Ponto & Vírgula - Ano 1 - Núm 03 - Agosto de 2010

Page 1

Revista laboratório • Curso de Comunicação Social Jornalismo / Publicidade e Propaganda Ano 1 • Número 3 • Agosto de 2010 Belo Horizonte • Distribuição gratuita

Faculdade de Ciências Humanas e Sociais

As drogas, sempre elas, aliciam, degradam, geram violência e fortalecem a economia

Patrimonialismo e apatia social: origem e sequela da corrupção brasileira

Fisiologistas, acima de tudo, os partidos políticos no Brasil, mantidos com dinheiro público, estão distantes dos eleitores

[Sob inspiração do Lulismo]

LULA, O BIG BOSS, INVENTA E REINVENTA DILMA, A CANDIDATA Ponto & Vírgula 03.indd 1

12/20/10 7:44:39 PM


Índice 03 04

Destaque Ponto & Vírgula Reprise: Embate com Deus

06

Corrupção Política

11

Ensaio Fotográfico

16

Seção: Frente & Verso

17 22 27 31 36 41 42

Triunfo do capistalismo perverso Sob inspiração do Lulismo Farsa dos partidos políticos Radiografia do MST Importância do Jornalismo Seção: Farpas & Confetes Reprise: Medieval com estilo

Expediente Universidade Fumec/FCH Presidente do Conselho Curador Prof. Air Rabello Filho Reitor da Fumec Prof. Antônio Tomé Loures Diretora Geral Prof. Thaís Estevanato Diretor de Ensino Prof. João Batista de M. Filho Diretor Administrativo-financeiro Prof. Antônio Marcos Nohmi Coordenador do curso de Comunicação Social Prof. Sérgio Arreguy

Ponto & Vírgula Editor Geral Prof. Rogério Bastos - SJPMG/2375 Editor de Fotografia Pedro Gontijo (7ºG)

Caro Leitor,

E

sta 3ª edição da Ponto & Vírgula sai arranhada pelos estilhaços da derrota brasileira na África do Sul (culpa exclusiva do técnico “nacionalista” Dunga, que preferiu a força física ao talento) e curiosa em relação às próximas eleições. Ainda assim, conseguiu reunir sete assuntos e sete entrevistados da melhor qualidade, que só poderiam gerar sete entrevistas lapidares. E são lapidares, porque conseguem condensar, ao mesmo tempo, informação com conhecimento profundo, capacidade crítica e bom humor. Aqui, abrimos um breve parêntese para informar aos nossos leitores e colaboradores: nossa revista é opinativa, portanto, sem isenção, contra ou a favor, razão mais do que suficientes para continuar respeitando a diversidade de idéias e opiniões, sem o cinismo que norteia o critério da imparcialidade jornalística. Às vésperas das eleições, que mobilizarão quase 140 milhões de brasileiros para a escolha de centenas de candidatos aos cargos de deputado (estadual e federal) governador, senador e presidente da República, não é justo ficar indiferente ao evento: Lula e a candidata Dilma Rousseff, irmãos siameses, são capa (brilhantemente ilustrada pelo talento da aluna de publicidade, Júlia Cascaes) e assunto da entrevista concedida por ninguém menos que o ex-deputado federal, presidente do PSOL e candidato à Presidência da República, Plínio de Arruda Sampaio (págs. 6 a 10), personalidade que dispensa qualquer apresentação. Destacamos, ainda, a entrevista com o deputado federal (PT-MG) Paulo Delgado, sobre a corrupção política no Brasil. Por mais que este assunto esteja reprisado pela mídia, Delgado dá um verdadeiro show, como era de se esperar. Fica, no entanto, uma pergunta sem resposta: com quantos Paulos Delgados se faz um Brasil melhor? Nas páginas 31 a 35, o sociólogo Zander Navarro faz uma profunda análise sobre a atuação do controvertido MST, movimento mantido pelo poder público. Com a autoridade que tem, Navarro, que é mineiro, e hoje é uma das principais cabeças-pensantes do Ministério da Agricultura, aposta na reestruturação ideológica e operacional como a única alternativa que sobra para a entidade, antes que ela desapareça de uma vez por todas. Sobre a mixórdia dos partidos políticos brasileiros, ninguém melhor para falar do que a ex-deputada estadual e federal, mineira Sandra Starling. Já nas páginas 36 a 40, com o mesmo naipe de qualidade, a entrevista do jornalista paulista, Luciano Martins da Costa, diretor do Observatório da Imprensa/SP, é uma verdadeira aula sobre o jornalismo e suas incongruências. Completa o elenco dos assuntos, a entrevista sobre o capitalismo, seu triunfo e perversidade, com a grata surpresa do filósofo e professor Kirlian Siquara. O toque de sensibilidade e leveza está no ensaio fotográfico (págs. 11 a 16) sobre a família da Ocupação Dandara, toma forma no Reprise/Opinião (págs. 4 a 5 e 42), com a crítica “Abençoado embate com Deus” (o adjetivo é nosso) e o artigo “Um medieval com estilo”, de autoria do impagável jornalista filósofo e escritor, Luiz Felipe Pondé, publicados pelo jornal O Globo e a Folha de São Paulo, que são duas obras primas. Este é o farto cardápio da Ponto & Vírgula deste semestre, aprovado de antemão pelo paladar sensível dos nossos leitores, que consomem suas indicações com o gosto de quero mais, As entrevistas e os arjá vislumbrando a 4ª edição. tigos aqui publicados não expressam, necessariamente, a opinião da Ponto & Vírgula.

Produção Gráfica Raoni Jardim e Ana Paula Marum (7ºG) Apoio Técnico Marconi Edson (31)3228-3127

Até lá e boa leitura.


Destaque Ponto & Vírgula

Quem corteja ditador, ditador é? infosurhoy.com

“¡Sin perder la ternura jamás!”

Q

uem o conheceu, Brasil a fora, América Latina idem, de barba por fazer, braço estendido e punho cerrado, defendendo a organização sindical como o mais importante e eficaz braço executivo socialista a favor do trabalho, da liberdade e da dignidade, e, radicalmente, contra qualquer manifestação de ditadura, não imaginaria que o Lula de hoje chegasse ao ponto de acariciar e referendar politicamente a excrescência de um Hugo Chávez, presidente da Venezuela, e seus pares em nome da diplomacia brasileira. Entre o sindicalista aguerrido, reconhecido internacionalmente, e o candidato “Lulinha paz e amor” ou o presidente que representava “a vitória da esperança sobre o medo”, há uma distância ética abismal, que cresce à medida que cresce suas ambições pelo poder.

