha
Contra
Eduardo Martins
defesa pela instituição e manutenção do voto obrigatório no Brasil passa por alguns argumentos centrais. Senão vejamos. A democracia brasileira é muito recente e a construção dos seus diversos institutos é um processo singular e requer tempo para seu enraizamento. Há instituições centrais e mínimas para a articulação e fortalecimento do processo democrático: o deverdireito de voto; eleições periódicas, livres e sistemáticas com processo de realização e apuração independente do governo; liberdade de expressão; imprensa livre e ambiente de competição política favorável à liberdade de organização sindical, associativa e partidária, fundamentalmente. O voto deve ser tomado como um poder-dever e não é simplesmente uma escolha do cidadão. Com a compulsoriedade, a imensa maioria dos eleitores participa, assim, do processo eleitoral. O exercício do voto constitui-se num poderoso instrumento de educação política do eleitor, no contexto de um país de alta exclusão social, política, cultural e econômica. A tradição brasileira e latinoamericana é pelo voto obrigatório e não será extinta por decreto e, tampouco, por decreto da elite política. O atual estágio democrático do Brasil não apontaria na perspectiva da adoção vitoriosa, representativa e justificável do voto facultativo. O fato de o voto ser obrigatório não representa, rigorosamente, nenhum ônus para a nação, em especial se comparado aos benefícios que a sua prática oferece ao processo político-eleitoral.
otar é um direito, muito antes de ser um dever. Direito de participação e expressão, que deve estar liberado de qualquer obrigatoriedade para que possa ser exercido de forma realmente plena, abrangendo tanto a liberdade de votar como a liberdade de abstenção, sem que haja a incidência de qualquer sanção por parte do Estado. O voto facultativo faria com que apenas cidadãos, verdadeiramente, interessados no processo político participassem das eleições, o que melhoraria a qualidade da eleição. Melhoraria porque a não obrigatoriedade evitaria que participassem do pleito cidadãos não interessados sem qualquer convicção política. E a participação obrigatória acaba levando as pessoas a votarem sem a devida reflexão, o que gera graves conseqüências para a democracia. O voto obrigatório, exercido simplesmente pela imposição da obrigação, acarreta, muitas vezes, a vitória daquele candidato apontado como vencedor em pesquisas eleitorais, simplesmente por estar sendo apontado como tal. Educação e condição econômica são fatores importantes para definir o grau de interesse e informação política dos cidadãos, na medida em que este interesse aumenta quando as pessoas se sentem mais inseridas na sociedade e também no processo democrático. Por isso, a implantação do voto facultativo é importante para trazer mudanças educacionais e sociais. Júlia Cascaes
“Como são admiráveis as pessoas que nós não conhecemos bem”, do jornalista e escritor, Millôr Fernandes. 11 Ponto & Vírgula 04.indd 11
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Entrevista Clarisse Libânio
[ Favelas ou aglomerados]
céu
Entre o eo
inferno
Com 36,6% de sua população urbana (o equivalente a 52 milhões de brasileiros), vivendo em favelas e cortiços, fica mais do que claro que o êxito do nosso tão festejado crescimento econômico é proporcional ao processo de exclusão social (principal origem da favelização) que ele gera Arquivo pessoal
que a Ponto & Vírgula encontrou a professora e palestrante requisitada em todo o país, Clarisse Libânio. A organizadora da coleção “Prosa e poesia no morro”, que está “bombando” de audiência, convenhamos, é uma precoce que tramita com competência, equilíbrio e generosidade na corda bamba que é sonhar e realizar, visando à superação das distâncias sociais e simbólicas no espaço urbano. Precisa de mais?
Por: Paula Sampaio 8º G - Jornalismo
Clarisse Libânio, presidente da ONG “Favela é isso aí”
A
cientista social e mestre em sociologia pela UFMG, Clarisse Libânio, que criou a respeitada ONG “Favela é isso aí”, não tem meios termos para defender a urbanização das favelas, a partir do respeito à sua cultura (em seu sentido amplo) como uma das únicas e mais inteligentes formas de intervenção social nestes bolsões de pobreza. A autora do “Guia Cultural das Vilas e Favelas de Belo Horizonte – uma verdadeira bíblia para quem deseja atuar neste setor-, sabe, como ninguém, que o processo de favelização no Brasil e, em especial, em Belo Horizonte (apro-
ximadamente 500 mil habitantes moram em 208 aglomerados) tem origem na opção do Brasil por um modelo econômico que inclui e exclui sem o menor pudor, com sua lógica que passa a ser o centro da vida e o principal critério de discernimento para as questões morais e sociais. Ou seja: a urbanização é importantíssima como uma etapa , que não pode ser produzida, sob pena de virar uma burocrática razão instrumental, desconectada do universo do problema. Muito embora, segundo a própria entrevistada, que algumas coisas boas neste contexto têm avançado. Portanto, não foi por mero acaso
Ponto & Vírgula - A despeito de todos os investimentos feitos pelo poder público, ainda persiste o estigma de morar numa favela. Você concorda? Até onde vão as conseqüências deste preconceito? Clarisse Libânio - O preconceito existe e persiste. Ele é fruto, em minha opinião, do medo que os humanos, aglomerados em centros urbanos caóticos, acabam tendo uns dos outros. Cada pessoa passa a ser um suspeito em potencial, e a forma adotada para saber quem é perigoso e quem não é, usualmente, é a rotulação, o preconceito. Morador de favela, pobre, negro? Esse passa a ser suspeito, temido e evitado. Acho que nos últimos anos muitas coisas têm avançado. Uma delas é o que você cita, os investimentos feitos pelo Poder Público, a chamada presença do estado como forma de garantir o con-
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trole social e melhorar as condições de vida dos moradores de vilas e favelas. Outra é a própria ação da sociedade civil, de ongs e projetos que trazem um outro olhar sobre as comunidades e sua gente, sua cultura, enfim, seus moradores. É nesse sentido que trabalhamos lá no “Favela é Isso Aí”: através das manifestações culturais das comunidades, tentamos superar essas barreiras que o preconceito constrói e que dilaceram as possibilidades da convivência urbana. P & V - A favelização, há algum tempo, deixou de ser prerrogativa dos países pobres. A que você atribui este fenômeno? C.L - Me parece uma questão de crescimento desordenado, de excessiva concentração de pessoas em um só local. Nenhuma estrutura urbana é capaz de atender a números tão expressivos de pessoas aglomeradas com equidade no que diz respeito à qualidade de vida e acesso a emprego, renda, serviços e outros. E o pior é que o aumento da pobreza mundial é uma tendência que já tem sido estudada e apontada por teóricos, entre eles Mike Davis em seu livro Planeta Favela. Lá ele mostra que a concentração de populações urbanas, em todo o mundo, tende a transformar as megalópoles em grandes bolsões de pobreza, seja na América Latina, seja na África ou na Ásia. Caso não seja revertida essa tendência, o futuro da Terra será uma grande favela? P & V - As favelas , com sua idiossincrasia, é, literalmente, um grande mote para a política brasileira. Como se não bastasse, transformou-se num espaço de projeção artística. A utilização desses bolsões de pobreza, nas artes ou na política, não lhe parece meio que absurdo? C.L - Não, não vejo onde estaria o absurdo. Para mim, a favela é como qualquer outro bairro ou região da cidade. Lá temos eleitores, que são buscados pelos políticos. Lá temos artistas, que buscam mostrar seu trabalho e conseguir mercado. Lá temos trabalhadores, que circulam pela cidade e atendem aos demais cidadãos em serviços diversos. Acho que falta, às vezes, é retirar os
rótulos e tratar todos os cidadãos, independente de seu local de moradia, de uma maneira mais equitativa. Só assim deixaremos de achar absurdo nas favelas o que é comum em toda a cidade. Além disso, falta deixar de ver os cidadãos (moradores das comunidades ou de qualquer outro local da cidade) como títeres, que podem ser manipulados ao bel prazer dos governantes.
“Nos aglomerados em centros urbanos caóticos, as pessoas acabam tendo medo uns dos outros. Cada pessoa passa a ser um suspeito em potencial. Morador de favela, pobre, negro? Um suspeito temido e evitado”
P & V - O espaço da criminalidade, da ilegalidade e da violência constitui o perfil das favelas, sobretudo, visto de longe pelas camadas mais privilegiadas e poderes públicos. Cerca de 500 mil habitantes dessas áreas, em Belo Horizonte, são vítimas desta interpretação hegemônica. Como desmistificar este cenário, que tem muito a ver com a construção simbólica? C.L - Essa visão das favelas como locus da marginalidade tem um lastro muito forte na mídia. É ela que constrói essa imagem e é ela que deve contribuir para mudá-la. No caso de Belo Horizonte, ainda temos o agravante de receber a construção simbólica que tem como base as favelas do Rio de Janeiro, com perfil bem diferente do que vemos por aqui, em especial quanto ao domínio do tráfico de drogas nas comunidades. Além da mídia, acho que os movimentos juvenis e as ongs e projetos sócioculturais também têm um papel primordial para desmistificar as favelas e seus habitantes, mudando, pouco a pouco, essa visão hegemônica e totalmente distorcida da realidade.
P & V - Você concorda que os programas de desfavelamento têm muito a ver com o estancamento do descompasso entre o crescimento industrial e o espaço ocupado pelas classes populares? C.L - Entendo que o desfavelamento é uma prática herdada de uma época em que os moradores de favela eram vistos quase como não-gente e sem nenhum tipo de direito como cidadãos. Em Belo Horizonte, foi a época do DBP - Departamento de Bairros Populares, e da Chisbel. Os movimentos sociais nas favelas tiveram muitas conquistas desde o fim do governo militar, com o apoio da igreja católica, e uma das principais delas foi o direito à permanência no local, a possibilidade de regularização da posse da terra e a garantia da melhoria das condições de vida, através da urbanização. Segundo lideranças e moradores das comunidades, as novas práticas de remoção de favelas para realização das grandes obras urbanas têm trazido de volta o fantasma da Chisbel, onde o interesse, a cultura e os valores dos moradores removidos acabam por ser muito pouco considerados. P & V - A extinção das favelas não foi possível, porque se trata de uma questão estrutural complexa, cuja raiz está no modelo concentrado de desenvolvimento econômico. Essa constatação aumenta o grau de dificuldades para tratar desse assunto? C.L - Extinção, em minha opinião, é uma palavra muito perigosa, além de ser inverídica, improvável e indesejável. Não considero que tenhamos que ter uma meta de extinguir as favelas. A meta deve ser reduzir a pobreza, dar condições de vida e trabalho para as pessoas, ampliar sua participação na cidade e nas benesses dela. As dificuldades para isso são muitas, sim, mas não devem ser motivo para desistirmos. Entendo que muita coisa já tem sido feita nesse sentido nos últimos anos, num esforço paralelo dos governos federal, estadual e municipal, bem como das organizações da sociedade civil. Temos que continuar nesse
“Não importa o que os outros fazem da gente, mas o que a gente faz do que os outros fazem da gente”, do filósofo Jean Paul Sartre. 13 Ponto & Vírgula 04.indd 13
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caminho, reduzindo a desigualdade social e dando condições econômicas, de forma não paternalista, para que as famílias resolvam, da melhor maneira para cada uma, sua situação de moradia. P & V - Em síntese: o Programa Vila Vida, implantado pela Prefeitura Municipal de Belo Horizonte, realmente tem trazido benefícios estruturais para o Aglomerado da Serra. Essa e outras intervenções pelo Brasil afora não correm o risco de apenas seduzir e ficar na planície do problema? C.L - Existem por todo o país programas como o Vila Viva, o Cingapura (SP / Maluf) e outros. Todos são polêmicos e vivem em dicotomia. Por um lado, trazem, sim, melhorias para parcelas das populações removidas e reassentadas, em geral (infelizmente) em modelos verticalizados e pouco humanizados de habitação. Por outro lado, agravam e introduzem problemas sociais diversos e são questionados por lideranças do movimento popular, incluindo as vozes quase solitárias de alguns líderes da igreja católica e da pastoral de favelas. Nesse sentido, entendo que deveria haver uma parceria mais concreta dos poderes públicos com os movimentos sociais, no intuito de produzir, em diálogo, as melhores soluções e formas para se tratar a problemática da falta de espaço nas cidades e da qualidade da habitação para as populações de baixa renda. P & V. - Você vincula a eficiência do processo de urbanização ao respeito à cultura dos moradores. Qual o significado desta relação? C.L. – As idéias e proposições do poder público para as favelas, áreas em que atuo há muitos anos, em vez de melhorar, parecem piorar a cada dia. A política de urbanização das favelas, de moradia, tem que levar em conta a cultura e a opinião dos moradores. Para morador de favela, laje é solo. Quintal é condição de reprodução familiar e, também, manutenção da sua origem, muitas vezes rural. Poder ter um negócio próprio em casa é condição de sobrevivência econômica. Manter os laços de vizinhança e parentesco é a própria essência da socialidade. Por isso, senhores gestores, vamos parar de reproduzir os modelos de assentamento Cidade de Deus (RJ) e
Cingapura (SP), e usar da criatividade e do (bom) jeitinho brasileiro para tratar o reassentamento das famílias de uma maneira mais respeitosa e mais ligada à sua cultura, seus valores, seus modos de vida e suas particularidades. P & V - Remover ou urbanizar? Com qual alternativa você fica? C.L - Urbanizar sempre!
tras regiões, ou que precisa ficar perto do trabalho, em áreas mais centrais. Em relação a uma suposta “utopia das oportunidades”, temos que considerar que não é utopia, é realidade. Por mais difícil que seja a vida na favela, ela ainda tem muitas benesses, em comparação com a vida no campo, principalmente no que se refere ao acesso facilitado à saúde, educação, assistência social e trabalho.
“A favelização, me parece, uma questão de crescimento desordenado, de excessiva concentração de pessoas em um só local. Nenhuma estrutura urbana é capaz de atender, com equidade, a números tão expressivos de pessoas aglomeradas”
P & V - O sonho da ascensão econômica e social, com certeza, é um câncer que, se não removido pelas políticas públicas, só faz crescer os bolsões de miséria. Segundo a Pesquisa Nacional de Amostras por Domicílio (Pnad/dados de 2006) a população urbana no país era de 83,29% contra 16,71% da rural. Você concorda que, diante desta discrepância social, qualquer projeto para as favelas corre o risco de se amesquinhar? C.L - Discordo totalmente de sua afirmação. O sonho da ascensão econômica e social é o motor da mudança, o motor da busca por uma vida melhor. Todas as pessoas têm direito de querer viver melhor e dar à sua família condições melhores de vida. A política pública necessária é propiciar aos moradores de todas as regiões (urbanas ou rurais, ricas ou pobres) as condições necessárias para atendimento das demandas por saúde, habitação, educação, cultura, lazer, trabalho e renda, entre outras. Só assim conseguiremos avançar aos pouquinhos em direção à redução das desigualdades sociais.
P & V - Qual dessas duas alternativas encontra mais resistência. De quem? Por que? C.L - Atualmente, como relatei antes, a moda voltou a ser remover, em nome da circulação viária, em nome do bem coletivo da cidade. Essa opção tem a resistência dos movimentos sociais, apoiados por setores da igreja. Entretanto, considero que tem sido vozes pouco ouvidas pelo poder público, pouco consideradas e, portanto, de pouca eficácia na reversão desse quadro. P & V - O êxodo rural, alimentado por um utopia segundo a qual as oportunidades estão nos centros urbanos, explica o surgimento desses aglomerados? Como você interpreta esse fenômeno que é responsável, cada vez mais pela exclusão social? C.L - O êxodo rural é um dos fatores que contribui para o aumento das vilas e favelas, mas a própria migração interna dos grandes centros é outro fator determinante. A causa econômica é real e me parece a mais direta: morar na favela é uma opção mais barata para quem não tem muitos recursos para comprar uma casa em ou-
P & V - Segundo David Harvey, em seu livro “A Justiça social e a Cidade, o surgimento cada vez maior das favelas e do fortalecimento do processo de favelização passa pela política urbana de privilegiar a acumulação do capital, que age na contramão das disparidades sociais. Como sair desta encruzilhada? C.L - Com políticas públicas que revertam o quadro de concentração de renda e desigualdade social. Esse, sim, é o papel do governo: intervir para que o mercado não seja o único definidor das situações das pessoas, equilibrar oferta e demanda de bens e serviços de natureza social e condições de reprodução da família através do trabalho.
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P & V - Por tudo isso, você concorda que a vida na favela é uma eterna panela de pressão social a ponto explodir? C.L - Não concordo. A civilização urbana contemporânea, nos moldes em que se está vivendo, essa é a panela de pressão social, independente do local de moradia. Muitas vezes temos relatos de pessoas que sentem, ao contrário dessa afirmação, e preferem viver na favela, onde há manutenção de hábitos rurais, como o uso dos quintais, relações de parentesco e vizinhança reforçadas e mais tranquilidade, sem trânsito e outros problemas da vida que estão tão presentes em outros bairros ou no centro. É uma questão de vivência e de cultura de cada um.
Sem Pestanejar
P & V - Para terminar: que motivação você encontra para fazer de
seu ideal, uma obstinada e permanente luta social ? Às vezes não lhe dá vontade de jogar a tolha? Aliás, de onde veio e porque surgiu a ideia de criar a Ong “Favela é isso aí”. Quais as maiores dificuldades que vocês enfrentam e por que?
“Por isso senhores gestores, vamos parar de reproduzir os modelos de assentamento Cidade de Deus (RJ) e Cingapura (SP) e usar da criatividade, respeitando a cultura das famílias, seus valores, seus modos de vida...”
