Revista laboratório • Curso de Jornalismo Ano 3 • Número 5 • Agosto de 2011 Belo Horizonte • Distribuição gratuita
Faculdade de Ciências Humanas, Sociais e da Saúde
Foto: Franco Serrano
o mundo assiste, de quatro, o avanço no consumo de drogas - à frente o crack - com seu poder de destruição
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Seu sonho sempre foi estudar em uma universidade completa? A Universidade FUMEC integra ensino, pesquisa e extensão.
GRADUAÇÃO
Faculdade de Ciências Humanas, Sociais e da Saúde #JPNFEJDJOB Ċ %JSFJUP Ċ &EVDB¤ P 'ªTJDB CBDIBSFMBEP Ċ &EVDB¤ P 'ªTJDB MJDFODJBUVSB NPEBMJEBEF B EJTU ODJB Ċ &OGFSNBHFN Ċ 'JTJPUFSBQJB Ċ +PSOBMJTNP Ċ 1FEBHPHJB Ċ 1TJDPMPHJB Ċ 1VCMJDJEBEF F 1SPQBHBOEB Ċ 5FSBQJB 0DVQBDJPOBM
Rua Cobre nº 200 - Cruzeiro / www.fumec.br
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Índice 04
Destaque Ponto & Vírgula
05
Farpas & Confetes
06
Fumec: janela acadêmica
07
Frente & Verso
08 10
Reprise: pornografia política Modelo: profissão perigo
14
Torcidas organizadas
20
População de rua
26
Mazelas da sociedade contemporânea
30
Crack e tragédias
36
O consumismo
40 46
Psicopatas: risco iminente Reprise: a sordidez humana
Expediente Universidade Fumec/FCH
Presidente da Fund. Mineira de Ed. e Cultura Prof. Tiago Fantini Magalhães Reitor da Fumec Prof. Antônio Tomé Loures Diretora Geral Profª. Thaís Estevanato Diretor de Ensino Prof. João Batista de M. Filho Diretor Administrativo-financeiro Prof. Antônio Marcos Nohmi Coordenador do curso de Jornalismo Prof. Ismar Madeira
Ponto & Vírgula Editor Geral Prof. Rogério Bastos - SJPMG/2375 Editor de Fotografia Franco Serrano (5ºG) Produção Gráfica Victor Duarte (5º G) Apoio Técnico Luis Filipe Andrade
Caro leitor
Q
uisera a Ponto & Vírgula que os ideais da igualdade, fraternidade e liberdade, paradigmas que tanto embalaram o sonho da Revolução Francesa, fossem verdades palpáveis e acessíveis a todos nós, mortais comuns. Mas, não são: a realidade impiedosa que nos insulta, agride e fere não é outra coisa senão o retrato 3x4 da criação humana. A propósito, vale a pena ler o livro “ A sociedade da decepção” (Ed. Manole), o mais recente sucesso do sociólogo francês Gilles Lipovetski. Sendo assim, não nos resta outra alternativa, senão a de pautar esta realidade e produzir entrevistas que possam – a julgar pela qualidade dos assuntos e dos entrevistados-, trazer aos nossos leitores conhecimento especializado e alguma luz no final do túnel. O crack e suas repercussões, por mais reincidentes que sejam sua divulgação na mídia, continuam ocupando o cenário epidêmico das tragédias brasileiras. Estatísticas recentes mostram que 70% dos crimes ocorridos no país têm, nesta droga, sua origem. E, como se não bastasse, mais recentemente, surgiu o oxi, droga que consiste na mistura de resíduos da cocaína, água de bateria e querosene, com uma ação devastadora muito maior e mais rápida que o crack. Especialistas já confirmam que o seu consumo frequente pode acarretar a morte dos usuários em apenas um ano. Daí, a entrevista com a psicóloga Heliana Fonseca Lopes V. Sales, cujo trabalho na Associação Brasileira Comunitária para Prevenção do Abuso de Drogas (Abraço) tem se destacado pelos resultados alcançados. Um paradoxo urbano: quanto mais cresce a concentrada economia brasileira, mais cresce a população de rua. Vivendo sob marquises, em praças públicas, ou sob viadutos, ela compõem a estética do caos social das capitais brasileiras. Só em Belo Horizonte, 1,2 mil (dados de 2005) desses moradores estão espalhados pelas ruas centrais da cidade e em alguns bairros. É bem provável que o número hoje se aproxime dos 2.000. A presidente nacional da Pastoral de Rua, Cristina Bove faz um raio X completo desse problema, que, há décadas, cresce e dasafia o poder público em sua já conhecida leniência no trato com as questões sociais. A violência apaixonada das torcidas organizadas, que tanto macula o futebol e afasta os torcedores, é outro assunto que a psicóloga Márcia Batista dos Santos, direto de Fortaleza, capital cearense, aborda com a propriedade de quem conhece o fenômeno nas suas entranhas. O certo, é que essa manifestação coletiva de amor ao clube o ódio aos adversários tem transformado os estádios de futebol e seus arredores em verdadeiras praças de guerra. Psicopatas: risco eminente, que tanto têm desafiado a medicina, é o tema da entrevista concedida por ninguém menos que o psiquiatra forense, Paulo Roberto Repsold que, em tom de alerta, adverte: os portadores desta patologia estão cada vez mais próximos de nós. A psicanalista Maria Goretti Ferreira brinda aos nossos leitores com uma análise completa sobre o tema Profissão modelo: as aparências enganam. Como o consumismo e suas conseqüências são a razão de ser do capitalismo, fomos ouvir o psicanalista Stélio Lage. Completa o leque das sete entrevistas, o tema a decadência humana na sociedade contemporânea, que o filósofo e professor da Fumec, Leônidas D. Ferreira discorre com precisão e bom humor.
Boa leitura.
As entrevistas e os artigos aqui publicados não expressam, necessariamente, a opinião da Ponto & Vírgula.
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Destaque Ponto & Vírgula
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Risível!
empedernida Academia Brasileira de Letras (ABL), que durante seus 120 anos de existência abriga a fina flor (?) dos escritores, brasileiros, vivos ou in memorian, e nunca se curvou diante das críticas recebidas, fez de uma das tardes de abril deste ano, um especial evento, incluindo um lauto almoço, para homenagear três personalidades tão distantes entre si quanto a cruz e o diabo: o ex-escritor e flamenguista paraibano José Lins do Rego (autor de “O menino do engenho” e “Fogo Morto”, pelos seus 110 anos de nascimento e, pasmem!, o centroavante Ronaldinho Gaúcho e o técnico Vanderlei Luxemburgo, provavelmente, pelo conjunto e qualidade de suas obras literárias. A ABL, através de seu presidente, Marcos Vilaça, recebeu a camisa 10 do flamengo com o nome do escritor, e retribuiu ao atleta e técnico com a “Medalha Machado de Assis”, a maior honraria da entidade. Ostentando o título de doutor e de posse da medalha, o craque agradeceu a honraria. Para completar o brilho do inusitado evento, o jornalista Jamir Júnior, do globoesporte.com, saiu com esta pérola de comentário: “cercada de quadros de escritores imortalizados por suas obras, Ronaldinho aprendeu uma pouco mais sobre o que é letra do lado de fora dos gramados”.
http:/globoesporte.com
Cada vez melhor
U
Sérgio Lucarelli
ma dose extra de esforço, uma pitada de talento e muito interesse: estão aí os ingredientes que fizeram com que esta edição da Ponto & Vírgula mantivesse a qualidade de sempre. Os louros, como de costume, ficam por conta dos alunos (foto ao lado). Da esq. para a dir.: Emílio Fonseca e Letícia Moreira (8º G de jornalismo); Augusto Duarte (8º G de psicologia); Franco Serrano e Victor Duarte (5º G de jornalismo). Abaixo, Rhiza Castro (3º G de jornalismo); Gabriela Fernandes (8º G de jornalismo); Luís Filipe Andrade (apoio técnico) e Victor Mello (7º G de jornalismo).
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Farpas & Confetes
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http://inrecife.files.wordpress.com
http://pipocamoderna.mtv.uol.com.br
“É possível que Marcelo Camelo seja conhecido como um dos artistas mais românticos do Brasil. Mas não no sentido tradicional da música. As composições do carioca, tanto ao lado do Los Hermanos como na carreira solo, passeiam por impressões sentimentais variadas e, às vezes, abstrata”, do jornalista Paulo Terron, na revista Rolling Stones, de 20 de abril de 2011.
■ “Acho muito ousada a trajetória que
Gilberto e Ricardo criaram para Norma”, da atriz Glória Pires sobre sua personagem na novela Insensato Coração, na Revista TV, do jornal O Estado de São Paulo, de 30 de abril de 2011.
A atriz Glória Pires
http://indiatalkies.com
O cantor Marcelo Camelo
■ “O ditador da Coréia do Norte, Kim Jong-II,
é uma figurinha ridícula, que usa sapatos com salto plataforma para compensar a baixa estatura e um topete ouriçado no estilo Elvis Presley”, dos jornalistas Tomaz Favaro e Duda Teixeira, na revista Veja, de junho de 2009.
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“Não quero ver meus filhos passeando em um shopping e vendo dois homens se beijando”, do deputado Vanderlei Miranda (PMDB-MG), a propósito do kit antihomofobia, do governo federal, no jornal O Tempo, de abril de 2011.
■ “Agora, coitado mesmo uma
http://noticias.terra.com.br
Kim Jong-II
ova. Coitados de tantas jovens trucidadas bárbara e sadicamente; coitados das mães e dos pais, que jamais se recuperarão do golpe recebido. Coitados de todos nós”, do escritor João Ubaldo Ribeiro, no jornal o Globo, de abril de 2011.
“Canto para esquecer a grande confusão das coisas simples. Não sei de que material seco são feitas as perdas”, da poeta Bruna Beber. 5 Ponto & Vírgula 05.indd 5
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Fumec wJanela Acadêmica
Ana Flávia Belloni
Novo coordenador O conhecido e respeitado jornalista Ismar Madeira, há 15 anos repórter da Rede Globo de Televisão, assumiu a coordenação do curso de jornalismo da Fumec/FCH, em substituição ao professor Sérgio Arreguy, que se dedicará, exclusivamente, à gestão do curso de publicidade/propaganda. Madeira confirmou que não medirá esforços para reforçar e avançar nas possibilidades que o curso oferece, não só na produção de conhecimento como em sua parceria com o mercado de trabalho. “Além de uma excelente infraestrutura tecnológica, via laboratórios e produtos institucionais, temos corpo docente qualificado e interessado, condições fundamentais para oferecer o melhor aos nossos alunos e legitimar o curso como uma referência”, esclareceu o jornalista. ismar madeira
Jadilson/Fumec
Aula inaugural
A psicóloga ELIZABETH LEITãO, o reitor da Fumec, prof. ANTônIO TOMé LOURES, o ex-ministro patrus ananias, e a coordenadora do curso de psicologia, professora carmem Schffer
O Teatro Phoenix recebeu centenas de alunos, professores e convidados, que participaram da aula inaugural dos cursos de psicologia e pedagogia da Fumec/FCH. A psicóloga Elizabeth Eugert de Almeida Leitão ministrou a palestra “As contribuições e atuações da psicologia nas políticas sociais”. O ex-ministro do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, Patrus Ananias, abordou o tema “Políticas sociais no Brasil, empregabilidade e projeto de vida do profissional de psicologia”. Esse evento acontece tradicionalmente nas referidas graduações, como forma de boas-vindas aos nossos alunos e veteranos e incentivo à reflexão de assuntos atuais de grande importância para a formação das respectivas áreas. Os trabalhos foram abertos pelo reitor da Universidade Fumec, professor Antônio Tomé Loures. (Transcrito do Informativo Universidade Fumec)
Premiação ABMS
A reportagem “Sábado Solidário”, produzida pelo laboratório de TV do curso de Jornalismo da Universidade Fumec, ganhou o primeiro lugar no Prêmio Sílvio Tendler de Curtas de Responsabilidade Social - categoria vídeo reportagem - promovido pela Associação Brasileira de Mantenedoras do Ensino Superior (Abmes). A matéria abordou a participação e atuação da instituição no “ Dia da Responsabilidade Social”, realizado no dia 25 de setembro de 2010, no Parque Municipal, em Belo Horizonte. A produção, roteiro e finalização foram assinados pelo professor Alexandre Salum , a reportagem e edição de texto pela aluna Cíntia Dabés Espinha e as filmagens e edição de imagens, pelos técnicos do laboratório, Armando Alvarenga e Wermerson Luiz Godói. O prêmio foi entregue no dia 31 de maio, em Brasília. “Nada seria possível sem o comprometimento dos profissionais, monitores e da aluna, sem a estrutura disponibilizada pela universidade e viabilizada através do então coordenador de Comunicação Social, O jornalista e professor Alexandre Sallum, entre o reitor da Fumec (à esq.), prof. ANTONIO T. LOURES e o diretor da ABMES, JANGUIÊ Sérgio Arreguy”, afirmou Alexandre Salum. DINIZ
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BURCA
Proibida na França
N
economista e prof. do curso de Jornalismo da Fumec/FcH
socióloga e profª. do curso de Jornalismo da Fumec/FcH
MAriA HelenA P. BArBOsA
o livro “Para compreender o Islamismo”, de Asyyed Abdul Mawdudi, página 161, se lê: “ordenase que as vestes corretas devem sempre ser usadas pelo homem e pela mulher”. Através dessa diretiva, o Islamismo pretende cultivar, nos seus seguidores, um profundo sentido de modéstia e pureza, suprimindo todas as formas e manifestações de falta de pudor e desvio moral. O véu faz parte dos valores culturais, morais e espirituais de uma religião universal. A França possui 5 milhões de muçulmanos. O Islã é, pelo número de seguidores, a segunda maior religião do país. Perguntase: qual o real motivo que levou o governo francês a proibir o uso do véu islâmico pelas mulheres muçulmanas, contrariando as disposições contidas na Declaração Universal dos Direitos Humanos? Para o presidente francês, o véu encerra as mulheres e fere os princípios da igualdade e secularidade. Mas, e a liberdade individual? E o direito de escolha? É correto estigmatizar os seguidores de uma religião que estão agindo de acordo com sua consciência e com os preceitos do Alcorão? Não se esqueçam que a adoção do véu, como forma de afirmação feminina, também, tem ocorrido em outros países como a Turquia e mesmo na Inglaterra. Além do mais, a mulher muçulmana enfeita-se para um homem, seu marido; a mulher ocidental enfeita-se para vários homens. A proibição do uso véu, de acordo com analistas, tem uma conotação política: conquistar o eleitorado conservador. Apesar da revolta da população muçulmana residente na França e das críticas internacionais, a Lei Sarkozy agradou aos radicais do partido de extrema direita, Frente Nacional (FN).
A favor Pedro Cunha
Pedro Cunha
Contra
Frente & Verso
Júlia Caescaes - 7º H de Publicidadde
A
FernAndO nOGUeirA
o limitar a liberdade de expressão, o governo francês age como referência ao interesse comum no direito à igualdade entre homens e mulheres, ou seja: o governo age baseado em um princípio superior , pois o distúrbio dessa condição é um perigo para a liberdade de todos ao pressupor a existência de cidadãos superiores e inferiores. O uso da burca não é opção, mas opressão. Convenhamos: que reação despertaria um homem que andasse nas ruas públicas conduzindo uma mulher com uma coleira no pescoço? A repulsa a esta atitude diminuiria caso o casal afirmasse ser aquele comportamento compatível com suas convicções morais e religiosas? Creio que não. No entanto, sob o véu da ignorância e sectarismo cultural, como os homens as interpretam, reduzem, significativamente, as liberdades individuais e fundamentais, o que é intolerável em um Estado de Direito. Somos todos iguais, e as práticas e crenças fundamentais, que colocam a mulher como um ser de segunda categoria, devem ser cerceadas e combatidas, especificamente, nas sociedades que já conquistaram e consolidaram o direito de liberdade, os direitos políticos e os direitos sociais. Parece-me razoável que a liberdade religiosa possa ser limitada em nome de uma liberdade superior: a de ser uma pessoa igual e não inferior à outra. Assim, a burca como afirmou Sarkozy, “reduz a mulher à servidão e ameaça sua dignidade”, representando uma violação ao direito fundamental à igualdade entre os gêneros.
“Somos a república da perversão, cujo entretenimento é sair de madrugada espancando mendigos”, da psicanalista Inez Lemos. 7 Ponto & Vírgula 05.indd 7
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Reprise Artigo
http://bsbbrasil.com.br
Pornografia Política*
Denis Lerrer Rosenfield, filósofo
A
composição do novo governo deu mostras de sexo explícito, com os diferentes partidos da base aliada numa disputa desenfreada por cargos políticos. Nenhum pudor ou vergonha presidiu a ação desses partidos, como se tal busca desenfreada pelo poder não se devesse mascarar. O “prazer” que cada um almeja se mostrou da forma mais crua, mais nua, não se fazendo necessária uma “mise-en-scène”, uma encenação. Formas simbólicas de encenação da política, como apresentação de programas, justificativas do que é pretendido fazer com as novas posições de poder e ideias orientadoras da ação nem se fizeram presentes. Foi o deserto da sedução. A pornografia distingue-se do erotismo. Ela se caracteriza pela crueza, pela apropriação do corpo do outro, pela ausência de qualquer encenação. Desaparecem quaisquer formas de simbolismo, de aproximação gradativa, de sedução. Os corpos já aparecem nus, em ato. Não há propriamente jogo, salvo o jogo da submissão, da busca imediata do prazer, do objetivo a ser alcançado. Ninguém aparenta algo diferente do que é, assim, apresentado. A política brasileira torna-
se, nessa perspectiva, cada vez mais “pornográfica”, pois os partidos partem imediatamente para a satisfação dos seus desejos mais imediatos, particulares, procurando mostrar que o poder é somente um instrumento de sua satisfação. Noções como o bem coletivo, validade de ações numa ótica universal e ideias do que seria feito com o poder conquistado são simplesmente descartados. Cada partido apresenta suas posições de “força”, número de deputados, senadores e governadores, como se aí apenas se justificasse a sua ação. Alguns, de forma mais elaborada, poderiam dizer que se trata da própria natureza do “presidencialismo” brasileiro. Este necessitaria desse tipo de aliança, de coalizão, como se outras formas de negociação não fossem possíveis, como, por exemplo, acertos com as oposições em torno de alguns projetos e ideias essenciais para a Nação, independentes de qualquer componente partidário. Ideias de interesse nacional são, por definição, suprapartidárias. Em vez disso, temos a “orgia” das alianças em torno do poder. O erotismo, por sua vez, encena a aproximação com o outro, joga com formas s i m b ó l i c a s, os corpos não aparecendo nus. Há todo um processo de “despirse”, de acariciar-se, de encenações que devem ser feitas, podendo estas concretizarem-se ou não pela “conquista”. Os dizeres, as formas de expressão das frases e as palavras utilizadas têm todo um papel essencial, porque delas depende o tipo de aproximação, reservando ao outro o papel de responder com um sim ou um não. Não há imposição. A crueza da abordagem, aqui, se traduziria por seu fracasso. O simbólico preenche uma
função essencial no erotismo, sendo um componente central da ação. Algo análogo se pode dizer da política não pornográfica. Ela se traduziria pela utilização de formas simbólicas, por dizeres implícitos que esconderiam, num primeiro momento, a intenção declarada. A encenação da aproximação é aqui o principal, pois ela se faz sob a forma de discursos e ideias que comprometem os agentes. Há uma “mise-en-scène”, uma encenação do coletivo, do universal, do que é o bem de todos, criando parâmetros que devem ser seguidos. A natureza da busca do poder muda, pois, embora ele seja o objetivo, se coloca a questão do que fazer com ele. Uma vez de posse desse instrumento, como justificar o seu uso? Quero dizer com isso que a encenação “erótica” da luta pelo poder obriga os contendores a apresentarem ao público, no caso, os cidadãos, as ideias que dizem defender, as ideias que justificariam suas ações. Estabelecem-se, desta maneira, formas de cobrança pública, obrigando os parceiros a prestar contas de suas ações. Se isso não ocorre, vale somente a conquista crua e a distribuição de privilégios e favores aos que galgaram essas posições. Os que não participam da pornografia política estão fora. Os “vitoriosos” vão usufruir o poder exclusivamente para si. Velhas oligarquias alternam-se com as novas. O jeito lulista de governar terminou produzindo uma afinidade entre oligarquias alicerçadas na tradição patrimonialista e clientelística brasileira e oligarquias “modernas”, disputando entre si espaço num governo de “unidade”, capaz de preservar os interesses de ambas. “Peemedebistas” maranhenses tornam-se companheiros de “socialistas”
Os escândalos dos últimos anos, os mensalões, os sanguessugas, as cuecas e os aloprados não foram “peemedebistas”, atingindo o PT e outros partidos.
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cearenses, cada qual apresentando suas “demandas” por favores e privilégios. O aparentemente novo nada mais é do que a reapresentação de uma velha forma de fazer política. O PMDB tem sido apresentado como o partido com maior “voracidade”, uma amostra da “pornografia política” vigente entre nós. Um olhar mais detalhado talvez nos permitisse colocar uma outra questão. Em que esse partido se distingue dos demais? Os escândalos dos últimos anos, os mensalões, os sanguessugas, as cuecas e os aloprados não foram “peemedebistas”,
atingindo o PT e outros partidos. A própria palavra mensalão começa também a ser utilizada para caracterizar escândalos de partidos oposicionistas. Ou seja, a “voracidade” tem uma conotação pluripartidária, um nome que serve para distintas agremiações, da situação e da oposição, pondo em cena uma forma de fazer política carente de valores e ideias, carente de qualquer compromisso com o bem coletivo. É bem verdade que o PMDB fez, particularmente, por merecer. O episódio de nomeação do deputado Pedro Novais, do Maranhão, para o Ministé-
rio do Turismo veio acompanhado da descoberta de que verbas de representação, exclusivas da atividade parlamentar, foram utilizadas para gastos num motel. Sua atividade “parlamentar” terminou por produzir indignação pública, porém uma reflexão mais aguçada mostra que sua orgia - vários casais teriam sido convidados para a festividade - se enquadra perfeitamente ao quadro geral da pornografia política. Na verdade, ela faz sentido. (*)Transcrito do jornal O Globo, de 03/01/2011.