Chávez, o mais cortejado, cerra fileira com Evo Morales (Bolívia); Rafael Correa (Equador); Manuel Zelaya (Honduras); Álvaro Uribe (Colômbia); Mahmoud Ahmadinejad (Irã) e os irmãos Castro (Cuba), no afago sem limites de Lula

Disposição para produzir e humildade para aprender e receber críticas e elogios estão entre as principais qualidades pessoais exigidas de quem deseja ser jornalista de fato. Não é novidade para ninguém: a profissão é considerada, dentre outras, uma das mais estressantes, porque noticiar vai muito além de publicar ou divulgar uma informação de interesse público. Sem contar as questões e particularidades que envolvem este ato, dos quais o jornalista não tem como fugir. Em outras palavras: noticiar é “arranjar sarna para se coçar”, como diz o ditado popular, ainda bem. E a entrevista exclusiva, opinativa, sobre temas polêmicos, como é do perfil da nossa revista, exige um esforço e um cuidado ainda maiores. Mesmo considerando a condição de aprendizes, os repórteres desta 3ª edição (foto ao lado) foram muito além das expectativas e deram um show. O resultado? É uma Ponto & Vír- Da esq. para dir.: Diogo Hot (8ºG); Ana Paula Marum (7ºG); Diego Suriadakis (5ºG); Isabela gula cada vez melhor, isto é: uma sarna Linke (5ºG); Marconi Edson (Técnico do Lab. Redação); Pedro Gontijo (7ºG); Pedro Cunha e meia para se coçar. Oxalá seja sempre (5ºG); Ana Carolina Amariz (7ºG); Raoni Jardim (7ºG) e Renata Valentim (8ºG - ausente) assim!

Sérgio Lucarelli/Fumec

Uma sarna e meia...

3


Reprise Artigo

(Abençoado!)

Arquivo pessoal

Embate com Deus* Saramago dá voz a um Caim crítico para reforçar seu desgosto com todas as religiões

Juan Arias* Não é tarefa fácil permitir-se ironizar, de forma irreverente e até mordaz, o único livro considerado Patrimônio da Humanidade, como é a Bíblia, cuja etimologia significa “O livro”, por antonomásia, a grande novela do mundo, a mais traduzida de todas as publicações da História. José Saramago se atreveu a fazê-lo em seu novo romance, “Caim” (Companhia das Letras), que “não deixará indiferentes os leitores”, como afirmou sua mulher, Pilar del Rio. E ele o fez com a força literária que caracteriza sua obra. Se tudo é permitido à ficção, mais ainda ao Nobel português, que nos tem presenteado sempre com uma literatura enraizada na vida, comprometida com os ataques à injustiça, capaz de fazer sangrar as palavras como em “Ensaio sobre a cegueira” ou este “Caim”, onde o escritor pretende acertar contas com deus – assim mesmo, grafado em minúsculas – durante todo o livro. Curiosamente, o faz com um deus que ele mesmo afirma existir apenas na fantasia dos homens, uma invenção literária de todos os tempos. Poderíamos perguntar-lhe, então, por que voltou depois de 20 anos, desde seu polêmico “O Evangelho segundo Jesus Cristo”, a confrontar-nos de novo com a não existência de deus, a quem ele mesmo disse que não invocaria nem no momento da própria morte, porque nada teria a pedir. É que Saramago é assim: o rei da polêmica e da ironia. Ele gosta de provocar. Existe e quer que o notem. Escreve em relevo, sobre pedra dura. Como nesta novela em que acusa deus de ter desprezado os sacrifícios que Caim lhe oferecia para preferir os de seu irmão Abel. Seria o deus caprichoso e injusto na Bíblia, aquele que se diverte expulsando Adão

4

e Eva do Paraíso por terem querido conhecer o bem e o mal. Chamam a nova obra do Nobel português de uma “reivindicação de Caim”. É e não é. Em todo o texto, no qual Caim é protagonista e narrador das atrocidades do deus bíblico, o irmão de Abel não nega seu crime e aceita sua vida errante como uma espécie de castigo. Não aceita, contudo, ser mais criminoso e cruel que deus. Se ele matou seu irmão – segundo Saramago, na realidade ele queria matar deus – esse deus cometeu muitos mais crimes que ele: assassinou milhares de inocentes ao despejar fogo sobre Sodoma e Gomorra e chega à crueldade máxima de pedir a Abraão que mate seu próprio filho. A dialética de Caim com deus é impecável. Se eu pequei, tu pecastes mais. Se eu matei meu irmão, tu mataste, ou mandaste matar, a muito mais.

“Para Saramago, Deus não é mais que um pretexto para que as religiões possam melhor escravizar a consciência humana” Mais do que a história romanceada de Caim, o escritor aborda em seu livro o absurdo de um deus que na bíblia aparece mais cruel e caprichoso que o pior dos homens. Claro que ele escolhe para a obra as passagens mais inexplicáveis e obscuras do Antigo Testamento, nas quais aparece a figura do deus terrível do Sinai, do deus que pede sangue para ser vingado e obedecido cegamente. A Bíblia é uma história de um povo em busca de seu destino, no qual se misturam mitos, metáforas e fatos históricos. É o espelho da Humanidade com suas baixezas e seus esplendores. O melhor e o pior de deus e da história estão concentrados nesse livro, que poderia

ser a imagem plástica da complexidade do ser humano. Existe na Bíblia o Pentateuco, com um deus ciumento que expulsa Adão e Eva do Paraíso, o que confunde caprichosa e gratuitamente as línguas daqueles que constroem a Torre de Babel ou manda matar os habitantes de cidades inteiras. Existe o livro do Eclesiastes, contra a vaidade humana, que poderia ter sido escrito pelo pessimista Saramago ou o Cântico dos Cânticos, com sua força erótica, um canto à beleza do corpo humano e à sua sexualidade. Um livro libertador. O autor de “Caim” escolheu os textos mais duros e polêmicos. É que Saramago não concebe uma literatura desencarnada, incapaz de provocar não apenas polêmica como também desgosto. Muitos, não apenas judeus, poderão se sentir negativamente surpreendidos com a forma com que o escritor trata a Bíblia e a seu deus. Saramago não escreveu apenas novelas. Sempre esteve e, aos 87 anos, continua a estar presente na História a cada vez que se trata de defender a dignidade do homem, sua liberdade sacrossanta, seu direito de crer ou não crer. E ele tem razão em mostrar que na Bíblia existe, também, esse deus cruel e exterminador que tão bem descreve Caim. Esse foi o deus escolhido por ele para ser desmascarado em seu novo livro. Tem todo o direito. A literatura não admite censuras. Os cristãos poderão dizer que na Bíblia, escrita há mil anos, existe também o deus do profeta Isaías, mais preocupado com o homem do que uma mãe. Porém, é ao deus cruel que Saramago pede explicações, um deus que, segundo ele, não pode existir porque não seria deus. Em meu livro “José Saramago: O amor possível” (Manati), numa longa conversa com o escritor, meses antes de seu Prêmio Nobel, ele já havia antecipado seu ceticismo sobre a existência de deus que, em “Caim”, se faz ainda mais patente. Disse: “Do meu ponto de vista há apenas um


lugar onde existe deus, ou o diabo, ou o bem e o mal, que é na minha cabeça. Fora da minha cabeça, fora da cabeça do homem não há nada”. O homem e apenas o homem é, definitivamente, o deus de Saramago, o homem vítima dos poderes tirânicos, o homem humilhado pela religião, o homem escravo de seus mitos, começando pelo mito de Caim e Abel que Saramago converte num jogo literário. O escritor resume muito bem em “Caim”, na página 87, o que para ele é este conflito entre deus e o homem: “A história dos homens é a história dos

seus desentendimentos com deus, nem ele nos entende a nós, nem nós entendemos a ele”. Para Saramago, deus não é mais que um pretexto para que as religiões possam melhor escravizar a consciência humana. Com “Caim”, ele trata de deitar, literariamente, sobre o tapete do mundo, esta crua realidade. Ao mesmo tempo, e apesar de seu ateísmo, devemos a ele uma das definições mais poéticas da divindade: “Deus é o silêncio do universo, e o homem o grito que dá sentido a esse silêncio”, afirmou ele em certa ocasião. Afinal,

deus não é para ele tão indiferente como possa parecer. “Caim”, definitivamente, é também um grito contra todos os deuses falsos e ditadores criados para amordaçar o homem, impedindo-o de viver, em total liberdade, sua vida e seu destino. (*) JUAN ARIAS é jornalista e escritor, autor de “José Saramago – O amor possível” (Manati) “A Bíblia e seus segredos” e “Jesus, esse grande desconhecido” (Objetiva) Caim, de José Saramago. Companhia das Letras, 176 pgs. R$36