C.L - A motivação para o trabalho do “Favela é Isso Aí” vem da constatação cotidiana de que é necessário superar as distâncias sociais e simbólicas no espaço urbano. Cruzar a ponte do preconceito através da arte e da cultura. Esse é o trabalho que desenvolvemos. Quanto a jogar a toalha, dá vontade todos os dias, já que lutamos para ter condições financeiras para desenvolver os trabalhos e muitas vezes não conseguimos. Também, nos deparamos com vários exemplos de pessoas que usam nosso trabalho para obter benefícios próprios e sequer citam nossa existência ou que preferem, ao invés de somar esforços, destruir o que já foi feito. Mas a vontade de parar passa logo e continuamos na luta, pelas comunidades que nos encantam cada dia mais com sua riqueza, diversidade e exemplo de persistência!
• Um filme: “Infância Roubada”; • Um vexame: não lembrar o nome das pessoas que conheço; • Um livro: todos!; • Uma decepção: a cretinice humana; • Uma música: “Sol na Janela”, de César Maurício; • Uma tristeza: ser finita; • Uma alegria: meus filhos, claro!; • Um sonho realizado: “Favela é Isso Aí”; • Um sonho (AINDA) não realizado: viajar muito, morar fora; • Um Ponto G: companheirismo; • Uma verdade: início, meio e fim; • Uma mentira: igualdade; • Uma traição: apropriação sem créditos, nos acontece todo dia...; • Quem você deixaria, para sempre, numa praia deserta? nossa, pode ser um avião inteiro?!.
“Minha tarefa é tornar as pessoas desconfortáveis”, do filósofo Nietzsche. 15 Ponto & Vírgula 04.indd 15
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Entrevista Cristiano G. da Matta Machado
[ A quem interessa?]
S.O.S para o
SUS
Arquivo pessoal
Perto de completar três décadas de existência, o Sistema Único de Saúde (SUS) ainda vive o seu rosário de dramas, onde se destaca a falta de verbas. Enquanto isso, a população brasileira continua sofrendo as conseqüências deste caos que parece não ter fim
Cristiano g. da Matta Machado, presidente do Sinmed/MG
O
mecânico Sidney de Souza, 29, descobriu, há cinco meses, que estava com tumores na cabeça. Na época, os sinais do que ele saberia depois ser um câncer benigno, eram ainda imperceptíveis. Hoje, a cegueira causada pela doença e a espera pela chance de fazer uma cirurgia de emergência são reflexos da precariedade do SUS. Problemas como este têm sido cada vez mais freqüentes em todo o país. Por mais que a Constituição Federal de 1988 apregoa que a saúde é um direito de todos e dever do estado, independentemente, de classe social de cada um, o Sistema Único de Saúde, criado com a ilusão de ser uma referência mundial na socialização de seus
serviços e no acesso fácil de seus milhões de usuários, acabou por contrair, tendo em vista a sua ineficácia, o mal crônico de hidrocefalia. Daí, suas mazelas: quando estas não pautam, permanentemente, a mídia, pautam as campanhas eleitorais, onde a Proposta de Emenda Constitucional (PEC-29), há anos esperando a boa vontade de ser regulamentada e aprovada, que prevê a fixação de percentuais mínimos para a saúde) assume a dianteira da demagogia política, virando moeda de troca. Para os especialistas no assunto, a questão básica do SUS reside na necessidade de um financiamento maior e melhor. A ausência deste aporte significa obstáculos à ampliação da cobertura dos serviços, passa pela precariedade do atendimento nos postos de saúde e culmina com a baixa remuneração dos serviços prestados ( R$6,30 é quanto o sistema paga aos hospitais e clínicas conveniados, por uma consulta de média complexidade). Tudo isso gera o mais grave de todos os problemas: o desencanto dos profissionais e gestores de saúde. A brilhante entrevista abaixo, concedida pelo médico- anestesiologista, formado pela UFMG em 1987, e presidente do Sindicato dos Médicos de Minas Gerais (Sinmed-MG), Cristiano Gonzaga da Matta Machado, é uma profunda e exemplar análise sobre o SUS, o que não deixa de ser uma tarefa difícil, por mais
competência e discernimento demonstrados pelo entrevistado. Com certeza, Ponto & Vírgula mais uma vez acertou : sereno e certeiro como convém aos profissionais de sua especialidade, Matta Machado não faz concessões e admite, para começo de conversa, que “todos os grandes problemas do sistema são decorrentes do seu sub-financiamento”.
Por Juliana Pio 5º G de jornalismo
Ponto & Vírgula - Objetivamente, quais são e o que significam, para o senhor, os principais problemas que afetam o SUS? Cristiano Matta Machado - O principal problema do SUS é o financiamento. A constituição define que o orçamento da saúde deveria ser de 30% do orçamento da seguridade social, e hoje, esse valor não chega a 15%. A Emenda Constitucional 29 define os valores que cada esfera de governo deve investir em saúde. Entretanto, como não foi regulamentada, os governadores colocam na rubrica da saúde diversas atividades que não são ações de saúde. Com isso, hoje as prefeituras estão sobrecarregadas com uma responsabilidade muito maior sobre o financiamento do setor, o que evidentemente não se sustenta. Em minha opinião, todos os grandes pro-
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blemas do SUS são, em última análise, decorrência desse sub-financiamento. P & V - O Sinmed/MG, com o seu poder político e reconhecida capacidade de mobilização, pode interceder junto aos poderes públicos visando melhorar a tabela de honorários do SUS. Por uma consulta de média complexidade, os médicos recebem irrisórios R$6,30; um Raio X de tórax custa R$6,85. Isso não lhe parece uma filantropia com dinheiro público? CMM - O Sinmed tem procurado mobilizar os médicos e a sociedade para este grave problema. Os valores da tabela SUS ao longo dos anos sofreram defasagens tão absurdas que a impressão é de que o governo pretende a extinção da tabela. É importante esclarecer que esta tabela é usada para remuneração dos serviços profissionais, mas, na maioria das vezes, esses médicos são servidores ou empregados públicos, que recebem salário e não remuneração por procedimentos. Assim, a tabela é utilizada para remunerar a instituição que contrata os profissionais e, naturalmente, os valores acabam deficitários já que são exíguos. O governo tem optado por fazer mudanças pontuais na tabela, o que acaba gerando mais distorções. O ideal seria uma revisão completa dessa tabela com base na Classificação Brasileira Hierarquizada de Médicos(CBHPM). P & V - Que análise o senhor faz do dia a dia do SUS nas unidades de saúde, marcado por todo tipo de precariedade no atendimento ao usuário. O senhor considera que esta situação é um sintoma de agonização, que há décadas sofre o sistema? CMM - O dia a dia tem sido de grande dificuldade, como é noticiado com freqüência na imprensa. Falta de profissionais, excesso de demanda, violência e toda sorte de carências marcam o sistema em todo o país. Isso vem de longa data e de fato os problemas se acumulam. Entretanto, um fator me preocupa: em todas as pesquisas, a saúde é uma das principais preocupações da sociedade e, nas campanhas eleitorais, os políticos prometem avanços na área.
Então, falta uma verdadeira ação social e política sobre o tema visando à transformação da situação. Enquanto estivermos no discurso e nas pesquisas nada mudará. Se os políticos perdessem votos por causa dos problemas da saúde, eles resolveriam a questão. A verdade é que a população se preocupa com o tema, mas reelege os governantes demonstrando que a prioridade na definição do voto não passa pela questão da saúde.
“A verdade é que a população se preocupa com o tema, mas reelege os governantes, demonstrando que a prioridade na definição do voto não passa pela questão da saúde”
P & V - Outra questão, cuja origem pode estar nos baixos salários, é a má gestão dos funcionários. Dentre as diversas reclamações, uma, em especial, chama a atenção de quem depende dos serviços: quase sempre as fichas de consultas são perdidas e, quando o paciente retorna, não sabe qual foi seu último diagnóstico, o que culmina com a descontinuidade do tratamento. Como evitar esses transtornos? O problema passa pela desqualificação dos funcionários? CMM - Existem problemas de gestão no sistema mas não podemos permitir que isso seja mais valorizado do que deve. Isso porque existe um discurso de que o problema não é de financiamento e sim de gestão e isso não é verdade. Nos últimos anos, tem havido melhorias neste aspecto mas, de fato, muito ainda deve ser feito na qualificação e educação continuada dos servidores visando serviços cada vez melhores. Mas, insisto: sem o financiamento adequado nada se resolverá. P & V - A partir da década de 90, houve uma consolidação de uma direção política das classes domi-
nantes, com base na afirmação das contrarreformas de cunho liberal. Este projeto capitalista implicou o processo de privatização, cuja defesa girava em torno da mercantilização da saúde e da Previdência, ou seja: a restrição do financiamento, reduzindo, substancialmente, o raio de ação do SUS. Até onde as privatizações podem ajudar ou prejudicar o sistema público de saúde? CMM - A constituição diz em seu artigo 196 que a saúde é direito de todos e dever do estado. Entretanto, reconhece a ação da iniciativa privada de maneira complementar. Particularmente, defendo que a saúde pública deve ser exclusivamente estatal. Entretanto, como a realidade se impõe com as terceirizações e privatizações, penso que devemos atuar no sentido de exigir qualidade assistencial e respeito aos trabalhadores. Sem um controle social efetivo, as privatizações certamente prejudicam e muito o sistema. P & V - A legalização do aborto e sua inclusão no sistema de saúde, por mais que se trata de uma questão de direitos humanos e da liberdade para a mulher, continua emperrada, tendo em vista ao preconceito e à leniência que circundam o assunto. Enquanto isso, o aborto clandestino se torna uma das principais causas de morte entre as mulheres no Brasil. Como o senhor interpreta esta polêmica. Onde estão os entraves que impedem o SUS de assumir este procedimento médico? CMM - Em minha visão, aborto é uma questão de saúde pública. Não diz respeito à polícia ou à religião. No Brasil, o estado é laico e essas questões deveriam ser tratadas de outra maneira. Não se trata de ser a favor ou contra o aborto, importa é verificar que o fato existe e milhares de mulheres morrem ou sofrem seqüelas de abortos realizados sem condições. A sociedade deve encarar de frente a questão do planejamento familiar, da educação como fator de diminuição de gravidez indesejada, especialmente na adolescência, e da necessidade de se dar atenção,
“Estamos cada vez mais cegos, porque cada vez menos queremos ver”, do escritor português José Saramago. 17 Ponto & Vírgula 04.indd 17
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sem hipocrisia, às mulheres que realizam abortos em condições precárias. P & V - Anualmente, 50 mil pessoas recorrem à Justiça para obter medicamentos , uma vez que a lista do SUS está há 10 anos desatualizada. Há uma projeto de lei (PL) tramitando na Câmara dos Deputados que prevê o fim deste dilema. O senhor acredita que esta PL pode dar certo e garantir o fornecimento de remédios, fazendo “aparecer” o dinheiro para comprálos? Este problema passa, também, pelos laboratórios? CMM - Esse problema tem diversas facetas. Não podemos incorrer no erro de financiar todo e qualquer medicamento que chega ao mercado. É necessária a devida análise dos riscos e benefícios de determinada terapêutica. Muitas vezes identificamos interesses mercantis da indústria farmacêutica nessa questão e penso que a justiça deve se qualificar para analisá-la tecnicamente, não somente sob o prisma do individuo e, sim, considerando também o interesse coletivo. Não conheço o PL, mas em princípio penso que este assunto não se resolve apenas com legislação. Aqualificação dos profissionais da justiça e da saúde é outro aspecto fundamental.
sair dela assim que possível. Enquanto a sociedade não encarar de frente essa questão como um problema de todos, continuaremos ouvindo promessas que não se concretizam. Não critico o fato em si de as pessoas desejarem um plano de saúde mas a percepção de que a sociedade procura se esconder do problema. O fato é que em última análise todos nós dependemos em maior ou menor grau do SUS para atenção à nossa saúde. O indivíduo com plano de saúde em um acidente será atendido pelo Samu e encaminhado a um hospital público. A Vigilância Sanitária é parte do sistema de saúde e atua em todo o território nacional e suas ações impactam a vida de 100% das pessoas. Então, a solução para o problema passa pela conscientização da sociedade de que a saúde pública é problema de todos. P & V - As 500 Unidades de Pron-
P & V - Pesquisa realizada, recentemente, pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud) mostra que a percepção dos brasileiros quanto aos serviços de saúde, de acordo com o novo Índice de Valores Humanos (IVH), não é boa. A pesquisa ouviu as pessoas sobre o tempo de espera para o atendimento médico ou hospitalar, a facilidade ou não de compreensão da linguagem usada pelos profissionais de saúde e o interesse da equipe médica percebido pelo paciente. Os resultados nas cinco regiões do país não foram favoráveis. O que o senhor pode explicar sobre este problema? De que maneira ele pode ser solucionado? CMM - De fato, como já abordamos, a saúde padece de carências crônicas que levam a essa percepção da sociedade. Mas ao mesmo tempo, pesquisas mostram que o primeiro desejo daqueles que tiveram ascensão social nos últimos anos é um plano de saúde. Isso demonstra que a sociedade se preocupa com a saúde pública embora queira
to Atendimento (Upas), prometidas pelo ex-presidente Lula, não serão construídas, de acordo com o ex- ministro da Saúde, José Gomes Temporão. A perspectiva é que o governo tenha encerrado 2010 com apenas 200 unidades. Ainda, segundo o ministro, o problema se concentra nos municípios que executam as obras, quase sempre envolvidos com licitações vagarosas. O SUS é vítima da burocracia brasileira? CMM - Todos somos vítimas da burocracia. No entanto, não podemos deixar de controlar o dinheiro público e isso implica procedimentos burocráticos mas que servem para defender a sociedade. Talvez seja necessária melhor qualificação dos gestores para realizarem procedimentos estritamente legais para evitar embargos, questionamentos e problemas futuros.
“Sem um controle social efetivo, as privatizações, certamente, prejudicam e muito o sistema”
P & V - Por que a tão falada Proposta de Emenda Constitucional (PEC-29), que pautou as promessas políticas das últimas eleições, não foi
aprovada até hoje, passados dez anos de empulhação na Câmara dos Deputados? O que ela significa de bom para os usuários do SUS? CMM - No Brasil, os governadores têm enorme influência sobre os deputados federais e a PEC 29 não foi regulamentada por pressão dos governadores, especialmente daqueles que sonegam dinheiro da saúde, Minas Gerais inclusive. Mais uma vez, verificamos que os políticos atuam contra a saúde e a sociedade os reelege. Então eles continuarão agindo assim até que comecem a perder votos. A regulamentação da emenda significa para os usuários mais dinheiro para a saúde e o fim dos desvios para outras áreas. P & V - Mesmo quando há recursos, o sistema sofre com problemas de gestão. Segundo o Departamento Nacional de Auditoria do SUS, ao contrários dos discursos políticos, o resgate da saúde pública no Brasil não se restringe apenas na ampliação dos recursos, mas, também, no investimento na assistência básica,com o retorno dos sistemas de vigilância epidemiológica e sanitária. O senhor concorda? Por que? CMM - Não tenho dúvidas que existem problemas de gestão. Por sua vez, tenho certeza de que o SUS faz milagre nesse país com os parcos recursos de que dispõe. Devemos, sim, investir em atenção básica, em vigilância em promoção e prevenção em saúde. Entretanto, insisto que o principal problema é o financiamento. Há um ditado que diz que “em casa que falta pão, ninguém tem razão”. Ao invés de ficarmos discutindo a origem do problema devemos garantir o financiamento e então fiscalizar efetivamente a aplicação dos recursos. P & V - O Cartão Nacional de Saúde, criado em 1996, com o objetivo de facilitar o atendimento aos usuários, não passou de uma panacéia. Até agora, o projeto já consumiu R$590 milhões, sendo que 90% das máquinas distribuídas em 44 cidades-piloto estão danificadas. O que esta negligência institucional esconde? CMM - Aqui temos, claramente, um problema de planejamento e de gestão. Quando isso acontece em um ambiente sem controle social o resultado são frau-
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des e corrupção. Então devemos fortalecer o controle social e ampliar a aplicação da lei para coibir práticas abusivas. P & V - Defender o trabalho médico por meio de ações políticas, judiciais e sociais, buscando melhorar as condições de trabalho, remuneração e qualidade de vida da categoria, é a missão do Sinmede-MG, conforme o seu site institucional. No entanto, não é de hoje que os médicos lutam por um salário adequado e um trabalho menos estressante, mais justo no âmbito do SUS. Quais entraves impedem o sindicato de conquistar suas reivindicações? CMM - O maior entrave em minha visão é justamente essa distância que existe entre a manifestação da insatisfação da população e o seu voto. Enquanto o problema persistir, mas os mesmos continuarem no poder, esse políticos entenderão que a população está satisfeita. A saúde é cara e a percepção de qualidade é muito variada e individual. Então, o político pensa: para que investir em saúde se vão continuar reclamando? Melhor investir em algo que gera voto como estradas, viadutos e palácios.
Sem Pestanejar
P & V - De acordo com um estudo do Instituto de Pesquisa Econômica aplicada (Ipea), Minas Gerais é o estado com o maior número de cidades sem unidades para atendimento de urgência nas unidades do SUS. Por que isso
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acontece? Onde fica o princípio da municipalização do sistema, tão defendido pelos seus gestores? CMM - As unidades de urgência geralmente demandam mais recursos que as unidades básicas. O que falta é planejamento e articulação entre os municípios. É função do Governo do Estado promover e fomentar essa articulação, além de normatizar e fiscalizar o sistema. Então, o problema não é a municipalização mas a omissão do executivo estadual. P & V - Devido à insatisfação com os repasses públicos, alguns hospitais privados acabam por abandonar a rede Sus. Nos últimos 10 anos, 1082 deles extinguiram seus convênios. A conseqüência imediata é a redução de leitos públicos para a internação. Cerca de 3000 foram fechados. De que forma esse desmanche afeta a consolidação do SUS? Como evitá-la? CMM - Esse é um dos principais gargalos do sistema. A solução mais uma vez passa por financiamento adequado. A iniciativa privada não vai atuar se tiver prejuízo. Se precisamos dela de maneira complementar temos que remunerar adequadamente. A falta de leitos é desastrosa para o sistema, porque sobrecarrega as unidades de atendimento e impede a conclusão de tratamentos importantes que poderiam elevar a qualidade de vida da população.