Arquivo institucional
“O Serviço de Psicologia, local onde são oferecidos aos estudantes condições para o aprendizado das práticas e das técnicas de intervenções psicossociais, ultrapassa suas funções previstas nas diretrizes curriculares, ao buscar realizar e pesquisar modelos de intervenção adequados à realidade brasileira. Deste modo contribui para a superação do atendimento psicoterapêutico, mantendo as exigências determinadas pelas diversas epistemes do campo psicologico”
“Caminho em direção à síntese, não à complexidade, a musica mineira é a que mais respeita o silêncio”, do músico Vander Lee. 9 Ponto & Vírgula 05.indd 9
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Entrevista Maria Goretti Ferreira
[ reféns da aparência]
“Por que somos
” consumidas? A ditadura da beleza na sociedade contemporânea é quase um ofício. A partir daí, duas perguntas que não encontram respostas: o que fazer quando as próprias modelos não percebem o jogo cruel que está por detrás das passarelas? E se percebem, o que as impede de romper com essas amarras? Franco Serrano
moral acima de tudo, vale a capacidade de transformar, em dinheiro e sob o critério de exibicionismo, cada passo, cada close, cada fala. Para falar sobre este cenário e, mais do que tudo, sobre o que ele esconde, a Ponto & Vírgula ouviu a psicóloga e psicanalista Maria Goretti Ferreira, o que já pressupõe garantia de qualidade
Por: Gabriela Fernandes 8º G - Jornalismo
MAriA GOretti FerreirA, psicanalista
C
omo sempre, elas não descem do salto alto. Seja para os desfiles nas passarelas ou no circo das vaidades, este símbolo fálico, de fama e riqueza não é outra coisa senão o reflexo imediato da ditadura da beleza. Neste mundo de fantasias - que se dane a saúde mental e física de suas personagens - tudo vale a pena quando a alma é pequena: desde se projetar na mega Gisele Bundechen ou sonhar com os B.B.B`s da vida. A profusão de clínicas de estética, academias de ginástica, consultórios médicos, psicanalistas, agências de publicidade e mídias especializadas que o digam. Ser bonita, muito bonita e eternamente bonita é o que conta no mundo do espetáculo, ainda que a custo de muita decepção, anorexia e bulimia. Nessa “ brincadeira” séria de atribuir à estética e a seus valores agregados, um critério
da entrevista. Ponto & Vírgula - O culto ilimitado à beleza – e a profissão de modelos é o retrato ampliado desta patologia – tem muito a ver com a chamada civilização da imagem, ou seja: o que vende e o que alimenta a vaidade doentia são as aparências. O filósofo francês Gilles Lipovetski classifica este cenário próprio da sociedade da decepção. A senhora concorda? Maria Goretti - Na atualidade, nos deparamos com várias formas de “ser”, o que significa uma certa maneira de sentir, pensar e agir, reflexo da estrutura social e cultural contemporânea. Como a singularidade de cada sujeito e a cultura onde ele se insere estão visceralmente amalgamados, podemos afirmar que há, hoje em dia uma forma própria de adoecer –com manifestações variadas – ou seja, uma modalidade de sofrimento psíquico característico da pós-modernidade (ou da hipermodernidade, como alguns preferem ),em virtude do
que chamamos de falha na simbolização, ou de fragilidade do símbolo, com a predominância do sentimento de vazio, tédio e desamparo. Falamos, então, de uma desnutrição simbólica, onde falta à criança (e depois ao adulto), símbolos mediante os quais ela vai “ler” o mundo, conferindo-lhes sentido. Dependendo de como cada um “lê” e interpreta o mundo e a si mesmo e de como se organiza ou se desorganiza diante disso, resultará o seu sofrimento para o qual o sujeito buscará alívio. Despossuído de si mesmo e alijado do seu ser, só lhe resta aferrar-se ao exterior, à aparência, numa procura vã e ilusória de prazer. “Se não sou, preciso pelo menos aparentar que sou ou quem sou”! E aí temos a primazia da imagem, do virtual, tamponando o mal estar e a angústia. P & V - A indústria da beleza, que hoje só perde em faturamento para a indústria bélica e pelo tráfico de drogas, tem na publicidade e nas cirurgias plásticas suas bases de sustentação. Como a senhora interpreta a ascensão e o fortalecimento deste jogo de interesses com cartas marcadas? M.G.F - Uma das questões mais em voga da sociedade contemporânea diz respeito à relação com o corpo, haja vista, como você mencionou, a proliferação das cirurgias plásticas, tanto em número quanto na sofisticação dos procedimentos, graças aos recursos tecnocientíficos, ao aumento das academias e dos institutos de beleza, onde o corpo deixa de ser a sede do sentir e da iden-
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tidade, para ser adornado, turbinado, siliconado, numa busca frenética pelo ideal de perfeição. Busca tirânica, que jamais será alcançada atendendo única e exclusivamente aos interesses do mercado, pois haverá sempre um espelho mordaz e sádico a reprovar, a fazer com que todo(a)s se sintam imperfeitos e portanto cada vez mais infelizes – os consumidores ideais -, que desesperadamente à procura de uma identidade e de um lugar no mundo, submeter-se-ão às falsas e bem apregoadas promessas.
meio sociocultural por não oferecer condições favoráveis e adequadas ao mesmo. Digamos que a cultura se furta a se posicionar como uma matriz hospitaleira – de aconchego, suporte e contenção- jogando-o num nicho de individualismo, cientificismo e objeto, presa fácil da mídia e da publicidade. As luzes do espetáculo dão-lhe uma falsa visibilidade, no jogo do ver e ser visto, onde a duração é instantânea, diante de uma platéia também anônima, sedenta por novidades a cada segundo, que, por sua vez, insiste em calar este vazio que irrompe das entranhas. Ficamos com a pergunta: de que se alimenta o sujeito hoje? Quais são os seus nutrientes?
júbilo, uma grande vitória alcançada.... em direção à morte.
P & V - Do ponto de vista da psicanálise, o feio e o belo caminham numa via de mão única? Por que? M.G.F - Uma das grandes angústias do ser humano, motivo de sofrimento psíquico e dor, é a sua dificuldade em lidar com os paradoxos. Além de confrontálos, há que sustentá-los pela vida afora, sob a égide do inconsciente, vivemos segundo ora a lógica da tensão/ alívio, ora sob a lógica do prazer/desprazer, onde P & V - Sua amiga de profissão, Inez o belo e o feio são simplesmente as duas Lemos, em seu livro “Pedagogia do faces da mesma moeda, belo para um, consumo: família, mídia e educação” feio para o outro, belo ontem, feio hoje e nos informa que no Brasil existem 54 assim sucessivamente. Falaremos daqui mil farmácias para 2 mil lia pouco sobre a anorética, que vrarias, e conclui de forma vive o seu paradoxo de buscar lacônica: “uma nação se faz “O corpo deixa de ser a sede do sentir e da a vida através da morte, que com livros e afeto. E pouco reduz o seu peso apoiada pela com pílulas e bisturis”. A se- identidade, para ser adornado, turbinado, cultura, que ao recusar o alinhora vê possibilidade de siliconado, numa busca frenética pelo ideal da mento diz se sentir muito bem reverter este quadro? aproximando-se mais da morperfeição ” M.G.F - Acho difícil, mas te do que da vida, que busca não podemos perder as espeaprovação através de seu corpo ranças. Penso que o sujeito, esquálido e aterrorizante, em imerso em suas inquietações, suma, que na ausência de vida continuará em busca de inscrições simP & V - Segundo a jornalista Ana simbólica, usa este mesmo corpo deforbólicas que o situem frente a si mesmo, Sánchez de la Nieta Hernández, au- mado como via de expressão. A anorétiao outro , à procura de sentido e prazer tora do livro “A moda entre a ética e ca então, seria uma das representantes para a sua existência. Para isto, contará a estética” o look anoréxico, cada vez das grandes forças pulsionais contradicom os recursos que a cultura lhe dispo- mais, vitima os modelos, as jovens em tórias que mobilizam o nosso ser. rá: leia–se “cultura” desde a cultura de sua grande maioria, com transtornos uma dupla (mãe-bebê, por exemplo), de todos os níveis. A fé cega no corpo P & V - A profissão de modelo não de uma família, de um grupo, até a de belo, mesmo correndo riscos, é uma é feita somente do glamour que o uma civilização. Neste processo, consi- forma de fetichizar o mundo? grande público acredita. Não é feita, dero imprescindível a não omissão dos M.G.F - Sim, podemos fazer esta lei- também, só pelas facilidades que alprofissionais que possam construir, na tura, na medida em que o corpo anoré- gumas mídias retratam. O que leva fronteira com outros saberes e práti- tico se transforma em objeto com valor uma carreira como essa, onde o bom cas afins, lugar onde se recupere ou se de mercadoria a ser exibido, coisificado, e o belo são características fortes da construa a capacidade de perceber, de jamais para ser tocado e amado. Pois ao profissão, ser tão árdua por trás das sentir, de agir ou reagir. Que ao sujeito contrário do que se pensa, a anorética passarelas? lhe seja facultado e facilitado meios de não se enamora da própria imagem, M.G.F - Toda profissão exige um reparação para o seu aparelho psíquico mas a renega a cada vez que se olha preço, os chamados ossos do ofício, desbotado, mutilado, tornando-o autor no espelho, pois este jamais a aprovará condição inerente ao ser humano. No da sua palavra. diante do imperativo do ideal de perfei- caso da modelo ,confere-se um excesção. Como no dizer de Guimarães Rosa, so de glamour à atividade, como que P & V - A senhora admite que as em sua sabedoria : ”Sim, são para se ter ocupando um lugar no Olimpo repreprofissões que cultuam o belo é resul- medo, os espelhos”. Do culto ao corpo, sentando um ideal estético a ser idolatado de uma vida contemporânea que corre-se o risco de ter o corpo oculto, trado , copiado e imposto. O que está se forja numa imensa acumulação de inerte, diante dos cuidados com a so- à venda, a mercadoria ou o corpo que espetáculos? brevivência que a anorética se exime, a exibe? Nesta condição, se a modelo M.G.F - Sim, se levarmos em conta recusando a sua condição humana de se posiciona como aquela que angaque o sujeito, no processo de sua cons- ser finito, mortal..Sabe-se que o ema- ria toda a admiração do outro e cuja tituição, não encontra ressonância no grecimento traz a ela uma sensação de perfeição é inquestionável, corre-se o
“Todo grande contador de histórias não passa de um belo impostor”, do escritor André Sant’Anna. 11 Ponto & Vírgula 05.indd 11
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risco de ver o seu edifício interno desmoronar-se diante desta busca frenética e incansável. O desejo de reconhecimento é humano, desumano é a sua procura incondicional. P & V - É sabido que as modelos sofrem um assédio moral das agências e dos fashionistas, defensores da magreza como critério absoluto. Em que medida eles podem ser responsabilizados criminalmente? M.G.F - Bom, talvez um jurista possa lhe responder melhor. Mas não se pode responsabilizar só as agências e os ditadores da magreza, pois se há uma imposição há também uma conivência, uma cumplicidade de quem aceita. É de se esperar que o sujeito se comprometa e responda pelo que faz, desde que não submetido à coerção. Para que isto ocorra, é imprescindível que as escolhas sejam permeadas pela pulsão de vida, onde se transita da apatia para o perceber/ sentir/pensar, condições propícias a que o sujeito se permita e se habilite a ter atitudes cuidadosas com relação a si mesmo e ao próprio corpo. P & V - O excesso de magreza gera distúrbios psíquicos e orgânicos, que, por sua vez, geram uma aparência doentia e até a morte, como sempre, em nome de se sentir feliz, bonita e realizada. Que leitura a senhora faz desta profunda contradição? M.G.F - O corpo da anorética é um corpo desabitado de emoção. Não faltam só calorias, falta calor na sua vida pulsional, o apelo é para se deixar morrer, na medida em que se nega a condição humana , de ser finito, mortal; a experiência de “não comer” corresponde à experiência de “não ser”, “não existir”. Por se tratar de um corpo destituído de sentido, destituído de inscrições simbólicas, a anorética busca na magreza o seu ideal de felicidade; na suposta perfeição estética –lugar reconhecido pela contemporaneidade como lugar privilegiado dos significantes simbólicos- ela vai se submeter a este imperativo categórico, tirânico, como uma senha a lhe garantir o seu pedido de reconhecimento e pertinência a esta cultura arbitrária e incongruente. Não sabe que assim impossibilita o acesso a sua posição de reconhecer-se como sujeito,ou seja, de instalar ou reinstalar
em seu corpo a sede do ser e do sentir. P & V - As más línguas dizem que pior do que a cabeça “fashion” das modelos é a cabeça dos pais destas. Que leitura a senhora faz desta cumplicidade? M.G.F - A mãe de “Miss” sempre foi famosa....Nos tempos atuais, é a mãe da modelo! Sabemos que os filhos são fruto dos ideais e valores dos pais, sejam estes quais forem, conscientes ou inconscientes. Na mais tenra idade, a criança “mama” estas representações pois é preciso se sentir amada , protegida e assegurada e deles –os pais- depende a sua sobrevivência, física e emocional.À medida que a criança vai se constituindo sujeito, isto é, na proporção em que sua subjetividade vai se alicerçando e ganhando autonomia, é de se esperar que o(a) filho(a) vá se despindo da roupagem que lhe foi emprestada pelos pais, para agora escolher a própria vestimenta: os seus valores estéticos, éticos e morais. Sabemos também que esta “desconstrução “/“construção” nunca será neutra e isenta dos significantes materno/paternos. Acontece então que muitas vezes a jovem é influenciada por estes referenciais, sem se dar conta, acabando por tentar realizar a fantasia ou expectativa dos pais como se fossem suas. P & V - As revistas femininas influenciam para que a busca pela “beleza ideal” seja o centro da vida de algumas mulheres? Até que ponto a mídia do entretenimento interfere na decisão de buscar ou não esse ideal? M.G.F - Em primeiro lugar, há o interesse deste tipo de mídia, pois quanto mais impuser, alardear e fizer da busca pela beleza ideal um dogma, maior será o lucro. Se a meta hoje em dia é a busca desenfreada pela felicidade, onde felicidade significa corresponder aos padrões estéticos propostos/impostos, em que a identidade é adquirida através da grife, nada mais promissor e rentável do que a venda de toda gama de produtos, produtos estes supostamente revestidos de poderes mágicos e miraculosos, capazes de restaurar e preencher as nossas carências, a nossa incompletude. Diante deste propósito que jamais será alcançado, mas com a (falsa) promessa reverberando a quatro cantos, o círculo se retroalimenta, ou seja, o produto será
mais uma vez buscado, mais um item vendido no grande supermercado em que se tornou o mundo. Não se pode demonizar só a mídia e a publicidade por este processo, pois ao sujeito cumpre a decisão e a escolha do que “comprar” e a que ou a quem se filiar, nestas vastas prateleiras da pós-modernidade. P & V - Como a senhora explica, historicamente, o fato das mulheres serem as maiores vítmas da ditadura da beleza? M.G.F - Há uma intrigante frase proferida por Freud, quando se perguntou: “ O que querem as mulheres?” Traduzindo para a contemporaneidade, poderíamos nos perguntar: “O que quer o mundo hoje das mulheres?” Assimilando o discurso da anorética, diríamos: “Por que somos consumidas?” Para a economia mercadológica, é conveniente que a mulher ocupe somente a posição de objeto, onde se vê à mercê do desejo deste outro que lhe explora, que lhe impõe e lhe promete reconhecimento se e somente se cumprir com as suas cláusulas espoliadoras. Enquanto a mulher não se apropriar e se adonar de si mesma criando inscrições e instâncias que lhe confiram sentido e prazer de viver, a despeito das nossas fragilidades e inconstâncias , não se tornará sujeito da própria história. Mas para isso é preciso que a mulher abra mão da condição de “mulher maravilha”, da condição de “superpoderosa” ou da posição vitimizada. É preciso que a incompletude seja vivida não como defeito a ser reparado ou preenchido, mas como uma condição estruturante e inerente à condição humana.. P & V - O ideal de magreza parece soar como um “passaporte” para alcançar o sucesso profissional, econômico e afetivo. É possível buscar, na linha do tempo, quando que essa ideia foi imposta à sociedade? M.G.F - Provavelmente, no final dos anos 70, princípio dos anos 80, quando as relações de mercado alçaram espaço preponderante ocupando o lugar das instituições, como a Igreja e o Estado, já fragilizados e desacreditados. Ser assim ou assado passou a ser cotado como objeto de desejo inestimável e referendado como senha para o exibicionismo, com a valorização da exterioridade, o culto ao próprio umbigo, onde o corpo
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já não mais pertence ao indivíduo, pois destituído de sentido, é somente para ser visto e admirado pelos outros, e por ele mesmo. Apesar de tão valorizado esteticamente, o corpo deixou de ser a sede do sentir, portanto, deixou de ser a sede do erotismo, do prazer. Como escultura a ser admirada, também deixa de ser a sede do ser, aquela sensação de que existimos, de que somos nós mesmos, em nome da celebrada perfeição anatômica.
Sem Pestanejar
P & V - Em cidades litorâneas, o culto ao “corpo perfeito” é maior do que nas cidades sem praia? Geralmente, o público na praia é desconhecido. Por que parece ser tão importante a aprovação de pessoas que sequer se conhecem? M.G.F - Lembro-me de um comentário de uma amiga que, com uma estética mais cheinha e roliça, falava do seu “sossego” enquanto morou por um tempo no exterior (num país muito frio) e do seu desconforto ao retornar ao Brasil, onde se achava fora dos padrões. Vê-se aí a força exercida pelos estereótipos de beleza próprios a uma determinada cultura, mesmo se desconhecendo de onde virão os olhares (recriminadores?). Tal qual na moda, quando o sujeito insiste em preservar e manter a sua singularidade não se somando à grande massa,
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ao grupo, ainda que o faça de maneira discreta e silenciosa, costuma despertar incômodo e desconfiança, simplesmente por denotar com a sua conduta ou postura que a maneira de ser do outro pode não ser a única e nem a melhor. P & V - É possível ajudar uma pessoa que tenha distúrbios alimentares ou problemas psicológicos com relação ao peso, se ela estiver convicta de que não precisa de ajuda? M.G.F - É muito difícil e até mesmo impossível ajudar quem não quer ajuda, pois um tratamento só terá frutos caso a pessoa se disponha a se comprometer com os seus sintomas e neles se implicar. No caso dos distúrbios alimentares, como se trata de uma intervenção pluridisciplinar envolvendo várias clínicas, muitas vezes o paciente cede a um ou outro atendimento, onde os profissionais tentam fazer um laço que o leve a aceitar e a prosseguir com o tratamento necessário. Há casos extremos de internação, quando a pessoa já está correndo risco de morte, em estado debilitado e na fronteira entre o viver e o deixar-se morrer. Com relação ao trabalho psicanalítico, a função do terapeuta consistiria em fazer advir a palavra onde ela faltou, ou seja, no lugar do vazio, do limbo, da inércia com que a pessoa se confronta, tornar possível que algo seja inscrito,
significado , ressignificado, inserindo-a no corpo social. P & V - A senhora acha que a vida mereceria melhores personagens do que esses que compõem o caricato e perverso mundo das passarelas? M.G.F - Nada contra as passarelas, mas a imposição dos ditadores da moda é mesmo perversa. Há seis meses, algo considerado “in”, hoje já pode ser “out”. Algo tido como de vanguarda e inovador, muitas vezes não passa de uma vaidade extrema com traços acentuados de intolerância e dogmatismo. Curiosamente, não basta às pessoas conviverem com seus gostos, urge também impô-los aos demais, numa necessidade imperiosa de se constituir um ideal acima de qualquer suspeita. Em contrapartida, o consumo faz o sujeito se apossar dos signos de status social, onde a identidade vai sendo adquirida através da grife, confundindose corpo e marca. Não se busca só o produto, mas a grife, símbolo que faz o seu portador se sentir num lugar privilegiado, pois ignora a sua singularidade, que o tornaria “dono” de suas escolhas. P & V - Que título a senhora daria para a sua entrevista? M.G.F - Reflexões sobre a Contemporaneidade.