“Penso que não merecemos a vida” Escritor conta que gostou de inserir humor e ironia num tema dramático

Entrevista José Saramago Mànya Millen No novo romance de José Saramago, ateu convicto, Deus e qualquer crença sucumbem sob uma narrativa em que se equilibram humor, ironia e palavras duras. Sobra para cristãos e judeus. Em entrevista por e-mail, Saramago diz que se limita a escrever o que pensa, deixando cada leitor fazer sua interpretação. E afirma que “Caim” tem papel fundamental em sua bibliografia e em sua vida. O GLOBO: Entre “O Evangelho segundo Jesus Cristo” e “Caim” se passaram quase 20 anos. Como se deu a volta ao tema em livro? JOSÉ SARAMAGO: “O Evangelho segundo Jesus Cristo” é literatura, não uma mera glosa dos episódios registrados no Novo Testamento. O regresso ao tema religioso deu-se, portanto, de maneira natural, quase como uma continuidade de trabalho. O Caim que o senhor constrói é a voz da razão, da clareza de raciocínio, mostrando um Deus tão tirano e incompreensível que torna qualquer crença patética. Qual sua intenção ao escrever o livro? Como pensa que reagirão a ele? JS.: No fundo, o problema não é um Deus que não existe, mas a religião que

o proclama. Denuncio as religiões, todas as religiões, por nocivas à Humanidade. São palavras duras, mas há que dizê-las. Quanto às reações, não estão na minha mão. Cada um dirá o que entender conforme as suas convicções e as suas crenças. Entre tantas figuras bíblicas, por que a escolha de Caim? JS.: Há muitos anos penso que a história de Caim, como tantas outras histórias bíblicas, é mal contada. Não absolvo Caim, mas acuso Deus de ser o responsável do assassínio ao recusar a oferenda dele. Que diabo de Deus é este que, para enaltecer um irmão, despreza o outro? O senhor sempre lembra que cresceu sem formação religiosa. Chegou a ler ou reler a Bíblia para embasar melhor os episódios do livro? JS.: Para mim, a bíblia é um livro. Importante, sem dúvida, mas um livro Como tal o li e o consultei sempre que necessitei. Desta vez concentrei-me no Gênesis, onde se encontram as figuras que tomei como personagens do livro. Outros ateus convictos, como Richard Dawkins e Christopher Hitchens vêm dedicando seu tempo a uma cruzada antirreligiosa. Como vê esse movimento? JS.: Por mim não o faria. É praticamente impossível convencer alguém a virar as costas às suas crenças. Limito-

me a escrever o que penso do assunto e deixo aos leitores a inteira liberdade de fazer o que entendam. O único que peço para mim é respeito. O senhor acredita que ainda é possível a existência de um mundo sem religião? O pessimismo de Caim em relação à Humanidade é também o seu? JS.: Penso que não merecemos a vida, penso que as religiões foram e continuam a ser instrumentos de domínio e morte. Em suma, Caim teve razão para tentar impedir que outra humanidade substituísse a que teria morrido no dilúvio. Afinal, se a primeira era má, esta é péssima ... Apesar disso, todo o livro é marcado por muito humor. O senhor se divertiu ao escrevê-lo? JS.: Diverti-me bastante, mas sobretudo gozei com o fato de ter podido meter a ironia e o humor num tema em princípio dramático.

(*)Transcrição condensada do Jornal O Globo, caderno Prosa & Verso, de 17.10.09.

ABRE ASPAS

“O jornalismo é, antes de tudo e sobretudo, a prática diária da inteligência e o

exercício cotidiano do caráter”, do Jornalista Claudio Abramo. 5


Entrevista Paulo Delgado

41,5 bilhões de reais/ano

Brasil,

por que tanta corrupção? Do coronelismo à cidadania desestimulada; da “mesada” inocente ao crime que compensa; da vista grossa à impunidade: pragas responsáveis pelo roubo de 1,38% do PIB brasileiro anual, para os bolsos de políticos e grupos aliados, segundo a Fiesp Arquivo Pessoal

às vezes, interferem na sua caminhada, o parlamentar, que dispensa maiores apresentações, não perde a sua pegada moral de continuar lutando pela ética pública, única razão pela qual justifica sua atuação política. Sob todos os aspectos, sua entrevista é exemplar.

Diego Suriadakis 5ºG Jornalismo

PAULO DELGADO, deputado federal

S

ob a égide do “rouba, mas faz, que passou a nortear, cinicamente, as atividades executivas de empresas públicas e governos, e mais, ostensivamente, do Legislativo Brasileiro, a corrupção política brasileira, cresce e alastra à semelhança das ervas daninhas, com o agravante cruel e imperdoável da impunidade. Nem mesmo a Lei da Improbidade Administrativa, criada há quase 18 anos, conseguiu lograr êxito nos seus objetivos. Enquanto isso, os escândalos grassam em todas as direções, criando e reforçando, entre os brasileiros, a lógica da absoluta descrença nos políticos e gestores públicos e da indiferença. Para falar sobre este polêmico assunto, Ponto & Vírgula convidou ninguém menos que o deputado federal (PT-MG), Paulo Delgado, por várias razões: desde 1986, este sociólogo e cientista político, mineiro da pacata e acolhedora Lima Duarte, cidade localizada na Zona da Mata, utiliza sua ilibada conduta pessoal e política, na defesa e resgate da moralidade pública. Entre o cansaço e a decepção, que,