P & V - Recentemente, um bebê morreu após um hospital de Goiás se recusar a fazer uma cirurgia e emergência. Os cirurgiões cardíacos do estado deixaram de atender pelo SUS por causa do valor pago. Como é possível evitar essas tragédias. Como o senhor agiria no lugar dos cirurgiões? CMM - Penso que essas paralisações devem garantir o atendimento aos casos de urgência e emergência. Entretanto, muitas vezes chega-se a situações-limite em que obrigam a atitudes intempestivas. A solução é garantir pagamento digno aos profissionais de saúde. P & V - Os recursos que a Secretaria Municipal de Saúde de Belo Horizonte recebeu, em 2009, foram de R$1 bilhão e 400 milhões para gerenciar o SUS que, divididos por 2 milhões e 300 mil pessoas, que formam a população da capital, não dão mais que R$ 500,00 por habitante/ano. É o financiamento, encabeçando a lista dos problemas do sistema. Como o senhor avalia esta questão? CMM - Temos que considerar ainda que cerca de 40% dos atendimentos do SUS em BH são de pessoas de outros municípios o que fará cair o valor per capita. A solução passa por financiamento, planejamento e gestão adequada dos recursos.
Um filme: “2001 Uma Odisséia no Espaço”; Um vexame: a Seleção Brasileira da Copa 2010; Um livro: “Grande Sertão: Veredas”; Uma decepção: a ONU; Uma música: as suites de Bach para violoncelo solo; Uma tristeza: a situação do Haiti; Uma alegria: meus filhos; Um sonho não realizado: mergulhar na Grande Barreira de corais na Austrália; Um Ponto G: o meu amor; Uma verdade: o SUS é sub-financiado; Uma mentira: o investimento de MG na saúde.
“O dilema moral da contemporaneidade não é mais o da escolha entre “ser” e “ter”, porém o da escolha entre “ser” e “parecer”, do filósofo Guy Debord. 19 Ponto & Vírgula 04.indd 19
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Entrevista Karla Giacomin
[ Reféns do tempo]
A velhice, entre a dor e a
esperança Franco Serrano
O aumento médio da expectativa de vida dos idosos brasileiros para quase 74 anos, segundo informa o IBGE, por motivos óbvios, deve ser encarado pelo poder público com maturidade: muito mais que uma conquista, é um grande desafio
Karla giacomin, médica geriatra
E
m 2025, o Brasil terá uma população idosa aproximada de 30 milhões de pessoas. Na esteira desse processo de envelhecimento, com a mesma intensidade e velocidade, surgem e ressurgem os mais variados problemas que atingem esse segmento. Em resumo: vítimas de uma certa ineficácia da Política Nacional do Idoso (PNI), ainda neófita em seus 16 anos de existência, e, sobretudo, do preconceito arraigado de uma sociedade contemporânea, marcada pela hegemonia do consumo e do espetáculo, onde só têm vez o novo, o são e o belo, nossos idosos - com as exceções de praxe-,
ainda pagam um preço caríssimo pelo simples fato de serem idosos. Afinal, uma visão social anacrônica assegura à velhice, não como uma etapa normal da vida, mas como uma espécie de estorvo que macula o cenário do neocapitalismo. Na base desta complexidade, reside o seu embrião: as condições sócio-econômicas do idoso brasileiro, segundo os especialistas, “são sintomas da desigualdade social existente no país, o qual oferece a seus cidadãos chances marginais em garantir as seguranças mínimas para uma existência humana e social dignas. Uma antológica reflexão sobre esse assunto: é nessa perspectiva, aliás plenamente atendida, que Ponto & Vírgula redobrou seus esforços para ouvir a presidente do Conselho Municipal do Idoso em Belo Horizonte (CMI-BH), e recém-eleita presidente do Conselho Nacional dos Direitos do Idoso. Karla Giacomin, que dispensa apresentações, é médica geriatra formada pela UFMG, com mestrado em Saúde Coletiva e doutorado em Ciência da Saúde, há um bom tempo se dedica de corpo e alma à causa dos idosos. Crítica, fundamentada e esperançosa, ela “mandou ver” nesta entrevista. Quem ganha com isso? Nossos leitores, em especial, e todos que admitem a velhice como uma etapa natural em nossa inexorável fini-
tude. Antes, porém, um pedido da entrevistada: o Conselho fica na rua Espírito Santo 502/1002, região central de Belo Horizonte, cujo telefone é (031) 3277 9865 e e-mail cmi.bh@pbh.gov.br
Por Eduardo Zanetti 4º G de jornalismo Ponto & Vírgula - Em 2025, os idosos no Brasil atingirão cerca de 30 milhões de pessoas. Quais são os principais desafios e as perspectivas que essa vertiginosa mudança demográfica pode trazer? Karla Giacomin - Primeiramente, cabe reforçar que esta é uma boa nova e não deve ser percebida com desconfiança ou temor. Isso representa uma conquista para toda a sociedade brasileira, pois será a primeira vez que conseguiremos envelhecer em melhores condições de saúde e de vida do que nossos antepassados. Quanto aos desafios, o maior será incluir a parcela idosa entre as prioridades para uma cultura que recusa a velhice, que disfarça as rugas e nega a própria fragilidade. Será necessário assegurar direitos e justiça social por meio da construção de políticas inclusivas para pessoas de todas as idades. Uma perspectiva nova será a ne-
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cessidade de construir o convívio e de superar os conflitos entre as gerações. Cada vez mais, mais pessoas idosas se sentirão aptas a participar e opinar, e serão pressionadas por grupos mais jovens que pensam de modo equivocado, considerando que os idosos já estão ultrapassados, dando-se ao luxo de renegar e marginalizar a sabedoria e a experiência dos mais velhos. P & V - Por que se enfatiza tanto que a idade cronológica não é o parâmetro mais importante na velhice, para determinar a qualidade de vida do idoso? Que outras idades devem ser consideradas? KG - No último século, não apenas a expectativa de vida aumentou e atingiu mais de 70 anos em média para os idosos brasileiros e mais de 80 para países europeus e asiáticos, mas também, biologicamente, o ser humano rejuvenesceu em cerca de uma década de vida. Isto é, aparentamos hoje uma década a menos do que uma pessoa da mesma idade da primeira metade do século passado. Além da idade cronológica, o que vale é a capacidade funcional, ou seja, o que a pessoa é capaz de fazer, independentemente da idade que tem. Mas para que isso seja verdade, é urgente tornar a nossa sociedade inclusiva para todas as pessoas de todas as idades, com ou sem algum tipo ou grau de deficiência. envelhecemos, também, do ponto de vista social quando atingimos a idade para aposentar: ficamos velhos para o trabalho aos 25 anos se formos nadadores, aos 35 se formos jogadores de futebol, aos 53 se formos mulheres, aos 60 se formos homens. Temos direito à aposentadoria por idade ou por tempo de contribuição, mas ainda não reconhecemos a luta por uma aposentadoria digna como carro-chefe das centrais sindicais, porque os movimentos são muito tímidos. P & V - Segundo os especialistas, a velhice – para a Organização Mundial da Saúde (OMS) inicia-se aos 60 anos – possui diversas faces, principalmente numa sociedade como a brasileira, marcada pela desigualdade social. Quais são essas faces e o que
elas significam? KG - a velhice de um indivíduo é o resultado de suas escolhas e de suas circunstâncias. você escolhe o que comer, se terá hábitos saudáveis ou não, mas há circunstâncias que não são resultado de escolhas. Por exemplo, ser velho em uma região plana e abastada é diferente de ser velho em um aglomerado ou em um prédio sem elevador. Envelhecer, tendo tido acesso a estudo e instrução favorece comportamentos mais saudáveis, mas, ainda hoje, cerca de 30 a 35% dos idosos brasileiros são analfabetos, o que os deixa mais vulneráveis e dificulta o controle de doenças crônicas, como a hipertensão, o diabetes, as demências, por exemplo. é na parcela mais pobre que estão os mais incapacitados. E, ainda, que a doença, a incapacidade ou a dificuldade sejam as mesmas para pessoas ricas e pobres. Definitivamente, os recursos para lidar com elas não são os mesmos.
“Mas a velhice deixará de ser um fardo, quando passar a ser reconhecida como reflexo do respeito ao direito à vida, que é o direito mais precioso para cada um de nós”
P & V -A senhora concorda que o envelhecimento no Brasil – processo que tem ocorrido numa velocidade espantosa, decorre da queda acentuada das taxas de mortalidade infantil e da natalidade? Essa vinculação procede? Por que? KG - Sim. Porque isso é o que caracteriza a transição demográfica: até a década de 50 do século passado, vivemos um tempo em que a natalidade era alta e a mortalidade infantil também, o que resultava em menos pessoas na geração seguinte e, por isso, tínhamos uma pirâmide com a base muito larga (as crianças), e um vértice muito estreito (os velhos). Chegamos a um tempo em que as condições de vida melhoraram e resultaram
na redução da mortalidade infantil (aumentando a chance de sobrevida deste grupo) e da fecundidade (as mulheres têm menos filhos, reduzindo a base da pirâmide), o que possibilita a todo o grupo (crianças e jovens) envelhecer. P & V -Desconhecer as idades que caracterizam o conjunto do processo do envelhecimento ou tratá-las de maneira isolada, pode ser considerada uma falha imperdoável? Por que? KG - Porque cada pessoa é única no seu processo de envelhecimento, mas a vida humana não pode ser reduzida apenas à sua esfera biológica, psíquica ou social. É preciso considerar o ser humano idoso na sua complexidade, no seu ineditismo, na sua plenitude e no seu inacabamento. P & V -É unânime a constatação de que as condições sócio-econômicas do idoso brasileiro refletem a desigualdade social existente no país. Grosso modo, isso significa que a pobreza gera, consequentemente, a pobreza da velhice. Essa correlação acaba por dificultar as políticas públicas para os idosos, transformando-as em meras ações paliativas. O que a senhora tem a dizer? KG - A desigualdade social não poupa faixas etárias. o idoso de hoje muitas vezes é a criança que teve seus direitos negados na infância, o trabalhador que não teve direitos e condições dignas de trabalho na vida adulta e cuja velhice o alcança, marcada por essas condições. Certamente, terá menos renda e mais dificuldades do que uma pessoa que nasceu, cresceu, trabalhou e envelheceu em melhores condições. Por isso, se as políticas não corrigem as desigualdades do passado, podem e devem minimizar os efeitos atuais dessas desigualdades. P & V -Como a senhora explica tanto preconceito contra a velhice? Ao contrário da cultura oriental, por exemplo, no Brasil, o idoso representa o “ultrapassado”, “a inutilidade social e produtiva” etc. Esse descaso passa, também, pelo perfil consumista da nossa sociedade? KG - O Brasil cultua, desde sempre,
“Espero o sorriso na próxima página; o telefone no capítulo seguinte. Você é a inspiração para minha palavra; a frase incompleta para minha história sem fim”, da poeta Fernanda Mello. 21 Ponto & Vírgula 04.indd 21
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Franco Serrano
O metalúrgico aposentado, Milton Maliano, 71, integra as atividades do CMI.
a beleza física e a juventude, vende aparência, explora e expõe a beleza da mulher brasileira, mas desconhece a velhice como fase natural da vida, ignora o velho como um igual, ele é sempre “o outro”. Age como se a velhice nunca fosse chegar para ele. O preconceito se disfarça nas expressões “juventude acumulada”, “ter experiência”, “dna - data de nascimento avançada” e pelo pavor ao ouvir a palavra “velho”. Tenho certeza de que muitos leitores já têm à mão textos que fazem a distinção entre ser velho e ser idoso, como se uma coisa fosse muito diferente da outra. Como somos um país de extremos, atribuímos significados contrários a bom e mau, novo e velho. Porém, ser velho não é o contrário de ser novo. Ser velho é diferente de ser novo. É preciso vencer o medo das palavras, assumir o velho que somos ou seremos e iniciar alguns questionamentos: o que você quer ser quando envelhecer? Com a mudança nas famílias (menos filhos e menos disponibilidade da mulher para o cuidado), quem cuidará de mim caso eu venha a precisar? O que eu devo fazer para prolongar minha vitalidade e minhas capacidades físicas e mentais? Na minha vida, há espaço para as pessoas que eu amo? Qual é a minha prioridade hoje? Para quê? Vale a pena? P & V -Por que as mulheres têm uma expectativa de vida bem maior que a
dos homens? Como justificar essa feminização da velhice? KG - As mulheres vivem em média de 7 a 9 anos mais do que os homens. Há explicações antropológicas, hormonais e comportamentais para isso: na seleção natural, as mulheres selecionadas foram as mais fortes (na pré-história cabia-lhes o que os homens e as crias deixavam para trás, com isso elas comiam menos e sobreviviam apesar das dificuldades). A natureza protege a mulher de infartos e doenças cardíacas na sua vida reprodutiva (claro que isso deixa de ser verdade quando ela assume outros riscos, como fumar, tomar anticoncepcional, ser sedentária ou expor-se a muito estresse, por exemplo). A mulher é a “cuidadora” da família e, também, usualmente, cuida-se mais e se expõe menos (guerras, trânsito, trabalho) do que o homem. A feminização da velhice se explica por essa sobrevivência feminina maior, em todas as faixas etárias, desde o recém-nascido até a velhice. P & V - Quais as maiores dificuldades enfrentadas pelo Conselho Municipal do Idoso (CMI), desde sua criação em 1992? KG - Creio que a nossa maior dificuldade é o idoso não se apropriar deste lugar. É preciso que as pessoas descubram o Conselho como espaço para conquista de direitos, para reflexões e decisões políticas em prol da pessoa idosa. Os ve-
“a velhice de um indivíduo é o resultado de suas escolhas e de suas circunstâncias. Você escolhe o que comer, se terá hábitos saudáveis ou não, mas há circunstâncias que não são resultados de escolhas. Por exemplo, ser velho em uma região plana e abastada é diferente de ser velho em um aglomerado ou em um prédio sem elevador”
lhos estão distanciados de movimentos sociais a favor de idosos e a sociedade nega-se a enxergar a velhice como uma perspectiva natural. Disso resulta uma maior fragilidade na luta por direitos de idosos: quem lutará por uma velhice digna se ninguém acredita que chegará lá? O Conselho tem ainda pouca visibilidade e pouca efetividade. Nossas reuniões são, sempre, nas primeiras quartas feiras de cada mês, às 14h, no Auditório da Secretaria Municipal de Políticas Sociais. P & V - Por mais que a realidade do idoso, hoje, apresente melhoras, convenhamos, que ainda falta muito que fazer, sobretudo, do ponto de vista institucional. Belo Horizonte, nos seus vários aspectos, está preparada para enfrentar os desafios que o aumento dessa população contempla? KG - A Prefeitura tem entre os seus projetos sustentadores o Projeto Cidade para Todos, que inclui o envelhecimento como uma prioridade, o que já é uma iniciativa inédita na cidade: prevê, a contratação de cuidadores para idosos frágeis e carentes e a instalação de kits para a prevenção de quedas nos domicílios de idosos. É um bom começo, mas ainda é muito insuficiente. Apesar dessa iniciativa, o investimento além de insuficiente é muito desigual. Se se comparar o que é investido para a manutenção de uma creche, para a reinserção de um menor infrator, para a reeducação de uma pessoa no sistema prisional ou para o cuidado de uma pessoa idosa em uma instituição (asilo), qual você acha que tem direito à menor verba? O que justificaria isso? Ora, a parcela idosa não está pedindo o fim das outras políticas. O que ela exige é a inclusão das suas necessidades entre as demandas que as políticas cobrem. Sendo o idoso institucionalizado, ele é mais frágil, mais adoecido, necessita de cuidados pessoais, de saúde, em tempo integral (dia e noite). Por que é para ele a menor verba? O que queremos dizer é que é preciso INCLUIR a parcela idosa e continuar buscando a melhoria das políticas para todas as idades. Ou seja, mesmo sabendo que as outras verbas não são suficientes, ainda assim, o público mais velho e mais frágil sai prejudicado. Para que se chegue bem à velhice, é preciso começar no pré-natal, garantindo oportunidades de educação, saúde, emprego, moradia, lazer, cultura, e tantas
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outras ao longo de toda a vida para crianças, jovens, adultos e velhos. Urge reconhecer as necessidades específicas dos idosos: faltam políticas intermediárias na saúde, na assistência social, como grupos de convivência, centros-dia, faltam praças com sanitários em condições de uso, locais para descanso e para a contemplação, inexistem áreas verdes com água potável, áreas comerciais acessíveis, transporte coletivo acessível e de qualidade, lazer intergeracional, para citar alguns. Também faltam políticas de cuidado, como instituições para abrigamento, hospitais com visão gerontológica, por exemplo. P & V - Quais as principais demandas que o CMI tem pela frente, considerando que 70% dos quase 300 mil idosos da nossa capital são da periferia. Qual demanda é considerada incorrigível e por que? KG - Pelo menos duas demandas são recorrentes: a primeira é a necessidade de respeito ao direito de ir e vir. ser respeitado nas calçadas e passeios, nas faixas de pedestres, nos semáforos, nos transportes públicos, em geral, e de modo especial, nos ônibus. Os idosos são vítimas de atropelamentos, de quedas, de acidentes que seriam preveníveis e evitáveis, se houvesse zelo e cuidado pela vida humana. A segunda é o respeito à dignidade humana em todos os órgãos públicos, especialmente na saúde, onde o investimento neste setor e na reabilitação dos idosos deve ocorrer em todos os espaços de cuidado: nos domicílios, nas clínicas, nos centros de saúde, nos hospitais, nas urgências. Não creio que haja demandas incorrigíveis. Creio que há demandas mais urgentes (por exemplo, essas citadas) e outras que exigirão mais negociação e mais tempo para serem conseguidas, como é o caso das instituições de abrigamento para idosos. P & V - Sabe-se da insuficiência de vagas em asilos. Por sua vez, o tripé Família-Estado-Sociedade mostra-se incapaz de garantir a manutenção de idosos em seus domicílios, face aos problemas que apresentam, por exemplo, de saúde. Como o CMI enfrenta essa situação? KG - O estado, a família e a sociedade dividem a responsabilidade do cuidado