Um filme: “Tampopo-Os Brutos também Comem Espaguete”, de Juzo Itami Um vexame: a dificuldade em dominar o mundo digital Um livro: escolher um só?! Isto é que é covardia...”As Brasas”, de Sándor Márai Uma decepção: ver o apagamento dos valores éticos Uma tristeza: o excesso de discurso e a ausência de ação Uma música: outra covardia...vamos lá: “Melodia Sentimental” (Villa-Lobos) Uma alegria: um café quente, forte e encorpado Um sonho não realizado: flanar pelas ruas de Belo Horizonte Um Ponto G: o ouvido Uma verdade: o alto preço pago pelas mulheres hoje em dia em nome da liberação feminina Uma mentira: os powerpoints que circulam por aí sobre a “feliz idade” (a velhice) Uma traição: trair o próprio desejo Quem você deixaria, para sempre, numa praia deserta? Os corruptos
“O dandismo é uma afetação da moda. Ao se fazer dândi, um homem torna-se um manequim engenhoso, mas um ser pensante, nunca!”, do escritor Honoré de Balzac. 13 Ponto & Vírgula 05.indd 13
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Entrevista Marcia Batista dos Santos
[ paixão, ódio e perversão]
Gangues
Uniformizadas Batalhas sangrentas. O futebol perde o brilho e o entretenimento, para se transformar numa catarse coletiva e insidiosa. Os torcedores de bem se afastam dos estádios
J
ovens consideram importante fazer parte de um grupo. Sentem orgulho ao deter responsabilidades, mesmo com tarefas das mais simples. Tratam as torcidas organizadas como uma família. Até ai tudo bem. Entretanto, nem tudo são flores. A violência entre as torcidas é uma realidade tão drástica, que não conseguimos mais varrer para debaixo do tapete. Em detrimento da beleza do futebol, esporte mais tradicional do Brasil, somos surpreendidos com a violência que o cerca. Aos clubes de futebol e às torcidas se junta a imprensa. A ela cabe o papel de contextualizar os fatos e conscientizar a população? Ou banalizar a violência e valer-se do sensacionalismo em busca de audiência? Para abordar este assunto, em toda a sua complexidade, a Ponto & Vírgula procurou e achou uma especialista: Márcia Batista dos Santos, especializada em psicopedagia, psicanalista e mestre em psicologia pela Universidade de Fortaleza (Unifor), na capital cearense. Recentemente, integrou- se a um grupo de pesquisa sobre as causas e os efeitos da violência entre as torcidas organizadas, à luz da psicologia, sociologia e filosofia. Portanto, fala quem pode e deve
Por: Emílio Fanseca 8º G - Jornalismo Ponto & Vírgula - A senhora concorda com a tese de que a violência, cada vez maior, protagonizada pelas torcidas organizadas, não passa de um reflexo da violência urbana impregnada
Arquivo pessoal
MáRcia batista dos santos, psicóloga e psicanalista
em cada esquina? Márcia Batista dos Santos - Penso que a violência que vem se alastrando no seio de nossa sociedade e, também, nas torcidas organizadas, é um dos desdobramentos de uma sociedade que tem enfraquecida o referencial de um grande Outro. Este termo nos é apresentado por Jacques Lacan – discípulo de Freud – e representa um lugar simbólico referente à lei, a linguagem, o inconsciente, ou ainda, Deus. É a partir deste referencial simbólico que o sujeito se constitui, segundo Lacan, através do processo de identificação. Então, quando esta referência se mostra esvaziada, sem consistência, temos como consequência um laço social fragilizado. Diante, portanto, de uma lei que se apresenta esfacelada, anômica, inevitavelmente os laços sociais estão ameaçados. O sujeito num estado de desamparo psíquico
parte para a lei do vale tudo. É cada um por si. A violência acaba sendo uma denúncia do declínio da lei, como também um grito de desespero de um sujeito em abandono. Outro desdobramento desta teia de relações é a multiplicidade de referência. O que anteriormente estava centralizado na figura do pai como referência constitutiva da subjetividade, na contemporaneidade, está deslocado para as diversas referências muitas vezes com apelos contraditórios deixando o sujeito em desamparo maior. O que presenciamos, portanto, são sujeitos que acabam adotando posições centradas no individualismo, posições muitas vezes radicais nas quais a violência se manifesta. P & V - Contra a ideia do jornalista esportivo Juca Kfouri, segundo a qual a solução para acabar com a vio-
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A violência das das torcidas organizadas já passou dos limites toleráveis. O que está em jogo é a paixão misturada ao ódio, imponderável
lência passa pela “proibição, terminantemente, do futebol com portões abertos, o professor de sociologia da Universidade de Taubaté (SP), Carlos Alberto Máximo Pimenta, acha que não são os pobres os culpados pela violência. “Os culpados pertencem ao lumpesinato, ou seja: são os explorados”. O que a senhora acha desta reflexão? M.B.S - Infelizmente vemos esta ideia comumente circular entre as pessoas, atribuindo as desordens ocasionadas pelas torcidas organizadas, às pessoas menos favorecidas economicamente, ou então, a “bandidos”, que se utilizam das torcidas para cometerem seus crimes. Contudo, na pesquisa que realizei em 2009 com jovens envolvidos com torcida organizada, não ficou comprovado que são os acima citados os responsáveis pela violência. A violência não está circunscrita a um tipo de torcedor específico. Em algumas situações começa uma briga e outros vão se envolvendo sem ao menos saber do que se trata. É como Freud chama atenção no seu texto “Psicologia das Massas e Análise do Eu”, em que destaca que as pessoas na multidão são levadas a cometer atos que provavelmente não fariam noutras circuns-
tâncias. Há, de certa forma, uma perda da identidade. Entre os entrevistados tivemos a oportunidade de conversar com pessoas não só de nível econômico mais favorável (empresário bem sucedido) como também de nível educacional superior. Estas credenciais não isentaram o dito torcedor a entrar em brigas, chegando à mesa de cirurgia devido aos comprometimentos com a mesma. Não vejo que o fechamento dos portões seja a saída e, sim, mais uma forma de marcar as distâncias socieconômicas de nosso povo em que nega o acesso de lazer, dentre outras coisas, aos menos favorecidos, como também, indiretamente os culpabiliza pelos atos de vandalismos que frequentemente ocorrem entre torcedores “ensandecidos”. P & V - A senhora considera que a violência dos torcedores passa pelo fato de que o amor e o ódio se confundem no universo da paixão e da união dos grupos? M.B.S - Gustave Le Bon afirma que um grupo é impulsivo, mutável e irritável. Os impulsos a que um grupo obedece, podem, de acordo com as circunstâncias, ser generosos ou crueis, heróicos ou covardes, mas são sempre tão impe-
riosos, que nenhum interesse pessoal, nem mesmo o da autopreservação, pode fazer-se sentir. Le Bon, ainda, aponta importante comparação para ajudar-nos a entender o indivíduo num grupo: ‘Além disso, pelo simples fato de fazer parte de um grupo organizado, um homem desce vários degraus na escada da civilização. Isolado, pode ser um indivíduo culto; numa multidão, é um bárbaro, ou seja, uma criatura que age pelo instinto. Possui a espontaneidade, a violência, a ferocidade e também o entusiasmo e o heroísmo dos seres primitivos. Mas, seguindo o pensamento freudiano, não podemos esquecer que a natureza das relações emocionais entre os humanos e o que caracteriza um grupo são os laços libidinais. Porém, isso não elimina os sentimentos de hostilidade ali presentes: as provas da psicanálise demonstram que quase toda relação emocional íntima entre duas pessoas que perdura por certo tempo — casamento, amizade, as relações entre pais e filhos — contém um sedimento de sentimentos de aversão e hostilidade, o qual só escapa à percepção em consequência do recalque. Isso se acha menos disfarçado nas altercações comuns entre sócios comerciais ou nos resmungos de um subordinado
“Ao abandono do aluno da escola pública, contrapõe-se a teatralização do ensino privado”, do professor e educador Júlio Groppa Aquino. 15 Ponto & Vírgula 05.indd 15
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em relação a seu superior. A mesma coi- Entretanto, há um comércio da violência Para o filósofo Agamben, o que presensa acontece quando os homens se reú- que ganha com tudo isso. Novamente, o ciamos no mundo contemporâneo são nem em unidades maiores. que apontamos aqui é uma lei em que- relações estabelecidas à semelhança do da. Queremos ressaltar aqui é o estado modelo dos campos de concentração, P & V - Bandeiras ostentando as de anomia, isto é, há a presença da lei, que se caracterizam como espaços onde imagens de controvertidos líderes porém apenas com seus resquícios. Um a exceção se manifesta na sua pureza, como Che Guevara, Bob Marley, Mus- aparente estado de exceção tem carac- predominando o paradigma biopolítico solini, Mao etc, vêm ganhando espaço terizado nossa época tendendo a uma em que a lei determina sua própria autosimbólico entre as torcidas, divulgan- organização social anômica segundo suspensão. do mensagens subliminares. A senho- Agamben. A anomia, nesse contexto, ra admite que os estádios de futebol aparece como uma carência ou labiliP & V - O Estatuto do Torcedor foi se transformaram num ringue e num dade dos limites impostos socialmente. criado em 2003 para estabelecer nordivã das massas? Freud já apontava a fragilidade dos re- mas de proteção e defesa dos torceM.B.S - Acredito que os estádios têm gulamentos que orientam os relaciona- dores. A violência continua. Podemos aglomerado uma massa que utiliza aque- mentos, chegando a afirmar no seu texto dizer que a solução para coibir atos de le cenário como palco da manifestação “Mal estar na civilização” que a “nossa violência entre as torcidas organizado grito de socorro por uma identifica- civilização é, em grande parte, responsá- das não está no âmbito jurídico? ção. Faz-se necessária a presença de um vel por nossa desgraça”. Segundo alguns M.B.S - Primeiro precisamos nos líder à qual este sujeito se identifique. torcedores entrevistados, a cada jogo, o perguntar se o estatuto foi colocado em A figura do líder aparece como referen- Estatuto do Torcedor é rasgado, ou seja, prática. A resposta é não. Porém, seria cial que transforma a massa amorfa em a lei não é cumprida. Dependendo do absurdo dispensar os mecanismos juríuma unidade. Na carência atual de uma comando policial do dia determinadas dicos. No entanto, penso que o caminho liderança que levante uma bandeira em atividades são permitidas ou não. é a educação desde cedo. Aprender a nome de uma causa em lidar com o outro que é difeque os jovens se vejam rente de mim. Valores como representados, têm-se tem-se perdido. Ora, “ A violência não está circunscrita a um tipo de torcedor respeito então um resgate de se vivemos numa dinâmipersonagens históricos específico. Em algumas situações, começa uma briga ca onde desde cedo somos que fizeram uma difea sermos melhores e outros vão se envolvendo sem ao menos saber do exigidos rença em sua época. que o nosso coleguinha de Hoje, presenciamos, classe, como esperamos forque se trata” muitas vezes, figuras de mar sujeitos que valorizem o autoridade que não suspróximo, principalmente em tentam suas posições, são inconsisten situações de pressão, disputa? O nosso tes, frágeis. De certa forma carecemos P & V - No interior da violência, pa- discurso é esquizofrênico, fragmentado, de líderes. rece claro que habita a ostentação de desconexo. É necessário pensar que su P & V - Enquanto intelectuais, jor- poder, sustentada numa moral do tipo jeitos queremos formar, a partir de quais nalistas e autoridades produzem, em “eu tenho”, “eu posso”, “eu faço”; “que valores? abundância, teses ensaios, discursos, se danem os outros”. Como a senhora artigos e comentários sobre as tor- explica esse fenômeno? Em que mediP & V - O presidente do Atlético micidas organizadas, elas continuam da ele é alimentado por fatores extra- neiro, Alexandre Kalil, apoiou o moproduzindo violência e banalizando campo de futebol? vimento da Galoucura, que criou um a vida. O que a senhora acha: sobram M.B.S - O que podemos perceber na “disque-denúncia” para inibir jogadoteorias e faltam providencias? nossa pesquisa é que um poder paralelo res de sair à noite. Há uma relação perM.B.S - Infelizmente parece-nos que foi se constituindo nas torcidas que pes- versa entre as torcidas organizadas e a muitas das produções intelectuais não quisamos. A lei estabelecida é a do olho direção dos clubes? Qual é o papel dos chegam às mesas administrativas de por olho, dente por dente. O poder, a lin- dirigentes na diminuição ou aumento nossas cidades. Sendo assim, nem todas guagem que se estabelece é a da própria da violência? as pesquisas atingem seu necessário e violência. Há uma valorização da mesma M.B.S - Não vejo como a violência importante papel social. Por outro lado chegando a ser considerada como troféu tenha efeito positivo em conscientizar vemos uma banalização nos discursos, a equipe que tiver matado, segundo fala ou formar atletas conscientes de seu pamuitas vezes esvaziados de sentido. Na de entrevistado. Neste contexto, os limi- pel social. O que percebo é um despreverdade nos parecem mais palavras tes são bastante flexíveis ou inexistentes. paro destes líderes quanto a dinâmica soltas ao vento do que uma reflexão, e Contudo, o que os torcedores aponta- emocional humana, fato este que acaba muito menos um assumir, a partir de ram é que os poderes públicos como a incitando a uma saída ilegal para atos cada um de nós que estamos lendo esta polícia não têm feito seu papel e chega arbitrários, e consequente aumento da matéria, sobre o que temos a ver com algumas vezes até provocar o torcedor. violência. Ainda chama-nos atenção o tudo isso. Há como que uma indiferença O que acaba ocorrendo é um exercício fato de que alguns jogadores, muitos nogeneralizada. O discurso se tornou co- da lei de forma personalista. Depen- vos, ou seja, ainda num período de formum. Não há novidade pra ser vendida. de da cara do freguês noutras palavras. mação psíquica, em que os valores éti-
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Ao contrário de entretenimento, o evento mais popular do Brasil se transformou numa praça de guerra com a leniência do poder público
cos, morais ainda estão em construção, são bombardeados com uma ascensão instantânea de ordem econômica, social, midiática, tratados como adultos. Há uma mudança abrupta e sem nenhum acompanhamento psicológico para os mesmos. De certa maneira uma parte de suas vidas é roubada em nome da fama, do lucro. O que se tem em vista é a produção, ou seja, vitórias, gols marcados. Estamos diante de máquinas de produzir dinheiro. Muitos têm interesse que esses meninos “deem certo”. Na verdade estamos diante do senhor Capital ditando as regras do jogo. Sendo assim, há uma relação perversa estabelecida onde até a idade, muitas vezes, é forjada. P & V - Loucura, ira, facção, máfia, terror. A senhora considera que a própria razão de ser de uma torcida organizada perpassa pela ideia de união pela força física? Torcer por um time ficaria em segundo plano? M.B.S - Novamente trago informações sobre a pesquisa realizada. Não importa muito o que acho. Achar todo mundo pode achar o que quiser, mas o que podemos “ler” nas falas de nossos entrevistados é que, ao se organizarem, seus objetivos perpassam pela ideia de
apoiar o time, de fazer uma festa bonita, de serem o décimo segundo jogador em campo. A princípio a força física não aparece no discurso. Mas, o que fomos percebendo é que a violência acaba sendo o carro-chefe quando torcedores acabam sendo “promovidos”, ou seja, começam a integrar o quadro da diretoria da sua torcida logo após terem cometido um assassinato. Embora todos afirmem que o intuito é a festa, para alguns, o que vale é a pancadaria. É um lugar de extravasamento de emoções onde os mais diversos sentimentos são vivenciados em excesso. Há um pulsional mortífero em ação. P & V - Vontade de fazer parte de um grupo, necessidade de se sentir protegido, busca por status social. Qual é a principal razão para um jovem buscar afiliação em uma torcida organizada? Qual é a causa que eles defendem? M.B.S - Segundo os jovens que entrevistei fazer parte de um grupo, ser reconhecido é algo bastante importante. Sabemos que tais necessidades são próprias da fase da adolescência, época que estes jovens normalmente ingressam nas torcidas organizadas. Eles chegam a considerar a torcida como uma família. Alguns deles têm suas primei-
ras experiências quanto a assumir uma responsabilidade a partir de sua filiação. Lembro de um rapaz entrevistado falar com certo orgulho que era o responsável por guardar a bandeira. Sentem-se importantes, necessários. Também, não podemos esquecer que é um espaço onde podem exercer papel de liderança, descobrir novos potenciais. Como hoje as torcidas abrem um leque de possibilidades como recreação, trabalho, academias, entre outras coisas, este espaço se torna atraente para inserção do jovem num espaço identificado com seus interesses. Mas, o que é ponto comum entre todos os entrevistados é o amor ao time, levar um apoio. P & V - Os integrantes das torcidas organizadas reconhecem a violência? Como eles se justificam? M.B.S - Como já disse anteriormente, a princípio eles negam, mas diante dos fatos... Eles normalmente acabam justificando que são bandidos que se infiltram nas torcidas, que usam as torcidas como espaço para cometerem seus crimes. São, segundo eles, rivais de gangues de bairros. Particularmente não desacredito que isso também ocorra, mas não se limita a estes grupos. Como já foi colocado há uma valorização e promoção da-
“As verdades únicas não existem: as verdades são múltiplas, só a mentira é global”, do escritor José Saramago. 17 Ponto & Vírgula 05.indd 17
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quele que se destaca como violento. Há um processo de intimidação, por parte da torcida adversária, quando alguém de uma determinada torcida comete algum ato bárbaro. P & V - A imprensa cumpre bem o papel de denunciar atos violentos de integrantes de torcidas organizadas? A senhora acha que há uma ampla discussão sobre o assunto nos meios de comunicação ou o tratamento é superficial? M.B.S - Vejo a imprensa com um papel social importantíssimo, contudo, percebo uma banalização na abordagem dada ao tema. Às vezes, é um sensacionalismo a partir de algum fato que venda, ou seja, que traga audiência. Mas, ela não tem conseguido formar cidadãos mais conscientes de seu papel social. Há mais um discurso voltado para os direitos dos cidadãos, mas pouco se vê sobre os deveres. De novo vemos aí um discurso que atende a proposta do ter e não do ser. Não se pensa na formação destes jovens. Queremos ter acesso às coisas, mas não nos responsabilizamos mais por nada. Vemos, muitas vezes, após alguma confusão em dia de jogo, os comentaristas esportivos emitirem suas opiniões balizadas apenas pelos seus valores pessoais. Não há uma reflexão a partir de um panorama social, econômico, psíquico, dos envolvidos. Não há uma luta, um engajamento em nome de uma mudança. O que vemos são apenas denúncias. Os clubes também se excluem. Parece que ninguém tem nada com isso. P & V - O afastamento das famílias dos estádios: essa é uma das mais evidentes repercussões da violência. Ou seja: futebol como entretenimento sadio e aglutinador social passou a ser excludente. Que análise a senhora faz deste absurdo? M.B.S - Podemos ver que não é só no estádio que este fenômeno acontece, mas nas praças, nas ruas. Temos vivido uma exclusão dos espaços públicos. Esta é uma questão ampla. Vivemos um tempo de desterritorialização. Tempos de medo. Cada um abandonado à sua própria sorte. Segundo a socióloga Glória Diógenes, está sendo construída uma nova territorialidade na cidade a partir do confronto da polícia com as chamadas gangues. Os próprios membros de torcida organizada sabem que não po-
Vivemos numa sociedade onde o que importa é o que eu penso, o que eu quero, e o que eu quero é me dar bem. Podemos falar, então, num sujeito centrado em si, que só olha para si”
dem trafegar em segurança por alguns espaços da cidade que são considerados territórios dominados por uma determinada torcida. Dessa forma, no imaginário da população, os espaços da cidade são demarcados por “forças inimigas”. Estamos diante de um problema macro social que precisa ser estudado e enfrentado pelos poderes públicos. P & V - De arte, o futebol se transformou numa indústria lucrativa, com as suas ambiguidades e formas escusas de sobrevivência. Neste jogo de perde e ganha, participam torcedores, dirigentes esportivos, mídia, patrocinadores, empresários, árbitros etc. É o pão e o circo, em sua edição contemporânea. Em que medida a senhora vincula a violência nos estádios com este cenário? M.B.S - Este é um aspecto bastante importante para elucidarmos, pois a quem mesmo interessa este cenário montado? Partimos do pressuposto que é ao senhor Capital. Não sabemos onde está, não sabemos a quem servimos, mas todos sem exceção trabalhamos, produzimos para ele. E sua convocatória é sempre a mesma: produza mais, consuma mais, goze mais, sempre mais, mais e mais. Ele é insaciável, incansável. É a partir destes ditames que vemos os partícipes desta trama convidados a consumir os objetos ofertados pelo espetáculo do futebol e de seus entornos. A violência então é mais um dos meios utilizados para alcançar o lucro almejado. Os sujeitos entrevistados apontaram como um aspecto relevante no que diz respeito às mudanças, ao longo do tempo, nas torcidas organizadas, referindo-se ao caráter empresarial que foi invadindo este espaço visando ao lucro. A violência acaba sendo uma moeda forte neste contexto, quando para alcançar degraus mais al-
tos na hierarquia da torcida organizada, passa pelo fato do sujeito ter cometido algum ato considerado violento. Geralmente, quem está nas mais variadas diretorias é quem controla o lucro das vendas de seus mais diversos produtos como camisetas, bonés... P & V - Os “brunos” do futebol e suas idiossincrasias refletem esta engenharia? Acredito que é um reflexo desta sociedade que já perdeu de vista referência de limites. É um quadro de dissolução do laço social que se assiste. Há, também, um despreparo na formação destes jovens. Quem se responsabiliza por esta formação? M.B.S - Como ocupam destaque nacional e até internacional - e aqui trazemos uma responsabilização no papel da mídia que os elevam a categoria de deuses – parece que agora tudo está permitido. Não há limites. Perguntamosnos sobre quais âncoras o sujeito têm-se constituído na contemporaneidade. Um caminho para um enlaçamento perverso se estabelece, num contexto em que as escolhas subjetivas apresentam-se empobrecidas e os imperativos de gozo sobressaem-se. Se o espaço para a representação e construções simbólicas se mostra em declínio, a relação estabelecida com o próximo pode ser de embate, mesmo que este seja um mero desconhecido. Tem-se, assim, uma lei internalizada de forma falha, com lacunas importantes. P & V - Os gritos de guerra são repletos de violência verbal, ameaças e xingamentos direcionados à torcida adversária. Existe uma razão de a rivalidade estar no âmago das torcidas organizadas? M.B.S - O que podemos perceber é a dificuldade do torcedor suportar uma relação com alguém de time oposto ao seu. Vivemos numa sociedade onde o que importa é o que eu penso, o que eu quero, e o que eu quero é me dar bem. Podemos falar então num sujeito centrado em si, que só olha para si. Lembro da fala de um entrevistado que um dos critérios de avaliação na seleção da funcionária do lar era se a mesma não torcia por um time adversário. O diferente não é suportado. Como diz outro torcedor: “se não é amigo meu, pode matar”. P & V - No Reino Unido, alguns jo-
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Sem Pestanejar
vens torcedores, conhecidos como holligans, se reúnem para brigar. A violência nos estádios parece não estar somente ligada ao poder aquisitivo. Não obstante, o fator econômico também influi na situação? M.B.S - Não atribuo ao fator econômico. Podemos ver hoje, se tornar comum, jovens de classe média alta que têm marcado encontros para brigar através dos sites de relacionamento. Como já dissemos, anteriormente, entre os entrevistados na nossa pesquisa pudemos constatar que jovens com poder econômico elevado também têm envolvimento com as brigas entre torcidas. P & V - Em uma de suas colunas, o jornalista José Simão cita duas frases: “a humanidade não deu certo” (do escritor Nelson Rodrigues) e “a civilização não se comportou” (do comediante Ronald Golias). A violência das torcidas organizadas é um sintoma da precariedade do ser humano, estimulado a consumir, mas marcado pela falta e pela castração? M.B.S - O mundo dito civilizado propõe limites à satisfação humana. Contudo, numa sociedade onde os ideias de consumo são constantemente alardea-
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dos como a chave para a felicidade, lidar com as frustrações, os limites tornam-se desafios cada vez maiores. A ética vigente passa a ser a do direito à felicidade, de uma felicidade não negociada, de um prazer não adiado. Os sujeitos dependentes dos discursos que ditam a realidade, muitas vezes se encontram alienados, aprisionados frente aos imperativos de gozo, próprio do discurso capitalista segundo Lacan, em que a falta é negada. Sabemos que o discurso capitalista fomenta uma mudança nas relações sociais, pois trabalha a partir de um imperativo de ter sempre mais, estabelecendo uma condição de nada perder. É nessa perspectiva que vemos as relações de amor e ódio permeando a teia social, quando o sujeito não suporta a ideia de não ter o que o outro tem. Neste contexto, tenta-se banir a ideia de sofrimento. Contudo, Freud no texto “Mal estar na civilização” já apontava os mecanismos malsucedidos da humanidade no campo da prevenção do sofrimento. Enfim, não se pode escapar da condição de sermos sujeitos incompletos, faltantes, castrados, insatisfeitos. P & V - A polícia consegue controlar a atuação de criminosos disfarçados
de torcedor? Como separar o joio do trigo? Restringir a liberdade de jovens envolvidos em atos violentos seria uma das soluções para diminuir a violência? M.B.S - Ambas as torcidas entrevistadas nos falaram que a polícia sabe quem são os sujeitos envolvidos, mas que nada é feito. Na fala dos entrevistados é como se não houvesse interesse por parte da polícia. Hoje, as torcidas organizadas estão sendo cobradas que cadastrem todos os seus integrantes. Não sei, ainda, se este credenciamento contribuirá na identificação do torcedor ao adentrar aos estádios, mas talvez, numa situação de violência, possa ajudar aos órgãos competentes estabelecer se o sujeito infrator é filiado a alguma torcida. Acredito que mereça uma pesquisa e observação de seus efeitos, se os jovens envolvidos em atos de violência, vandalismos, se os mesmos perderem o direito de acesso aos estádios, por um tempo determinado, venha contribuir com a diminuição da violência. Prefiro não tirar conclusões a priori, sem um estudo. Então, o tempo irá nos dizer, caso estas medidas sejam de fato efetuadas, se elas produzirão uma mudança significante no comportamento do torcedor envolvido com violência.
Um filme: “Lixo extraordinário” Um vexame: estar cantando e esquecer a letra da música Um livro: a Bíblia Uma decepção: políticos corruptos Uma tristeza: a violência Uma música: “Bolero de Ravel” Uma alegria: cada amanhecer Um sonho não realizado: o doutorado Um Ponto G: o pensar Uma verdade: a violência não desaparecerá Uma mentira: que não mentimos Uma traição: não vivi Quem você deixaria, para sempre, numa praia deserta? Ninguém
“Da próxima vez que você for ao zoológico, olhe no olho de um chimpanzé e veja se não parece haver ali uma alma encarcerada como a sua”, do filoso e escritor Luiz Felipe Pondé. 19 Ponto & Vírgula 05.indd 19
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Entrevista Maria Cristina Bove Roletti
[víceras urbanas]
A Praça
é Nossa!
Eles estão por todos os lados. Nas praças públicas, parques, becos, lixões, sob túneis, viadutos, marquises e em prédios abandonados. Paradoxalmente, crescem de quantidade à medida que cresce o índice de desenvolvimento econômico brasileiro. De acordo com a ONU, são mais de 100 milhões espalhados pelas principais capitais do mundo Franco Serrano
oportunidades, do respeito e da dignidade, como definiu, em outras palavras, a psicóloga e coordenadora nacional da Pastoral de Rua, Cristina Bove. “Nosso árduo trabalho é em prol da humanização, conquista e legitimação dos direitos desta classe de excluídos”, esclarece ela. Em entrevista à Ponto & Vírgula, Bove traçou-nos um perfil desse segmento: o que sentem eles? Quais os motivos que os levam a esta situação miserável e degradante? O que é necessário para reintegrá-los à sociedade? Em que medida os gestores públicos estão a fim de solucionar este problema?
Por: Letícia Moreira 8º G - Jornalismo maria c. bove roletti, psicóloga
Alijados de quaisquer direitos de cidadão e estigmatizados com um câncer social, os moradores de rua lutam para encontrar formas de sobrevivência. Há quem possa crer que o que lhes falta é, simplesmente, rendimentos sólidos, um endereço fixo e um telefone. No, entanto, trata-se de um problema crônico, que vai muito além das análises rasteiras e convenientes. No “submundo”, conseqüência das contradições do capitalismo, eles se encontram totalmente à margem das
Ponto & Vírgula - Afinal, há quanto tempo existe a Pastoral de Rua? Quais as razões que justificaram a sua criação? E que tipo de serviço ela presta aos moradores de rua em Belo Horizonte? Maria C. Bove Roletti - A Pastoral de Rua nasceu em 1987, na cidade de Belo Horizonte. Múltiplas motivações determinaram sua origem, entre elas, fundamentações religiosas e políticas. O contexto social era marcado pelo crescimento das comunidades eclesiais de base e os debates sobre a Constituinte. Realizavam-se já experiências em São
Paulo, com o desafio de incorporar a população em situação de rua, considerada objeto descartável pela sociedade e pelo poder público, no processo social que eclodia. Com um profundo desejo de humanização e reconhecendo e estimulando a capacidade e protagonismo desta população, a Pastoral de Rua motiva, a partir da criação de vínculos solidários e fraternos, sua organização como forma de enfrentamento às demandas existentes, e, articula forças políticas que os ajude a superar a situação de vulnerabilidade em que se encontram. P & V - Há um entendimento de que esse contingente de pessoas, outrora invisíveis aos olhos da sociedade, é vítima e algoz de seus destinos. Essa constatação desresponsabiliza o Estado sobre este cenário social? M.C.B.R - Não considero a população em situação de rua algoz de seu destino. Ela é vítima de modelos de desenvolvimento que, historicamente, foram retirando todas as alternativas de vida e deixaram milhares de pessoas em situação de total abandono e impossibilidades. O Estado, pode-se dizer, que é cúmplice desta situação, na medida em que não propõe mecanismos de redução das desigualdades sociais, fortalece o capital privado e não implementa políticas públicas que façam o enfrentamento da situação de pobreza
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extrema em que a população de rua vive. Ela é conseqüência de um sistema econômico gerador de desigualdades e injustiças. O custo social imposto é muito alto e precisará um esforço gigantesco para vencer esta situação.