6

Ponto & Vírgula- Ao fazer uma análise da enfermidade que se generaliza no cenário político brasileiro, proponho ao senhor que voltemos ao início. Portugal, assim como outras nações européias do século XVI, impregnadas pelo espírito mercantilista, fundado na acumulação de riquezas, numa de suas aventuras “descobre” nosso país e a possibilidade de se tornar uma potência para o mundo de então. A maneira como realiza a apropriação da terra, da riqueza e do homem que encontra, explorando, devastando e aniquilando sem cerimônia, lança bases para uma mentalidade corrupta na nova terra? Paulo Delgado - Não. O modelo de ocupação do colonialismo estava fundado na filosofia comercial da época que permitiu inédita expansão do mundo e das bases da cultura moderna. Até hoje, vendo a Europa de então como uma sequência histórica de origem greco-romana, não há forma mais elevada de civilização criada em bases tão sólidas, se considerarmos o Iluminismo e o Racionalismo que vieram a seguir solidificando o que veio a ser o mundo ocidental. Nenhuma conquista militar tem natureza diversa da hostilidade e da ocupação. Historicamente, o que importa é o

que fica. A corrupção entre nós não veio com a conquista, mas se formou a partir da prevalência do Estado sobre a sociedade, marca de toda a América Latina. P&V-Na Europa de então, os países que participavam da corrida mercantilista principiavam na idéia da substituição do ser pelo ter. Essa substituição – contexto atual do sistema de produção capitalista que praticamos -, que representa ainda hoje uma reviravolta em conceitos ontológicos, sociológicos e filosóficos, é ingrediente da confusão que se faz na hora de diferenciar o público e o privado? Que explicação o senhor dá para a existência perversa deste fenômeno? PD- O patrimonialismo, o clientelismo e o conservadorismo têm no Brasil a mesma matriz estatal, que desestimula a cidadania plena e a autonomia dos indivíduos perante a política. As maiores riquezas do país foram doadas pelo Rei a proprietários privados ou foram saqueadas de reinos indígenas pela Monarquia. Ali também predominava o controle centralizado, ainda que primitivo. Ou seja, foi construída uma engenharia de poder e dominação para durar, superior às pessoas que imaginavam dirigí-lo. A promiscuidade público-privada é um sistema de poder. P&V-A não diferenciação entre aquilo que é público – espaços físicos, atribuições, regulamentações, cargos etc, etc, e o que é privado, é algo que vem sendo estimulado e destacado em nosso país de diversas maneiras. Haja vista o cunhadismo à época da chegada dos portugueses e em seus primeiros passos a caminho do interior do país, marcado pelo coronelismo no Brasil açucareiro e


os burocratas do período da mineração. É como se o favor não saísse de moda? PD-Exato. O familismo, a informalidade e os arranjos institucionais conjunturais para favorecer um ou outro interesse privado ajudam manter, em nosso país, o baixo interesse pelas formulações de caráter geral e os interesses impessoais. O bom-mocismo brasileiro é a forma que a simpatia do líder político escolheu para esconder sua hostilidade a qualquer política de modernidade, transparência e universalidade da ação pública. P&V-O favorecimento de uns em detrimento de outros, no caso brasileiro, se agiganta, tomando proporções cinematográficas. Protagonizado por José Arruda (ex-governador de Brasília) e Durval Barbosa, seu secretário, com a presença de numerosos coadjuvantes, o último caso do Distrito Federal, chegou a confundir o espectador até com relação ao gênero artístico. O dinheiro, transportado em cueca, some dos cofres, vai através da mídia ao conhecimento do espectador e, algumas vezes, entra em cena a Polícia Federal. E depois? Qual é o verdadeiro preço social embutido neste ingresso? PD- A ascensão dos privilegiados, diz o escritor Primo Levi, em todas as sociedades humanas é um fenômeno angustiante e fatal. Eles só estão ausentes nas utopias e sua força vem do poder que os tolera e encoraja. O privilégio defende e protege a si mesmo. O que houve em Brasília foi o estertor do gozo político levado ao limite numa sociedade sem limites. O erro quando não é tratado como erro, mas como incompetência, como ocorre na política brasileira, contamina toda a sociedade, pois a norma constitutiva quando é desviante, sem sentido, torna toda normalidade decorrente suspeita de desvio. O maior problema do Brasil é que os crimes e erros da política ainda são odiados respeitavelmente e produzem mais escárnio do que revolta ou condenação judicial. O Judiciário também tem culpa nisso, pois aceitou a sindicalização de sua função, encantou-se pela vida social dos juízes e não é mais inocente das limitações filosóficas que comprometem o direito brasileiro, mais voltado para a letra fria

da lei do que para a jurisprudência e o senso de dever de fazer justiça.

“Toda ação policial motivada por um crime que não produz condenação acostuma a sociedade com o delito e aumenta a desconfiança dos cidadãos de bem em relação às instituições”

P&V-Programas como o Bolsa Família provocam, entre estudiosos, debates a respeito do cidadão em sua condição humana. Tratam eles, de assuntos como a superação da condição de dependente do programa e, conseqüentemente, do rompimento do ciclo da pobreza. Para citar um exemplo: o Maranhão tem 60% da população vivendo do benefício. Segundo projeções para o ano eleitoral de 2010, um em cada três brasileiros contará com o auxílio. Gostaria que o senhor comentasse a respeito da presença de 580 mil políticos listados no programa e flagrados por uma auditoria do Tribunal de Contas da União (TCU). PD-É a mesma situação da política predominante de Brasília. O malabarismo dos princípios por quem deveria dar exemplo. Quanto ao Bolsa Família, o programa tem um fundamento relevante que é a distribuição de renda entre os mais desfavorecidos. Porém, só assegurará mobilidade social se a motivação para sair da pobreza for a autonomia pessoal e o crescimento cultural e espiritual. Aí, ser pobre não pode ser o critério para participar do programa, mas sim, querer deixar de ser pobre, o que só é possível através do esforço educacional e pelo trabalho. Quanto aos desvios apurados pelo TCU, não podemos avaliar o programa a partir das distorções promovidas por aqueles que agem de má-fé, e, sim, procurar fiscalizá-las e denunciá-

las como o fez o Tribunal e buscar punir os responsáveis. P&V-O Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) foi outra iniciativa do governo Lula que, também, mereceu algumas navalhadas. A Polícia Federal (PF) acabou descobrindo e prendendo vários dos quase 50 integrantes do esquema que envolvia construtoras, licitações públicas, secretários estaduais, prefeitos, deputados e um número enorme de parentes destes, todos envolvidos e costurados à complexa estrutura do nepotismo que acarpeta os corredores das casas públicas do Brasil. Na ocasião, a ministra da Casa Civil e candidata à Presidência da República, Dilma Rousseff, declarou servirem estas prisões de exemplo a todos aqueles que acreditam na impunidade. Em um cenário político como o nosso, o cidadão não é, sobremaneira, obrigado a acreditar na impunidade? PD-Toda ação policial motivada por um crime que não produz condenação acostuma a sociedade com o delito e aumenta a desconfiança dos cidadãos de bem em relação às instituições. Muitas vezes isso ocorre no Brasil, mas já produz forte reação social ao espetáculo da justiça ineficaz e mesmo dentro dos órgãos públicos já vemos ações para tornar mais eficaz e concreta a ação policial. P&V- Ao acreditar nesta impunidade, o brasileiro cruza os braços para outras maneiras de associação e participação efetivas na sociedade civil, necessárias para enfrentá-la. Uma porcentagem mais significativa de políticos em exercício, no Brasil, é alvo de alguma ação em tribunais de justiça e, na maioria delas, seus advogados garantem absolvição ou prescrição dos crimes. Em uma época em que as causas coletivas ou perderam força ou perderam a política de vista, o senhor considera essa apatia como mais uma vantagem ao alcance das mãos do político desonesto, como mais uma ferramenta a seu dispor? PD- Claro. A função do mal é contaminar toda a sociedade e beneficiar seus propagadores. A boa lei não impede ninguém de praticar o mal. O que ela faz é punir e assim coibir o crime. O Brasil

“O tolo pensa que é sábio, mas o homem sábio sabe que ele próprio é um tolo”, William Shakespeare.