das pessoas idosas que envelhecem com fragilidade. O que cabe a cada um? Quem se responsabiliza quando não há família? Quem se responsabiliza quando há família, mas não há afeto nem respeito? Onde estão as instituições de cuidado para assumir o cuidado a pessoas idosas cujas condições de saúde não permitem a sua permanência no domicílio? Se a instituição não é a primeira opção, onde estão as outras? É inadmissível supor que se deva tolerar asilos pobres para pobres e asilos ricos para ricos. Deve-se buscar um cuidado digno para TODAS as pessoas que precisem ser institucionalizadas, não importa a sua condição social. Cabe discutir políticas de cuidado para o apoio ao cuidado domiciliar: introduzir e apoiar a família que cuida é, também, responsabilide de todos. Afinal, 99% dos idosos vivem na comunidade. Menos de 1% está em asilos. O CMI enfrenta a situação atuando nas denúncias, apoiando a Vigilância Sanitária, recorrendo ao Ministério Público e à Defensoria Pública, solicitando o aumento regular da verba pública destinada ao conveniamento de entidades e a intervenção de gestores das políticas municipais, que são as instâncias que podem intervir diretamente nos casos. P & V - A senhora concorda que a velhice, fora o seu lado romântico, é um fardo para a sociedade capitalista, cuja moral de vida está perversamente ligada ao consumo e ao espetáculo do “ter” em detrimento do “ser”, e, por isso, só tem olhos para o novo, o belo e o saudável? KG - Sim, essa pode ser uma boa explicação para o que temos hoje. Mas a velhice deixará de ser fardo quando passa a ser reconhecida como reflexo do respeito ao direito à vida, que é o direito mais precioso para cada um de nós. Resta saber o que fazer para que a humanidade recupere o seu senso de humanidade que também inclui fragilidade e finitude. Negar a velhice é negar a angústia de fenecer, é negar a certeza da morte. P & V - Em que medida a mídia tem responsabilidade na consolidação deste perfil da sociedade contemporânea? KG - Fica evidente que o próprio
“Fica evidente que o próprio marketing social não valoriza a velhice: o idoso aparece na mídia quase sempre como vítima, abusado, negligenciado, raramente, como exemplo de bem sucedido” marketing social não valoriza a velhice: o idoso aparece na mídia quase sempre como vítima, abusado, negligenciado, raramente como exemplo bem sucedido. Quando se narra uma situação de vida de idoso, muito idoso (com mais de 80 anos) geralmente nas frases está implícito ou explícito a noção de “ainda”: o sr. Fulano, 85 anos, “ainda” sai de casa para fazer compras, “ainda” namora... Como se envelhecer fosse abrir mão de ser. Neste sentido, é urgente levar para as faculdades de comunicação um trabalho de desmitificação da velhice, de experimentação da alteridade e do reconhecimento do valor da velhice para toda a sociedade. P & V - Como órgão fiscalizador das ações públicas a favor do idoso, o CMI tem poder de repressão? Estar ligado à Prefeitura de Belo Horizonte não é um empecilho? Quais são suas principais demandas? KG - O Conselho do Idosos, diferentemente do Conselho da Criança e do Adolescente não dispõe da estrutura de um Conselho Tutelar, não tem poder de mando. Não há empecilho em estar dentro da PBH porque, ao contrário, a Constituição de 1988 instituiu os conselhos dentro do Executivo, exatamente, para funcionar como espaços de controle dos órgãos públicos pela sociedade. O que o Conselho faz é exercer o seu poder de controle social e verificar se e como as políticas públicas e os direitos dos idosos estão sendo cumpridos. Nós atendemos 10% do total de 290 mil idosos da capital. E as principais demandas, lamentavelmente, têm origem em suas próprias
“Agora vou cantar para os miseráveis, que vagam pelo mundo derrotados, pra essas sementes mal plantadas, que já nascem com cara de abortadas “, do poeta Cazuza. 23 Ponto & Vírgula 04.indd 23
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mais de 80 anos); Quinta Idade (os centenários) e há quem acredite na Sexta Idade (maiores de 120 anos). Por isso, eu prefiro falar de Velhice, para não deixar dúvida de que este é um tempo natural e desejável da vida da espécie humana. P & V - “Honra-se a velhice, mas ela não é amada”. O que a senhora tem a dizer sobre esta frase do filósofo e escritor francês, Diderot? KG - Creio que assistimos a várias revoluções, desde a Francesa: a Industrial, a Feminista, a Sexual, mas não conseguimos vencer o medo e a angústia que associam a velhice, invariavelmente, à decadência, à decrepitude, à finitude. Infelizmente, no século XXI, nem a
primeira parte da afirmação de Diderot tem sido cumprida. Atualizando a frase, pode-se pensar que atualmente a velhice não é honrada nem amada. Tenho esperança nos velhos de hoje e nos novos velhos. Dentro de 30 a 40 anos, de cada quatro pessoas no Brasil, uma será idosa. Muitas delas estão lendo esta entrevista que serve de alerta: acredite, você também chegará lá, você também gostará de ter seus direitos respeitados, seus desejos acolhidos, mesmo quando já for muito velho você não gostará de abrir mão da sua atonomia. Por isso, construa laços, cultive amigos, apoie as pessoas que você ama, aproveite os seus velhos AGORA.
Franco Serrano
famílias: passam pelo abandono, pela violência e roubo de aposentadorias. P & V - A expressão Terceira Idade não lhe parece um eufemismo para desvincular um conceito de velhice dos sentimentos de senilidade, medo, isolamento, morte etc? KG - Sim. É um eufemismo que surgiu na França em meados do século passado quando se reconheceu que haveria uma primeira idade que compreende a infância e a juventude, a segunda ou meia-idade (tempo do trabalho) e a Terceira Idade (pós-trabalho). Para fugir da velhice, fala-se em Maioridade, Melhoridade, Maturidade. Porém, hoje, já se fala em Quarta Idade (pessoas com
Sem Pestanejar
Tarcisio Mauro Braga, 73 anos, há décadas é comerciente no Mercado Central, “razão da minha vitalidade e otimismo”.
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Um filme: “José e Pilar”; Um vexame: vários; Um livro: “Aprender a viver”, de Luc Ferry; Uma decepção: a falta de respeito a qualquer pessoa idosa; Uma tristeza: o idoso não ocupar espaços na nossa sociedade; Uma música: “Resposta ao tempo”; Uma alegria: minha família; Um sonho não realizado: conhecer Drummond, pessoalmente; Um Ponto G: viajar; Uma verdade: sou frágil; Uma mentira: todos somos iguais perante a lei; Uma traição: ignorar alguém, porque é velho; Quem você deixaria, para sempre, numa praia deserta? Ninguém.
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Fumec Janela Acadêmica Além-muros Compartilhar os saberes e o processo de educação: são esses os objetivos principais que a Universidade Fumec busca atingir no seu processo de internacionalização, cujo panode-fundo é a mobilidade estudantil. Hoje, ela tem parceria com 18 universidades estrangeiras, localizadas em 12 países. Para a professora Astrea Soares Batista, coordenadora do Setor de Relações Institucionais da Fumec, a possiblidade que o aluno tem de aperfeiçoar e pluralizar o seu conhecimento, nestes estágios internacionais, é enorme e de fundamental importância para o seu futuro profissional e pessoal. Fonte: Informativo Universidade Fumec
Arquivo pessoal
Astrea Soares Batista, cordenadora do Sertor de Relações Institucionais da FCH/SS
Phocus 4
Cidadania
Os alunos de Biomedicina , Matheus Machado e Vânia Adrelina, orientaram os participantes
Com atividades gratuitas nas áreas de Saúde, Direito, Arquitetura, Pedagogia e Publicidade, a Universidade Fumec participou, ativamente, do evento “Ensino Responsável 2010”, promovido pela Associação Brasileira das Mantenedoras do Ensino Superior (ABMES). Além de atividades recretativas e palestras, as centenas de pessoas que estiveram no Parque Municipal, receberam orientações diversas, especialmente nas áreas jurídica e de fonoaudiologia. A coordenadora do curso, professora Flávia Gobbi, vinculou o sucesso do evento ao grande interesse demonstrado pelos alunos e à confiança do público. “Essa prática é fundamental para compor a formação do futuro profissional e atender a demanda atual do mercado, justificou Gobbi. Fonte: Informativo Universidade Fumec
Palestra
Fonte: Informativo Universidade Fumec
Franco Serrano
O Espaço Cultural Fhoenix ficou pequeno para receber os participantes (alunos e professores do curso de Direito) da palestra realizada pelo ministro do Tribunal Superior do Trabalho (TST), Luiz Filippe Vieira de Mello Filho. “A Evolução do Direito do Trabalho: Direitos Sociais” foi o tema abordado por Mello Filho. A professora e coordenadora do Nùcelo de Direitos Sociais, Andrea Vasconcellos que, ao lado do professor Luiz Felipe Boson, organizou o evento, confirmou que o sucesso da atividade se deveu a dois fatores especiais: a escolha do tema, que perpassa o mundo do trabalho e à qualidade do palestrante. ”Juntamos o útil ao agradável, e os maiores beneficiados foram os alunos”, argumentou a professora. Professores do curso de Direito da Fumec, Luiz Felipe Boson e Andrea Vasconcellos, organizadores do evento
“A noite não é menos maravilhosa que o dia, não é menos divina. A noite encerra revelações que o dia ignora”, do escritor argentino Esrneto Sabato. 25 Ponto & Vírgula 04.indd 25
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Entrevista Marco Eliel
[ Violência contra as escolas]
Sob a pedagocia do
medo
Arquivo pessoal
Agressões físicas e constrangimento moral; depredação do patrimônio e roubos; leniência ou omissão do poder público e gestores privados: é neste cenário que os professores tentam produzir o ensino
MARCO ELIEL DE CARVALHO, professor e diretor do Sinpro/MG
A
diretora Miriam dos Santos , da Escola de Educação Básica Celso Ramos, em Florianópolis (SC), é mais uma vítimas , dentre centenas de outras, que sofreu agressão física ou moral dos alunos espalhados pelas escolas públicas, em especial, e particulares, do país. Na 2ª quinzena de novembro passado, a Escola Estadual Santa Chiara, localizada no município de Igarapé (Região Me-
tropolitana de Belo Horizonte) teve suas salas de aulas depredadas, os cabos dos computadores cortados, objetos jogados fora, bibliotecas e paredes pichadas, num vandalismo repugnante que até hoje desafia e humilha alunos, suas famílias, professores, funcionários e gestores públicos. E para comemorar, às avessas, as festas de fim de ano no prenúncio de vida melhor em 2011, o aluno do curso de Educação Física da faculdade Izabela Hendrix, no bairro de Lourdes, Amilton Loyola Caires assasinou com facadas, dentro da própria instituição, o professor de Educação Física, Kássio Vinícius Gomes, 39 anos, casado, pai de dois filhos. As estatísticas, com a frieza de sempre, mostram que a violência contras as escolas e seus atores principais, passou das medidas: segundo a Secretaria de Estado de Defesa Social (Seds), de janeiro a outubro de 2007, houve 71 casos de depredação em escolas da rede estadual da capital. No mesmo período, em 2008, o número desses ataques quase dobrou. E nos primeiros dez meses de novembro do ano passado, 102 casos foram registrados.
Outrora um espaço sagrado de educação, não no sentido piegas da expressão, as escolas de hoje, por motivos diversos, banalizaram-se na esteira dos delitos urbanos. Enquanto autoridades e especialistas se debruçam para analisar este fenômeno e encontrar explicações e justificativas para tamanho vandalismo, as ocorrências continuam grassando, minando o sonho e o esforço daqueles que, direta ou indiretamente, estão ligados às instituições de ensino. Nessa entrevista lapidar, concedida pelo experiente professor do curso de Publicidade e Relações Públicas do Uni - BH e mestre em Ciências Sociais pela PUC - MG, há quatro anos diretor do Sindicato dos Professores de Minas Gerais (Sinpro/MG), à Ponto & Vírgula, Marco Eliel não só aprofundou o tema como possibilitou aos nossos leitores uma visão mais ampla sobre o caos social que divide e fragiliza a vida das escolas. Pela competência eclareza do entrevistado, com certeza, sua participação nesta quarta edição é uma oportunidade de refletir sobre o polêmico assunto.
Andrea Basão 7ºG de jornalismo Ponto & Vírgula - A violência nas escolas reúne, além do desacato aos professores, a depredação física, assalto, ameaças e, mais recentemente, o bullyng, tão divulgado pela mídia.
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Com um agravante: o que era prerrogativa das escolas públicas, agora, atinge as particulares. Na opinião do senhor, como a sociedade enxerga esta realidade? Marco Eliel - Com perplexidade e sentimento de impotência. A escola é a casa do saber e, como tal, deve expressar a diversidade de culturas e comportamentos dentro do espírito republicano e democrático. A intolerância e a delinqüência devem ser tratadas como anomalias sociais, dado ao nível de calamidades que representa a incivilidade e a barbárie. P & V - Quem é mais cúmplice pela socialização deste caos: as famílias, o poder público com sua leniência ou a própria escola que costuma se omitir sob o manto da pedagogia do diálogo? ME - Antes de procurarmos culpados, devemos admitir que ambas as instituições estão enfêrmas por não previnirem, diagnosticarem e agirem de forma profilática. Ficar a transferir responsabilidades é o pior dos remédios. A familia, o governo e a escola precisam se unir para dividir as responsabilidades e não se isentar delas. Maquiavel ensina, em “A Arte da Guerra”, que é preciso dividir para vencer a resistência do adversário. Não que o diálogo não seja necessário, mas o tratamento para o combate à intolerancia e a violência nas escolas é algo mais sério e que pressupõe ações sistemáticas, urgentes e simultâneas, o SUS. P & V - O senhor não acha precipitado atribuir às famílias a culpa maior pela violência nas escolas? Em que medida esta atitude desobriga o estado e as instituições particulares de suas responsabilidades com o problema? ME - É sempre importante refletir que a familia, desde os primórdios da civilização, representa o primeiro núcleo social que o homem compartilha. Daí, talvez, o sentido de degradação fique mais latente no seio familiar. Todavia, como cidadãos, contribuintes e eleitores que somos, temos o dever e o direito de cobrarmos o compro-
“A escola ainda é o espaço do saber e não da dor” misso constitucional do estado com a segurança e a educação de qualidade. Por conseguinte, as instituições de ensino particulares, por terem autorização do exercício educacional e não concessão de prestação de serviço docente, têm a obrigação de zelarem pela ordem, o respeito e as práticas civilizatórias em suas dependencias. P & V - Por outro lado, a situação é tão grave e complexa, que as famílias – outrora o berço da educação -, por não suportarem o peso de tanta cobrança social, negligentemente, fazem das escolas, cujo papel principal é produzir ensino, uma espécie camuflada de divã. Como o SinproMG interpreta esta anomalia. Qual a visão dos especialistas sobre este problema? ME - Reafirmo que a responsabilidade sobre o tema deve ser compartilhada com os diversos atores envolvidos. Existe uma máxima que diz que “precisamos construir um mundo melhor para os nossos filhos”. Entretanto, Leonardo Boff exorta que “precisamos criar filhos melhores para o nosso mundo”. É isso: os papéis devem ser delegados, compartilhados e reavaliados com competência e de forma desapaixonada. Aos mestres, a importante tarefa de disseminar e cambiar o saber. À escola, o dever de dar condições dignas para que o exercício docente e dicente possa acontecer de forma harmônica e ordeira. À familia, o exemplo de respeito e de civilidade. Ao estado, a dotação, a normatização e a fiscalização do proceso educacional em todos os níveis. O Sinpro desenvolveu pesquisas que comtemplaram o tema, debate constantemente com profissionais do ensino, com a mídia e com especialistas a fim de melhor entender e dar sua contribuição para esta preocupante situação que a todos sensibiliza. P & V - Estudos do Sinpro revelam a evidente relação da violência pratica-
da dentro das escolas com a violência fora delas. Embora esta constatação não seja novidade, é possível admitir que o tão elogiado e cobiçado triângulo Escola-Estado-Família, também, está com os dias contados? ME - Não, porque seria assumir a capitulação diante de algo que é execrável em todos os sentidos. O mal está constatado e deve ser combatido de forma séria e determinada. Também não devemos ser ingênuos: a quem interessa o pânico? A sociedade deve se compenetrar de que não vai ser vencida essa guerra com troca de acusações, culpabilizando setores, jogando para a platéia. Que cada qual assuma seu papel e lute para que os esforços sejam solidários e com objetivos bastante demarcados. P & V - Recentemente, o “Movimento Respeito por BH”, formado pelos poderes públicos e organizações populares, realizaram um mutirão para limpar a sujeira deixada por pichadores. A imprensa cobriu o fato com destaque. O senhor não acha estas incursões meio que paternalistas? ME - Não diria paternalistas, mas as ações isoladas de um planejamento estratégico costumam ser vistas como paliativas. As ações pedagógicas devem vir respaldadas de uma política de inclusão social, de estímulo aos gestos altruístas, de mitigações socioeducativas. O círculo vicioso da violência, do desrespeito ao próximo e da intolerância está na raiz da barbárie e na gênese do neofascismo. Ele deve ser confrontado pelo círculo virtuoso da solidariedade, da luta incessante pela eqüidade social e pelos valores humanos mais nobres. P & V - O medo de denunciar, mesmo com as leis que os protegem, fazem dos professores, diretores e funcionários das escolas, reféns da violência, que se apresenta de forma variada. Este parece ser um dos maiores absurdos, que se multiplica de gravidade, pela forma complacente com que é tratada pelas autoridades. Como o senhor, que já foi vítima de ataques, analisa esta situação de tortura?