Bebel Baldoni (PBH)
P & V - “Ninguém pode viver nessa situação, isso não é vida para nós. Já fiquei em alguns abrigos, mas a gente não se acostuma a viver sob o regime de horários”. Essa fala de um morador de rua espelha o principal obstáculo moral no tratamento dessa questão? M.C.B.R - Esta afirmaEntregues à sua própria sorte, os moradores de rua desafiam as autoridades, porque não deixam de tiva do morador de rua é expressar as fissuras sociais muito significativa e levanos a considerar vários aspectos. Em princípio, há que se reco- fundo? Qual é a interpretação que a a senhora, este recorte analítico não nhecer a importância do seu movimen- Pastoral de Rua faz sobre isso? simplifica a complexidade que envolto pessoal, em busca de alternativas, já M.C.B.R - As causas da existência ve o assunto? Numa análise mais amque ele disse ter procurado “alguns abri- de população em situação de rua são pla, é possível admitir que existam gos” e resume sua frustração referindo- diversas e não se limitam à questão do milhares de excluídos empregados? se aos horários estabelecidos. Neste ir e vir com liberdade. O ir e vir é um M.C.B.R - Parece-me que, a prof.ª contexto, ele nos provoca a conhecer o direito constitucional que deve ser ga- Lucia Lopes considera a existência da regime imposto nestas instituições, que rantido a todas as pessoas quando elas população em situação de rua como não levam em conta o individuo e suas estão na rua. Isto é fato e temos que lu- “fenômeno síntese de múltiplas deterdemandas, instituindo e normatizan- tar para preservar este direito. minações”. Lembra que existem outros do o cotidiano da pessoa. As ofertas de Na experiência da Pastoral, outras fatores (biográficos, estruturais, fatos abrigamento existentes são de caráter questões e outras perguntas se apre- da natureza etc.), mas destaca como emergencial, provisório e massificador, sentam. Por exemplo: quais as alterna- principal fator o modelo de produção não oferecendo possibilidades eficazes tivas que se oferecem ao morador de capitalista que produz e reproduz uma que permitam à pessoa, elaborar e pla- rua para que ele tenha condições de relação entre capital e trabalho que nejar outras formas de vida. deixar definitivamente a vida na rua? A gera um exército industrial de reserva, Outros obstáculos mais graves po- saúde, o trabalho e a moradia estão ga- que excede à capacidade de absorção dem ser elencados, entre eles: a au- rantidos? A experiência na rua provo- do mercado de trabalho. sência de oportunidades, sobretudo de cou uma ruptura na vida das pessoas. A pobreza é imanente à sociedade trabalho e moradia, a discriminação e Que vínculos se criaram para que elas capitalista e sua estrutura contribui preconceito sofridos, o apoio indivi- tenham a sustentação necessária para para a existência de efeitos perversos dual insuficiente, a saúde precária, as voltar a um ritmo de vida, que outrora sobre a classe trabalhadora e sobre a políticas higienizadoras que violam o expulsou? vida de milhares de pessoas, entre eles permanentemente o direito de ir e vir, a o desemprego. baixa auto-estima provocada pela situP & V - A professora da Universidaação de vulnerabilidade. de de Brasília (UNB), Maria Lúcia LoP & V - O atual número de moradopes da Silva, autora do livro “Traba- res de rua em Belo Horizonte (aproP & V - A senhora concorda que a lho e população em situação de rua ximadamente 1.200 apontados pelo rua, definitivamente, não é lugar de no Brasil”, considera que o desem- Censo de 2005) hoje é bem superior? morar, e que sua vinculação à liber- prego é a principal causa que impõe Quais são as principais dificuldades dade de ir e vir é um equivoco pro- a rua como opção de moradia. Para que os poderes públicos enfrentam
“Eu vi: poesia é escrever o que não cabe mais na vida”, da poetisa Fernanda Mello 21
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sobre este tipo de exclusão? M.C.B.R - Não existe outra contagem posterior em Belo Horizonte, mas o fenômeno população em situação de rua vem crescendo conforme confirmam censos realizados em outras cidades. Por exemplo, em São Paulo, em 2003 foram contabilizados 10.399 pessoas vivendo nas ruas. Já em 2009 existiam 13.666 o que representa um aumento de mais de 30%. Historicamente, a população em situação de rua foi tratada exclusivamente sobre a ótica da assistência. Esta visão fragmenta e limita as possibilidades de avançar na discussão e implementação de outras políticas que promovam a pessoa. Criou-se um vício político que parece ser intransponível. Se bem que a assistência é um direito do cidadão, e cabe a ela, oferecer a proteção social necessária, ela não traz todas as respostas que a população demanda. Não é atribuição dela e não tendo outras respostas, não cria o fluxo necessário, inchando de certa forma, os abrigos e serviços e multiplicando o orçamento com os mesmos gastos. Para superar a situação de rua, é necessário um programa de governo conjunto, que integre políticas de habitação, trabalho e geração de renda, saúde, educação, que dialoguem entre si e construam uma rede social que possibilite alternativas eficazes para a superação da vida
nas ruas. P & V - Segundo o jornal “O Imparcial”, em seu site http://www.jornaloimparcial.com.br, de 27 de dezembro de 2010, uma pesquisa feita em 2007/2008 pelo Ministério Social e Combate à Fome constatou que, entre 32 mil moradores de rua no Brasil, 74% sabem ler e escrever; 48% concluíram o ensino fundamental; 5% tinham curso superior incompleto e 2% completaram o curso superior e falavam outros idiomas. Sob que ponto de vista a senhora justifica a opção dessas pessoas pelo escárnio que é a vida nas ruas? Em Belo Horizonte, qual é o percentual desses moradores com educação formal? M.C.B.R - Creio que é melhor afirmar que a rua, foi a única opção que as pessoas encontraram para sobreviver. Foi a rua que as acolheu na hora em que, sem alternativas, não tiveram outro local para descansar o corpo. A necessidade de sobrevivência na rua tornou-se um aprendizado que foi se revestindo de novas relações e experiências. Constituiu-se um novo saber que, com o tempo, vai se enraizando nas pessoas. Importante considerar que, há neste contexto, a ausência de políticas públicas de acolhida e abordagem, de trabalho e moradia, de saúde e educação que permitam re-encontrar e
ultrapassar as fronteiras da exclusão. A falta de expectativa impede as pessoas de sonhar e vislumbrar “portas de saída” Os níveis de educação formal em Belo Horizonte são: 1ª a 4a série 44,6%; 5ª a 8ª 45,8%, o ensino médio 7,3% e superior 2,3%. P & V - Como se não bastassem as crianças, jovens e adultos morando em praças públicas, sob viadutos e marquises, agora, os idosos (cerca de 8 mil) compõem este cenário, estigmatizado pela vagabundagem, fracasso, impotência e menos-valia. É assim no Brasil e em diversos outros países, inclusive no chamado 1º Mundo. Para a senhora o que justifica a obsessão dessas pessoas por este simulacro de vida? M.C.B.R - É forte demais classificar estas pessoas como “obsessivas pela vida nas ruas”. Este rótulo, além de desqualificá-las, as coloca como sendo as únicas responsáveis pela sua situação de rua. Elas são vítimas de uma situação. Já constatamos anteriormente, a responsabilidade do Estado que provoca as desigualdades sociais e não investe na implementação de políticas públicas de proteção e promoção das pessoas. É preciso, portanto, investimento social, econômico e político para modificar a situação que foi criada. Não podemos deixar de reconhecer que, mesmo alcançando um patamar de desenvolvimento sustentável, haverá sempre pessoas morando nas ruas e creio que a sociedade, terá que aprender a lidar, cada vez mais, com as diferenças.
A população de rua não é um problema social específico de Belo Horizonte e do Brasil, o que o torna mais grave ainda
P & V - Embora sejam os protagonistas de sua própria história, a vida dos moradores de rua se constroi a partir das circunstâncias que vêm de fora. A senhora concorda que essa cruel dependência mina o mais elementar conceito de cidadania? M.C.B.R - Compreendo que o conceito de cidadania está em perma-
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nente construção e ele acontece na relação que se estabelece entre sociedade e individuo. A Constituição reconhece o conceito de cidadania como sendo a pessoa, sujeito de direitos. Socializo o depoimento de um morador de rua que me parece sintetizar a situação, quando perguntado se considerava-se um cidadão: “Um cidadão derrotado. Eu já fui. Mas, agora, eu não sou. Olha só que coisa gostosa, ó, uma família vindo aí. O cara numa boa com a família direitinho... Esse é um cidadão. Agora, já, já, você vai sair daqui, não vai? Eu vou deitar ali. Eu faço parte da cidadania? Não, eu sou um número a mais. Eu sou um zero à esquerda. Porque eu acho que nem no IBGE eu estou passando. Então, é triste. É a realidade, mas é triste. Entendeu? Nem no IBGE.”. Fica evidente que a vida nas ruas atinge a autoestima da pessoa e que interfere no conceito acerca de sua cidadania P & V - Se não sou cidadão, se não passo de um fantoche nas mãos da realidade, por que razão terei que me prender a normas, deveres e regras de convivência? Pode-se dizer que este é o pano de fundo moral que contempla o cotidiano dos moradores de rua? M.C.B.R - Normas, deveres e regras de convivência existem, também, na rua. A vida na rua tem seus códigos de conduta que são próprios da situação que enfrentam. As normas existentes se cumprem na medida em que, as pessoas se identificam e pertencem a um determinado grupo. Mas creio que a pergunta está vinculada às regras ditas “sociais” de convivência. O preconceito e a discriminação são tão grandes, que a visão comum é que eles estão sempre infringindo normas. No entanto, ao observar, seu comportamento, é muitas vezes idêntico a qualquer cidadão comum: almoçam no restaurante popular; fazem fila em banco; retiram seus benefícios; vão à biblioteca pública; gostam de ler etc, etc. As diferenças, então, podem se relacionar às ausências que existem para suprir as necessidades básicas: falta de um teto, de banheiro para as necessidades fisiológicas, para higienização.
É necessário mudar o olhar e começar a enxergar a população em situação de rua como um cidadão comum que, apenas precisa de atenção especial para resolver seus problemas e que é vítima da ausência de políticas.
“Não considero a população de rua algoz de seu próprio destino. Ela é consequência de um sistema econômico gerador de desigualdades e injustiça”
P & V - A revista “Sociologia. Ciência & Vida”, em sua 32ª edição, denuncia que o descaso do Estado com os desabrigados chegou a tal ponto que, até 2009, a mendicância era considerada uma transgressão penal (a lei foi revogada pelo ex-presidente Lula) no Brasil. Quais são as principais dificuldades que a Pastoral de Rua enfrenta na sua condição de intermediadora entre o poder público e os moradores de rua? M.C.B.R - Quero acrescentar que, ainda no governo do ex-presidente Lula foi sancionado um decreto que institui a Política Nacional para a População em Situação de Rua, fato que vem provocando o debate, sobretudo na implementação de políticas públicas. A pastoral participou ativamente nesse processo. Se por um lado foi difícil, por outro, permitiu um avanço importante. Entre as dificuldades, aponto a indiferença e a intolerância da sociedade, a violência institucional por parte dos responsáveis pela ordem pública, o desconhecimento do fenômeno população em situação de rua, metodologias de caráter segregador e assistencialista, a morosidade política na implementação de programas, a falta de investimento e orçamento que permitam eficiência e competência na aplicação dos recursos, a dificuldade de acesso em instâncias de decisão. Como exemplo de discriminação, tem-se o fato de que, recentemente, foi vetado em Curitiba a participação da população de rua para concorrer na representação de usuário, no Conselho Municipal de Assistência Social. P & V - Segundo o boletim informativo Via de Acesso, publicado pela Secretaria Municipal Adjunta de Assistência Social, a maioria dos moradores de rua da capital vem do interior de Minas Gerais (41,2%); se-
guido de Belo Horizonte (32,6%) e de outros estados brasileiros (21,9%). Esses dados mostram que o modelo centralizado de desenvolvimento econômico nas grandes metrópoles é um dos principais motivos desta mazela social. Como a senhora analisa este problema que, aliás, não é prerrogativa do Brasil? M.C.B.R - As grandes cidades oferecem um leque maior de oportunidades, por serem áreas de maior concentração econômica, atraindo para si grandes contingentes de pessoas. São nestas regiões que a população em situação de rua obtém vagas de trabalho e de geração de renda, sejam estas formais ou informais. Além deste fator vinculado ao trabalho, vinculam-se outras facilidades, que a população encontra para suprir o atendimento às suas necessidades básicas de alimentação, vestuário e abrigo. É, ainda, nas metrópoles, que atuam a maior parte das instituições públicas e de caráter filantrópico que auxiliam a população nas suas necessidades imediatas. Lucia Lopes refere-se “à conjugação de vários fatores, como a maior circulação de capital, a infraestrutura, a arquitetura e a geopolítica dos grandes centros, que ajudam a explicar porque esse fenômeno é essencialmente um fenômeno urbano”. P & V - A partir daí, vale a seguinte reflexão: se as fraturas sociais existem e são expostas em função do modelo de gestão econômico brasileiro (centralizador e discricionário), pode-se concluir que o trabalho de assistência social (em suas diversas formas) desenvolvido pelos poderes públicos, igrejas, Ongs etc, não passam de uma maquiagem? M.C.B.R - Não pode se cair em ge-
“A celebridade é programada para idolatrar o momentâneo, o provisório, e desaparecer com eles”, do psicanalista Jurandir Freire Costa. 23 Ponto & Vírgula 05.indd 23
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neralizações excludentes. O trabalho da assistência social em suas diversas formas é necessário por corresponder às demandas emergenciais solicitadas pela população. Muitas instituições, sobretudo as igrejas e ong’s, também desenvolvem ações que preservam e, em muitos casos, promovem a vida. Inúmeras pessoas têm conquistado o exercício pleno da cidadania e, através de suas organizações tiveram acesso a moradia, trabalho, saúde, educação. Existem, também, fóruns e redes estabelecidas, que apoiam e investem tempo e recursos estimulando o protagonismo e a conquista de políticas. Como fruto deste trabalho existe também o Movimento Nacional da População de Rua que hoje reúne este grupo social e tem seu reconhecimento no Comitê Intersetorial da População em Situação de Rua e no Conselho Nacional de Assistência Social. Creio que, neste caso, a “maquiagem social” refere-se às causas estruturantes que devem ser também combatidas para erradicar definitivamente a miséria do país.
visitas ilustres de autoridades estrangeiras (o caso mais flagrante ocorreu durante a visita do Papa Bento XVI, em 2007). Como a senhora interpreta esta ambiguidade moral? M.C.B.R - Contradições, negligências e arbitrariedades infelizmente existem. As instituições públicas agem conforme interesses, ora políticos, ora econômicos, sem levar em conta as violações que provoca. Diante deste grave assunto, penso que o importante é a existência de grupos e pessoas comprometidas que levantem sempre a voz e denunciem comportamentos que violam os direitos de ir e vir das pessoas, como foi no caso ao qual a questão se refere. Atualmente já existe a organização para prevenção de ações, de caráter higienizador, diante dos grandes eventos que o país vai promover.
defendido sempre. Linguagens distintas de aproximação facilitam, sem dúvida, as múltiplas carências que a população padece. Formas diferentes de expressão vêm contribuindo, seja na realização pessoal ou na oportunidade de exprimir necessidades e desejos, não só pessoais como da coletividade. A participação do Centro de Referencia Audiovisual e de muitos outros artistas, que com diferentes linguagens, se aproximam da vida nas ruas, possibilitam à população protagonizar diversas formas de anúncio e denúncia das violações sofridas. É o caso de músicos, teatrólogos, palhaços, percursionistas que não só partilham seu saber como ensinam a arte da expressão, promovendo cultura e valorização social.
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P & V - Em 2004, na capital paulista, durante uma fria madrugada, P & V - “A política de atendimento 15 moradores de rua foram covaraos moradores de rua é complexa e demente agredidos por jovens de exige muitas linguagens de aproxi- classe média alta. Desses, sete mormação e de valorização do ser so- reram. A que a senhora atribui tamacial”. O que a senhora, a partir de sua nha violência? longa experiência, pode dizer desta M.C.B.R - O velho e conhecido ditaP & V - O governo que revoga a fala de Daniela Giovanna, professo- do “a violência gera violência” parece absurda lei que considerava a men- ra de cinema do Centro de Referen- que ganha cada dia mais força. O prodicância uma contravenção penal, é cia Audiovisual (Crav), da Fundação cesso de perda ou negação de acesso o mesmo que determinou a retirada, Municipal de Cultura? aos direitos econômicos e sociais resob força policial, dos moradores de M.C.B.R - A valorização do ser so- flete um conjunto de violações que esrua das áreas urbanas, por ocasião de cial é um princípio a ser perseguido e capam ao controle social e fortalecem uma cultura de culpabilização dos pobres pela sua situação. Tal postura procura justificar uma série de atos bárbaros praticados por gangs urbanas, grupos de extermínio e indivíduos. Tratam-se de chacinas, ataques por meio de fogo e produtos abrasivos, bem como inúmeras violências físicas e morais. Ressalta-se que esses atos também são praticadas por servidores públicos, diligências de fiscais e policiais, que consistem na retirada compulsória de pertences pessoais, documentos, instrumentos de trabalho, medicamentos, etc. Além disso, são comuns os constrangimentos e A solidão se soma a mendicância: violência que marca e castiga quem mora nas ruas à cata de migalhas a expulsão compulsória
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dos espaços e locais públicos, e atendimento negligente ou humilhante nos postos e serviços públicos. Essas discriminações ameaçam, agridem e desrespeitam a dignidade humana. Este processo contribui para o aumento da violência e a consequente intolerância urbana à qual estamos submetidos.
Sem Pestanejar
P & V - Como para a economia (estruturada com base no capitalismo) pouco importa a existência dos moradores de rua, porque não são consumidores, qual a saída para resolver essa situação, além das ações sociais paliativas e do discurso insosso das autoridades? M.C.B.R - Por um lado, investir na população de rua, enquanto atores principais e protagonistas de suas lutas parece ter sido o caminho mais eficaz e decisivo na luta pela garantia dos seus direitos. Este processo inclusivo permite o empoderamento dos seus atos e, consequentemente, uma maior capilaridade na própria população. A população de rua participando deste processo pode intervir diretamente nas políticas públicas, através de sua participação em instâncias deliberativas, tais como comitês, conselhos e
“As ofertas de abrigamento existentes são de caráter emergencial, provisório e massificador. É necessário um programa de governo conjunto, que integre políticas de habitação, trabalho e geração de renda, saúde e educação, que dialoguem entre si e construam uma rede social que possibilite alternativas eficazes” conferencias. De outro lado, manter a luta por políticas públicas estruturantes que respondam às demandas específicas, com orçamento garantido. P & V - Para o filósofo Karl Marx, valores como liberdade, justiça, felicidade e racionalidade, pregados pela moral burguesa, são hipócritas, não realizáveis numa socieda-
de violenta e injusta, marcada pela exploração do trabalho e pela desigualdade social. A senhora diria que os moradores de rua são expressão mais evidente desta teoria marxista? M.C.B.R - A população em situação de rua compõe a expressão mais evidente da teoria marxista no que se refere à perda que estas pessoas, anteriormente trabalhadoras, sofreram. Perderam a possibilidade de venda da força de trabalho e não encontram mais possibilidades de sobrevivência. Lucia Lopes descreve esta situação como “um processo a que foram submetidos os trabalhadores que não conseguiram vender sua força de trabalho nas cidades pré-industriais e assim, despojados de tudo, até mesmo da moradia convencional regular, fizeram das ruas espaço de moradia e sustento”. A organização da população em situação de rua evidencia sua consciência crítica dentro do sistema estrutural da sociedade, tem como objeto de reivindicação a luta por políticas públicas que respondam às carências oriundas do sistema e que lhes permita sua fixação no sistema vigente.
• Um filme: “A sociedade dos poetas mortos” • Um vexame: comer quiabo na casa dos outros • Um livro: “As boas mulheres da China” • Uma decepção: o Clube Atlético Mineiro perder • Uma tristeza: as mudanças climáticas • Uma música: “Gracias a la vida” • Uma alegria: ir ao cinema • Um sonho não realizado: conhecer a Índia • Um Ponto G: a nuca • Uma verdade: a fraternidade entre as pessoas • Uma mentira: massa de pastel frita • Uma traição: a balança • Quem você deixaria, para sempre, numa praia deserta? Ninguém!
Dostoiévski.
“Cada um de nós é culpado perante todos, por todos e por tudo”, do escritor russo 25
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Entrevista Leônidas Dias de Faria
[de blacktie e pés descalços]
Admirável
mundo novo
Entre profecias já desmentidas (fim do mundo no ano 2000 e congêneres) e outras tantas que a sucedem (a nova data apocalíptica é 2012), o presente segue, com a nossa marcante “ajuda”, aliada a tsunamis e encostas, na vã empreitada de nos alertar para a nossa fragilidade. E, nós, ó! Pedro Cunha
a despeito do elegante ser falar em paradigmas), conversamos com o filósofo e professor-doutor da Universidade Fumec/FCHS, Leônidas Dias de Farias.