ABRE ASPAS

7


ainda não tem cultura institucional para a agenda positiva da nação, pois aqui, em muitos casos, o crime tem compensado em forma de poder, influência e patrimônio. P&V-A participação da iniciativa privada nos processos produtivos da máquina pública merece uma forma de controle mais elaborada? Existe a possibilidade de se ter um lobby legítimo nesse âmbito dos negócios nacionais? PD- Acredito e apoio iniciativas que tornem absolutamente transparente o sistema de representação política como ocorre na maioria dos países democráticos. Não há crime em representar interesses legítimos, como não o há quando a iniciativa privada busca lucros razoáveis pela sua ação. Há crime em esconder ações privadas travestidas de interesses públicos. P&V-Procurar pela essência nobre da função de legislador já não faz o menor sentido. O Legislativo, especialmente o Senado Federal, que apresenta em valores reais uma despesa anual de R$33 bi aos contribuintes, perdeu a capacidade de se renovar. Apresenta, através do pagamento de mesadas, do jeitinho brasileiro e do favor, uma incrível aptidão para se repetir ao longo do tempo. Nossos “sábios e honrados legisladores”, com as exceções de praxe, mudam com freqüência seus destinos de viagem e, há tempos, que não se importam de fazer isso com o dinheiro público. Como o senhor enxerga esta questão? A que ponto chegou o narcisismo do sujeito político que nem mais se importa com o seu exemplo de pai, tomando dos outros e emprestando aos próprios filhos? PD- O uso da instituição pública como área de clientes e familiares não é privilégio do Poder Legislativo Federal. Aqui há mais divulgação pela maior cobertura da imprensa. Evidente que o excesso injustificável de funcionários interfere na qualidade da ação parlamentar. Mas, lamentavelmente, que poder da União hoje tem o número certo de servidores em quantidade e qualidade? O conceito público de confiança é diferente do privado. Na relação privada, eu devo sempre confiar. Na pública, eu sou obrigado a desconfiar. O nepotismo fere esse princípio além de privilegiar a relação próxima como valor deixando de

8

fora toda a sociedade que, pelo concurso, tem o direito de servir ao Estado. P&V-O senhor escreveu em um artigo de opinião “Honra ou Proveito”, no jornal O Globo, que a escassez de valores, moderação e culpa agrava o quadro e dificulta a construção institucional para a austeridade e equilíbrio. Disse, também, que nenhuma nação fica ou se mantém rica, sendo institucionalmente fraca. O que seria no caso brasileiro, institucionalizar de maneira proveitosa? Quais as formas alternativas à burocracia ou carreirismo? PD- O Brasil é uma democracia tardia e esse é o maior período democrático de toda sua história. Uns a ergueram outros a usufruem. O que é comum nas sociedades. Sou pela autonomia e independência dos cidadãos que devem vigiar o Estado de forma permanente. O serviço público não é o único horizonte profissional da nação. E cabe ao Estado estimular a iniciativa privada para não enfraquecer a confiança dos jovens em suas convicções e possibilidades. O vigor e a diversidade da economia brasileira é real, exigindo um Estado eficiente com mais capacidade de diálogo do que de regulação. Quanto mais leis, normas, maior a possibilidade de descumpri-las. P&V- Na sociedade dos coronéis não resta ao povo muita opção. Já no século XXI, com a expansão dos meios de comunicação, principalmente o desempenhado pelos meios digitais, pensar a sociedade civil – egoísta e individual, responsável direta pelo baile nos salões parlamentares, será

um desafio completamente diferente? PD- Também penso assim. Só que a tecnologia tem sempre dupla face e pode agravar o individualismo e liberar todos para qualquer comportamento e atitude protegidos pelo anonimato. Ou seja, a educação e a cultura ou são totais como valores reconhecidos ou não adianta ser só escolar ou curricular. Apesar da informação não estar, ainda, totalmente democratizada, ela está cada vez mais acessível. Os meios de comunicação jogam na mão do povo uma enxurrada de informações de boa e má qualidade. E esse é o ponto da grande mudança e desafio. Não basta essa informação crua e bruta, é preciso compreendê-la e saber fazer a distinção. Agora, é preciso também proteger a língua portuguesa da internet, pois a web anda meio analfabeta. P&V- Cláudio Abramo, diretor da ONG Transparência Brasil, nos fala da corrupção como fruto da falta de informação e, também, da frouxidão na aplicação das leis. Combater a corrupção é, a partir do seu ponto de vista, mais viável através de medidas no campo gerencial. Fala-se em um esboço de substituição da democracia representativa pela chamada democracia participativa. Através dos meios digitais de comunicação e a possibilidade do acesso direto do cidadão à questões , condutas e, também, no processo decisório, a corrupção pode começar a ruir? PD- Sim. Quanto mais o cidadão atuar na política de seu país e quanto maior for o número de brasileiros interessados Diário do Nordeste

Protestos a favor da prisão do ex-governador do Distrito Federal, José Roberto Arruda, marcaram presença na capital brasileira


em uma atuação legítima e produtiva, mais difícil será a ação dos corruptos e dos corruptores. Nós brasileiros precisamos evoluir da posição de apenas criticar para uma posição de ação concreta no sentido de mudança. A democracia participativa pode muito ajudar. A Transparência Brasil, através de sua vigilância, e o projeto Ficha Limpa, de iniciativa popular, são bons exemplos de uma cara honesta para a política. P&V- Considerar o controle total da conduta política de um homem público, através da exposição de todo tipo de informação referente a seu trabalho, não é, em princípio, desacreditar de sua escolha, de sua função? Não é retirar do homem a sua possibilidade de ser humano, humanizado, dotado de razão e senso de alteridade? Não é reduzir o homem à condição de máquina? PD- O mundo de celebridades, nem todas célebres, embora expostas diariamente ao público, cansa a beleza da democracia. Quando a publicidade e a propaganda tornaram-se mais importantes do que o caráter e o senso de dever do homem público, abriu-se o caminho para a manipulação do senso de justiça e discernimento do cidadão. São máquinas e objetos de propaganda, os dois: o homem público que pensa dominar a situação e o cidadão que imagina controlá-la. P&V- Enxergar-se corrupto, desbravar esses caminhos de maneira até mesmo psicanalítica, atentando para os seus mais trabalhosos e obscuros aspectos, através de uma observação fundada na lógica do homem social, seria uma forma inovadora de abordarmos essa nossa quase pulsão de morte? PD- Não há análise redentora para o canalha. Já é um relativo consenso na psicanálise que são nossas neuroses que nos livram das psicoses e na filosofia comportamental que a dissolução de regras e o fim das autoridades morais e da hierarquia espiritual de valores e desejos liberou a todos para qualquer comportamento e atitude sem limites ou pudor. O baixo nível moral das atitudes em relação à vida – violência, maldade, manipulação, mentira – não terão solução política, pois são problemas invisíveis para ela e para os políticos. Para a política atrair

ABRE ASPAS

bons cidadãos são necessárias regras de interdição e autoridade que dependem da maior maturidade da sociedade que, infelizmente, ainda não atingimos.