“A decepção social não é tanto a falta de conforto pessoal, mas a desagradável sensação de desconforto público e a constatação do conforto alheio”, do sociólogo, Gilles Lipovetsky. 27 Ponto & Vírgula 04.indd 27
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ME - Enquanto dirigente sindical e cidadão eu não me furto do debate e da denúncia fundamentada. Contudo, a lógica mercantilista imposta por muitas escolas particulares inibe as manifestações de repúdio ou de representações individuais de muitos professores perante a administração escolar. E o pior: além de flagrante assédio moral, isto acaba gerando um sentimento de impotência que pode provocar efeitos somáticos seríssimos que, em situações extremas, pode levar à depressão e ao abandono da profissão. Portanto, configura-se mais uma vez como um problema de ordem pública e social. P & V - Dentre as diversas causas da violência apontada pela pesquisa do Sinpro, está a relação cliente-serviçal que sobressai sobre a relação alunoprofessor. É possível esclarecer essa equação e baní-la de uma vez por todas do sistema de ensino? ME - Esta é uma distorção de valores muito influenciada pela noção mesma de consumismo e individuação incutida pelo mercado, propagada pela mídia e reproduzida também pela família. A relação compensatória observada no trato de pais e filhos, do tipo “se você não fizer o dever, não pode ir ao shopping”, potencializa essa noção mercantilista que alguns alunos pensam existir também entre eles e o professor. Não deixa de ser uma degradação de costumes que se caracteriza em assédio moral. A dignidade do exercício docente jamais pode ser pautada por essa relação de troca, mesmo porque, o saber não é produto e a educação não é mercadoria. P & V - Quais os tipos de violência que mais se repetem? Que moti-
“A matriz da violência nas escolas, públicas ou privadas, é a mesma: uma sociedade estigmatizada pelas desigualdades sociais e pela perda de valores essenciais para o convívio coletivo”
vações o senhor identifica para este caos urbano, já que as estatísticas da Secretaria de Estado de Defesa Social (Seds) mostram que as ocorrências aumentam de quantidade e de diversidade? ME - As realidades e ocorrências na educação pública e privada desses tipos de violências, até há pouco tempo, se divergiam na forma e na intensidade, embora a origem do problema tenha a mesma matriz: uma sociedade estigmatizada pelas desigualdades sociais e pela perda de valores essenciais para o convívio coletivo. Hoje, as formas explícitas (agressões físicas, verbais, depredações de patrimônios, ameaças) e as implícitas (assédio moral, diferentes formas de preconceito, ilações, perseguições) têm ocorrido nos dois sistemas, embora com publicização diferenciada, devido à pressão pela não divulgação nas escolas privadas. O fato é que o problema existe e precisa ser encarado com determinação, sob pena de vivermos enclausurados pelo medo e pela perda da capacidade de nos indignar. P & V - A depredação pela depredação, que vai da pichação à quebradeira , segundo alguns estudiosos do assunto, é uma forma que seus autores - a maioria excluída socialmente-, encontram de autopunição. O senhor concorda? A desproteção das escolas facilita a ocorrência deste vandalismo? ME - Não entendo como sendo autopunição a prática do vandalismo. Os vândalos utilizavam essa prática medieval para incutir o medo e demonstrar a sua superioridade diante de todas as formas de sociedades pré-estabelecidas. Se a lógica prevalece, deve ser compreendida como uma subversão de uma ordem social, onde a maioria fica refém de uma minoria que tenta se estabelecer de forma incivilizada e agressiva. Na minha opinião, alguns excessos devem ser tratados como patologia e outros como crime comum. P & V - Numa sociedade que estimula a ascensão de uns e o fracasso de muitos, o bullyng encontra o seu campo fértil, com um agravante: a vítima de ontem, geralmente, é o algoz, o agressor de amanhã. Este ciclo
patológico mina os princípios nobres que uma vez nortearam as instituições de ensino. Como o senhor analisa este fato? Isso não lhe entristece como professor? ME - É a lógica do pior tipo de competição. Essa agressão gratuita reproduz uma disputa que não encontra parâmetros nem no mundo animal, onde as lutas acontecem por alimentos, pela reprodução. O que choca é que o campo dessa batalha é na arena do saber, da ciência, do intelecto, onde as disputas devem se limitar ao mundo das idéias. É claro que, como educador, fico entristecido, mas isso não deve ser álibi para acuar as ininciativas de desmonte dessa prática nociva para a educação e para a sociedade. P & V - Como se não bastasse a violência, os professores, segmento mais vulnerável desse sistema, continuam sendo violentados pelos baixos salários, precárias condições de trabalho e indiferença política. É como se lecionar fosse uma autopenitência. Qual o futuro que o senhor enxerga para a docência? ME - Penso que o educador deve sempre ter como objetivo o aperfeiçoamento das práticas sociais, humanitárias e do campo do conhecimento. A pedagogia e a didática pressupoem o eterno aprendizado. Nunca o mestre está pronto. Sempre um novo desafio o cerca. Como disse Guimarães Rosa: “mestre não é aquele que ensina, mas aquele que de repente aprende”. Estamos aprendendo a partilhar problemas que não são nossos. Com paciência e determinação iremos vencer as adversidades. A nossa categoria deve entender que somente unida pode defender seus direitos e conquistar outros tantos. Sem mobilização fica mais difícil enfrentar a mercantilização do saber. É necessário dignidade para saber dizer ‘não’ e continuar com espírito nobre a desempenhar nossa função. P & V - A rigor: existe alguma escola que tenha conseguido, pela própria força, resgatar a qualidade de seu ensino e de seu ambiente? O senhor acredita no potencial da “orientação psicológica”, tão louvada pelos profissionais do setor, como um instrumento eficaz na luta contra a violência? ME - A porta de saída ainda continua
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“O círculo vicioso da violência, do desrespeito ao próximo e da intolerância está na raiz da barbárie e na gênese do neofacismo”
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sendo o diálogo propositivo e as ações compartilhadas. Nada que venha a substituir o bom senso poderá ter sucesso nessa empreitada. Nenhuma receita que venha engessada, sem debate, pode enfraquecer e debelar a violência nas escolas, porque ela pode ser explícita ou dissimulada. A receita pronta pode acabar com uma dessas formas, mas não conseguirá mudar completamente uma situação que extrapola os muros da escola.
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P & V - A criminalização das “palmadas” em menores de idade é um bom começo? ME - Sim. Não se pode voltar ao método vitoriano numa sociedade cuja mídia e a teledramaturgia alimentam diversas formas de violência. As palmadas representam uma hipocrisia disfarçada de método corretivo. A escola ainda é o espaço do saber, não da dor. Sem essa dimensão, fica difícil a discussão do problema. P & V - “ O aprendizado de hoje será o reflexo de amanhã”. Como o senhor avalia estas assertivas a partir de sua experiência como professor e diretor do Sinpro? ME - Nossa tarefa não é apenas passar informação qualificada ao aluno, mas, também, uma formação humanista que o torne um cidadão e um vencedor. Tenho receio do modelo positivista, prefiro o construtivismo que dê resultados. Mas, sou um otimista e creio que o Brasil
amadureceu em muitos aspectos, inclusive na forma de escolha de um modelo desenvolvimentista que não excluí pessoas, mas lhes proporciona crescer como cidadãos. P & V - Qual o índice de evasão docente por causa da violência nas escolas? E o índice de afastamento temporário em função dos estresses e depressão? O Sinpro tem esses dados? ME - Esses dados ainda são empíricos, pois as denúncias não contemplam a magnitude do problema. Ainda é necessária uma análise qualitativa para formar uma rede de informações mais qualificada. A evasão é relativizada pela ausência de informações sobre o evadido. Já o quadro docente é relativizado pelo receio de demissões. Como pode ser constatado, muito há que se fazer para que a educação ocupe o seu lugar de destaque no debate nacional e melhor contribua para a nossa autoestima social.
Um filme: “Sonhos”, de Akira Kurosawa; Um vexame: esquecer o aniversário de alguém que se ama; Um livro: “Ensaio sobre a cegueira”, de José Saramago; Uma decepção: não ter escrito a biografia de meu pai; Uma música: “Volver a Los Dezessiete”, de Mercedes Sosa; Uma tristeza: a desigualdade social; Uma alegria: conhecer Cuba; Um sonho não realizado: conhecer a Amazônia; Um Ponto G: atrás da orelha; Uma verdade: “nós somos as porções diárias de tantas outras pessoas” Uma mentira: todos são iguais perante a lei; Uma traição: a ação do PIG – o Partido da Imprensa Golpista; Quem você deixaria, para sempre, numa praia deserta? Gilmar Mendes.
“As armas devem ser usadas em última instância, onde e quando os outros meios não bastem”, do filósofo Maquiavel. 29 Ponto & Vírgula 04.indd 29
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Entrevista Suzanne Bouchardet
[ Nada além de uma ilusão]
Independência ou Morte! Franco Serrano
Centenas de micro-municípios mineiros se definham desde a década de 1990, vítimas da política emancipatória, paternalista e grotesca proposta pela Constituição Federal de 1988 (CF/88) e realizada, intempestivamente, para atender os casuísmos políticos
suzanne bouchardet, ecomista
P
odem soar familiares as palavras grafadas no título que contempla a entrevista abaixo. Mas, não se enganem caros leitores: o “brado forte” entoado por D. Pedro II, às margens do Ipiranga, continua acontecendo em sua versão contemporânea, claro, sem a mesma repercussão, e sob o manto, mais ou menos silencioso, estratégico e suspeito, como convém às armações produzidas nas sacristias do poder. E é aí que mora o pecado: vítimas da CF/88, que previa a descentralização do poder público e maior autonomia política das cidades, 1.405 comunidades e distritos brasileiros se viram “emancipados” de seus municípios-sede, dos quais 130 destes pertencem ao Estado de Minas Gerais.
Criados a “toque de caixa”, sob a inspiração lastimável da política eleitoreira, populista e mal planejada, as novas cidades “independentes” se vêem, hoje, em uma situação precária, quase que favelizados, e, por isso, totalmente dependentes da União e de suas antigas sedes administrativas. Além da carência de recursos financeiros e humanos, suas populações padecem com a inexistência de serviços básicos, pontuais como saneamento, segurança, saúde pública, educação de qualidade e por aí vai. Ponto & Vírgula, interessada em conhecer os meandros deste assunto , não por mais uma vaidade jornalística, mas pelo o que ele esconde de contradições e perversidades, felizmente, entrevistou a professora Suzanne Bouchardet, economista e consultora da Assembléia Legislativa de Minas Gerais. Ao transformar o processo “emancipatório” dos municípios mineiros nos anos 90, numa brilhante dissertação de seu mestrado em Administração Pública, apresentada à Escola de Governo Professor Paulo Neves de Carvalho, da Fundação João Pinheiro, Bouchardet tornou-se uma especialista no tema, e, claro, a nossa privilegiada entrevistada desta 4ª edição da revista.
Lucas Rage 5ºG de jornalismo Ponto & Vírgula - A senhora concorda que a tão sonhada “Emancipação Municipal”, prevista no Artigo 18 da Constituição de 1988, foi distorcida politicamente para atender casuísmos e conveniências perniciosas?
Por que e como se deu o processo emancipatório? Suzanne Bouchardet - Para entendermos essa questão é necessário pensá-la no contexto em que ela se deu. Àquela época, o país passava por transformações profundas, tanto no campo político quanto no econômico. De um lado, as novas forças políticas emergentes pressionavam por uma maior participação, tanto nas decisões políticas quanto na partilha dos recursos públicos. De outro, na arena econômica, o estado perdia a capacidade de intervir na economia e de alavancar o desenvolvimento econômico. A Constituição Federal de 1988 nasceu com a função de processar as novas condições políticas, econômicas e sociais impostas por essa nova realidade. Com ela, nasceu o novo modelo federativo do País, baseado na descentralização do poder decisório e na redistribuição mais eqüitativa dos recursos públicos. Os municípios, alçados à categoria de entes federados, foram os grandes beneficiados com a partilha de recursos instituída na nova Constituição, sendo esse o fator fundamental de incentivo ao processo emancipatório da década de 90. Os distritos perceberam, com a nova ordem constitucional, a oportunidade de ganharem autonomia política e financeira, por meio da emancipação, pois, tornando-se municípios, teriam acesso aos recursos transferidos pela União e pelos seus estados de origem, além de poder político para decidir em que gastar. Emancipar, portanto, significava ter acesso a recursos públicos. Essa “janela de oportunidades” aber-
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ta pela Constituição de 88 propiciou uma verdadeira avalanche de criação de novos municípios, em sua grande maioria micromunicípios, com até 10 mil habitantes, cuja economia não apresentava dinamismo suficiente para garantir-lhes sustentabilidade fiscal e autonomia financeira, objetivos maiores da municipalização. Esses aspectos, de fundamental importância para o equilíbrio federativo, infelizmente não foram considerados pelos legisladores que aprovaram as leis de emancipações de distritos, na década de 90. Além disso, é importante ressaltar as motivações políticas das lideranças locais, que viam nas emancipações a oportunidade de ampliar seu poder político através da criação de municípios, o que também serviu de incentivo para essa onda de emancipações. P & V - Durante este período, não foram levados em conta aspectos importantes para a aprovação de municípios, como, por exemplo, a sustentabilidade fiscal. Isto fez com que uma parte dos municípios mineiros emancipados sofresse dependência excessiva da União, como é o caso da cidade de Bonito de Minas, que se tornou independente de Januária, no Norte de Minas, em 1955, com um Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) vergonhoso de 0,58. Em que critérios estes municípios foram avaliados, se não os financeiros? SB - Os critérios para a criação de municípios no Brasil, até a CF/88, eram definidos por norma federal. A Constituição de 88, por sua vez, delegou aos estados a prerrogativa de legislar sobre a matéria em seus territórios. Em Minas Gerais, o surto emancipatório da década de 90 teve dois momentos distintos. No primeiro, os critérios de emancipação foram definidos pela Lei Complementar Estadual nº 19, de 17 de julho de 1991, que estabeleceu, entre outros, dois requisitos básicos para que um distrito pudesse se emancipar: número mínimo de 3.000 eleitores; população mínima de 7.000 habitantes (limite reduzido para 6.000 habitantes caso
“É importante ressaltar as motivações políticas das lideranças locais, que viam, nas emancipações, a oportunidade de ampliar seu poder político, através da criação do municípios” o núcleo urbano emancipado se localizasse a mais de 30 quilômetros da sede do município de origem). Naquele ano, foram criados no estado 33 municípios, através da Lei Estadual nº 10.704, de 27 de abril do mesmo ano. Estudo realizado pela Fundação João Pinheiro, em setembro de 2001 mostra que, dos 33 municípios criados em 1992, apenas 14 (42%) enquadravam-se no critério legalmente estabelecido para criação de municípios, ao passo que os 19 restantes (58%) não cumpriam os pressupostos exigidos pela legislação e, mesmo assim, foram criados. Com relação ao número mínimo de eleitores exigidos para a emancipação, o mesmo estudo mostra que apenas dois dos 33 municípios criados em 1992 atendiam a tal exigência. No segundo momento, a Lei Complementar nº 37, de janeiro de 95, estabeleceu novos critérios para a criação de municípios, reduzindo significativamente as exigências legais em relação à Lei Complementar anterior. Os novos requisitos estabelecidos foram: número mínimo de 2.000 eleitores; núcleo urbano já constituído, com mais de 400 moradias, destinado a sediar, como cidade, o novo Governo Municipal; edifício capaz de fornecer condições de funcionamento ao mesmo e aos órgãos de segurança; existência de posto de saúde, escola pública de 1º grau completo, cemitério e serviços públicos de comunicação, energia elétrica e abastecimento de água. Naquele ano foram criados outros 97 municípios. A prevalecerem naquele ano os critérios estabelecidos na
Lei anterior, 88% desses municípios não teriam sido criados, em razão de não atenderem ao mínimo de população exigida para a emancipação. P & V - A criação da Proposta de Emenda Constitucional (PEC-15), em 1996, teve como objetivo “frear” o processo vertiginoso de municipalização ocorrido durante a década de 90. Em um período de quase 10 anos, foram “libertados” diversos municípios incapazes de produzirem receita e de se manterem independentes da União, como é o caso do municípios mineiros de Setubinha e Fruta do Leite. Por que a demora para que tal iniciativa fosse tomada? SB - A EC nº15/96 devolveu à União o controle sobre as emancipações ao alterar o § 4º do art. 18 da Constituição. Entre as alterações aprovadas, estava a obrigatoriedade de um estudo prévio de viabilidade municipal, apresentado e publicado na forma da lei. Além disso, a EC 15 atribuiu à lei complementar federal a definição do período em que poderiam ocorrer desmembramentos de municípios. Isso, praticamente, inviabilizou novas emancipações, uma vez que as leis a que se refere o dispositivo não foram instituídas. Quanto à demora na aprovação da PEC é preciso lembrar que, além das conveniências políticas da época, a tramitação de Propostas de Emenda à Constituição é lenta, pois são matérias que exigem quorum qualificado para sua aprovação. P & V - Previsto constitucionalmente, o Fundo de Participação de Municípios (FPM) proporciona alocação livre de recursos visando ao desenvolvimento municipal. Esses recursos são, em grande parte, aplicados na manutenção da máquina administrativa, cobrindo despesas com salários para prefeitos, vices e vereadores. Quais os critérios utilizados para a distribuição do tributo entre os municípios mineiros? SB - A Constituição estabeleceu que a União tem que transferir aos municípios 22,5% do produto da arrecadação do Imposto de Renda e do Imposto so-
“Os medos são difusos, eles se espalharam. É difícil definir e localizar as raízes desses medos, que se acabam transformando em mercado lucrativo”, do sociólogo Zygment Bauman. 31 Ponto & Vírgula 04.indd 31
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bre Produtos Industrializados – IPI -, recursos estes que compõem o FPM. A Emenda Constitucional nº 55, de 2007, destinou mais 1% do produto desses tributos ao FPM, a ser entregue aos municípios no primeiro decêndio do mês de dezembro de cada ano. Além disso, do montante de recursos que cabe a cada estado, 25% têm que ser repassados aos respectivos municípios. OsrecursosrecebidospormeiodoFPM são de livre utilização dos municípios, ou seja, não sofrem qualquer vinculação, e podem ser gastos com o que quiserem.