Por: Augusto Duarte 8º G - Psicologia
leônidas dias de faria, filósofo e prof. do curso de Jornalismo da Fumec/FCH
C
ada vez mais, aqueles livrinhos com os quais nos distraíamos, na infância e na adolescência – “Admirável Mundo Novo”, de Aldous Huxley; “1984”, de George Orwell; “Eu, Robô”, de Assimov, entre outros – mostram que algo tem “ido para o espaço”. Numa sociedade que nem sempre anda com os próprios pés e nas quais seres revelam-se mistos de robôs e transformers, privacidade é luxo e individualidade é “defeito de fabricação”. Mesmo com toda norma ISO a nortear nossos tempos, o homem parece achar que certas ameaças, assim como na ficção científica, são “coisas do futuro”. Que futuro é este, que, nos bons tempos, a Deus pertencia? Hoje, alguém deve ter o registro do mesmo em cartório, ou o domínio, na internet. Para falar sobre esses paradoxos (a palavrinha ainda vige,
Ponto & Vírgula - Algumas autoridades dos mais diversos segmentos – filosofia, sociologia, economia, comunicação, meio ambiente etc. – mostram-se preocupadas com o caráter efêmero da contemporaneidade. O senhor concorda que tudo que outrora era sólido tem se dissolvido no ar, ou se diluído em águas nem sempre límpidas? Por quê? Leônidas Dias de Faria - Tais autoridades, a meu ver, perdem seu tempo e a ocasião de agir significativamente nesse mesmo tempo. Isto porque todo hoje será sempre fugidio. A grande preocupação deve ser quanto ao fato de a sequência dos dias vir marcada pela manutenção do que já vimos não ser bom. O problema é que nem tudo se dissolve no ar. Resistem com muita tenacidade as relações sociais de produção, sob cujos condicionamentos se desenrola a tragicomédia humana de nossos dias; aquelas mesmas por meio das quais se comete, há alguns séculos, o mais hediondo dos crimes, a apropriação privada das condições sócio-históricas de produção da vida humana e a consequente submissão da atividade vital dos não proprietários à finalidade de recompensar os proprietários pelos “riscos assumidos” em seu empreendimento “gerador
de empregos”. Mergulhemos, pois, nessas águas turvas... P & V - Caetano Veloso cantou que “alguma coisa está fora da ordem, fora da Nova Ordem Mundial”. O que é essa Nova Ordem Mundial hoje, passados alguns anos da origem da expressão e o que estaria fora de ordem, em sua opinião? L.D.F - Se levarmos em conta que, dos quase duzentos mil anos de nossa História, a apropriação comum dos recursos naturais por meio de atividade produtiva, cooperativamente conduzida, foi a regra em mais de 90%, veremos que a expressão Nova Ordem Mundial só pode fazer sentido se referente à forma inglesa admitida por todos, mundo a fora, à força de canhão e pressão econômica, segundo a qual se avalia como mais eficaz, economicamente, a exploração dos recursos que gere lucro a investidores privados do que bem estar, saúde e desenvolvimento social multidimensional aos indivíduos. A Nova Ordem Mundial é o sistema social capitalista, que hoje se articula em escala global e, para tanto, institui os aparatos de controle que seus condutores mais diretos (também submetidos à sua lógica brutal) põem a operar. Pense nos Estados. Pense na OTAN. A ordem é o capital, o resto é glacê... P & V - O teatrólogo Samuel Beckett, reverberado pelo comediante Groucho Marx, afirmou: “Eu não entro para clube que me aceita como sócio”. Apesar do individualismo reinante, não faltam clubes: G8, G20 e outros mais. O homem moderno ainda se nega a
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entrar para clubes que o aceitem, se frustra por não pertencer àqueles aos quais seu acesso é praticamente impossível, ou “tudo é possível”? L.D.F - Beckett e Groucho queriam dizer que não eram flores que se cheirassem, de modo que um clube em que fossem aceitos não podia ser coisa muito confiável. Faziam troça de si mesmos. Quanto ao individualismo, ele se deve ao esgarçamento das relações comunitárias, promovido pela implantação violenta, mundo a fora, do sistema da propriedade privada, que induz à competição entre os proprietários (por lucros), entre os não proprietários (por empregos), entre proprietários e não proprietários (em torno do salário), e cuja lógica se infiltra em todas as demais relações sociais, das familiares às mais circunstanciais. Quanto ao G8 e ao G20: não são clubes, mas instâncias de controle, voltadas à promoção do que se denomina “crescimento econômico”, por meio da gestão “racional” (leia-se lucrativa) dos recursos, à custa da vida da população mundial. P & V - A ilusão do “mundo nas próprias mãos”, via tecnologias cada vez mais sofisticadas e que cabem literalmente na palma da mão, tem dado ao homem moderno a sensação de ser um Deus, ou semi-Deus, que pode criar, destruir e recriar mundos? Por quê? L.D.F - Acredito que ninguém de fato experimente essa sensação. Creio que é o sentimento contrário, o de impotência e desamparo, que leva os indivíduos à busca incessante por aparatos tecnológicos. Nesse mundo em que a riqueza não é condição material de convívio rico com os demais, mas em que, desde sua produção ao seu consumo ela representa segregação, distinção social, os indivíduos tendem a ter posturas um tanto patéticas: tendo por base uma espécie de esquecimento de que aquilo nada mais é que trabalho humano sócio-histórico, derivado da forma alienada de produzirmos nossa vida conjunta, um fulano qualquer pode hoje condenar a tecnologia por males relativos a outras instâncias da vida social, pode adorá-la como manifestação de algo sobre-humano, bem como pode não pensar nada disso,
mas na apreciação que farão dele por ele ter aquele objeto. D(eu)$? P & V - Volto à música. Desta vez com Dylan, em dois tempos: as respostas sopradas pelo vento, em “Blowin’ in the Wind”, e “The times – they are a’changin’”. Quais respostas têm sido sopradas pelos ventos e o que tem mudado? L.D.F - Individualmente, nosso poder de criar é restrito; unidos, podemos não só somar, mas multiplicar e potencializar muito essa força criativa. “A tecnologia” não é senão a expressão fetichista da capacidade conjunta que, por meio de nosso trabalho associado, engendramos historicamente. E a solidariedade que vem à tona, eventualmente entre os povos, não vem de uma essência abstrata compartilhada, mas de uma história comum que hoje se re-evidencia como única por meio da imposição violenta da aludida Nova Ordem Mundial. Paradoxalmente, o sistema social que envolveunos nos mais violentos conflitos históricos e na mais generalizada disputa por meios de vida é também aquele que nos permite almejar um mundo melhor para todos, sem distinção. A revolução é a saída: essa é a resposta que o vento vem soprando há mais de um século. E é por isso que todas as janelas são fechadas. P & V - Na minha juventude, havia duas siglas – Aspone (Assessor de Porra Nenhuma) e Asponepotec (Assessor de Porra Nenhuma, Porém Técnico). A despeito de uma sociedade cada vez mais graduada e informada, ainda pululam aspones e asponepotecs, a interferir nos destinos da Humanidade? L.D.F - Refere-se àqueles cuja atividade não passa do esforço para o consumo, não se dedicando a qualquer atividade produtiva? Ou refere-se àqueles cuja atividade visa a garantir aos proprietários o bom emprego e o consumo de seus bens? Ambas as sortes de parasitas são comuns em nossa sociedade: tanto os que consomem sem contrapartida, como os que, com seu esforço produtivo, propiciam aos primeiros as melhores condições para o gozo, assessorando-os por dinheiro. O fato de essa camada social de lacaios ser cada vez mais qualificada e remunerada só lhe causa a ilusão
de não ser ela mesma uma porção a mais do trabalho humano social a ser cooptada pelo capital, mas de tratar-se de um grupo de indivíduos singulares brilhantes, cujos talentos foram reconhecidos e que, por isso, gozam de remuneração consideravelmente superior àquela de seus pares envolvidos na produção. P & V - Ficha Limpa, Comissões de Ética, obras postergadas, que culminam em suas realizações em caráter emergencial (que dispensam licitações e custam bem mais do que o previsto), entre outros exemplos. No frigir dos ovos, ainda acreditamos que “Deus é brasileiro” e seja o que Ele quiser? L.D.F - As obras assim conduzidas fazem parte do problema. O projeto “Ficha Limpa” e as “Comissões de Ética” engrossam a fileira das tentativas desesperadas de conter o vazamento dos gases que necessariamente exalam da mistura que fizemos. Quer dizer: não estando dispostos a mudar o que provoca os males atuais, a gente tenta desesperadamente contê-los em limites toleráveis..., da perspectiva dos pouquíssimos e cada vez menos numerosos privilegiados. E a ilusão acerca da existência desse ser supremo (condensação metafísica de qualidades e anseios abstraídos de nossa própria existência precária em um único ente que nos supera a todos), visto como um agente responsável por nossas ações pretensamente livres, não é exclusividade brasileira. Assim, se os deuses em geral não passam de criações humanas, de personagens míticas, deus algum pode querer ou agir. P & V - Temos assistido a algumas catástrofes naturais, como nos casos de Nova Orleans, dos tsunamis de 2004 e dos terremotos recentes no Japão. Uns culpam os políticos, outros culpam a Deus. Uma espécie de “o inferno são os outros”, como afirmou Sartre. Filosoficamente, como o homem tem usado a ciência e a religião em sua construção individual e social? L.D.F - Essa história de culpar os políticos me faz lembrar o aparato de funcionários impotentes que uma empresa antepõe a si para proteger-se de um
“O homem da modernidade está acorrentado às modernidades que a tecnologia lhe oferece e, muitas vezes, não ousa aprofundar no amor e na solidariedade”, do escritor Ernesto Sabato. 27 Ponto & Vírgula 05.indd 27
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cliente insatisfeito. Lutamos contra o intermediário e nessa luta nos exaurimos, sem nada fazer a quem o comanda e, com isso, nos bate. Quando falamos de corrupção, omitimos, curiosamente, o corruptor! Quem corrompe os políticos? O representante de um grupo de trabalhadores que leva consigo um enorme saco de moedas e notas amassadas e suadas com as quais pretende comprar para eles o seu favorecimento? É assim que se corrompem os políticos? Não são grandes grupos financeiros, industriais ou comerciais que se engalfinham pelo favorecimento, em sua luta fratricida, a um dos lados em detrimento dos demais? As catástrofes são naturais; mas o cenário e as decorrências, em termos de danos e de reação a eles, não o são. São história. P & V - Somos seres que, de alguma forma, para não nos angustiar com a solidão de nossa morte, única, pessoal e intransferível, pulamos de Nostradamus e o fim do mundo, na virada do milênio, para o fantasma de 2012, sem nos aperceber que a ameaça atômica, deflagrada em Hiroshima e Nagasaki, já caminha para 66 anos. Brincar com a energia atômica, com a natureza, flertar com o místico, de forma inconsequente, é uma necessidade de tripudiar sobre a finitude? L.D.F - Não vejo como uma “necessidade de tripudiar sobre a finitude”, sobre a qual não temos de fato o costume de pensar. Pensamos no agora. Pensamos na satisfação da demanda mais imediata. Estamos imersos em um hedonismo superficial, isto é, aprisionados em uma esfera ridiculamente limitada de necessidades. E alguns entre nós detêm meios para que o agir sob essa preocupação acarrete processos de impacto geral. Quem é proprietário de força de trabalho tem que vendê-la de qualquer modo para se manter e busca fazê-lo pelo máximo que puder; os capitalistas têm que investir seus recursos lucrativamente de qualquer modo etc. Se a utilização desse ou daquele procedimento ou recurso propicia ganhos aos grupos mais volumosos de capital, eles serão utilizados, não obstante seu impacto letal sobre toda a humanidade e sobre as demais espécies vivas. É i$$o. Não mais. P & V - “Deus não joga dados com o universo”, segundo Einstein. O ho-
mem joga? Por quê? L.D.F - Dizer “o homem” é sempre perigoso quando se refere a uma sociedade em que não há de fato articulação entre os mais diretamente interessados pela gestão do processo produtivo de sua vida comum. Refiro-me, ao dizer “o homem”, ao conjunto de pessoas que, com sua atividade mais ou menos especializada, põe para operar as complexas e multidimensionais instâncias de ação e interação de que se constitui o ambiente humano contemporâneo? Que autonomia têm? Eles operam segundo a ordem do sistema social global, por meio do qual se submete à produção de lucro a interação autoprodutiva do humano. E é, também, segundo essa lógica que operam, os proprietários de capital, que visam à sua reprodução ampliada. Todos decidem acerca de sua própria vida; mas, em paradoxal luta por meios de vida, dos quais só podem se valer em interação. Não há projeto comum de humanidade.
“A revolução é a saída: essa é a resposta que o vento vem soprando há mais de um século. E é por isso que todas as janelas são fechadas” P & V - Qual sociólogo melhor definiria esses nossos dias? Por quê? L.D.F - Marx, cuja filosofia propicia uma análise sociológica perspicaz, costumava designar nossa era como parte ainda de uma “pré-história”, não no sentido para ele absurdo de uma era não histórica do humano; nem no sentido tradicional de período da história anterior ao registro escrito. Mas, no sentido de um período de nossa história em que nosso poder comum não foi ainda tomado em mãos por nós mesmos de modo efetivamente livre, por meio de instituições de fato democráticas, por serem fundadas na propriedade e apropriação (isto é, gestão efetiva) comuns de todo o aparato material e imaterial de produção de vida humana desenvolvido interativamente pelos homens, na sucessão das gerações, passando pelas mais variadas formas sociais. Para Marx, para inaugu-
rarmos nosso período histórico mesmo, devemos fazer a revolução. Em moldes ainda não criados. P & V - Alguns estudiosos dizem trazermos em nós uma sabedoria milenar. O senhor aconselharia ao ser humano contratar uma boa faxineira, ou uma secretária, que o auxiliasse a dar uma boa faxina, ou a catalogar e arquivar corretamente tal sabedoria, de forma a não mais dar a impressão de nunca achar o que procura, quando precisa? L.D.F - Pelo jeito como fala, me faz lembrar de uma peça publicitária que há em alguns banheiros da Fumec, nas quais a agente de limpeza que ensina universitários (inclusive professores, pois há uma dessas em nosso banheiro) não é representada como humano, mas como formiga. O “ser humano” contrata quem, a formiga? Bem... Essa é outra questão... Quanto ao que perguntou, me referi a essa “sabedoria milenar” o tempo todo, quando falei daquilo de que os proprietários capitalistas se apropriaram, por meios políticos, militares e ideológicos, em pouquíssimos séculos, fazendo da classe expropriadora de nossos tempos a mais eficaz da história. A propriedade do capitalista não é apenas sobre a máquina, mas sobre a força de trabalho daquele que a opera, bem como daquele que a concebe e daqueles que a transportam etc., que se constitui por seu esforço próprio, em meio social. P & V - Há um meio termo entre Nietzsche e Schopenhauer, por um lado, e Poliana, por outro? O que seria esse meio termo e quem seria o pensador que melhor o sintetiza? L.D.F - Pra ser bem sincero, não acredito que assumir como legítimas a posição filosófica e a consequente disposição para a ação de nenhum desses filósofos nos faça algum bem. Tampouco creio que um injustificado otimismo seja de alguma valia como orientação para a conduta. Não se trata, no entanto, de traçar um meio-termo. A lida com conceitos perde a eficácia quando se solta a corda do balão da abstração. Quer dizer, não devemos buscar um equilíbrio entre princípios ou disposições espirituais individuais e pretensamente imunes às determinações históricas como solução para dramas concretamente compartilhados e sofridos em conjunto por entes
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que triunfar sobre os demais. Então, é o outro o que buscamos. Mas, nossas instituições, a partir da primordial, que é a propriedade privada dos meios sociais de produção, nos impulsionam para o contrário. É aí que a coisa se põe.
P & V - Carmen Miranda imortalizou um samba que culpava um coitado de um tico-tico por haver comido todo o fubá. Não se vê mais tico-tico, no entanto, tem faltado fubá, entre outros alimentos, aqui e em outros países. O senhor considera que o ser humano, antes de ter satisfeitas suas necessidades básicas, tem procurado ir diretamente ao topo da pirâmide de Maslow, com consequências óbvias para o “mundo”? L.D.F - Mais uma vez esse sujeito, “o ser humano”. Se falamos do indivíduo que age no cumprimento de suas tarefinhas, temos a ação voltada para a ascensão. Mas, não se trata de achar uma tendência universal como culpada, trata-se de vê-la como consequência. Isto é: essa preocupação em ascender socialmente não explica, mas é explicada por uma sociedade fundada na propriedade privada e na disputa com outros pelas condições materiais de vida. Perdemonos uns dos outros. Reduzimos o outro a meio ou obstáculo em nossa sanha por consumir riqueza. Mas, não é só isso. Temos que consumir diante dos outros, para sermos invejados. Temos
P & V - “Nossa espécie está no rumo firme da extinção. Graças ao capitalismo, vivemos para subir e com medo de cair. A humanidade é um inferno.” O que o senhor acha desta afirmação do psicanalista José Angelo Gaiarsa à revista “Psique Ciência & Vida”, alguns dias antes de morrer? L.D.F - Não seria tão taxativo, mas creio, sim, que haja o risco de nos destruirmos, junto com mais um montão de outras espécies. E também diria que o sistema capitalista, ao ter sido assumido como ordem global, tem tudo a ver com isso, em todas as instâncias, desde a quase generalização da indiferença individual acerca do que é comum, como a ganância nos investimentos, que sobrepõe qualquer escrúpulo em grande parte dos proprietários de capital. Também, por causa das instituições e disposições próprias à sociedade do capital, vivemos o inferno de termos que lutar com nossos iguais pelas condições que são produtos de nossa própria interação, em função da circunstância lastimável de a alguns de nós haver calhado de se apropriarem
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bem reais, em um mundo que, apesar da fantasia de alguns acadêmicos, existe. Não como elaboração linguística, compartida por grupos mais ou menos restritos, mas como resultado real da interação real de entes concretos.
delas. É nesse contexto que temos que, ainda assim, sermos bons. P & V - Por fim, deixando em aberto espaço para o senhor falar de algo que não foi abordado na entrevista: qual o papel da cultura e das artes em nossos tempos? Temos uma arte pobre porque ela imita a vida, ou uma arte rica, pelo mesmo motivo? L.D.F - Refém do mercado, o artista tem que se ajustar às exigências dessa forma alienada de intercâmbio para subsistir por meio de sua atividade peculiar. Nesse contexto, em regra, aquele que produz arte não o faz com vistas a empreender uma intervenção estética autêntica, voltada à promoção de sensações e mesmo reflexões, discussões e ações concretas impulsionadoras da edificação de um mundo mais livre; mas com o propósito de suprir demandas já manifestas de um público potencial que se pretende conquistar como freguês e cujos anseios não vão além da urgência por diversão trivial. Em regra, o artista se sente bem se o anseio de manifestação de seu “eu” (fantasiosamente independente e contraposto à sociedade, que por ela se faz apenas tolher, segundo sua avaliação) tem apelo comercial; e se condena quando não o tem. O parâmetro do sucesso é o acolhimento pelo público. O conteúdo é, em regra, o falso auto-elogio. E o efeito é o entorpecimento.
• Um filme: “A Caminho de Guantánamo” • Um vexame: a prisão de Guantánamo • Um livro: “São Bernardo”, do grande Graciliano Ramos • Uma decepção: após dez anos de magistério, revejo para baixo minhas expectativas • Uma tristeza: a maioria das pessoas defender o status quo, apesar de ser a causa de suas dores • Uma música: “This could be anywhere”, dos Dead Kennedys • Uma alegria: não compartilhar da ilusão de que vivemos no melhor dos mundos possíveis • Um sonho não realizado: os vejo como projetos • Um Ponto G: a alma • Uma verdade: a história não ocorre aos homens; eles a fazem • Uma mentira: o homem é essencialmente egoísta • Uma traição: o suposto Partido dos Trabalhadores • Quem você deixaria, para sempre, numa praia deserta? Acho que iria povoar esse praia! “Consegui meu equilíbrio, cortejando a insanidade”, do poeta Renato Russo. 29
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Entrevista Eliana Fonseca L. V. Sales
[viagem sem volta]
No meio do caminho tem uma pedra
Dados extra-oficiais dão conta de que existem , hoje, no Brasil, cerca de 1,2 milhão de dependentes do crack, dos quais 300 mil devem morrer nos próximos anos, em decorrência da ação devastadora desta droga
Q
ue ninguém duvide. A dependência ao crack, droga criada nos E.U.A por volta dos anos 80, já virou, segundos gestores públicos de saúde, uma epidemia brasileira, com todos os requintes de uma tragédia, com um sério agravante: suas repercussões clínica e social não ficam restritas apenas aos dependentes. Outra constatação é que, inicialmente, esta droga, por ser barata (CR$10 a pedra), era prerrogativa das classes menos favorecidas. Essa discriminação já não mais existe, porque boa parte dos viciados é encontrada na elite brasileira, o que colabora bastante para configurar a doença na categoria epidêmica. Já que “desgraça pouco é bobagem”, como preconiza o ditado popular, na esteira do crack surge, agora, o oxi, droga que consiste na mistura de resíduos de cocaína, água de bateria e querosene. Especialistas já confirmam que o seu consumo frequente pode acarretar a morte dos usuários em apenas um ano. Daí, a oportuna entrevista concedida pela psicóloga Heliana Lopes Veiga Sales, especialista em dependência química, e coordenadora de prevenção da Associação Brasileira Comunitária para Prevenção do Abuso de Drogas (Abraço), tradicional entidade filantrópica da capital.
Por: Rhiza Castro 3º G - Jornalismo Ponto & Vírgula - “Viver é um fardo”. O consumo de drogas, especialmente do crack, pode ser uma resposta, consciente ou não ao ônus que
Franco Serrano
Eliana fonseca l. v. sales, psicóloga da Abraço
implica a existência humana? Como a senhora interpreta esta questão? Eliana Sales - Não acredito que viver seja um fardo. Durante toda a nossa vida, passamos por períodos mais difíceis, outros nem tanto e outros felizes também. Os obstáculos, os problemas, as adversidades, os sofrimentos, as perdas etc. assim como a alegria, o sucesso, a felicidade etc. são aspectos do processo de viver. Até mesmo o que é negativo pode ser fonte de aprendizado, depende da maneira como lidamos com essa experiência. O consumo de drogas não pode ser explicado apenas por esse fator. As motivações que levam os indivíduos a usarem
drogas são multifatoriais e individuais. Não há como generalizar e muito menos ter respostas definitivas ou conclusivas. Cada caso deve ser avaliado individualmente, respeitando as peculiaridades de cada um. P & V - A leitura de “A sociedade da decepção”, o mais recente livro do filósofo francês Gilles Lipovetski, nos leva pelo menos a duas conclusões: o consumo de drogas, o alcoolismo, o consumismo, a compulsão sexual, etc., guardadas as suas especificidades, se assemelham do ponto de vista patológico. A segunda conclusão: são doenças que bebem na mesma fonte
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do fracasso, nas relações sociais. A senhora concorda? E. S. - As compulsões ou transtornos do impulso têm origens semelhantes. Por isso, quando se pensa em tratamento da dependência química, é fundamental aprofundar-se mais nessa questão. Não basta parar de usar drogas e ficar abstinente, é fundamental que o usuário/ dependente químico seja “trabalhado” nas suas questões existenciais e comportamentais. É necessário ajudá-lo no seu processo de autoconhecimento para que ele possa identificar quais as mudanças deverá promover em si para mudar a sua vida. É preciso que ele mude a sua forma de pensar, para depois mudar a sua maneira de agir. Isso fará toda a diferença no seu processo de recuperação. Caso contrário, os comprometimentos e danos decorrentes do uso de drogas tenderão a permanecer, havendo o risco de se trocar apenas o objeto compulsivo (jogo, compras, sexo, comida etc.), não ocorrendo a recuperação do indivíduo. É fato que a dependência química afeta o usuário na sua totalidade: físico, emocional, social e espiritual. As relações sociais são seriamente afetadas ou já estavam comprometidas e, com o advento do uso de drogas, são pioradas. Sua reorganização é primordial durante o tratamento, a recuperação e a reinserção social do dependente. O tratamento deve abordar todos esses aspectos. P & V - Pode-se afirmar que o drogadito, que é um sofrimento ambulante, busca no seu início uma forma de fugir do tédio e da falta de perspectiva? E. S. - Não. Cada caso deve ser avaliado individualmente, pois cada um tem especificidades que devem ser respeitadas e consideradas. Afirmar isso seria uma forma simplista de avaliar um problema de alta complexidade. Mesmo porque, o que você afirmou na sua pergunta, pode até ser uma possibilidade, mas não é a realidade ou uma regra para todos os usuários, principalmente, no início do uso de drogas. P & V - Há um discurso que defende que a prevenção contra o flagelo do crack passa pelo acesso à educação, ao esporte, ao trabalho, etc. No entanto, um estudo da Secretaria de Saúde
do Estado de São Paulo mostra um crescimento anual de 140% no consumo entre pessoas com renda superior a 20 salários mínimos. Como explicar tamanha contradição? E. S. - A prevenção do uso e abuso de drogas, não só o crack, realmente engloba todos esses aspectos citados. Mas, como disse na pergunta anterior, a dependência química é complexa e exige habilidade e agilidade no seu manejo. Nada é definitivo e nem totalmente assertivo. Por isso, nessa área, temos muito mais perguntas do que respostas. Como disse, certa vez, o professor Elias Murad... “Quando eu achei que sabia as respostas, a dependência química mudou as perguntas”. Essa constatação instiga e exige a atualização contínua de conhecimento e do manejo do problema. O fato de pessoas de classes mais favorecidas estarem usando o crack demonstra que não há imunidade contra essa droga e que o ser humano, independente da sua condição social, econômica, cultural etc., é vulnerável. A droga é “democrática”, ela pode atingir qualquer um. Seria injusto e, até mesmo preconceituoso, se só pessoas de classes menos favorecidas fossem afetadas por esse problema. Afinal, organicamente, e até mesmo emocionalmente, somos todos seres humanos semelhantes nas nossas limitações, angústias, inseguranças etc., sem, no entanto, sermos iguais. Essa disseminação, mesmo que negativa e preocupante, deve ser um alerta para a gravidade da situação e quiçá de estímulo para que os governos e a sociedade civil tomem providências cabíveis e eficientes para este problema. P & V - “É fundamental informar aos dependentes químicos sobre os riscos das drogas”. Em contrapartida, as pesquisas mostram que 90% dos usuários adolescentes, sabem, como ninguém sobre os efeitos e os riscos no uso do crack. Ou seja: geralmente, quando os estudos sobre as drogas e seus consumidores, não são paternalistas ou superficiais, são distantes da realidade. Na visão da senhora, por que isso acontece? E. S. - A informação científica correta é apenas uma das estratégias de preven-
ção. Ela por si só não é suficiente para prevenir o uso de drogas. Outros aspectos deverão ser abordados, simultaneamente, para aumentar a probabilidade de eficácia da prevenção. Saber que as drogas podem prejudicar ou causar danos, não é suficiente para alertar os adolescentes. Mesmo porque, nesta fase, eles são onipotentes e acreditam que com eles nada irá acontecer. “Eu nunca vou me tornar um dependente!”. Essa é uma frase comum dita por quem se inicia no uso de drogas. Esse é o desejo: ter prazer ao usar, ter controle sobre o uso e não se tornar dependente. Mas, infelizmente, nem sempre é o que ocorre. E para os adolescentes, devido à imaturidade cerebral e emocional, características próprias dessa fase, os riscos são subestimados. Viver o momento, sem vislumbrar ou se preocupar com o depois, muitas vezes, é a tônica nessa fase da vida. E isso pode ser, para alguns, um fator de risco para o uso de drogas. P & V - Muito pior do que o uso do crack são os efeitos que ele produz, que crescem na proporção que cresce a dependência: destruição familiar, degradação moral generalizada, auto estima em frangalhos, perda dos laços sociais e por ai vai, numa ascendência que, invariavelmente, acaba em morte, cadeia ou loucura. O professor Luiz Flávio Sapori, da PUC/MG, um especialista no assunto, sugere que decifrar o abismo que é o mundo do crack, é a melhor atitude, “para quem não quer ser tragado por ele”. A senhora concorda? E. S. - Acredito que quanto mais aprendermos sobre essa droga e outras, mais teremos condições de lidar com esse problema. Antes de qualquer intervenção, faz-se necessário conhecer melhor sobre o que se irá intervir. Assim devem ser alicerçadas as ações de prevenção e de tratamento. Prevenir é a melhor opção e o tratamento a melhor solução quando o problema já está instalado. Evitar o primeiro contato com essa droga é fundamental. Como você relatou, os danos e sequelas, decorrentes do uso do crack, são devastadores e afetam não só o próprio usuário, mas também a sua família e, direta ou indiretamente, toda a sociedade. É necessário estudar, pesqui-
“Quanto mais frustrante é a sociedade, mais ela promove as condições necessárias para uma reoxigenação da vida”, do sociólogo Gilles Lipovetsky. 31 Ponto & Vírgula 05.indd 31
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sar e principalmente ouvir os usuários e profissionais que trabalham nessa área, para juntos encontrarmos alternativas viáveis, realistas, eficazes e efetivas para o problema.