“A política não é propriedade de alguns. Pertence à democracia brasileira, que tem deveres com ela”

P&V- Idéias inovadoras, a princípio, são meio indigestas ao mercado da corrupção, já bem loteado e estabilizado. A assimilação dessas idéias exige uma adaptação muito trabalhosa aos negócios já estabelecidos. Uma espécie de cutucão em seu processo produtivo já bem rotinizado, antigo e preguiçoso. Ao provarem a validade de suas intenções, tais idéias forçam essa velha linha produtiva à mudança. De quantos jovens brasileiros necessitamos para tirar esse velho da cadeira, lembrá-lo da capacidade de se reinventar, de tornar-se, sim, cada vez mais, respeitoso e austero no documento rejuvenescido, enérgico e desbravador do campo social? PD- Será que o mito da juventude tão caro a Oscar Wilde, no “O Retrato de Dorian Gray” alcança a complexidade atual da compreensão da decadência do humanismo? Nunca tivemos nossa era Vitoriana e seu conservadorismo monarquista. Nossas bobagens, provincianismo, dogmatismo e simplificação, não dependem de idade ou de mais ou menos frescor. Há jovens velhos e velhos jovens em todas as gerações. O que sufoca o Brasil é a falta de paixão e a maneira prolíxa, prosaica, piedosa ou pedante com que quem tem poder se dirige ao nosso povo. Seja na mais modesta cidade do país à capital da República. P&V- Mesmo economias como a norte-americana, em que o liberalismo econômico encontra-se, possivelmente, em seu estágio mais avançado a participação de empresas privadas em âmbito público gera discussões e

embates. O projeto de saúde do presidente Barack Obama não contou com o voto a favor de nenhum representante republicano. Esses consideram, dentre outras críticas, que as medidas do projeto aumentam o tamanho do Estado e dão ao governo um controle excessivo sobre o sistema de saúde. Existe uma diferença significativa entre o caso americano e o brasileiro, tendo em vista a possíveis aberturas à corrupção? PD- Nos Estados Unidos existem secularmente dois partidos conservadores com nomes diferentes dentro do sistema de poder. As divergências são pontuais e de ênfase, mas há uma forte tradição autonomista da sociedade em relação ao Estado. No Brasil, a zona de sombra público-privada é mantida sempre bem escura e o patrimonialismo que a sustenta vem desde o período colonial. Aqui, o Estado é privado e por isso tem mais dificuldades de defender-se de interesses particulares. Todas as políticas públicas são muito bem apropriadas para o lucro privado. P&V- Talvez, a maior e imediata consequência da cultura da corrupção política no Brasil, seja a descrença. Por outro lado, surge, do ponto de vista social, dois sentimentos ambíguos e extremamente perigosos, segundo o psicanalista Jurandir Freie Costa: a moral do desespero e a moral de levar vantagem em tudo. Como é ser e estar político num pântano dessa dimensão, sem ser atingido como é o caso do senhor? PD- A corrupção é a variante patológica do poder. A vida pública é mais complexa do que amizade e interesse. Como em toda profissão ou grupo social, na política também existem as distorções. A política em si, não é má, pelo contrário, é um bem e necessária para a organização social. A política não é propriedade de alguns. Pertence à democracia brasileira, tem deveres com ela. Quando a conduta de combate que caracteriza a luta política não está baseada em doutrina isso acaba em gangsterismo. Procuro ter postura independente e possuo princípios doutrinários que me norteiam e nos quais acredito. Um deles é o que diz que tudo é política, mas a política não é tudo. Minha formação funda-

“Originalidade nada mais é que uma imitação sensata”, do filósofo Voltaire. 9


Sem Pestanejar

mental vem de outras instituições onde se fundamentam os valores da família, comunidade, fé, escola, literatura. A partir disso, posso dizer que só há um valor, absoluto, que distingue as pessoas: a bondade. Não acredito no pragmatismo sem princípios. Quanto à descrença dos brasileiros, digo que o mal só perdura se o bem se cala. Não podemos desistir nunca de lutar por um país melhor, apesar de todas as suas mazelas políticas. P&V- Essa bandidagem, engravatada ou não, que não é prerrogativa de Brasília, de tamanha desfaçatez, pode culminar no surgimento de um governo fascista que, ansioso por uma recuperação moral, possa trocar as mãos pelos pés, numa espécie de recrudescimento arrogante e perverso. Isso é possível no Brasil? PD- Claro que é perigosamente possível. Os pequenos fascismos do dia-adia já estão presentes na maneira grosseira de falar ao celular; na presença intimidadora do líder político nos meios de comunicação todas as horas do dia; na violência covarde contra crianças e mulheres; na velocidade assassina dos ônibus urbanos; nos ódios entre tribos e guetos urbanos; na droga distribuída para a juventude; no policial despreparado; no isolamento e no individualis-

10

mo de grupos que a sindicalização de todas as categorias vêm produzindo. Fascismo é o autoritarismo dentro da autoridade e as pequenas pátrias que andam por aí. P&V- Como o senhor explica a reeleição de figurinhas carimbas da corrupção política brasileira? O problema está na legislação eleitoral, na amnésia popular, no voto cabresto ou no jogo perverso e cínico entre eleitores e candidatos? Maluf, Collor, Garotinho e tantos outros do mesmo naipe não passam dos limites da compreensão humana. PD- Ninguém será livre se não matar seus favoritos em algum momento da vida. O tempo da má política não passará totalmente para muitos brasileiros enquanto o horizonte cultural da nação estiver ajustado ao nível de compreensão dos políticos que são parte da sociedade e a refletem. As expectativas do bem e do mal são recíprocas para o político e seu eleitor. Superar necessidades primárias de identificação com qualquer um depende de muita maturidade democrática. Mas será que podemos dizer que tais figurinhas carimbadas são jabuticabas, fruta tipicamente brasileira? O pomar político do mundo atual é decepcionante. Você não acha?

narizdepalhaco.files.wordpress.com

Arruda saiu pela porta dos fundos, depois de protagonizar um dos maiores escândalos recentes de corrupção

• Um filme: “Sobre Meninos e Lobos” do Clint Eastwood . • Um vexame: tossir no teatro. • Um livro: “A Montanha Mágica” de Thomas Mann. • Uma decepção: a política como ela é. • Uma música: “Adagio” de Tomaso Albinoni. • Uma tristeza: a morte da minha mãe, Maria do Carmo. • Uma alegria: meus filhos. • Um sonho não realizado: ser piloto. • Um Ponto G: o ponto G. • Uma verdade: a Teoria da Relatividade. • Uma mentira: enganar a todos o tempo todo. • Uma traição: não procurar ser feliz. • Dilma ou Serra: Dilma, mas respeito muito o Serra e a Marina. • Quem você deixaria, para sempre, numa praia deserta? um dia, eu próprio.