“Do ponto de vista da população dos distritos, a emancipação significava uma redenção”
P & V - Promulgada em 1991, a Lei Complementar Estadual 19 passou a prever a emancipação de distritos com até 3 mil eleitores e população mínima de 7 mil habitantes. Foram aprovados, no mesmo ano, 19 municípios que não se encaixavam nos prérequisitos básicos, de um total de 33. Esse é um típico caso de ressurreição da velha tática de curral eleitoral? SB - Sim, conforme eu já mencionei, as lideranças políticas locais enxergaram na criação de novos municípios a chance de aumentarem o seu poder político e isso serviu de incentivo às emancipações, que ocorreram sem que se levassem em consideração as condições econômicas e fiscais desses municípios. P & V - Curiosamente, em 1995 houve outra promulgação da Lei Complementar 37, que previa critérios bem menos rigorosos para a emancipação dos municípios: 2 mil eleitores e núcleo urbano de 400 moradias. Este “arranjo” precedeu 1996, ano eleitoral, época em que ocorrem as costumeiras benesses políticas. Como a senhora interpreta essas interfaces? SB - Certamente, a flexibilização dos critérios para a emancipação de distritos, promovida pela LC 37, pro-
porcionou a acomodação de interesses e os arranjos políticos, com vistas à eleição de 1996. Numa perspectiva clientelista, a emancipação de um distrito possibilita a partilha do poder político com novas lideranças, que se “apropriam” politicamente do novo município que surge com a emancipação. P & V - O custo financeiro que acarreta uma emancipação municipal para o país não é nenhuma novidade. No entanto, lideranças comunitárias, Ongs, associação de moradores, entidades de classe fazem questão de desconhecer este contraponto econômico e insistem na luta pela emancipação, claro, com a conivência dos legislativos estaduais. Para a senhora, onde residem as contradições deste processo? SB - É preciso entender que, do ponto de vista da população dos distritos, a emancipação era entendida como redenção, na medida em que permitiria autonomia política e financeira em relação ao município de origem. Pesquisa realizada à época junto aos municípios recém-emancipados mostraram que o descaso do município de origem foi um dos principais motivos das emancipações. Para a maioria dessas cidades, emancipar significava ter acesso às transferências constitucionais de recursos do FPM - federal e/ou da quota-parte do ICMS – estadual, recursos estes que eles entendiam que lhes eram subtraídos pelo município de origem, antes do desmembramento. De posse desses recursos, o antigo distrito, então emancipado, poderia aplicá-lo integralmente no fornecimento de bens e serviços à população local, não mais tendo que dividi-los com a população do município de origem. Nesse sentido, eles tinham certa razão. Na minha pesquisa (dissertação de mestrado), em que eu analisei a mudança nas condições de vida da população dos municípios envolvidos no processo de municipalização em Minas Gerais, na década de 90, comparando os dois períodos, antes e depois das emancipações, ao observar a evolução dos indicadores sociais, verifiquei que a grande maioria dos 218 municípios analisados apresentou melhora nas condições de vida de seus habitantes, com evolução positiva, especialmente, nos indica-
dores de educação, saúde e condições habitacionais e, em menor grau, nos indicadores de renda. Porém, apesar dessa evolução, as condições de vida dos habitantes dos novos municípios continuaram apresentando significativo nível de precariedade. Isso porque, a grande maioria deles continuou apresentando baixo dinamismo em suas economias locais e, consequentemente, baixa capacidade de geração de receitas próprias capazes de alavancar seu desenvolvimento econômico e social. Por sua vez, em nível federativo, as emancipações produziram uma combinação perversa, do ponto de vista fiscal: por um lado, maior dispersão de recursos (que já eram escassos) e, por outro, aumento dos gastos públicos. Do lado da receita, o mesmo montante de recursos teve que ser repartido com mais unidades federativas. Do lado do gasto, as novas estruturas administrativas, que surgiram com a criação de novas unidades municipais, consumiram boa parte desses recursos. P & V - Em contraponto ao estado keynesiano de bem-estar social, a Constituição de 88 previa a descentralização como requisito indispensável para a superação de problemas sociais como a pobreza e a desigualdade social. Como explicar o contraste entre os objetivos almejados pelo Artigo 18 da Constituição e a realidade dessas regiões? SB - A opção pela descentralização, expressa na Constituição de 88, respaldava-se no consenso, estabelecido à época, de que o modelo descentralizado de ação estatal permitiria não apenas a democratização do poder decisório, por meio da participação popular nas decisões públicas e no controle das ações de governo, mas, também, maior eficiência na utilização de recursos públicos, por meio da proximidade do cidadão das instâncias do poder decisório. Dessa forma, a opção pela descentralização privilegiou o município como locus preferencial da ação estatal. O que se propunha com esse modelo era a promoção do desenvolvimento pela base, ou seja, a partir do município, e com isso melhorar as condições de vida das populações locais. Nesse contexto, o novo modelo federa-
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tivo instituído pela nova Constituição direcionou-se, claramente, nesse sentido e promoveu uma ampla descentralização tributária, especialmente em favor dos municípios, que foram os grandes beneficiados na partilha dos recursos públicos. Ocorre que essa estratégia de fortalecimento do poder local criou fortes incentivos à proliferação de novos municípios, em sua maioria pequenos e micromunicípios, com todas as implicações decorrentes da onda de emancipações deflagrada pelo novo modelo constitucional, que já mencionamos.
Sem Pestanejar
P & V - No Norte de Minas acontece exatamente o que contempla a pergunta acima: a emancipação de centenas de municípios, ocorrida sem o menor bom senso e motivada apenas pelas conveniências políticas transformou aquela região numa imensa favela legalizada, dependente de tudo da cidade de Montes Claros, onde deságuam todas as demandas e mazelas. Como é possível permitir tamanho engodo institucional? SB - Como eu disse, os distritos en-
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xergavam na emancipação uma oportunidade de obter autonomia política e financeira e, com isso, melhorar as condições de vida de suas populações. Ocorre que os ganhos obtidos com a emancipação, no que se refere à melhoria das condições de vida da população, foram, e ainda são, na maioria dos municípios, financiados com recursos de transferências constitucionais da União e dos estados, ou seja, a tão almejada autonomia financeira, de fato, não ocorreu. Isso se deve ao baixo dinamismo das economias locais, que não geram receitas suficientes para garantir a sustentabilidade do financiamento das políticas públicas. P & V - Em muitos casos, o que prevalece é a discrepância entre o discurso institucional e o dos habitantes que, com o tempo, constatam que foram iludidos pelo sonho da emancipação. A senhora sugere alguma iniciativa para evitar este malogro? SB - O que já aconteceu, a meu ver, não tem volta. Podemos evitar que
aconteça novamente, com uma boa legislação que regulamente essa matéria, de forma séria e responsável. P & V - Com a possibilidade de aprovação da PEC-13, que devolve aos estados a competência de legislar sobre a criação e emancipação de municípios, o país pode vir a ganhar pelos menos novas cidades. É mais um retrocesso para ser administrado? SB - Sem dúvida, porém a experiência da década de 90 não pode servir de pretexto para que essa questão seja evitada, pois as coisas evoluem, a realidade é dinâmica, o que significa que algum distrito, em algum momento, certamente terá condições de se emancipar. Portanto, é preciso regulamentar essa matéria, com responsabilidade, estabelecendo critérios mais rigorosos de avaliação das unidades a serem emancipadas, que levem em consideração principalmente a viabilidade econômica desses distritos. Na minha opinião essa matéria deveria ser regulamentada por norma federal, de forma a reduzir os riscos de ingerência política nesse processo.
Um filme: “A Vida Secreta das Palavras”; Um vexame: embarcar no avião errado; Um livro: “A Elegância do Ouriço”; Uma decepção: reprovação no vestibular de medicina; Uma música: “Concerto nº 2 para piano”, de Rachmaninov ; Uma tristeza: a morte de meus pais; Uma alegria: o nascimento de meu filho; Um sonho não realizado: morar um tempo na França; Uma verdade: a razão, infelizmente, não pode tudo; Uma mentira: qualquer pretensa verdade absoluta; Quem você deixaria, para sempre, numa praia deserta? Um torcedor fanático.
“Pobre é o melhor pagador do mundo. É humilde, é correto”, do empresário e dono do SBT, Sílvio Santos. 33 Ponto & Vírgula 04.indd 33
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Entrevista Carlos Victor Muzzi
[Razão cínica]
Pior que a suplência no Senado? é o próprio Senado Franco Serrano
Cinicamente interpretada e justificada pelos parlamentares como “uma gota d’água“ no oceano de lama daquela casa parlamentar, a suplência transformou-se em cultura, e, na última legislatura, 20 senadores foram eleitos sem passar pelo crivo das urnas, legitimando esta farsa
Carlos Victor Muzzi, subprocurador geral da República, aposentado
P
ais, filhos, noras, esposas, amantes, amigos diletos, lideranças comunitárias e financiadores de campanha, independente de qualquer critério, formam o contingente que costuma ficar na espreita para ocupar, discretamente, as vagas dos senadores, quando estes, por um motivo ou outro, deixam os seus cargos. Essa prática perniciosa, conhecida como suplência, chegou a tal ponto que, em 2009, mais de 24 milhões de votos foram desperdiçados ou “jogados no lixo” conforme denuncia a imprensa. Esses votos correspondem a uma população total de eleitores de Minas Gerais, Pernambuco, e Santa Catarina. E pasmem: sem receber um voto sequer, os substitutos representam quase 24% do total das
81 cadeiras naquela casa parlamentar. Essa farra com dinheiro público, tão cedo terá fim. Primeiro, porque qualquer reparação ética nesse sentido depende da votação e aprovação dos senadores, o que, naturalmente, será quase impossível. Depois, há um consenso cínico, conformista, segundo o qual a suplência não passa de um fragmento diante do horror de corrupção e desmandos que sempre caracterizou a vida do Senado, uma espécie de coisa menor. Para falar sobre esse polêmico assunto, fomos ouvir o subprocurador geral da República, o aposentado há 19 anos, Carlos Victor Muzzi. O ex-presidente da Associação Nacional dos Procuradores da República, atleticano incorrigível e fazendeiro nas horas vagas, recebeu a Ponto & Vírgula com o bom humor e causticidade de sempre. Nas entrelinhas, admitiu que discutir a suplência, diante de tantos outros problemas, é deslocar o eixo da questão. “É como culpar o sofá como causa da infidelidade da mulher”, ironiza ele. Por sua vez, Muzzi recomendou, de forma ostensiva, maiores investimentos na educação como recurso para melhorar nosso sistema. Pela sua inteligência e vasto conhecimento, a entrevista não poderia ser melhor. Por isso, ela se torna imperdível.
Carolina Costa 8ºG de jornalismo Ponto & Vírgula - De onde vem a ideia de criação do Senado? Afinal, qual a função de um senador? Por que um mandato de oito anos, o do-
bro dos deputados? A que o senhor atribui tanta diferença e tanto prestígio? Carlos Victor Muzzi – O Senado é uma instituição antiqüíssima, e foi na antiguidade clássica, o órgão máximo dos estados não monárquicos, as chamadas Repúblicas, como Roma, Cartago, Veneza etc. Encarnava todo poder do estado mas não tinha, como hoje, funções legislativas. A versão moderna de Senado vem da Revolução Americana, quando 13 colônias inglesas da América do Norte se tornaram independentes e constituíram uma federação, surgindo, então, como representação dos estados federados, enquanto as câmaras de representantes, como a Câmara Federal ou as Assembléias Legislativas se constituíram na representação do povo. O Senado é diferente da Câmara dos Deputados e cada um dos estados da federação tem um número igual de senadores, independentemente da população de cada um. Decidu-se por um mandato de oito anos, o dobro dos deputados, provavelmente, pelo fato de se tratar de um órgão que encarna a soberania do Estado e rege as relações internacionais, o que requer uma maior estabilidade, mas nada impede que o mandato possa ser reduzido, desde que se modifique a Constituição. Não há “diferença de prestígio” entre as duas Casas, o que há são funções diferentes. Contudo, em geral, os senadores são políticos mais antigos, mais experientes e para dizer pouco, mais astutos, sendo também mais conservadores. Ambos os corpos legislativos exercem a função de criar leis, mas, em caso de divergência prevalece a Câmara de Deputados.
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P&V - O Senado Brasileiro é um órgão complexo, lento e suas atividades e seus gastos são um dos maiores do mundo. Redefinir o poder legislativo, criando apenas uma casa, ou seja, extinguí-lo, seria prejudicial à democracia ou seria uma alternativa de aperfeiçoar o setor? CV - A questão de se extinguir o Senado é matéria que compete a uma eventual Assembléia Nacional Constituinte mas, como se viu acima, ele é a representação dos estados federados enquanto a Câmara é representação dos eleitores: cada estado tem três senadores, seja Roraima, com menos de um milhão de habitantes, seja São Paulo com quase 30 milhões. Já o número de deputados é proporcional ao número de eleitores de cada unidade da federação. Em tese, em uma federação de estados, o Senado contribui para um maior equilíbrio federativo. Já os custos exorbitantes do órgão são semelhantes aos custos elevadíssimos da Câmara, das Assembléias Legislativas e das Câmaras de Vereadores. São mais de dez mil funcionários, quase todos inúteis e esta farra se repete nas demais casas legislativas do pais. Esse é um problema desta nossa democracia, que é puramente retórica e não tem nenhuma substância. P&V - Parentes próximos, financiadores de campanha política, amigos diletos, líderes religiosos formam, geralmente, o bloco caricato de suplentes, mais do que suspeitos, dos candidatos a senadores. Essa prática imoral, perpetuada pelo desinteresse dos parlamentares em mudar as regras, é apontada como uma das razões da fragilidade do legislativo. O senhor concorda? CV- A questão da suplência não me parece bem colocada. Na verdade, quando os partidos escolhem seus candidatos à eleição para o Senado, escolhem o titular e os suplentes, que são do conhecimento dos eleitores. Assim, tanto os titulares como os suplentes são eleitos da mesma forma. O fato de serem parentes ou financiadores não impede a candidatura e cabe ao eleitor, se for o caso, recusar-se a votar em um candida-
to ao Senado que tem como suplente um parente ou um financiador, como ocorre frequentemente. Trata-se, pois de uma escolha do eleitor e esse moralismo que pretende cercear a escolha, vale tanto para a questão da suplência como para o caso da chamada Ficha Limpa. Ou o voto é livre e cabe ao eleitor e somente a ele escolher seus candidatos, ou se acaba com esta farsa, pois não pode existir uma meia democracia, na qual puristas anacrônicos pretendam cercear a liberdade do voto. Questões muito mais relevantes, como o voto facultativo, deveriam ser discutidas, pois é este voto de cabresto, o voto obrigatório, que permite situações como a de alguns suplentes, ou a eleição dos Tiriricas da vida. A tal da lei de Ficha Limpa ou da suplência de senadores equivalem ao célebre sofá onde se cometeu adultério, que se retira da sala para resolver o problema do corno.