“Não basta parar de usar drogas e ficar abstinente, é fundamental que os usuários, dependentes químicos, em tempo integral sejam “trabalhados” nas suas questões existenciais e, também, comportamentais” P & V - Sabemos que o crack é uma droga destrutiva, podendo estabelecer o vício desde a primeira vez que consumido. Quais são as substâncias que causam esta dependência às pessoas? E. S. - O crack é uma droga psicotrópica e, como todas elas, tem a capacidade de provocar dependência. Essas drogas atuam no sistema nervoso central e, de acordo com a sua composição química e mecanismo de ação, vão provocar dependência em menor ou maior espaço de tempo. O crack é a segunda droga com maior poder de provocar dependência, só perdendo para a heroína. Isso explica a dificuldade que os usuários dessa droga enfrentam quando tentam parar de usá-la. Porém, é importante ressaltar que, mesmo assim, há saída, há tratamento para o problema. É claro que isso exigirá esforço, empenho e persistência do dependente para conseguir sucesso nesse processo. P & V - O que vemos na cracolândia, em São Paulo, é de se espantar. Crianças de dez anos implorando por uma pedra (o crack), mulheres grávidas fumando. Nas ruas não se vê diferenças sociais, todos estão na mesma condição. O crack leva a essas situações extremas. O que o diferencia de outras drogas que, também, são consideradas pesadas? E. S. - Como eu disse na questão anterior, o mecanismo de ação dessa droga, no organismo, é que faz com que ela seja
muito mais compulsiva, levando o usuário a fazer verdadeiras loucuras para manter o seu uso. O efeito é quase imediato, acontece em torno de dez segundos após o uso, mas também é efêmero. Isso leva o usuário a uma incessante busca pela droga, o que pode durar horas e até dias, culminando num ciclo vicioso: usar a droga para satisfazer a fissura e evitar o desprazer da sua falta. Quando se instala a dependência, o dependente perde o “livre arbítrio”, usa a droga por necessidade e não mais por prazer. P & V - É comum escutarmos jovens afirmarem que usam drogas em festas, porque é uma ajuda para que se possa aproveitar mais, se dizem em outra “vibe”. É comum, também, vermos pessoas de classes favorecidas traficando nestes e em outros ambientes. O que a senhora diz sobre esta facilidade de encontrar entorpecentes? E. S. - Esse tipo de comentário tem me feito refletir sobre o assunto. A necessidade de alterar a consciência poderia significar uma dificuldade desses jovens para “curtir” a vida com sobriedade, dentre outras coisas? Infelizmente, a nossa cultura estimula e reforça este tipo de comportamento. As bebidas alcoólicas fazem parte do nosso cotidiano desde muito cedo. E elas são, muitas vezes, o início para novas descobertas. “O que será que vou sentir quando usar tal droga?”. A expectativa de que a festa ficará mais animada, a curiosidade somada à necessidade de se sentir incluído na turma, ou mesmo mascarar uma baixa autoestima são aspectos que devem ser analisados quando ouvirmos esse tipo de afirmação. O que no início, aparentemente, seria uma forma de potencializar uma curtição pode se tornar um hábito e, até mesmo, uma dependência, podendo levar estes jovens a um descontentamento ou desinteresse por programas sociais nos quais o uso de drogas não esteja associado. Assim, reduzem-se as opções de lazer saudável e o vínculo com pessoas que não comungam da mesma ideia. Por outro lado, a facilidade de acesso às drogas, nos dias atuais, também agrava o problema. Enquanto houver demanda, haverá oferta e, quanto maior a oferta, mais fácil será o acesso. Esta é a lei de mercado, com o diferencial de que, em relação às drogas, não é preciso fazer propaganda. O dependente do crack, por exemplo, é capaz de cometer atrocidades por ela. Curtir a
vida com lucidez e sobriedade deveria ser um novo paradigma para nós mesmos e, principalmente, para os jovens. Este é um grande desafio. P & V - Segundo dados extra-oficiais, o percentual de cura dos drogados gira em torno de 1%. A senhora confirma esse percentual? Quais são os fatores que mais conspiram contra a recuperação do viciado? E. S. - Não confirmo. Segundo uma pesquisa recente sobre o uso de crack, 1/3 dos usuários se recuperam, 1/3 deles cronificam e 1/3 falecem. São vários fatores que interferem na recuperação dos dependentes. As motivações para usar ou abandonar o uso de drogas são individuais e específicas. Mas, sem dúvida, a complexidade do problema dificulta o seu manejo. Tanto o próprio usuário, quanto a sua família e até mesmo os serviços de atenção à dependência, muitas vezes, sentem-se impotentes diante do problema. É comum os dependentes se submeterem a vários tratamentos, aparentemente, sem sucesso, para só depois se recuperarem. Certamente, cada tratamento anterior contribuiu para o sucesso do atual, mesmo que, durante esse processo, o próprio usuário e seus familiares não tenham percebido isso. As expectativas, pouco realistas e imediatistas, em torno da recuperação do dependente, também, impedem ou atrapalham a ele e, principalmente à sua família, de valorizar os pequenos êxitos conseguidos. Cada progresso deve ser valorizado, estimulado e reforçado. O tratamento é um processo que exige tempo e diversos esforços para que se atinja o seu objetivo. Por isso, é fundamental não desistir e persistir sempre com o tratamento e a reinserção social do dependente. P & V - Segundo a revista Minuano, em sua edição especial sobre o crack, 1,2 milhões de brasileiros já estão viciados nesta droga; o Brasil detém 81,7% das apreensões na América do Sul e 300 mil consumidores vão morrer nos próximos seis anos em decorrência do vício. Que relação a senhora faz entre este quadro e o trabalho que desenvolve na Abraço? E. S. - Quando fundou a Abraço, o professor Elias Murad, que trabalha nessa área há mais de 40 anos, já sabia o tamanho do problema. Infelizmen-
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te, sabia, também, que ele tenderia a se agravar, se não se fizesse nada. De maneira visionária, ele previu o que estamos vivenciando hoje. Assim nasceu a entidade há 25 anos. O nosso trabalho é mais um que se soma a outros afins, com o objetivo de prevenir, tratar e reinserir, socialmente, o dependente químico. Não temos a pretensão ou a utopia de acharmos que temos ou que somos a solução para esse problema. Mas temos consciência da importância do trabalho que desenvolvemos, o que é demonstrado por meio do impacto e resultados obtidos com os nossos pacientes. Posso assegurar que, sem o trabalho da Abraço e de outras instituições que também atuam nessa área, as estatísticas apresentariam dados muito piores do que os citados. Acredito que só se muda a realidade com ações concretas e a Abraço tem feito a sua parte nesse processo.
“O fato de pessoas de classes mais favorecidas estarem usando crack demonstra que não há imunidade contra esta droga e que o ser humano, independente da sua condição social, econômica , cultural, é vulnerável” P & V - Os drogaditos têm compulsão pela mentira (mitômanos). A senhora percebe esse viés em seus pacientes? E. S. - Sim. Mas, mais uma vez não podemos generalizar. A mentira é uma característica comum entre eles. Mas ela deve ser analisada e avaliada de acordo com cada pessoa e ocasião. O que ela significa? Uma fantasia? Uma manipulação? Uma verdade na qual ele acredita? Portanto, tudo deve ser “aproveitado” como um instrumento que favoreça o tratamento e o processo de recuperação do dependente. A mentira é, dentre tantos outros, um comportamento que
O uso do crack não depende da faixa etária e nem mais de posição econômica e social
deve ser trabalhado com o dependente químico, durante o seu tratamento. P & V - O crack é considerado uma droga barata, consumida pela classe baixa, porém as coisas mudaram. Esta droga é consumida, agora também, pela classe média alta. Como a senhora interpreta essa perniciosa socialização? E. S. - Os seres humanos são semelhantes. A necessidade de alterar a consciência faz parte da existência humana desde os primórdios da humanidade. O poder econômico, a bagagem cultural ou intelectual, não imunizam ninguém em relação às drogas. Por detrás de todo dependente químico, existe um individuo com motivações específicas para estar fazendo o seu uso, independente da droga usada. Isso é que deve ser observado e avaliado. Nesse caso, ninguém é melhor do que ninguém, todos se igualam na vulnerabilidade. P & V - Com certeza, a senhora já escutou muitas histórias. Qual a que mais lhe chocou ou emocionou? A propósito: filhos de psicólogos, e psiquiatras, por razões óbvias, estão livres do inferno das drogas?
E. S. - Já ouvi várias histórias que me emocionaram. É difícil escolher uma. De uma maneira geral, alicerço o meu trabalho no conceito clássico da empatia. Procuro sempre me colocar no lugar do outro, para assim, entender melhor o que ele está sentindo. Dessa forma, todas me sensibilizam e me fazem refletir e aprender com elas. O mais importante para mim é quando, com o meu trabalho, consigo ajudar essas pessoas a reorganizarem as suas vidas e transformarem histórias tristes em finais mais adequados e até mesmo, felizes. Não. Os filhos desses profissionais não estão imunes a esse problema. O fato de serem filhos de pessoas que, teoricamente, estariam mais preparados para educá-los não significa garantia de proteção. Não há “vacina”. O que há é a forma de como são orientados e educados durante a sua formação como pessoa. Os pais, independente das suas profissões, podem “funcionar” como fatores de risco ou de proteção para o uso de drogas. Podem ser modelos positivos ou negativos, dependendo de como exercerem o seu papel de pais.
“Eu não fui feito para a política, porque sou incapaz de querer ou aceitar a morte do adversário”, do escritor Albert Camus. 33 Ponto & Vírgula 05.indd 33
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P & V - Pela sua experiência, qual é a reação mais comum de se ver entre familiares de viciados em entorpecentes? O sofrimento das famílias é maior do que o deles? Por que? E. S. - A dependência química afeta não só o usuário, mas também a sua família. Há uma mistura de sentimentos, onde as atitudes e comportamentos são regidos por emoções em detrimento da racionalidade. Isto provoca um ciclo vicioso, no qual a família oscila nos extremos de se sentirem onipotentes e “salvadores” ou impotentes e “vitimas” do problema. Mas, os sentimentos de impotência, desespero e falta de perspectiva são mais comuns nessas famílias, à medida que o tempo passa e problema se agrava. Não podemos afirmar sobre quem sofre mais nesta história. Mesmo porque, sofrimento não se compara. É fato que todos sofrem, cada um à sua maneira.
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P & V - O Brasil é um país que possui um alto índice de consumo de bebidas alcoólicas. Em que medida esta dependência, ainda que social, pode acarretar no aumento da probabilidade no uso de drogas? E. S. - Neste campo, o raciocínio não é linear. Quem faz uso de bebidas alcoólicas não irá necessariamente usar outras drogas. Por outro lado, existem pesquisas que apontam alguns fatores de risco para o uso de drogas e o uso de drogas lícitas, como o álcool e o tabaco, é um deles. É importante que cada caso seja avaliado individualmente. A relação de quem está e como está fazendo o uso da bebida é que deve ser analisada. É importante ressaltar e alertar que, um episódio de bebedeira, pode trazer con-
sequências sérias, mesmo que o usuário não seja um alcoolista ou vá se tornar um usuário de outras drogas posteriormente. Os acidentes de trânsito são provas disso e isso é grave e preocupante. P & V - Os filmes “Tropa de Elite I e II” e “Meu nome não é Jhonny”, somados à novela Passione, produções de comprovada audiência, mostram a vida de traficantes e viciados em drogas em toda sua dimensão. Sendo ficção ou não, a arte e a mídia são boas aliadas no combate às drogas, ou combatendo, correm o risco de reforçar? E. S. - A mídia tem um poder de intervenção e influência enormes. É uma formadora de opinião e chega aonde outros meios de prevenção não chegariam. Mas, algumas vezes, tem sido subutilizada ou utilizada de forma inadequada. Dependendo da forma como são veiculadas, as informações podem ajudar ou atrapalhar, estimular ou desestimular o uso de drogas. Ao se fazer uma reportagem sobre o assunto, é necessário que se pergunte sempre: para que, por que, como fazer e qual será a repercussão disso nas pessoas. A abrangência da mídia e das artes deve ser aproveitada para atingir um maior número de pessoas, mas de maneira positiva e correta. Mas, sem dúvida, alguns segmentos da mídia tem tido a preocupação e o cuidado de abordar esse assunto com sabedoria e como meio de educar e estimular a reflexão.
P & V - Internação involuntária: esta é uma questão recorrente que tem envolvido profissionais de saúde, gestores públicos e autoridades. Por que tanta celeuma? Até onde é correto priorizar a internação voluntária e preterir a compulsória? Qual a posição da senhora a esse respeito? E. S. - O bom tratamento pressupõe um diagnóstico correto para que a conduta terapêutica seja adequada. A avaliação de cada caso corretamente é que norteará o tipo de encaminhaO fácil acesso dos usuários ao crack não só preocupa as mento que deverá autoridades como se transforma num desafio
ser dado ao caso. Existem critérios de elegibilidade para subsidiar os casos onde há indicação de internação. A internação involuntária ou a compulsória (existe diferença entre elas) só deve ser utilizada quando realmente houver necessidade e exige sempre um parecer médico. Caso seja feita, o mais importante, agora, é a maneira como se conduzirá o tratamento. Este deverá ser pautado pela ética e profissionalismo, respeitando-se os direitos humanos e a dignidade do paciente. A internação voluntária pressupõe, teoricamente, uma maior consciência do seu problema e comprometimento do paciente com o seu tratamento. Por isso, ela é mais desejada. Mas, também, não significa que o tratamento terá mais sucesso do que para aqueles que são internados involuntariamente. “O tratamento não precisa ser voluntário para ser eficiente”. Não sou contra a internação involuntária desde que haja indicação para tal e que sejam respeitados os direitos humanos, a dignidade do paciente e, principalmente, que o tratamento seja eficaz e ajude verdadeiramente o dependente. O início do tratamento pode ser involuntário, mas a recuperação do paciente, não. Caberá, então, ao serviço, estimular a adesão e comprometimento desse paciente com o seu tratamento e recuperação. A internação, mesmo que involuntária, deve ser encarada com uma “medida protetiva” e não punitiva e deve ser uma intervenção temporária, nunca permanente. P & V - É alta a porcentagem de exviciados de terem uma recaída após longa recuperação? E. S. - A recaída é quase uma regra no processo de recuperação dos dependentes químicos. Mas não significa que ela seja sempre negativa. Ela pode ser mais um instrumento de reflexão no fortalecimento da consciência do dependente sobre o seu problema e poderá ajudá-lo a melhorar o seu manejo. Recaídas são comuns, mas o levantar e continuar o processo de recuperação é que deve ser o foco principal e mais importante na vida do dependente. Não se deve desanimar frente às recaídas, deve-se aprender com elas. P & V - Onde estão os maiores entraves ao combate das drogas? No co-
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tidiano dos tratamentos? E. S. - Existem vários entraves, não só nos tratamentos. O raciocínio deve ser holístico e amplo. Há de se reduzir a demanda por meio de intervenções de prevenção e do tratamento e a oferta por meio da repressão ao tráfico. São tarefas árduas e que exigem a ação de todos, de forma unificada e contínua. É certo que sempre há o que se melhorar, aprimorar e atualizar nessa área.
Sem Pestanejar
P & V - A presidente Dilma Rousseff afirmou que o combate contra o crack será “sem quartel”. Esta luta deve ocorrer em quatro eixos: prevenção, tratamento aos usuários, combate ao crime organizado e controle de fronteiras. Será que vai funcionar? O que a senhora acha dessa decisão? E. S. - A presidente Dilma não está “reinventando a roda”, ela está se norteando em conceitos já testados. O importante é agregar esforços e novos saberes durante todo esse processo, garantir a sua continuidade e eficácia, para assim, aumentar a efetividade dessas ações. É fundamental, também, que todo este planejamento se materialize
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em ações concretas para não correr o risco de se transformarem em estórias do “faz de conta”. É preciso agir mais e de maneira organizada e planejada. Nessa área, não há soluções prontas, mas temos que, seguramente, ter alternativas para lidar com o problema. Só o tempo dirá se esse programa irá funcionar ou não. Acredito e torço para que tenha sucesso. P & V - A miséria e a opulência; o anonimato e o exibicionismo, embora antagônicos, são campos férteis ao estímulo das drogas? E. S. - Tudo pode ser estímulo para o uso de drogas, depende da maneira como quem faz o uso lida com a realidade e as circunstâncias da vida. Nada pode ser generalizado. P & V - Mesmo com todas as dificuldades e os pífios resultados, a dedicação e a competência da senhora são reconhecidas por todos. Isso passa pela autopenitência? E. S. - Não. Jamais seria uma autopenitencia! Acredito que cada um de nós tem um papel a desempenhar nesse mundo. Este foi o que escolhi ou
foi “escolhido” para mim. Tenho plena consciência das dificuldades e desafios que a minha profissão exige. Mas também sei o quanto é gratificante constatar que, através dela, ajudo pessoas a se recuperarem da dependência. Aprendi que, nesta área, a quantidade dos resultados não é o mais importante, pois depende do ponto de vista de quem o está analisando. E se fosse meu ou o seu filho? A sua recuperação não seria o dado estatístico mais importante? Nesse caso, certamente, os resultados não são pífios. Eu diria que, além da consciência dessa realidade, existe em mim a fé de que é possível mudála. E isso não é uma utopia, é um sentimento otimista, pragmático e factível. Não persistir com esse trabalho ou esta crença, é “condenar” os dependentes químicos ao abandono e a falta de perspectiva de melhora. O uso do crack pode estar sem limites, mas, ao contrário do que se espera, isso deve ser um estímulo para eu continuar e aprimorar cada vez mais o meu trabalho e não desistir. É muito bom trabalhar movida pela humanidade, com amor, aliandose a ciência com a prática e respaldada pela espiritualidade.
Um filme: “Perfume de Mulher”. Um vexame: a incoerência entre o que se prega e o que se faz. Um livro: “A Cabana”. Uma decepção: a corrupção Uma tristeza: a desigualdade social Uma música: “O que é, o que é”, de Gonzaguinha Uma alegria: ficar em casa com a minha família. Um sonho não realizado: montar um serviço de atenção à dependência química, holístico. Um Ponto G: o amor. Uma verdade: a vida é passageira, por isso saiba viver. Uma mentira: Deus não existe. Uma traição: a desonestidade. Quem você deixaria, para sempre, numa praia deserta? Pessoas cristalizadas em seus conceitos e que não se dispõem a mudá-los, mesmo quando, mantê-los, signifique prejuízo para outrem.
“A juventude é dissipação. A vida adulta, uma luta. A velhice, um arrependimento”, do filósofo inglês Benjamim Disraeli. 35 Ponto & Vírgula 05.indd 35
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Entrevista Stélio Lage
[cada um para si; todos pelo mercado]
Consumir é preciso; viver Não é preciso O sistema econômico, idealizado como definitivo pelos liberais, chega ao século XXI na forma de um capitalismo que é ópio e chicote ao mesmo tempo. Nas entrelinhas do consumo desenfreado, habita o homem, ao mesmo tempo, presa fácil e cúmplice Pedro Vilela (Viver Brasil)
Stélio lage, psicanalista
N
a mitologia grega, as Danaides são ninfas condenadas no Tártaro à tarefa , sempre, de encher de água um tonel sem fundo, para que seus pecados fossem lavados. Com o mesmo objetivo, a sociedade de consumo se mostra, cada vez mais, sedenta por produtos novos, porque o que se compra hoje se torna ultrapassado e descartável a prazos banais. Haveria alguma forma do homem contemporâneo escapar desse desejo insaciável que o domina e o devora, ou estaremos fadados, para sempre, ao domínio deste ciclo autodestrutivo? Para traçar um perfil aprofundado do consumismo como uma cultura ociden-
tal sedimentada, que aprisiona o homem como vítima e algoz, entrevistamos, ninguém menos que o psicanalista, D.E.A. em filosofia pela Universidade Complutense de Madri, Stélio Lage. Confira a seguir, porque uma oportunidade desta não acontece duas vezes.
Por: Victor Mello 6º G - Jornalismo Ponto & Vírgula - A que o senhor atribui tamanha importância para o homem contemporâneo associar a própria identidade aquilo que ele consome?