Ensaio Fotográfico

Por trás dos olhos de Dandara Amanda Lelis Roberta Andrade

O

bservar mais e perguntar menos. Com essa missão, as jornalistas Amanda Lelis e Roberta Andrade se aventuraram, na produção de um livro-reportagem, com a narrativa da história de uma família no primeiro ano da Ocupação Dandara, em Belo Horizonte, um terreno localizado no Céu Azul, ocupado por quase 900 famílias. Valendo-se de procedimentos que deveriam ser universais para os jornalistas, a dupla lançou mão – além da observação atenta ao cotidiano de um grupo de semteto – de um estado de alerta constante para sentir as coisas que, muitas vezes, deixam de ser ditas. O silêncio torna-se uma máxima neste trabalho. Não o silêncio de quem se cala diante da indignação. Mas um silêncio que surge da humildade e que honra a pessoa que está sendo observada. É preciso assistir ao desenrolar das cenas, sem interferências, sem cortes bruscos. Deve-se dialogar com o entrevistado, deve-se estar dentro da história e, ao mesmo tempo, fora dela. Nesse processo, muitas vezes, quem controla o fluxo narrativo são as personagens. O problema trazido à tona, a situação de sem-tetos em Belo Horizonte, implica em uma série de questionamentos sobre direitos de propriedade, direito à moradia, direitos individuais, coletivos, entre

ABRE ASPAS

Roberta Andrade e Amanda Lelis (abaixo), no trabalho de pesquisa

outros que são garantidos pela Constituição do país, ora contemplados, ora não. Embora todas essas questões permeiem o tema, as autoras escolheram o caminho que prioriza o homem, suas crenças, seus sonhos, suas lutas, interesses em comum, conquistas e derrotas. “O sonho da casa própria”, que para muitos pode parecer um chavão - termo desgastado pelo uso e que teria perdido seu valor expressivo, ganha novo foco

e torna-se o fio condutor para desvendar uma realidade vista por dentro, de dentro, pelos olhos das “Dandaras” contemporâneas, que ajudam a sustentar o movimento de resistência e luta contra a posse exclusiva da terra. O ensaio fotográfico com o qual brindamos os leitores da Ponto & Vírgula, ilustra o trabalho de pesquisa das alunas e aponta um problema que começou a ser escrito quando, ainda nos primeiros anos de ocupação e exploração do país, os colonizadores resolveram cercar terrenos com estacas e declarar o direito à propriedade. De certa forma, com esse trabalho, é retomado e retratado sob a perspectiva dos excluídos, que também pegaram estacas improvisadas, invadiram um latifúndio improdutivo e ocuparam o que, de certa forma, fora retirado de seus ancestrais há centenas de anos. Por Trás dos Olhos de Dandara lança luz sobre a sociedade atual e seu comportamento num mundo que valoriza cada vez mais os feitos individuais, desconsiderando os apelos e problemas coletivos, que desconsidera as raízes do problema e seu movimento cíclico, e põe milhares de vidas fora do foco, da notícia, das políticas, dos direitos, da dignidade, da democracia... Aurélio José da Silva Jornalista e mestre em Ciências Sociais Orientador do projeto de conclusão de curso

“Nós matamos o tempo, mas ele enterra-nos”, do escritor Machado de Assis. 11


A familia de Dona Celia, personagem central da narrativa, foi acompanhada durante o período de pesquisa. As fotografias retratam dois tempos: antes - José, sua mulher Ideslaine, Pricila e a sobrinha Yasmin, filha do casal, Dona Célia ao lado de Ruan, filho de Pricila - e depois da conclusão do trabalho, com a presença do caçula da família, Isaac

12


“O noticiário da imprensa, particularmente o sensacionalista, sentimentaliza as questões sociais e penaliza em vez de reação de descontentamento”, do jornalista José M. de Melo. 13 ABRE ASPAS


14


Mas, já que se há de escrever, que ao menos não se esmaguem com palavras as entrelinhas”, da escritora Clarice Lispector. 15

ABRE ASPAS


Frente & Verso

Descriminalização das drogas A favor Contra

Franco Serrano

A

Elizabeth I. de Andrade Professora de psicologia da Fumec/FCH

qui e agora me encontro diante da minha fragilidade pós-moderna, de sujeito dito “normal”. Meu interesse foi capturado pelo convite de escrever sobre minha posição frente à descriminalização do uso das drogas. Sou a favor. A frase é simples, porém não o é a afirmação. Penso, reflito e retorno a artigos e livros, procurando palavras ou expressões que traduzam ao leitor o que me leva a esta posição. Ascendo um cigarro, olho para ele detidamente e penso: pode o Estado me explicar, de preferência em poucas palavras, por que sou uma fumante, ou seja, uma drogadicta? Claro que não. Entretanto, ele, o Estado pode manter sobre mim um controle. Ele pode me alertar sobre os males que advém do uso, me dizer onde posso agir espalhando a fumaça e o odor que saem do cigarro que fumo. Sou a favor da descriminalização por uma centena de motivos. Penso, assim, porque enquanto nós, usuários de qualquer tipo de droga, lícita ou não, estivermos capturados pela sombra da ação que é crime, pelo rótulo de viciados, enredados que somos em nossa ambivalência afetiva e em nossos relacionamentos conflitantes, não conseguiremos avançar para qualquer ação transformadora: quer seja ela de uso ou não de não-uso de qualquer substância que nos altere a consciência. A descriminalização das drogas transcende seu aspecto funcional. É nesta perspectiva que acredito na medida.

16

Fotos: Pedro Gontijo

Lícia Queiroz Santos Professora de psicologia da Fumec/FCH Sérgio Lucarelli

D

esde tempos imemoriais, o álcool fez sua entrada na civilização e passou a fazer parte do cotidiano do homem, de sua vida social, religiosa e até mesmo laboral. Em 1992, o governo brasileiro oficializou o uso religioso do chá ayascar (daime, hoasca, vegetal). Cogumelos e folhas de Jurema têm livre circulação – pertencem à flora e fazem parte da paisagem brasileira. A maconha é moeda de troca na porta de nossas escolas há muitos anos. Os exemplos são tantos e diversificados: dos chocolates e doces aos refrigerantes, do crak ao LSD, nos falam de drogas proibidas ou não, que circulam no dia a dia, ofertadas aos jovens, adolescentes. Proibidas ou não, é importante ressaltar. O certo é que a proibição não impede o consumo. Esta é a grande questão. Proibição. Será que isso funciona? É importante pensar em legislação, mais do que em liberação ou descriminalização. Os efeitos devastadores das substâncias ilícitas não serão atenuados nem pelo tempo e nem pela liberalização. O que se chama de liberalização ou legalização (como no caso do chá alucinógeno servido nos rituais do Santo Daime) pressupõe a vontade de confiar no “bom uso” do produto nocivo. O caminho da educação, da melhoria da qualidade de vida inteligente, do conhecimento e do acesso à cultura não seriam melhores alternativas à legalização da droga? É a sociedade que pode controlar. Cada pai, cada educador deve poder se apoiar numa legislação e nas penalidades previstas por ela.

A maconha, quase sempre, é a porta de entrada para outras drogas, por mais que os usuários discordem.


Entrevista Kirlian Siquara

[200 anos de capitalismo]

Ruim com ele, pior sem ele? A um preço social exorbitante, caracterizado por feridas e doenças incuráveis (consumismo e individualismo), o capitalismo veleja em águas turbulentas. O que virá depois? É esperar para ver. médios e grandes capitalistas, incautos ou não: “o que não se pode esquecer é que toda transformação social vem de uma situação extrema, nunca de uma situação confortável.