“Nossa democracia é uma farsa e suas instituições não podem ser melhores do que são. Discutir a suplência a partir daí, passa a ser irrelevante. A falta de uma consciência de cidadania é um espanto e pouco se faz para remediar isso”
P&V - Na atual conjuntura política, o senador eleito leva, em seu mandato, dois suplentes para que, caso haja necessidade de seu afastamento, o primeiro suplente o substitua, se não o primeiro, o segundo. Essa é a forma mais democrática no processo de substituição de um senador afastado? CV - A forma atual da suplência é tão boa ou má quanto qualquer outra de que se cogite. É próprio das eleições majoritárias a escolha do titular e do
suplente ou do vice. É possível adotarse outra solução, como se faz no caso dos deputados, mas o sistema não é em princípio melhor ou mais democrático do que outro. Pessoas não populares ou ricas muitas vezes chegam ao poder e este é um risco do sistema democrático. Só a educação é que pode aperfeiçoar o sistema e os casuísmos sempre dão péssimos resultados: devemos ter regras claras e as observarmos sem apelarmos para messianismos. No Brasil, já tivemos o exemplo de Jânio Quadros, o reformador moralista que usava uma vassoura como símbolo, cuja única herança real foi a proibição de rinhas de galo... P&V - A suplência é uma alternativa para pessoas impopulares e ricas chegarem ao poder de forma fácil, embora inconveniente. Uma medida para sufocar esta situação seria a obrigatoriedade de ter apenas a opção do financiamento público de campanhas? CV - A questão do financiamento público de campanhas em nada alteraria a qualidade do Senado ou da suplência, e apenas injetaria mais recursos nas já caríssimas campanhas políticas. Significativamente, não são os ideólogos que orientam as campanhas, mas sim os marqueteiros... Ou seja, pessoas da área da propaganda, que é a arte de enganar pessoas e impingir bens ou produtos aos consumidores, é que orientam as idéias dos candidatos. Em suma, qualquer campanha política, para qualquer cargo, é uma enganação, e os candidatos não apresentam uma idéia própria, mas apenas seguem os conselhos de seus marqueteiros. Assim, por exemplo, dois ateus declarados e históricos foram vistos em missas, contritos, se fingindo de católicos, na recente campanha presidencial. O que falta é vergonha na cara, não do político, mas do deplorável povo brasileiro. P&V - Existem dois projetos no Congresso para substituir a regra da suplência: um o deputado federal mais votado ficaria no lugar do senador, no caso de ele afastar. O outro prevê que o substituto do senador seja escolhido pelo voto, como era
“A inquietude não deve ser negada, mas remetida para novos horizontes e se tornar nosso próprio horizonte”, do antropólogo Edgar Morin. 35 Ponto & Vírgula 04.indd 35
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antes. Para o senhor, a regra de hoje é mais adequada ou realmente seria melhor outra alternativa? CV - Para mim é irrelevante a forma pela qual se escolham os suplentes e não vejo razão para um candidato a deputado tornar-se senador. Também não me parece razoável se realizar um eleição para a escolha de um substituto de senador. Se o eleitor sabe quem é o suplente, ou pode saber desde que se interesse, não vejo razão para se considerar este sistema pior do que outros. O que é muito ruim é o eleitor. P&V - Na última legislatura, 20 suplentes chegaram a exercer mandato no Senado, representando 24,7% do total de 81 cadeiras. São mais de 24 milhões de votos de eleitores que perderam seus votos. Esse absurdo equivale aos eleitores de Minas Gerais, Pernambuco e Santa Catarina juntos. Esses eleitores têm o direito de exigir na Justiça Eleitoral a volta de seus verdadeiros senadores ou não lhes sobram outra opção senão a de engolir os suplentes como se fossem titulares? CV - Como já disse, o eleitor ao votar no candidato a senador vota em seus suplentes também, não sendo verdade que no caso de substituição sua vontade seja suprimida. Quem votou em Hélio Costa votou também no seu cabeludo suplente e sabia disto muito bem. A possibilidade de que um suplente assuma está sempre presente e, em geral, 1/4 dos integrantes do Senado tem sido suplentes que assumem no lugar dos titulares e isto não me parece imoral, já que ambos foram votados pelos mesmos eleitores. P&V- Em 2009, Congresso aprovou uma Emenda Constitucional que aumenta mais sete mil cadeiras para vereadores em todo o País. O Supremo Tribunal Federal (STF) suspendeu a posse destes, alegando que eles não foram os escolhidos pela população por não terem votos suficientes. O senhor não acha que a lógica deveria ser a mesma para os suplentes de senadores? Neste caso, “o mesmo pau que bate em chico, não deveria bater em Francisco”, ou esse ditado popular não passa de um ditado popular? CV - Qualquer ditado popular não passa de ditado popular. O aumento do
número de vereadores nada tem com a questão da suplência. A regra do aumento do número de vereadores não poderia retroagir para alcançar a legislatura em vigor, e foi isto que se entendeu. P&V - Quando um deputado ou um vereador se elege com votos muito além do que ele necessita, ele acaba “levando” junto consigo outros integrantes do seu partido, ou seja: um eleitor está votando em um candidato dando voto para outro que, muitas vezes, desconhece. Isso pode ser comparado ao fenômeno da suplência no Senado? A que o senhor atribui tantos “arranjos” políticos? CV - O sistema eleitoral, no caso de eleições não majoritárias, pode observar dois modelos. Um deles é o do distrito eleitoral, no qual o estado é dividido em um número determinado de circunscrições eleitorais, cada uma das quais elege um representante. O outro modelo, que é o nosso, se baseia em um sistema misto, que leva em conta os votos de cada candidato e leva em conta também os votos dos partidos. Todos os votos dos candidatos do partido tal são somados e aí se apura a quantos deputados este partido tem direito, já que a lei estabelece que, para cada tantos votos se elege um deputado: aí o número de deputados a que o partido faz juz é distribuído entre os deputados mais votados daquele partido. Num exemplo, se o partido teve um milhão de votos e se o quociente eleitoral foi de 200 mil votos para cada deputado, então os cinco candidatos mais votados deste partido estarão eleitos, mesmo que um candidato tenha tido 990 mil votos e os outros quatro apenas 2.500 votos cada um. É um sistema, provavelmente o único viável, em eleições proporcionais e não majoritárias. P&V - Se um senador eleito se afastar, e nenhum dos dois suplentes tiver apto para substituí-lo, o que acontece? CV - O parágrafo 2, do artigo 56, da Constituição Federal estabelece que, ocorrendo vaga e não havendo suplente, haverá nova eleição se faltarem mais de 15 meses para o término do mandato. P&V - O suplente recebe algum salário/benefício ou possui um papel dentro da política como o do vice? Ou
“Questões muito mais relevantes, como o voto facultativo, deveriam ser discutidas, pois é o voto de cabresto, o voto obrigatório, que permite o escárnio da suplência ou a eleição dos Tiriricas da vida” ele é um simples ansioso, aguardando a sua vez de parlamentar? CV- O suplente só recebe o subsídio se assumir o mandato, se não assumir não tem cargo público e nada ganha. Quanto a exercer algum papel na política, isto depende de cada um, evidentemente. Geralmente, os suplentes são pessoas inexperientes com pouca ou nenhuma atividade política. Mas, como os titulares, foram eleitos pelo povo. P&V - Quando um senador era afastado por algum motivo qualquer, em meados da década de 40, era realizada uma nova eleição. Depois, isso mudou para o molde da suplência. Por que houve essa mudança? Como justificar esse retrocesso? CV - Dispor sobre suplência e exercício de mandato é uma prerrogativa do constituinte. Não existe nenhuma razão para que se adote este ou aquele sistema, isto depende do entendimento do legislador. Existem matérias que são da competência exclusiva do legislador, que é eleito pelo povo para fazer leis e estabelecer regras sobre a substituição de parlamentares afastados. P&V - Se já não bastasse um suplente que não faz campanha e nem recebe votos, um senador carrega dois suplentes. Afinal, porque dois? CV - Como disse, o legislador entendeu que sejam escolhidos dois suplentes. Como também já disse, os suplentes são escolhidos quando o partido indica os candidatos e todos os eleitores sabem ou podem saber quem são eles. Os suplentes são votados tanto quanto os titulares e existem dois para a hipótese, remota aliás, de que tanto o titular como o suplente venha a estar impedidos. Poderiam ser
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três ou apenas um que nada mudaria.
Sem Pestanejar
P&V - Há anos, o Senado enfrenta uma onda sem fim de escândalos, envolvendo do presidente aos parlamentares e altos funcionários, com mordomias, nepotismo e corrupção. Na defesa do ex-presidente da Casa, José Sarney, Lula, simplesmente, jogou a esbórnia das denúncias para debaixo do tapete palaciano, blindando o seu outrora arquiinimigo. O que o senhor tem a dizer sobre isso? CV - Escândalos, corrupção, nepotismo e outros vícios são muito comuns em países com baixíssimo índice de consciência da população. Eles ocorrem no Senado, na Câmara dos Deputados, nas Assembléias Legislativas, no Poder Judiciário, nas Igrejas e, também, na imprensa, que aliás, é das piores do mundo. Só a educação da população tende a evitar tais excessos. No Brasil, as instituições políticas são cópias de outras instituições vigentes entre outros países e nenhuma delas tem alguma coisa com nossa realidade e nossa história. Nossa indepen-
dência, por exemplo, foi proclamada pelo mesmo governante português, que se tornou o Imperador D. Pedro I, quando antes era Pedro, o regente do país. A República foi proclamada numa quartelada comandada por um sargentão, que servira, até então, ao Império. Nossa democracia é uma farsa e suas instituições não podem ser melhores do que são. Discutir a suplência é irrelevante quando o voto é compulsório, por exemplo. A fata de consciência da cidadania é um espanto e pouco se faz para remediar isto. P&V - “O Sarney tem história suficiente para que não seja tratado como pessoa comum”. Segundo o sociólogo Demétrio Magnoli, com esta frase, o ex-presidente Lula, simplesmente, reabilitou o sistema de compadrio, segundo o qual mãos poderosas lavar-se-ão umas as outras. A partir daí, é possível concluir que o escárnio da suplência no Senado é apenas uma gota d’água no oceano da imoralidade pública? CV - Exatamente. O problema da suplência é uma gota d’água nos vícios do
sistema. Um indivíduo primário como o Lula não poderia ter outra reação no caso do Sarney. Apenas não concordo que o sistema do compadrio tenha sido restaurado, pois ele nunca deixou de existir. O que temos aqui não é democracia, é uma farsa grotesca e não vislumbro como uma ditadura poderia ser pior. É a história do me engana que eu gosto, temos um sistema eleitoral que se diz o mais perfeito do mundo, mas ninguém diz, por exemplo, que cada Juiz eleitoral e cada Promotor da área ganha todos os meses do ano algo em torno de cinco mil reais, além de seus régios proventos, para trabalhar apenas por ocasião das eleições... Então, todo mundo ganha e o povo se lixa para a democracia, elegendo qualquer patife que aparece. Daí, que cada povo tem o governo que merece e ante a deplorável cultura nacional, nossas instituições políticas, entre elas o Senado que é sua expressão maior, valem pouco mais do que nada. O estado nacional é uma lástima e só faz atravancar o progresso do país.
• Um filme: “Casablanca”; • Um vexame: entrevista de Lula para a imprensa estrangeira; • Um livro: “A Cidade e as Serras”, de Eça de Queiroz; • Uma decepção: não tenho; • Uma música: “As Rosas Não Falam”, de Cartola; • Uma tristeza: nenhuma; • Uma alegria: viver; • Um sonho não realizado: nenhum; • Um ponto G: isso é com elas; • Uma verdade: “Se você não pode convencê-las, confunda-as”, Garfield; • • Uma mentira: Lula ou Obama; • Uma traição: a política; • Quem você deixaria, para sempre, numa praia deserta? Sílvio Santos.
“Foge por um instante do homem irado, mas foge sempre do hipócrita, do filósofo chinês Confúcio. 37 Ponto & Vírgula 04.indd 37
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Reprise Artigo
não
Por que reescrevem
tudo?
Arquivo pessoal
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JOÃO UBALDO RIBEIRO
D
e uns tempos para cá, não sei se me engano, começaram a proliferar normas destinadas a controlar nossa conduta individual. Falei em algumas aqui e cheguei a aventar a hipótese de que uma agência governamental, ou qualquer outra das muitas autoridades a que vivemos subordinados sem saber, venha a estabelecer normas para o uso do papel higiênico e garantir sua observação através da instalação de câmeras nos banheiros de uso público. Nos banheiros domésticos, imagino que seriam suficientes umas visitas incertas de inspetores com gazuas, para tentar flagrar os que se asseassem ilegalmente. Não se trata somente de passatempo para burocratas entediados e sem mais o que fazer. Trata-se da convicção, que parece grassar truculentamente em toda parte, de que existe algo “certo”, cientificamente certo e, portanto, todos devem comportar-se dentro do certo. Se nas ciências físicas esse negócio de “certo” já é olhado com um pé atrás, nas ciências humanas, que nunca puderam aspirar ao nível de objetividade daquelas, a existência do “certo” é muito
discutível, envolve, necessariamente, valores, valores que permeiam toda ação do homem e não são território da ciência e da objetividade. Agora, leio aqui nos jornais que a compulsão pelo certo acaba de atingir novo limite. Desta vez, por um parecer do Conselho Nacional de Educação, que opinou que o livro “Caçadas de Pedrinho”, de Monteiro Lobato, deve ser proibido nas escolas públicas, por se tratar de obra racista. Sei que, entre vocês, há leitores de Monteiro Lobato que acharam que não entenderam o que acabaram de ler. Mas é isso mesmo: não pode “Caçadas de Pedrinho”, porque é racista. Ou, por outra, pode, mas somente “quando o professor tiver a compreensão dos processos históricos que geram o racismo no Brasil”. Eu não vou nem falar nos milhões de brasileiros de todas as idades e todas as gerações que viveram no mundo mágico criado por um dos maiores escritores uni-
“Qual a posição oficial do governo? O professor que orientar a leitura de “Caçadas de Pedrinho” terá que saber. Deus ajude as pobres crianças, torturadas com o que era antigamente somente um livro que as transportava para a fantasia, a aventura e o encantamento inocentes”
versais, um gênio naquilo que fez melhor, motivo de orgulho para todos nós, Monteiro Lobato. Nem vou dedicar tempo a entender como é que foi que todos esses milhões, lendo, despreparados, livros racistas, não vieram mais tarde a abrigar preconceitos e ideias nocivas, instilados solertemente na consciência indefesa de crianças. Monteiro Lobato, com toda a certeza, tem tantos defensores quanto leitores, não precisa de mais uma defesa. E que diabo é “compreensão dos processos históricos que geram o racismo no Brasil”. A compreensão “certa”? Qual é a compreensão certa de um fenômeno que gera até brigas ferozes entre seus estudiosos e participantes? Estará correta a visão que vê no racismo um fenômeno causado exatamente pela diferença de raças? Terá mais razão o que vê na escravidão um fenômeno basicamente econômico e só secundariamente racial? Quem resolveu isso? Qual a posição oficial do governo? O professor que orientar a leitura de “Caçadas de Pedrinho” terá que saber. Deus ajude as pobres crianças, torturadas com o que era antigamente somente um livro que as transportava para a fantasia, a aventura e o encantamento inocentes. Agora, ao que parece, o correto é a leitura tutelada, orientada. Antigamente, a literatura infantil era liberdade, escape, território autônomo em que a imaginação do jovem, ainda não embotada pela experiência, o levava a uma felicidade mais tarde irreproduzível. Agora talvez se diga “você gostou disso, por aquilo; e não gostou disso, porque não é para gostar, está errado”. A boa literatura dá lições como consequência, não como objetivo. Deve-se ensinar a ler por prazer, de maneira desarmada e aberta - e não há como desconfiar dos clássicos como Lobato, os clássi-
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cos são clássicos porque são clássicos. A literatura, como a vida, não é certinha. A ficção até que arruma os acontecimentos, lhes empresta enredos e sentidos que na vida real não têm. Mas, como a vida, a ficção mostra contradições, reflete dilemas, exibe defeitos, ilumina a existência humana. Quem entra num romance deve entrar sozinho, a viagem é individual e intransmissível. E até mesmo essa conversa de necessidade de contextualizar o livro é bem discutível. No meu tempo de menino, ninguém precisou contextualizar os livros de Tarzan para aceitar a África dele, assim como não se contextualizava Robin Hood, D’Artagnan, Jorge Amado, Érico Veríssimo ou quem lá fosse que aparecesse num romance, a contextualização era automática, vinha do bom texto. Finalmente, em que medida os defeitos não são subjetivos, ou seja, não estão apenas na mente e na percepção de quem os aponta? Existirá um racismômetro? E, mais ainda, não haverá outras áreas sensíveis? Acho que a adoção de mais controles é decorrência lógica e questão de justiça. Temos, por exemplo, a antropologia ultrapassada de Euclides da Cunha, o tal que falou no “mestiço neurastênico do litoral”. É tão presente nele essa visão antropológica superada (além de ofensiva a grupos raciais; eu mesmo sou mestiço neurastênico do litoral e as mulheres sempre me discriminaram) que o melhor seria mandar um antropólogo correto e moderno reescrever “Os Sertões’, para quê o velho? Esperemos também alegações de
“Estará correta a visão que vê no racismo um fenômeno causado exatamente pela diferença de raças? Terá mais razão o que vê na escravidão um fenômeno basicamente econômico e só secundariamente racial? Quem resolveu isso? “ violência contra mulheres (Barba-Azul), machismo (Bolinha), ódio a uma espécie em extinção (o lobo de Chapeuzinho Vermelho), exploração de deficientes verticais (os anões de Branca de Neve), apologia da bruxaria (a Bela Adormecida) e assim por diante. Olhando para trás, chego a ter um arrepio, em ver como escapamos por pouco de termos as personalidades deformadas pela leitura irresponsável dos clássicos, esses repositórios de traições, assassinatos, incestos, preconceitos, guerras, adultérios e tudo mais que o planejamento científico logo eliminará. Melhor, por enquanto, ficar longe deles e aguardar instruções das autoridades
Imagens do livro de Monteiro Lobato, “Caçadas de Pedrinho”
(*)Transcrito do jornal O Globo, de 07/11/2010.