Stélio Lage - A partir da Idade Moderna, um novo discurso modificará profundamente as relações do homem com seu Ser e com o mundo. O que deveria ser o próprio de cada um, e do qual cada um deveria realmente se apropriar, transformar-se-á em objetivo de possuir alguma propriedade material. Neste sentido, os objetos passarão a ser, progressivamente, supervalorizados como respostas privilegiadas para a questão fundamental: “afinal, o que somos?”. Atualmente, em decorrência desta modificação, impera uma resposta: “somos o que apropriarmos dos objetos oferecidos no mercado ”ou, então, “somos os objetos que possuímos?”. P & V - Em que momento da história o senhor acredita que se deu essa transformação, se ela realmente ocorreu? S. L. - Novas descobertas tecnológicas promoveram os fundamentos para o que Max Weber conseguiu muito bem destacar, na ética do protestantismo, como o “espírito” do capitalismo. Bastaria para isto avaliarmos, com um bom exemplo, os efeitos da invenção medieval do relógio de corda. Esta maquininha, movimentando-se por conta própria, foi capaz de abalar profundamente as crenças seculares de que tudo no universo só movimentava-se por causa de um Deus; ou de qualquer outro elemento central, unívoco e autorregulado. Todavia, nem por isto, o primitivo encantamento humano pelo Absoluto foi capaz de fenecer. Revigorado pela Reforma, o Divino
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posteriormente irá acoplar-se a novos princípios. Isto será, então, fundamental para uma postura, abençoada, de consumo perante o achaque, cada vez mais intenso, dos objetos multiplicados com os avanços modernos dos ofícios técnicos. E, neste novo contexto, podemos afirmar que, ao recusar entregar-se à própria sorte, o homem acabou tornandose presa fácil do mercado. P & V - Quanto mais se bebe dessa relação de consumismo, mais sede tem o homem por produtos mais novos, da próxima geração. O que ele compra hoje se torna ultrapassado em uma velocidade de descartável. O que fazer para por fim a esse ciclo insaciável? Estaríamos condenados ao mesmo destino das Danaides, condenadas no Tártaro a encher de água um tonel sem fundo? S. L. - O objeto do desejo é o que toma lugar, no imaginário humano, do que somos privados simbolicamente. Daí, o valor de fetiche dos objetos: como suportes imaginários de uma satisfação perseguida pelos movimentos do desejo, onde estes objetos sucedem-se sem parar. Todavia, o desejo humano estrutura-se como um procedimento onde, sobretudo, o que realmente importa é o movimentar-se. E, neste sentido, o desejo só quer mesmo desejar! O consumismo desenfreado alimenta-se desta condição irremediável do desejo e, principalmente, do engodo que promete a garantia da satisfação no encontro com algum objeto que se preste, enfim, a consumá-la. P & V - Karl Marx, em sua obra “O Capital”, apontou a exploração do patrão sobre o operário na mais-valia. Esse trabalhador hoje tem mais poder de compra do que aquele do século XVII, mas se tornou um dependente dos seus desejos de consumo de produtos superfaturados, visando sempre a maximização do lucro. Como o senhor analisa essa relação de exploração de início e fim do consumidor de classe média? S. L. - O discurso capitalista expandia suas teias a searas onde, em épocas anteriores, poucos podiam imaginar que ele viesse imperar. Como exemplo, o que chamamos banalmente de mercado,
penetrou também na realidade virtual. A mais-valia, antigamente concebida como decorrente apenas da comercialização dos produtos advindos do trabalho, desdobra-se agora, também, nas navegações pela web, na propagação de marcas, na exibição de filmes, nos espetáculos e shows e, claro, ainda mais no consumo massivo de objetos tecnológicos promovidos e propagados pela comunicação de massa. Consequentemente, exatamente na era onde o que mais se proclama são os benefícios da liberação, nunca o homem encontrouse tão sutil e ferozmente aprisionado. P & V - Há algumas décadas, era comum de se encontrar pelas cidades, restaurantes que somente permitissem a entrada daqueles que trajassem uma determinada vestimenta, como ternos e sapatos, por exemplo. Estaria a satisfação desse consumidor na frustração dos que ficam do lado de fora?. S. L. - Como decorrência direta do fenômeno de globalização, desmoronam-se - cada vez mais - as barreiras fronteiriças dos antigos territórios que delimitavam diferenças étnicas, culturais e regionais; onde era possível situar um dentro e um fora. Nesta mesma direção, como um efeito deletério, vão se tornando também invisíveis os limites por onde se demarcavam as clássicas formas de exclusões. “Somos todos cidadãos do mesmo mundo”, apregoam os arautos desta nova situação. Mas, que mesmo mundo? Pois, atualmente, o que se verifica é a intensificação da exclusão por novas formas de segregação, que ocorrem concomitante ao processo mesmo de inclusão. Portanto, sob os auspícios de um liberalismo – sempre promissor quanto ao acesso coletivo do bem estar social - prolifera uma nova política de dominação, onde o que realmente conta é que o mercado global persiga o máximo da sua expansão. P & V - Ocorre nos últimos anos uma drástica popularização da freqüência nos shoppings centers, o templo máximo da sociedade de consumo. Para o senhor, até que ponto esse fenômeno representa uma maior igualdade entre as classes? S. L. - As grandes lojas de departa-
mentos, surgidas nos EEUU ao final da década de 50, são as verdadeiras precursoras dos shoppings centers atuais. A concepção destas lojas acabou sendo um grande lance para a implantação “democrática” do consumo de massa. A ideia é a de qualquer um ali possa entrar e, dentro do seu padrão econômico, procurar, achar e adquirir algum objeto. Todavia, nestes templos da oferta de produtos, esta presumida igualdade entre as classes é bastante ilusória. Claro que a todos é facultado o entrar, transitar, olhar. Mas, sem nenhuma dúvida, nem todos terão como pagar o que ali está oferecido.
“ O que assistimos, atualmente, é a expansão do capital monopolista globalmente saturado. Neste contexto, predominam a miserabilidade, a fome, a violência e a prevalência da informalidade nos laços de trabalho”
P & V - Não seria uma rendição à idolatria do consumo, já que a grande maioria das vitrines permanece a estampar preços de difícil acesso para as classes C e D. Segundo sua avaliação, essa socialização não passa de um mascaramento? S. L. - Nada mais eficaz para a manutenção pacífica do status quo do que a difusão e propagação de exemplos, que nunca faltam, daqueles oriundos da vida mísera que atingiram célebre sucesso econômico e profissional. Esta é maior vitrine por onde a mídia ajuda a mascarar a cruel desigualdade inerente ao capitalismo. Estes exemplos funcionam como um chamariz, como um canto de sereias, onde o resultado acaba quase sempre sendo do tipo: “ah, como somos todos iguais e se ele pôde chegar lá então, claro, por que não, eu também, poderei!”. A propaganda do consumo segue a mesma via: “você pode não ter isto ou aquilo
“Errar é humano. Botar a culpa nos outros, também”, do humorista Millor Fernandes. 37 Ponto & Vírgula 05.indd 37
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que te oferecemos; mas se esforce ainda mais na peleja que um dia, mais cedo ou mais tarde, também poderá conquitstar estes objetos”. P & V - O senhor acredita ser possível pensar em um modelo econômico autossustentável no mundo globalizado do século XXI, que não tome como base a exploração do consumismo? S. L. - Um modelo autossustentável não é uma utopia, pois os povos das florestas, originalmente seminômades, souberam viver muito bem assim. O desafio maior, que parece tornar-se cada vez mais insuperável, está colocado pelo atual esgotamento das reservas energéticas naturais e pela destruição das fontes vitais que propiciam a nossa existência. Neste sentido, a utilização do saber, tecido e depositado como poder, e o encargo de “ministro e intérprete da Natureza”, que desde Bacon tem impulsionado tanto uma determinada maneira de viver, acabaram conduzindo o homem contemporâneo a deparar-se, novamente, com a perplexidade da sua própria existência, num mundo que parece prestes a ruir.
tativas de regulação. P & V - O senhor teme que o maior acesso das classes mais baixas a financiamentos, empréstimos e créditos possa levar o país a uma crise semelhante à imobiliária nos Estados Unidos, em nome do consumismo? S. L. - É bem provável que tal previsão ocorra. Mas, num campo mais amplo, devemos considerar que as inúmeras crises do capitalismo ocorrem em virtude de uma lógica onde o processo tende a culminar, inexoravelmente, na sua própria destruição. Neste sentido, como afirmei acima, já é possível constatar atualmente uma prova incontestável da inviabilização da perspectiva desenvolvimentista: se 5% da população mundial, que residem nos EUA, consomem 25% dos recursos energéticos do planeta, basta fazer uma conta simples para concluirmos, rapidamente, que jamais toda população mundial poderá alcançar o bem estar social, tão propagado pelo “way of life
juridicamente e, portanto, de maneira correta, justificado. Mas, afinal, quem ainda duvida que, perante a aplicação sancionada da Lei, somente os poderosos permanecerão praticamente intocáveis?
P & V - O senhor concorda que o Código de Defesa do Consumidor, embora importante, é apenas um aparato burocrático à margem da complexidade que envolve o consumismo? Por que? S. L. - Sem nenhuma hipocrisia, podemos afirmar: o homem também visa os excessos! O que, em outras palavras, nada mais é que um querer atingir um estado de pleno gozo. Neste sentido, ao promover a conquista infindável e a posse excessiva de objetos, o consumismo deve ser considerado como uma nova modalidade econômica pela qual o homem experimenta esta condição onde o que pode contar é o seu gozo. Todavia, isso nunca deixa de ocasionar também alguma espécie de culpabilidade, de mal estar. Mesmo tardios, eles emergem. Seja pelo arrependimento do ímpeto, pela repentina descoberta da inutilidade do que foi consumido ou P & V - A folclórica resistência “ A propaganda do consumo segue a pela assustadora dívida a saldar. francesa ao “Mc Donald’s” cedeu. mesma via: você pode não ter isto ou Portanto, cedo ou tarde demais, Hoje o país é o segundo mais luesta forma de gozar revela-se crativo para a rede de fast-food, aquilo que te oferecemos, mas se esforce insuficiente. E, como todo gozo atrás apenas dos Estados Unidos, ainda mais na peleja, que um dia, mais nunca tem fim, não tem medida e, em dezembro de 2009, foi inaue é incontrolável enquanto tal, o gurada uma loja no Museu do cedo ou mais tarde, também, poderá consumismo acaba sempre exiLouvre, um dos cartões postais de gindo novamente um relançar-se conquistar estes objetos” Paris. Há de fato um processo de num consumir um pouco mais. exaustão dos movimentos antiUm impossível a regular, algo consumistas? para o qual o aparelho jurídico é S. L. - O capitalismo é, sem dúconvocado, com sua existência, a vida, um sistema autodestrutivo. Basta, P & V - Em sua grande maioria, os administrar. quanto a isto, revelar a inviabilidade indivíduos que sofrem algum tipo de estrutural da expansão desenvolvimen- discriminação nas relações comerP & V - Do ponto de vista psicanalítista de Keynes, presente inclusive nas ciais não podem arcar com as custas tico, que relação o senhor faz entre a propostas da dita esquerda neoliberal. judiciárias. O Procon e o Juizado Es- overdose de consumo, a sexualidade e O que assistimos atualmente é a expan- pecial estão em condições ideais para a política? são do capital monopolista globalmente atenderem essa gente? S. L. - A “Sexpol”, tão cara à Marcuse, saturado, ao qual não mais corresponS. L. - No campo da práxis política, Reich e a todos que tentaram articular dem crises de expansão e parada, mas a máxima “Todos são iguais perante a sexualidade e política, acabou gerando sim uma instabilidade contínua. Neste lei” instituiu-se como um fundamento apenas atitudes utópicas, outras delicontexto, predominam a miserabilida- universal da sociedade moderna. Desta rantes e algumas manifestações como de, a fome, a violência e a prevalência da máxima desdobram-se inúmeros argu- a revolta estudantil de maio de 68. Hoje, informalidade nos laços de trabalho. Ao mentos ideológicos e, entre eles, vários efetivamente, podemos constatar que o mesmo tempo, de maneira mais trágica, são verdadeiros sustentáculos conceitu- brilhante esforço intelectual empregaassistimos a uma exaustão destrutiva ais da modalidade democrática de ser- do naquela tarefa não foi capaz de gedos recursos naturais e do ecossistema vidão humana. Mas, o mais importante: rar nenhuma nova erótica que pudesse, em uma escala exagerada, como nunca amparado na aplicação desta máxima o por si só, conduzir-nos coletivamente dantes, capaz de desafiar quaisquer ten- status quo do poder democrático viu-se a inventar uma diferente forma de laço
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social. As maiores preocupações gravitam sobre até quando a humanidade, nas atuais condições, poderá subsistir. Quanto a isto, podemos considerar que o espírito humano é um frenesi da natureza. Mas, não apenas no sentido de um estardalhaço e, sim, com o significado etimológico de phrénesis: de um sopro que movimenta o diafragma. Portanto, o espírito é tal como um sopro, um suspiro. Algo vital, mas contingente e que, enquanto tal, deverá passar... P & V - Até que ponto o consumismo sublima as frustrações contemporâneas e alimenta os divãs? S. L. - A sublimação implica sempre num processo criativo, inventivo. Podemos considerar, via de regra, que o consumismo não ocasiona, por si só, sublimações. O que ele põe mais em marcha são apenas deslocamentos, substitui-
ções. Daí a insatisfação sempre presente na atitude exacerbadamente consumista. Por outro lado, o dispositivo analítico só tem uma verdadeira alimentação: o desejo do analista. Esta é a genuína fonte que pode conduzir alguém a enfrentar o âmago da sua insatisfação, reencontrando e assumindo daí o que lhe é de mais próprio e singular. P & V - Cada um para si, e todos pelo mercado: qual o preço desta inversão de valores que deixou de ser uma atitude para se transformar num paradigma? S. L. - Como afirmei, anteriormente, o “para si” do discurso capitalista é, na verdade, um “para o objeto”. Neste sentido, a máxima “todos podem gozar” acabou reduzindo-se a “todos podem gozar dos objetos oferecidos pelo mercado”. Aqui é preciso destacar que, na consecução
desta máxima, os corpos também entram na série destes objetos. Portanto, a grande novidade contemporânea é a ampliação da regra geral do individualismo “todos podem gozar” para “todos podem gozar do seu corpo”. Daí, a profusão atual das técnicas voltadas para o aprimoramento corporal e para o enaltecimento da fisiocultura: as infindáveis cirurgias estéticas, as lipoaspirações, os regimes intermináveis, o vício pelos exercícios físicos etc. E, nesta direção, o que constatamos é que cada um pode, assim, acabar submetido também ao consumo, entregando seu próprio corpo como mais um dos objetos no mercado. P & V - Consumir é preciso; viver não é preciso: o que o senhor acha desta afirmativa? S. L. - “Viver é negócio muito perigoso”, já dizia o grande Guimarães Rosa.
Sem Pestanejar
“Se 5% da população mundial, que residem nos EUA, consomem 25% dos recursos energéticos do planeta, basta fazer uma conta simples para concluirmos, rapidamente, que jamais toda a população mundial poderá alcançar o bem estar social, tão propagado pelo way of life”
• Um filme: “O Anticristo”, de Lars Von Trier. • Um vexame: chegar a um encontro marcado um dia depois • Um livro: “Grande Sertão: Veredas”, de Guimarães Rosa. • Uma decepção: o governo Lula • Uma tristeza: a atual destruição do ecossistema • Uma música: “Nona sinfonia”, de Ludwig Van Beethoven. • Uma alegria: Gabriela • Um sonho não realizado: despertar completamente • Um Ponto G: o saber alegre • Uma verdade: a finitude • Uma mentira: a noção de Totalidade • Uma traição: o cinismo da política partidária. • Quem você deixaria, para sempre, numa praia deserta? A noção de Absoluto
“Este mundo apresenta tal crosta de vulgaridade, que o desprezo que ele suscita no homem de espirito, adquire a violência de uma paixão”, do poeta Boudelaire. 39 Ponto & Vírgula 05.indd 39
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Entrevista Paulo R. Repsold
[corra, se for capaz!]
Psicopata Educado, argiloso, convincente, perigoso Assim como nos filmes, o psicopata ensaia o roteiro que vai ser contracenado com várias pessoas. Escolhe o figurino e o local da filmagem. No final, na maioria das vezes, é assistido por milhares de mentes sensíveis e emotivas. A ingenuidade da platéia garante ao psicopata o Oscar de melhor ator Franco Serrano
ser ele mesmo. Ou entre seus amigos, pedindo que banquem a conta da noitada. Ou pior: talvez esteja na sua cama. O recém-empossado coordenador estadual de Saúde Mental do governo mineiro, médico-psiquiatra forense, Paulo Roberto Repsold, brinda os leitores da Ponto & Vírgula com a entrevista a seguir. Antes, porém, faz questão de reafirmar: “os psicopatas têm capacidade de compreender a criminalidade dos atos que praticam, embora tenham uma importante dificuldade de controlá-los”.
Por: Juliana Pio 5º G - Jornalismo
Paulo roberto repsold, médico-psiquiatra forense
N
o primeiro contado, o psicopata é o espelho que completa as nossas fraquezas. Boas credenciais, símbolos de status, histórias fascinantes e talento para identificar e preencher nossas carências. Conquista nossa confiança como amigo, parceiro sexual, colega de trabalho, médico e consultor financeiro. Até que caia sua máscara de normalidade e ele mostre que, ao contrário
de sua encenação, não sente remorso, culpa, nem vergonha de agir de forma imoral. É indiferente ao bem-estar alheio e, sem freios éticos, é capaz de pôr em prática qualquer plano para atingir seus desejos. Então, como é possível se prevenir dessas pessoas? Onde está essa gente mal intencionada? Talvez no seu escritório, decidindo que ninguém vai ter participação nos lucros do ano, a não
Ponto & Vírgula - “O homem é mau por natureza”, já dizia Nicolau Maquiavel. Sendo assim, qual a diferença entre um psicopata e uma pessoa que não possui esse tipo de transtorno mental? Como o senhor avalia essa questão? Paulo Roberto Repsold - Primeiramente, devemos esclarecer três conceitos nosológicos psiquiátricos que, para mim são bem distintos, embora estejam intimamente relacionados entre si. Estou falando do conceito de transtorno mental, o conceito de psicopatia e o conceito de sociopatia. Temos pessoas mentalmente saudáveis e temos pessoas mentalmente doentes, sendo que, estas últimas, em sua imensa maioria, são os portadores de transtornos mentais comuns, tais como afetivos bipolares, maníaco-depressi-
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vos e unipolares depressivos. Contudo, temos pessoas mentalmente doentes, que em sua imensa minoria, são os portadores de psicopatia e ou de sociopatia. Para mim, essas são entidades nosológicas distintas entre si, que se caracterizam, fundamentalmente, por se constituírem em um severíssimo agravamento e deformação de alguns tipos de transtornos mentais, conforme veremos adiante. P & V - O termo psicopata caiu na boca do povo, embora muitas vezes seja usado de forma equivocada, uma vez que as pessoas pensam logo no indivíduo como um assassino. Para o senhor, quais são os perfis de uma pessoa com personalidade psicopática? P. R. R. - Em minha opinião, psicopatia é um anormal e intenso agravamento e deformação de um severo transtorno mental pré-existente. Neste caso, o portador acaba desenvolvendo, por uma associação de agressivos, duradouros e intensos fatores psicológicos e sociológicos, além dos fatores biológicos da enfermidade psíquica, que ele seja portador de bizarras e doentias necessidades pervertidas, cuja satisfação destas ocorre pela realização de condutas criminosas, de forma persistente contínua, ou de forma recorrente episódica, geralmente de natureza violenta, realizadas de forma bastante agressiva e cruel, muitas vezes ritualísticas. A mencionada necessidade bizarra e doentia produz uma elevada excitação psíquica que, para ser aliviada, gera uma consequente descarga comportamental, caracterizada pela prática, persistente ou recorrente, de atos tipificadamente criminosos, que visam unicamente à satisfação da respectiva necessidade excêntrica e patológica do seu portador, produzindo-se significativo prazer e satisfação temporários ao indivíduo mentalmente doente. Tais atos criminosos são de natureza compulsiva e obsessiva, pois, com o passar do tempo, o aumento do número de atos criminosos praticados, leva a uma gradual elevação da compulsão em praticá-los, bem como um aumento da repetição dos episódios recorrentes. Como exemplo deste tipo de pes-
soas, existem os assassinos seriais, os estupradores seriais, os torturadores seriais etc., onde, um dos mais famosos psicopatas da história da humanidade, foi o quase lendário “Jack Estripador”, que viveu em Londres, na Inglaterra, na segunda metade do século XIX.
“Geralmente, são pessoas que vivem buscando cargos e funções na sociedade, em que permitem alcançar êxito em relação aos que, normalmente, desrespeitam o contrato social” P & V - Grande parte dos crimes cometidos por psicopatas, nada tem a ver com as condições sociais em que ele está inserido. No entanto, evidências mostram que a decadência de vida da humanidade, nos dias atuais, contribui para um aumento considerável de problemas relacionados a transtornos mentais com causas biológicas, psíquicas e sociais. Como esses fatores se aplicam à psicopatia? P. R. R. - Não existe um fator que determine o desenvolvimento da psicopatia, isto é, do comportamento psicopático. Existem três grandes fatores de influência, não de determinação, para o desenvolvimento deste tipo de comportamento: influência biológica, psicológica e sociológica, que surgem nesta sequência no curso da vida de uma pessoa. É a associação destes três fatores de influência que se gera a determinação para o desenvolvimento desta entidade nosológica, ou seja, é o “conjunto da obra” de fatores de influência que se determina o desenvolvimento da psicopatia. Em primeiro lugar, ocorre o fator de influência biológica, que é a predisposição, a vulnerabilidade individual, que o portador possui, traduzida em um tipo de transtorno mental que ele seja por-
tador. Em segundo lugar, ocorre o fator de influência psicológica, que é a ocorrência, na infância e adolescência, geralmente por determinação de quem cria e educa a criança e o adolescente, bem como das experiências vividas no ambiente escolar e no ambiente social de agressão física e ou sexual grave e recorrente, de humilhação episódica e penosa, de negligência afetiva intensa e persistente, de redução ou falta de imposição de limite comportamental ou de valor ético, de testemunho ocular de promiscuidade familiar e ou de violência doméstica evidente e repetida. Em terceiro lugar, ocorre o fator de influência sociológica, que é o tipo de cultura da sociedade em que a pessoa está inserida, com seus conceitos e valores. Configuram-se, neste caso, por exemplo, uma estrutura de relação familiar e social conflituosa e distante, culto o hedonismo a qualquer preço, uma legislação penal frágil e permissiva associada a exemplos de impunidade penal como a Legislação Penal Brasileira atual, que leva a uma extensa e significativa sensação de impunidade em função da observação social de inúmeras pessoas que cometem crimes, de forma persistente ou recorrente e que não são exemplarmente punidas. P & V - Pesquisadores acreditam que muitos indivíduos portadores de psicopatia sejam bem sucedidos profissionalmente e ocupem posições de destaque na política, nos negócios ou nas artes. Os psicopatas podem canalizar suas potencialidades para algo aceito? Como é caracterizado o relacionamento social dessas pessoas? P. R. R. -Conforme já mencionado, psicopatia e sociopatia são entidades nosológicas distintas, onde, no enunciado desta pergunta, na verdade, se está falando, descrevendo, a sociopatia, isto é, um comportamento sociopático. Em minha opinião, sociopatia é um severo agravamento e deformação de um transtorno mental bem particular, que é um tipo específico de transtorno de personalidade, o transtorno de personalidade do tipo antissocial, onde, o seu portador apresenta algumas importantes anormalidades afetivas, cogniti-
“Que fazemos nós desde que nascemos senão um teatro autêntico, válido, incoercível teatro?”, do jornalista e dramaturgo Nelson Rodrigues. 41 Ponto & Vírgula 05.indd 41
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vas e volitivas. Estas anormalidades são baseadas em um intenso egocentrismo e em uma severa frieza emocional em relação aos sentimentos de terceiros (indiferença e insensibilidade), apresentando uma ausência de remorso, um desrespeito com as normas sociais, uma dificuldade em aprender com a experiência e com a punição, uma incapacidade de experimentar culpa. Geralmente, são pessoas de elevada capacidade intelectiva, com uma grande capacidade de manipular outras pessoas, onde, vivem somente em função de si mesmas e dos seus interesses e prazeres, não sendo pessoas necessariamente violentas, pois, quando elas são muito inteligentes, sabem dos riscos penais de se praticar condutas violentas. Portanto, quando se faz necessário a prática de atos desta natureza para o êxito de suas ações escusas, ou seja, para conseguirem dinheiro, poder e sucesso de forma ilegal e imoral, manipulam terceiros para realizá-las. São pessoas que vivem buscando cargos e funções na sociedade que lhe permitem conseguir alcançar êxito em relação aos seus objetivos egoístas e antiéticos, geralmente ilícitos, ou seja, objetivos que normalmente desrespeitam o “contrato social” vigente na sociedade na qual eles estão inseridos. A sociopatia não se desenvolve na fase adulta da vida humana, apenas é confirmada nesta fase vital, mas se desenvolve desde a infância, agravandose durante a adolescência.
de livremente controlar os seus impulsos, à sua vontade no momento da prática criminosa, por força da patológica compulsão e obsessão pela realização dos atos criminosos que comete, para satisfazer as suas necessidades bizarras e doentias. Concluindo, em sua maioria, os psicopatas têm capacidade de compreender que os atos que estão praticando são crimes, embora, tenham uma importante dificuldade em controlá-los. Já os sociopatas, quando não têm uma psicopatia associada, têm completa capacidade de entendimento e de autodeterminação em relação aos atos criminosos que estão praticando.
perversa do pintor Marcos Antunes Trigueiro, acusado de cometer crimes de estupros, seguidos de morte, no município de Contagem, região metropolitana de Belo Horizonte. Assim como o “Maníaco de Contagem”, existem outros casos de pessoas com comportamento sexual exacerbado e inadequado. Essa característica pode ser considerada um sintoma da psicopatia? Que análise o senhor faz deste cenário? P. R. R. - Sim, não só este mencionado caso específico, como casos desta natureza se configuram em comportamentos psicopáticos verdadeiros, não comportamentos sociopáticos, apesar de eu não saber se ele tenha a sociopatia como uma có-morbidade associada. P & V - Se por um lado, psicopatas não sentem emoções, por outro fogem da monotonia. Como se explica o fato de muitos deles serem usuários de drogas ilícitas e dependentes de álcool? P. R. R. - As substâncias psicoativas, lícitas e ilícitas (drogas como álcool, cocaína, maconha etc.), muitas vezes acabam por servir de um modulador químico para os estados afetivos alterados, adoecidos, destas pessoas, sejam psicopatas, sejam sociopatas. No caso dos psicopatas, eles têm uma maior necessidade de buscar, muitas vezes inconscientemente, estas substâncias para lhes ajudar a suportar o mal-estar que os seus estados psicopatológicos lhe causam, como ansiedade, depressão, fobia, obsessão etc.
“São pessoas de elevada capacidade intelectual, com uma grande habilidade de manipular outras pessoas, onde vivem somente em função de si mesmas e dos seus interesses”
P & V - Aos olhos da maioria da população, as atitudes dessas pessoas são reprováveis. O psicopata tem consciência de que aquilo que faz não está em consonância com o conjunto de valores que norteiam a vida em sociedade? P. R. R. -O psicopata pode ter, ou não, capacidade de entender que os atos criminosos que vem praticando se configuram em crimes. Contudo, ele tem uma redução, parcial a total, da capacidade de se determinar de acordo com o entendimento do que supostamente está praticando, geralmente, apresenta uma dificuldade a uma impossibilidade
P & V - Mesmo que não demonstrem socialmente, os psicopatas são indivíduos dotados de falha moral, ausência de sentimentos, necessidade de poder e liberdade interior sem limites. Essas pessoas sentem algum tipo de medo capaz de frear suas atitudes ilícitas e imorais? P. R. R. -Este conceito de psicopata que a pergunta demonstra, na verdade, se refere ao conceito de sociopata. Portanto, relembrando, sociopatia é um severo agravamento e deformação de um transtorno mental, onde, o seu portador apresenta algumas importantes anormalidades afetivas, cognitivas e volitivas, sendo que estas são baseadas em um intenso egocentrismo e em uma severa frieza emocional em relação aos sentimentos de terceiros. Geralmente, o que faz um sociopata ter algum tipo de medo e, consequentemente, frear as suas ações criminosas é a existência de um elevado risco de ser identificado e capturado (preso), ou mesmo a existência de um elevado risco de ocorrer algo que faça ele perder o que já conquistou, como perder dinheiro, poder e sucesso. P & V - No ano passado a população ficou assustada com a atitude
P & V - Para muitos, a penalidade aplicável a qualquer criminoso não serve para puní-lo, e, sim, para que ele possa ter uma nova oportunidade de se “descontaminar” das más influências sociais. De fato, a ressocialização existe, mas depende da vontade sincera do condenado. Os psicopatas, por não se arrependerem de seus atos, acabam prejudicando a reabilitação dos outros presos. Qual deve ser o tratamento adequado para os casos de privação de liberdade desse indivíduos? P. R. R. - Venho defendendo que, embora pobre, há algum tipo de resultado positivo se os verdadeiros psicopatas se
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submeterem a tratamento especializado eficaz e regular, isto é, terapêutica adequada. Já com os sociopatas, os resultados são bem pobres. Sugiro que os psicopatas verdadeiros, em função do elevado grau de risco de condutas violentas e cruéis, devem ser tratados em unidades prisionais especializadas em tratamento de saúde mental, legalmente denominadas de hospitais de custódia e tratamento psiquiátrico onde, deverão receber cuidados de enfermagem e tratamento médico especializado psiquiátrico, psicológico e terapêuticoocupacional, além de apoio do serviço social. Já em relação aos sociopatas verdadeiros, estes devem cumprir pena de reclusão em regime fechado, contudo, em unidades prisionais tipo penitenciárias específicas para esta população, em decorrência dos riscos inerentes a este tipo de apenado, com objetivo de não deixá-lo influenciar negativamente os demais apenados comuns, além de evitar criação de facções criminosas, desenvolvimento de rebeliões etc.
“A psicopatia é um anormal e intenso agravamento da deformação de um severo transtorno mental préexistente, onde, seu portador acaba desenvolvendo, por uma associação de agressivos, duradouros e intensos fatores psicológicos, sociológicos e biológicos da enfermidade psíquica”
P & V - Estudos realizados nos EUA e no Canadá estimam que a incidência de psicopatas entre a população carcerária chegue a 20%. Por isso, encaixar o diagnóstico de psicopatia em qualquer tipo de bizarria é muito comum. Mas, pesquisas científicas, também, revelam que a maioria dos psicopatas não é violenta. Como o senhor avalia a complexidade desta informação? P. R. R. - Como se misturam os dois diagnósticos, os dois conceitos, isto é,
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P & V - Encantadoras à primeira vista, as pessoas com personalidade psicopática causam boa impressão e são tidas como “normais” pelos que as conhecem superficialmente. Existe alguma maneira de um leigo perceber se uma pessoa é psicopata? E o que deve ser feito após a descoberta? P. R. R. - Esta descrição é mais pertinente aos sociopatas. Não é algo fácil, em função de geralmente se apresenta-
rem bastante eloquentes, sedutores, simpáticos etc, bem como agirem, inicialmente, da forma que os seus interlocutores desejam, percebendo os pontos fracos destes e realizando as suas expectativas. Contudo, sempre oriento as pessoas, isto é, as passíveis vítimas dos sociopatas, a ficarem muito atentas com pessoas estranhas e muito sedutoras, aparentemente quase sem defeitos, em um início de relacionamento. Uma pessoa comum ao se relacionar com uma sociopata, geralmente a primeira, será muito, mas muito prejudicada pela segunda. Portanto, o melhor é a prevenção, isto é: fazer de tudo para jamais se relacionar com este tipo de indivíduo, pois, na grande maioria das vezes, o sociopata arruína as suas vítimas.
O psicopata Hannibal Lecter, interpretado por Antony Hopkings no filme “O silêncio dos Inocentes”.
o de psicopatia e o de sociopatia, está se falando da população de psicopatas e sociopatas em conjunto. Conforme já mencionei, os sociopatas puros, geralmente, não são violentos, somente o são quando não há outra solução para algum tipo de impasse, onde, neste caso, eles acabam por ter que agir violentamente por força da “necessidade”, não por força do “prazer doentio”, como os psicopatas. A violência é um fenômeno de diversas causas, e não é próprio apenas dos psicopatas, sociopatas ou portadores de transtornos mentais comuns. A violência é inerente ao ser humano em toda à sua história, seja no período da pré-civilização, seja nos mais de sete mil anos de civilização, com diversos fatores de influência, que se alteram ao longo do tempo e do lugar. P & V - O senhor acredita que grandes fenômenos históricos, como o nazismo que, em nome da hegemonia da raça e prestígio de uma nação, milhões de judeus morreram, foram movidos por mentes psicopatas? Haja vista, personagens como Mao TseTung, Josef Stálin, Adolf Hitler, entre outros, pode-se dizer que a crueldade é uma característica exclusiva de pessoas portadoras de psicopatia? P. R. R. - Sim, estes comportamentos não são mentalmente sadios. Portanto, são produtos de mentes doentias, ou seja, de mentes gravemente enfermas, que desenvolveram comportamentos psicopáticos, isto é, de “mentes psicopáticas”.
“Todo homem que se vende recebe muito mais do que vale”, do jornalista e escritor, Barão de Itararé. 43 Ponto & Vírgula 05.indd 43
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Sem Pestanejar
P & V - Segundo a Associação Americana de Psiquiatria (APA, da sigla em inglês), 3% dos homens e 1% das mulheres são incapazes de internalizar regras sociais. Por que a psicopatia é mais frequente nos indivíduos de sexo masculino? Existem características diferenciadas entre o transtorno que cada um possui? E quando, de fato, este distúrbio tem eclosão evidente? P. R. R. - Em relação à psicopatia verdadeira e pura, realmente é mais comum que ela se desenvolva no sexo masculino, provavelmente em função das características biopsicológicas do macho da espécie humana, o homem, que, por sua natureza, é mais agressivo e propenso a um psiquismo obsessivo-compulsivo e violento que a mulher. No entanto, em relação à sociopatia verdadeiramente pura, apesar de não haver estudos em número e confiabilidade suficientemente segura, penso que ela possa ocorrer de forma mais semelhante nos dois sexos da espécie humana. A eclosão da psicopatia verdadeira e pura sempre é insidiosa, porém, normalmente, ocorrem alguns fatores psicológicos precipitantes para a prática das primeiras condutas violentas e cruéis, sendo que, um ato inicial, significativamente violento e cruel, por exemplo, traduz-se em um profundo rompimento e atravessamento de uma perigosíssima fronteira que pode, muitas vezes, ser irreversível, isto é, um caminho sem volta, como o ato de matar alguém, de forma violenta e cruel. A partir deste momento, o indiví-
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duo começa a “perder o medo” e “gostar” de matar, tendendo a repetir tal ato, de forma obsessivo-compulsiva repetida, vindo a “perder o seu controle”. P & V - Intelectuais que apostam na doutrina do bom selvagem de Rousseau, acreditam que não há ninguém bom ou mau, há simplesmente pessoas que foram “contaminadas pela sociedade”. O senhor referenda a ideia de que a sociedade é que faz o psicopata? P. R. R - As influências sociais para o desenvolvimento da psicopatia e da sociopatia são muito importantes, inclusive, modelando a conduta humana, já previamente doente pelas influências biológicas e psicológicas. Contudo, jamais é e será a única ou a mais importante das influências psicopatogênicas e sociopatogênicas, onde, é perigoso se restringir, radicalizar-se, em um ou outro fator de influência. É a associação do conjunto de fatores de influência (biológico, psicológico e sociológico) que determina o desenvolvimento de comportamentos psicopáticos e de comportamentos sociopáticos em um indivíduo previamente vulnerável. P & V - Pensando por outro lado, é possível reduzir fenômenos de crueldade no mundo, a partir da reinserção do sujeito na construção social? P. R. R. - Como o desenvolvimento da psicopatia pura e verdadeira tem, como importante influência, os fatores bioló-
gicos e psicológicos, porém, existem os fatores sociológicos, onde, não podemos negligenciar a grande importância que a inserção do indivíduo na sociedade tem no desenvolvimento e modelamento do comportamento psicopático. Assim, jamais podemos reduzir a crueldade existente em nossa sociedade a partir, unicamente, da reinserção do indivíduo na construção social da mesma. P & V - Segundo o psiquiatra Hélio Lauar, em recente entrevista, a monstruosidade é da natureza humana. O senhor concorda? P. R. R. - Enquanto potencial de existência, sim, mas, por nossa felicidade, a imensa maioria das pessoas não desenvolve comportamentos pautados por condutas agressivas, violentas, perpetradas de forma cruel e ritualística, de forma persistente ou recorrente, com uma grande insensibilidade do agressor violento para com as suas vítimas. P & V - O que a psiquiatria com todas as suas condições e contradições pode fazer pela cura do mundo? P. R. R. - Ela, como especialidade da medicina, pode contribuir, dentre outras dezenas de áreas da atuação humana, na redução do sofrimento humano ao longo da sua jornada civilizatória. Porém, jamais com o objetivo de curar todas as mazelas da humanidade, pois, este desejo, embora seja meu, seu e de todos nós, praticamente é impossível de se realizar, de atingir.
Um filme: “Forest Gump” de Robert Zemeckis; Um vexame: os mensalões e os mensaleiros; Um livro: “Revolução dos bichos”, de George Orwell; Uma decepção: alguns políticos em quem votei; Uma tristeza: a corrupção e a incompetência de alguns governates; Uma música: “All you need is love”, dos Beatles; Uma alegria: a minha família; Um sonho não realizado: conheci Paul McCarttney, mas não John Lenon; Um Ponto G: o coração e a mente humana; Uma verdade: o meu amor pela minha família; Uma mentira: o comunismo; Uma traição: diversas revoluções ocorridas na história da humanidade; Quem você deixaria, para sempre, numa praia deserta? A hipocrisia dissimulada.
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☑ A psicopatia é uma desordem de personalidade, cuja causa principal é a falta de empatia; ☑ Não há cura ou tratamento efetivo para a psicopatia, doença que não é congênita, nem é hereditária; ☑ Os pesquisadores acham que a raiz da psicopatia está em desordem neurológica específica; calcula-se que 1% da população geral seja psicopata;
☑
50% dos psicopatas reduzem sua atividade criminosa após os 40 anos;
☑ 86,5% dos serial killeres são psicopatas; ☑ Em geral, o psicopata pode seguir dois caminhos na Justiça brasileira: o juiz pode declará-lo imputável (tem plena consciência de seus atos e é punível como criminoso comum) ou semi-imputável (não consegue controlar os seus atos, embora tenha consciência deles) ☑ Como não há prisão especial para psicopata no Brasil, ele fica com os criminosos comuns. Por saber que a pena poderá ser reduzida caso se comporte bem, se passa por preso-modelo. Mas, por baixo dos panos, ameaça os outros presos, lidera rebeliões e prejudica a reabilitação dos presos comuns, que passam a agir cruelmente para sobreviver;
☑ Tendo em vista a sua complexidade e abrangência, pesquisadores preferem usar o conceito de perversão em vez de psicopatia;
☑ Mesmo décadas de prisão não bastam para reeducar o psicopata. Ele não se arrepende nem sente remorso. Uma vez soltos. 70% deles voltam a cometer crimes. A única coisa que ele aprende é evitar os erros que o levaram à prisão. Da próxima vez, agirá com ainda mais cuidado;
☑ O psicopata é desembaraçado e superficialmente charmoso; não guarda remorso ou culpa. O psicopata típico tem desvios em várias áreas: relacionamento pessoal, emoção e autocontrole. Costumam racionalizarem seu comportamento, culpando outra pessoa ou negando sua ação;
☑ Se fosse possível prever os crimes dos psicopatas, não tenha dúvida: o mundo se livraria da maioria dos assassinos seriais e a violência urbana cairia. O problema é como por isso em prática;
☑ As tendências do psicopata para a emoção genuína
☑ Para os psicopatas que viram criminosos, as únicas leis são as suas próprias. A crueldade e o poder sobre as pessoas lhes dão prazer. E não há castigo que os impeça de agir de novo;
são de curta duração e egocêntricas. Seu comportamento é impulsivo e irresponsável, frequentemente dificultando a manutenção de emprego e quitação de débitos. Psicopatas, também, tem um senso distorcido de conseqüências potenciais das suas ações, não apenas para os outros, mas, também para os outros;
☑ O psicopata comete quatro vezes mais crimes violentos que o criminoso comum; ☑ 20% da população carcerária são psicopatas; ☑ Psicopatas cometem 44% dos homicídios de policiais nos EUA; ☑ A probabilidade de o psicopata matar estranhos é sete vezes maior que ente outros criminosos;
☑ Os maiores matadores, sanguessugas, golpistas e sedutores psicopatas de projeção, que ocuparam as páginas de jornais e livros de história: Tom Parker, o manipulador empresários de Elvis Presley; Lord Byron, poeta que esquentava a cama de todos; Ted Bundy, o coitadinho que picava universitárias; Bernie Madoff, o maior golpista financeiro da história; Alcebíades, inescrupuloso que traiu Atenas; Casa Nova, o libertino itinerante de Veneza; Benvenuto Celline, artista de sacanagem renascentista; Joe Hunt, o garoto que fazia de tudo par ser rico; Rasputim, o demônio louco e poderoso da corte russa; John Gacy, o palhaço safado e assassino; Jeff Dahmeri, o bonitão que comia menininhos; Pedrinho matador, o psicopata nacional. (*) Fonte: revista Super Interessante, edição 267-A, de 2010.
“Liberdade é uma palavra que o sonho humano alimenta, não há ninguém que explique e ninguém que não entenda”, da escritora Cecília Meireles. 45 Ponto & Vírgula 05.indd 45
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Reprise Artigo
A sordidez humana
http://devoradoradelivros.blogspot.com
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Lya luft, escritora
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ndo refletindo sobre nossa capacidade para o mal, a sordidez, a humilhação do outro. A tendência para a morte, não para a vida. Para a destruição, não para a criação. Para a mediocridade confortável, não para a audácia e o fervor que podem ser produtivos. Para a violência demente, não para a conciliação e a humanidade. E vi que isso daria livros e mais livros: se um santo filósofo disse que o ser humano é um anjo montado num porco, eu diria que o porco é desproporcionalmente grande para tal anjo. Que lado nosso é esse, feliz diante da desgraça alheia? Quem é esse em nós (eu não consigo fazer isso, mas nem por essa razão sou santa), que ri quando o outro cai na calçada? Quem é esse que aguarda a gafe alheia para se divertir? Ou se o outro é traído pela pessoa amada ainda aumenta o conto, exagera, e espalha isso aos quatro ventos – talvez correndo para consolar falsamente o atingido? O que é essa coisa em nós, que dá mais ouvidos ao comentário maligno do que ao elogio, que sofre com o sucesso
alheio e corre para cortar a cabeça de qualquer um, sobretudo próximo, que se destacar um pouco que seja da mediocridade geral? Quem é essa criatura em nós que não tem partido nem conhece lealdade, que ri dos honrados, debocha dos fiéis, mente e inventa para manchar a honra de alguém que está trabalhando pelo bem? Desgostamos tanto do outro que não lhe admitimos a alegria, algum tipo de sucesso ou reconhecimento? Quantas vezes ouvimos comentários como: “Ah, sim, ele tem uma mulher carinhosa, mas eu já soube que ele continua muito galinha”. Ou: “Ela conseguiu um bom emprego, deve estar saindo com o chefe ou um assessor dele”. Mais ainda: “O filho deles passou de primeira no vestibular, mas parece que...”. Outras pérolas: “Ela é bem bonita, mas quanto preenchwimento, Botox e quanta lipo...”.
“Que lado nosso é esse, feliz diante da desgraça alheia? Quem é esse em nós, que ri quando o outro cai na calçada?”
Detestamos o bem do outro. O porco em nós exulta e sufoca o anjo, quando conseguimos despertar sobre alguém suspeitas e desconfianças, lançar alguma calúnia ou requentar calúnias que já estavam esquecidas: mas como pode o outro se dar bem, ver seu trabalho reconhecido, ter admiração e aplauso, quando nos refocilamos na nossa nulidade? Nada disso! Queremos provocar sangue, cheirar fezes, causar medo, queremos a fogueira. Não todos nem sempre. Mas que em nós espreita esse monstro inimaginável
e poderoso, ou simplesmente medíocre e covarde, como é a maioria de nós, ah!, espreita. Afia as unhas, palita os dentes, sacode o comprido rabo, ajeita os chifres, lustra os cascos e, quando pode, dá seu bote. Ainda que seja um comentário aparentemente simples e inócuo, uma pequena lembrança pérfida, como dizer “Ah! sim, ele é um médico brilhante, um advogado competente, um político honrado, uma empresária capaz, uma boa mulher, mas eu soube que...”, e aí se lança o malcheiroso petardo. Isso vai bem mais longe do que calúnias e maledicências. Reside e se manifesta explicitamente no assassino que se imola para matar dezenas de inocentes num templo, incluindo entre as vítimas mulheres e crianças... e se dirá que é por idealismo, pela fé, porque seu Deus quis assim, porque terá em compensação o paraíso para si e seus descendentes. É o que acontece tanto no ladrão de tênis quanto no violador de meninas, e no rapaz drogado (ou não) que, para roubar 20 reais ou um celular, mata uma jovem grávida ou um estudante mal saído da adolescência, liquida a pauladas um casal de velhinhos, invade casas e extermina famílias inteiras que dormem. A sordidez e a morte cochilam em nós, e nem todos conseguem domesticar isso. Ninguém me diga que o criminoso agiu apenas movido pelas circunstâncias, de resto é uma boa pessoa. Ninguém me diga que o caluniador é um bom pai, um filho amoroso, um profissional honesto, e apenas exala seu mortal veneno porque busca a verdade. Ninguém me diga que somos bonzinhos, e só por acaso lançamos o tiro fatal, feito de aço ou expresso em palavras. Ele nasce desse traço de perversão e sordidez que anima o porco, violento ou covarde, e faz chorar o anjo dentro de nós. (*)Transcrito da revista Veja, de 20/05/2009.
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Colocamos o Direito em primeiro lugar. O curso de Direito da Universidade Fumec alcançou o conceito 4, em faixas de 1 a 5, como indicador de qualidade do MEC. O conceito é resultado de uma combinação de variáveis, que traduzem resultados da avaliação de desempenho dos estudantes, infra-estrutura e instalações, recursos didáticopedagógicos e corpo docente, além do indicador de diferença entre os desempenhos observados e esperados dos alunos no ENADE. O maior conceito atribuído aos cursos de Direito do Estado de Minas Gerais foi quatro, sendo que dentre os mais de cem cursos mineiros apenas sete atingiram este conceito de excelência, dentre os quais cinco são das universidades federais. O curso de DIREITO da Universidade FUMEC obteve o MELHOR ÍNDICE entre TODOS os cursos particulares de MINAS GERAIS*.
Rua Cobre, 200. Bairro Cruzeiro. BH.MG Fone 3228-3090 - www.fumec.br *O outro curso particular é da cidade de Poços de Caldas.
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Escolhemos essa cor porquê ela gasta 50% menos de tinta e temos muito o que dizer a você. O mundo não foi feito em um dia, sabemos disso. Sabemos também que não conseguiremos mudar nossos comportamentos em um piscar de olhos.No entanto, são ações simples como essa, que somadas, causam um impacto significativo . Uma redução de 50% de gasto de tinta, acarretará em 50% a menos de lixo gerado. São 50% a menos de recursos utilizados, poluição causada e cartuchos usados. Em larga escala, ações simples, dão resultado. Todas as grandes mudanças acontecem quando as pessoas se dispõem a dar o primeiro passo, aderir a uma ideia tão necessária quanto transformadora. A nossa intenção em promover um debate sobre um tema tão amplo, até mesmo “comum” e desafiador como “Sustentabilidade” é chamar atenção para o óbvio: precisamos urgentemente de mudanças. Temos observado diversos sinais de que o mundo está sofrendo. Uma mudança radical se faz imprescindível e o momento é agora. Promover um desafio nesse campo não se limita a exercitar a criatividade publicitária, vai além disso, exercita também a consciência e cidadania dos nossos futuros profissionais. Promover esse tipo de reflexão poderá significar uma mudança de pensamento naqueles que serão nossos futuros comunicadores. E qual a função de um publicitário, senão impactar pessoas? Pode parecer contraditório ou até mesmo um tiro no pé, mas: somos a favor de um consumo consciente. Desejamos que você compre aquilo que precisa e não apenas aquilo que você deseja, que você dê um presente para quem gosta, pois todos merecemos ser felizes. Somos, acima de tudo, a favor que você compre essa ideia, afinal todos merecemos um mundo melhor.
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