Comentário Ponto e Vírgula Independente de entrar ou não em vigor, a sugestão do Conselho Nacional de Educação (CNE), publicada no Diário Oficial da União, de proibir a distribuição à escolas públicas do livro “Caçadas de Pedrinho”, de Monteiro Lobato, sob alegação de ser uma obra racista é, além de ridícula, risível. Imaginem, caros leitores, se esse surto ético do CNE – fruto do ócio e da moralidade esquizofrênica; se estender às obras literárias e às artes cênicas e programas de humor de uma maneira em geral , porque contém preconceitos. Pois é: a Tia Anastácia, que tanto embalou o sonho da criançada brasileira, passados 77 anos de publicação da obra da qual é uma das principais personagens, se transformou, no entender da conselheira do CNE e professora da UFMG, Nilma Lino Gomes, em vítima de racismo. É muita bobagem e muito cinismo às custas do erário público.
“O sucesso é um professor perverso. Ele seduz as pessoas inteligentes e as faz pensar que jamais vão cair”, do dono da Microsoft, Bill Gates. 39 Ponto & Vírgula 04.indd 39
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Fumec Ensaio
A crise no Rio e o pastiche Nestor Müller / Secom
midiático
LUIZ EDUARDO SOARES, antropólogo e ex - secretário nacional de Segurança Pública
S
empre mantive com jornalistas uma relação de respeito e cooperação. Em alguns casos, o contato profissional evoluiu para amizade. Quando as divergências são muitas e profundas, procuro compreender e buscar bases de um consenso mínimo, para que o diálogo não se inviabilize. Faço-o por ética –supondo que ninguém seja dono da verdade, muito menos eu--, na esperança de que o mesmo procedimento seja adotado pelo interlocutor. Além disso, me esforço por atender aos que me procuram, porque sei que atuam sob pressão, exaustivamente, premidos pelo tempo e por pautas urgentes. A pressa se intensifica nas crises, por motivos óbvios. Costumo dizer que só nós, da segurança pública (em meu caso, quando ocupava posições na área da gestão pública da segurança), os médicos e o pessoal da Defesa Civil, trabalhamos tanto –ou sob tanta pressão-- quanto os jornalistas. Digo isso para explicar por que, na crise atual, tenho recusado convites para falar e colaborar com a mídia: Recebi muitos telefonemas, recados e mensagens. As chamadas são contínuas, a tal ponto que não me restou alternativa a desligar o celular. Ao todo, nesses dias, foram mais de cem pedidos de entrevis-
tas ou declarações. Nem que eu contasse com uma equipe de secretários, teria como responder a todos e muito menos como atendê-los. Por isso, aproveito a oportunidade para desculpar-me. Creiam, não se trata de descortesia ou desapreço pelos repórteres, produtores ou entrevistadores que me procuraram. Além disso, não tenho informações de bastidor que mereçam divulgação. Por outro lado, não faria sentido jogar pelo ralo a credibilidade que construí ao longo da vida. E isso poderia acontecer se eu aceitasse aparecer na TV, no rádio ou nos jornais, glosando os discursos oficiais que estão sendo difundidos, declamando platitudes, reproduzindo o senso comum pleno de preconceitos, ou divagando em torno de especulações. A situação é muito grave e não admite leviandades. Portanto, só faria sentido falar se fosse para contribuir de modo eficaz para o entendimento mais amplo e profundo da realidade que vivemos. Como fazê-lo em alguns parcos minutos, entrecortados por intervenções de locutores e debatedores? Como fazê-lo no contexto em que todo pensamento analítico é editado, truncado, espremido –em uma palavra, banido--, para que reinem, incontrastáveis, a exaltação passional das emergências, as imagens espetaculares, os dramas individuais e a retórica paradoxalmente triunfalista do discurso oficial? Por fim, não posso mais compactuar com o ciclo sempre repetido na mídia: atenção à segurança nas crises agudas e nenhum investimento reflexivo e informativo realmente denso e consistente, na entressafra, isto é, nos intervalos entre as crises. Na crise, as perguntas recorrentes são: O que fazer, já, imediatamente, para sustar a explosão de violência?; O que a polícia deveria fazer para vencer, definitivamente, o tráfico de drogas?; Por que o governo não chama o Exército?; A imagem internacional do Rio foi maculada?; Conseguiremos realizar com êxito a Copa e as Olimpíadas?
Ao longo dos últimos 25 anos, pelo menos, me tornei “as aspas” que ajudaram a legitimar inúmeras reportagens. No tópico, “especialistas”, lá estava eu, tentando, com alguns colegas, furar o bloqueio à afirmação de uma perspectiva um pouquinho menos trivial e imediatista. Muitas dessas reportagens, por sua excelente qualidade, prescindiriam de minhas aspas –nesses casos, reduzime a recurso ocioso, mera formalidade das regras jornalísticas. Outras, nem com todas as aspas do mundo se sustentariam. Pois bem, acho que já fui ou proporcionei aspas o suficiente. Esse código jornalístico, com as exceções de praxe, não funciona, quando o tema tratado é complexo, pouco conhecido e, por sua natureza, rebelde ao modelo de explicação corrente. Modelo que não nasceu na mídia, mas que orienta as visões aí predominantes. Particularmente, não gostaria de continuar a ser cúmplice involuntário de sua contínua reprodução. Eis por que as perguntas mencionadas são expressivas do pobre modelo explicativo corrente e por que devem ser consideradas obstáculos ao conhecimento e réplicas de hábitos mentais refratários às mudanças inadiáveis. Respondo sem a elegância que a presença de um entrevistador exigiria. Serei, por assim dizer, curto e grosso, aproveitando-me do expediente discursivo aqui adotado, em que sou eu mesmo o formulador das questões a desconstruir. Eis as respostas, na sequência das perguntas, que repito para facilitar a leitura: O que fazer, já, imediatamente, para sustar a violência e resolver o desafio da insegurança? Nada que se possa fazer já, imediatamente, resolverá a insegurança. Quando se está na crise, usam-se os instrumentos disponíveis e os procedimentos conhecidos para conter os sintomas e salvar o paciente. Se desejamos, de fato, resolver algum problema grave, não é possível continuar a tratar o paciente apenas quando ele já está na UTI, tomado por
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uma enfermidade letal, apresentando um quadro agudo. Nessa hora, parte-se para medidas extremas, de desespero, mobilizando-se o canivete e o açougueiro, sem anestesia e assepsia. Nessa hora, o cardiologista abre o tórax do moribundo na maca, no corredor. Não há como construir um novo hospital, decente, eficiente, nem para formar especialistas, nem para prevenir epidemias, nem para adotar procedimentos que evitem o agravamento da patologia. Por isso, o primeiro passo para evitar que a situação se repita é trocar a pergunta. O foco capaz de ajudar a mudar a realidade é aquele apontado por outra pergunta: o que fazer para aperfeiçoar a segurança pública, no Rio e no Brasil, evitando a violência de todos os dias, assim como sua intensificação, expressa nas sucessivas crises? Se o entrevistador imaginário interpelar o respondente, afirmando que a sociedade exige uma resposta imediata, precisa de uma ação emergencial e não aceita nenhuma abordagem que não produza efeitos práticos imediatos, a melhor resposta seria: caro amigo, sua atitude representa, exatamente, a postura que tem impedido avanços consistentes na segurança pública. Se a sociedade, a mídia e os governos continuarem se recusando a pensar e abordar o problema em profundidade e extensão, como um fenômeno multidimensional a requerer enfrentamento sistêmico, ou seja, se prosseguirmos nos recusando, enquanto Nação, a tratar do problema na perspectiva do médio e do longo prazos, nos condenaremos às crises, cada vez mais dramáticas, para as quais não há soluções mágicas. A melhor resposta à emergência é começar a se movimentar na direção da reconstrução das condições geradoras da situação emergencial. Quanto ao imediato, não há espaço para nada senão o disponível, acessível, conhecido, que se aplica com maior ou menor destreza, reduzindo-se danos e prolongando-se a vida em risco. A pergunta é obtusa e obscurantista, cúmplice da ignorância e da apatia. O que as polícias fluminenses deveriam fazer para vencer, definitivamente, o tráfico de drogas?
Em primeiro lugar, deveriam parar de traficar e de associar-se aos traficantes, nos “arregos” celebrados por suas bandas podres, à luz do dia, diante de todos. Deveriam parar de negociar armas com traficantes, o que as bandas podres fazem, sistematicamente. Deveriam também parar de reproduzir o pior do tráfico, dominando, sob a forma de máfias ou milícias, territórios e populações pela força das armas, visando rendimentos criminosos obtidos por meios cruéis. Ou seja, a polaridade referida na pergunta (polícias versus tráfico) esconde o verdadeiro problema: não existe a polaridade. Construí-la –isto é, separar bandido e polícia; distinguir crime e polícia-- teria de ser a meta mais importante e urgente de qualquer política de segurança digna desse nome. Não há nenhuma modalidade importante de ação criminal no Rio de que segmentos policiais corruptos estejam ausentes. E só por isso que ainda existe tráfico armado, assim como as milícias.
Discutindo a crise, a mídia reproduz o mito da polaridade polícia versus tráfico, perdendo o foco, ignorando o decisivo
Não digo isso para ofender os policiais ou as instituições. Não generalizo. Pelo contrário, sei que há dezenas de milhares de policiais honrados e honestos, que arriscam, estóica e heroicamente, suas vidas por salários indignos. Considero-os as primeiras vítimas da degradação institucional em curso, porque os envergonha, os humilha, os ameaça e acua o convívio inevitável com milhares de colegas corrompidos, envolvidos na criminalidade, sócios ou mesmo empreendedores do crime. Não nos iludamos: o tráfico, no modelo que se firmou no Rio, é uma realidade em franco declínio e tende a se eclipsar, derrotado por sua irracionali-
dade econômica e sua incompatibilidade com as dinâmicas políticas e sociais predominantes, em nosso horizonte histórico. Incapaz, inclusive, de competir com as milícias, cuja competência está na disposição de não se prender, exclusivamente, a um único nicho de mercado, comercializando apenas drogas –mas as incluindo em sua carteira de negócios, quando conveniente. O modelo do tráfico armado, sustentado em domínio territorial, é atrasado, pesado, anti-econômico: custa muito caro manter um exército, recrutar neófitos, armá-los (nada disso é necessário às milícias, posto que seus membros são policiais), mantê-los unidos e disciplinados, enfrentando revezes de todo tipo e ataques por todos os lados, vendo-se forçados a dividir ganhos com a banda podre da polícia (que atua nas milícias) e, eventualmente, com os líderes e aliados da facção. É excessivamente custoso impor-se sobre um território e uma população, sobretudo na medida que os jovens mais vulneráveis ao recrutamento comecem a vislumbrar e encontrar alternativas. Não só o velho modelo é caro, como pode ser substituído com vantagens por outro muito mais rentável e menos arriscado, adotado nos países democráticos mais avançados: a venda por delivery ou em dinâmica varejista nômade, clandestina, discreta, desarmada e pacífica. Em outras palavras, é melhor, mais fácil e lucrativo praticar o negócio das drogas ilícitas como se fosse contrabando ou pirataria do que fazer a guerra. Convenhamos, também é muito menos danoso para a sociedade, por óbvio. O Exército deveria participar? Fazendo o trabalho policial, não, pois não existe para isso, não é treinado para isso, nem está equipado para isso. Mas deve, sim, participar. A começar cumprindo sua função de controlar os fluxos das armas no país. Isso resolveria o maior dos problemas: as armas ilegais passando, tranquilamente, de mão em mão, com as benções, a mediação e o estímulo da banda podre das polícias. E não só o Exército. Também a Marinha, formando uma Guarda Costeira com foco no controle de armas transportadas como cargas clandestinas ou despejadas
“ No inferno, os lugares mais quentes são reservados para aqueles que, em tempos de crise, optaram pela neutralidade”, de Dante Alighieri. 41 Ponto & Vírgula 04.indd 41
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Palavras finais Traficantes se rebelam e a cidade vai à lona. Encena-se um drama sangrento, mas ultrapassado. O canto de cisne do tráfico era esperado. Haverá outros momentos análogos, no futuro, mas a tendência declinante é inarredável. E não porque existem as UPPs, mas porque correspondem a um modelo insustentável, economicamente, assim como social e politicamente. As UPPs, vale dizer mais uma vez, são um ótimo programa, que reedita com mais apoio político e fôlego administrativo o programa “Mutirões pela Paz”, que implantei com uma equipe em 1999, e que acabou soterrado pela política com “p” minúsculo, quando fui exonerado, em 2000, ainda que tenha sido ressuscitado, graças à liderança e à competência raras do ten.cel. Carballo Blanco, com o título GPAE, como reação à derrocada que se seguiu à minha saída do governo. A despeito de suas virtudes, valorizadas pela presença de Ricardo Henriques na Secretaria Estadual de Sssistência Social - um dos melhores gestores do país-, elas não terão futuro se as polícias não forem profundamente transformadas. Afinal, para tornaremse política pública terão de incluir duas qualidades indispensáveis: escala e sustentatibilidade, ou seja, terão de ser assumidas, na esfera da segurança, pela PM. Contudo, entregar as UPPs à condução da PM seria condená-las à liquidação, dada a degradação institucional já referida. O tráfico que ora perde poder e capacidade de reprodução só se impôs, no Rio, no modelo territorializado e sedentário em que se estabeleceu, porque sempre contou com a sociedade da po-
Franco Serrano
na baía e nos portos. Assim como a Aeronáutica, identificando e destruindo pistas de pouso clandestinas, controlando o espaço aéreo e apoiando a PF na fiscalização das cargas nos aeroportos. A imagem internacional do Rio foi maculada? Claro. Mais uma vez. Conseguiremos realizar com êxito a Copa e as Olimpíadas? Sem dúvida. Somos ótimos em eventos. Nesses momentos, aparece dinheiro, surge o “espírito cooperativo”, ações racionais e planejadas impõem-se. Nosso calcanhar de Aquiles é a rotina. Copa e Olimpíadas serão um sucesso. O problema é o dia a dia.
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lícia, vale reiterar. Quando o tráfico de drogas no modelo territorializado atinge seu ponto histórico de inflexão e começa, gradualmente, a bater em retirada, seus sócios –as bandas podres das polícias-prosseguem fortes, firmes, empreendedores, politicamente ambiciosos, economicamente vorazes, prontos a fixar as bandeiras milicianas de sua hegemonia. Discutindo a crise, a mídia reproduz o mito da polaridade polícia versus tráfico, perdendo o foco, ignorando o decisivo: como, quem, em que termos e por que meios se fará a reforma radical das polícias, no Rio, para que estas deixem de ser incubadoras de milícias, máfias, tráfico de armas e drogas, crime violento, brutalidade, corrupção? Como se refundarão as instituições policiais para que os bons profissionais sejam, afinal, valorizados e qualificados? Como serão transformadas as polícias, para que deixem de ser reativas, ingovernáveis, ineficientes na prevenção e na investigação? As polícias são instituições absolutamente fundamentais para o Estado democrático de direito. Cumpre-lhes garantir, na prática, os direitos e as liberdades estipulados na Constituição. Sobretudo, cumpre-lhes proteger a vida e a estabilidade das expectativas positivas relativamente à sociabilidade cooperativa e à vigência da legalidade e da justiça. A despeito de sua importância, essas instituições não foram alcançadas em profundidade pelo processo de transição democrática, nem se modernizaram, adaptando-se às exigências da complexa sociedade brasileira contemporânea. O modelo policial foi herdado da ditadura. Ele servia à defesa do Estado autoritário e era funcional ao contexto marcado pelo arbítrio. Não serve à
defesa da cidadania. A estrutura organizacional de ambas as polícias impede a gestão racional e a integração, tornando o controle impraticável e a avaliação, seguida por um monitoramento corretivo, inviável. Ineptas para identificar erros, as polícias condenam-se a repeti-los. Elas são rígidas onde teriam de ser plásticas, flexíveis e descentralizadas; e são frouxas e anárquicas, onde deveriam ser rigorosas. Cada uma delas, a PM e a Polícia Civil, são duas instituições: oficiais e não-oficiais; delegados e não-delegados. E nesse quadro, a PEC-300 é varrida do mapa no Congresso pelos governadores, que pagam aos policiais salários insuficientes, empurrando-os ao segundo emprego na segurança privada informal e ilegal. Uma das fontes da degradação institucional das polícias é o que denomino de “gato orçamentário”, esse casamento perverso entre o Estado e a ilegalidade: para evitar o colapso do orçamento público na área de segurança, as autoridades toleram o bico dos policiais em segurança privada. Ao fazê-lo, deixam de fiscalizar dinâmicas benignas (em termos, pois sempre há graves problemas daí decorrentes), nas quais policiais honestos apenas buscam sobreviver dignamente, apesar da ilegalidade de seu segundo emprego, mas também dinâmicas malignas: aquelas em que policiais corruptos provocam a insegurança para vender segurança; unem-se como pistoleiros a soldo em grupos de extermínio; e, no limite, organizam-se como máfias ou milícias, dominando pelo terror populações e territórios. Ou se resolve esse gargalo (pagando o suficiente e fiscalizando a segurança privada /banindo a informal e ilegal; ou legalizando e disciplinando, e fiscalizando o bico), ou não faz sentido buscar aprimorar as polícias. O Jornal Nacional definiu o caos no Rio de Janeiro, salpicado de cenas de guerra e morte, pânico e desespero, como um dia histórico de vitória: o dia em que as polícias ocuparam a Vila Cruzeiro. Ou eu sofri um súbito apagão mental e me tornei um idiota contumaz e incorrigível ou os editores do JN sentiram-se autorizados a tratar milhões de telespectadores como contumazes e incorrigíveis idiotas. Ou se começa a falar sério e levar a sério a tragédia da insegurança pública no Brasil, ou será pelo menos mais digno furtar-se a fazer coro à farsa.
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