Por: Pedro Cunha 5ºG Jornalismo

KIRLIAN SIQUARA, professor e filósofo

T

udo que é sólido desmancha no ar, já dizia o filósofo Karl Marx. E com o capitalismo, como será? Esse sistema econômico, que surgiu na Europa no final da Idade Média, nos acompanha desde a chegada dos lusitanos em terras tupiniquins. Caminha em instabilidade com a humanidade e, recentemente sofreu sua maior crise. Será este momento, o início da ascensão de um novo sistema econômico, ou o capitalismo, com as suas perversidades e virtudes, irá triunfar ainda mais robusto e cobiçado? Para responder estas e outras perguntas e fazer uma análise conjuntural sobre o assunto, Ponto & Vírgula ouviu o sociólogo e mestre em filosofia pela UFMG, hoje, lecionando na Universidade Fumec, e que já se desponta como uma grande revelação. Kirliam Siquara, apesar da tenra idade, mostrou que sabe do que fala, e sem o menor pudor- o que lhe garante maior credibilidade-, mandou um recado a todos nós, pequenos,

ABRE ASPAS

Ponto & Vírgula- Estado e mercado estreitaram suas relações a ponto de não se saber onde começa um e termina o outro, por mais que saibamos que toda intimidade gera desrespeito, conforme assegura o provérbio inglês. O certo é que ambos contemplam e aninham contradições e perigos. O senhor concorda? Como deve ser esta relação, considerando o fato de sua eficiência ter que passar pela justiça social? Kirlian Siquara-Um ponto importante a ser lembrado acerca desta discussão “Estado-Mercado” é que a referência aqui é a um tipo específico de Estado, o Estado-Nação, instituição política que (assim como o sistema de produção capitalista) nasce na Europa numa época determinada e se dissemina posteriormente por praticamente todo o espaço geográfico terrestre. Pois bem, uma tese marxista clássica é a de que cada sistema de produção constituído historicamente (mercantilismo, capitalismo etc.) gera instituições políticas que se encarregam de manter a continuidade deste sistema que lhes deu origem. Se acompanharmos essa tese não será difícil perceber que a visão de um “Estado” em conflito ou em conluio com o “Mercado” só pode ser ingênua, pois, de fato, o próprio sistema interestatal que hoje detém completo monopólio do espaço

geográfico mundial – chamamos os elementos desse sistema de “países” – foi fundado e permanece sendo utilizado pelo sistema de produção capitalista. O Estado-Nação existe porque o sistema de produção capitalista necessita dele – por exemplo, para a nobre função de tributação – portanto, sob um ponto de vista estritamente marxista, não há como o Estado se furtar a suas tarefas. P&V-Falar de triunfo do capitalismo perverso equivale falar da decadência moral da instituição sociedade? Por que? KS-Depende. Se assumirmos que sim, isso termina por dar a impressão de que a exploração do trabalho promovida pelo capitalismo é, no fundo, uma questão de moralidade e isso, a meu ver, não parece correto. Também não sei até que ponto a tradição marxista permite esse ponto de vista. Para Marx, as ideias morais de uma dada sociedade não conseguem escapar do espaço permitido a elas pela estrutura econômico-política, pelo contrário, são vistas por ele como elemento de reiteração dessa estrutura – “o trabalho enobrece” etc. Nesse sentido, se a moralidade social é determinada pelas relações de produção não parece que ela possa ser utilizada como instrumento de crítica ou de transformação dessas relações. Até porque, isso seria fácil demais: “reforcemos nossa saúde moral que com isso eliminaremos a perversidade do capitalismo”, não me parece uma boa estratégia. P&V- A valorização do supérfluo, o trabalho em cima da insatisfação como garantia de mercado são partículas que constituem os sustentos da força do capitalismo. De que maneira

“A existência é um intervalo entre dois nadas: nada antes, nada depois, tudo

durante”, do filósofo e professor da Fumec, Marco Contigli. 17


estes “costumes” interferem na formação dos jovens que convivem com esse sistema econômico. Em cima de que são baseadas as perspectivas de satisfação? KS-Um dos maiores prodígios do capitalismo é sua condição de produtor de subjetividades. Esta é uma questão extremamente complexa, porque o que se quer enunciar sob o rótulo de “subjetividade” é algo que, apesar de se manifestar na interioridade dos indivíduos, não é algo privativo destes: pelo contrário, requer toda uma malha anterior de sinais e regras simbólicas que só podem existir coletivamente, em sociedade. Daí, a necessária anterioridade da sociedade em relação ao indivíduo. Daí, a suspeita de que a subjetividade individual talvez não seja tão individual assim, e que uma dada estrutura exterior pode constituí-la. O capitalismo de nossa época é um forte candidato a ocupar o papel dessa estrutura: as pessoas consomem de tudo o tempo todo sem atentar para coisa alguma. Os jovens simplesmente imitam os mais velhos. Quanto a isso não há nada de novo sob o sol. P&V-O jeito como o capitalismo se organizou na última geração, em que usa as pessoas e as abandona, é altamente destrutivo. O senhor acredita que uma reestruturação de caráter mais humano, que prevê um investimento na evolução das micro-partes possa trazer uma evolução grandiosa.? KS-Não. P&V- A crise econômica mundial só mostrou sua face em 2008/2009. Porém, por detrás dela, existia e existe uma enorme crise social que é mais antiga, que vem sendo mantida há 30 anos em nome da garantia do capital. Agora, quando o econômico entra em crise, o capitalismo ganha um caráter ainda mais cruel. Pode-se dizer que uma miséria mais intensa e desumana será produto desta crise. Quais são as tendências/conseqüências para o social? KS- Como escreveu o poeta alemão Hölderlin, “ali onde há perigo, cresce também o que salva”. O sistema de produção capitalista como qualquer sistema social histórico um dia vai deixar de existir, da mesma maneira em que houve épocas marcadas por sua ausência. Não acredito que isso se dará agora, mas de um abalo pode advir muita coisa. O que

18

não se pode esquecer é que toda transformação social vem de uma situação extrema, nunca de uma confortável.

“Aquilo que define o capitalismo em oposição a outros sistemas sociais anteriores , é justamente a postulação da acumulação indefinida do capital, sonho do pequeno que quer ser grande, e de todo capitalista imenso que quer ser maior ainda”

P&V-O senhor acredita que o mundo já se recuperou da última crise, considerada a maior do sistema capitalista-, ou ainda há possibilidade de que eventuais estilhaços venham perturbar o sistema? KS-Depende do que se entende por “recuperação” e “crise”. A tradição marxista reitera a tese de que o sistema capitalista de produção é inerentemente contraditório, e, por isso, irracional. Esse adjetivo não depende de grandes análises para ser compreendido, basta que recordemos que o principal objetivo de qualquer agente econômico capitalista é acumular capital. E com qual objetivo acumula-se capital? Para se acumular ainda mais capital. Aquilo que define o capitalismo em oposição a sistemas sociais anteriores é justamente a postulação da acumulação indefinida de capital – sonho de todo capitalista pequeno que quer ser grande e de todo capitalista imenso que quer ser maior ainda. Ora, sendo assim, é óbvio que essa acumulação indefinida de capital é uma quimera, e isto pelo fato simples de que tudo aquilo que existe é limitado de alguma forma a começar pelos recursos naturais que são a matéria-prima por sobre a qual incide a atividade humana. A partir disso, constata-se a estrutura necessariamente instável do sistema capitalista. P&V-A revista britânica “The Economist” afirmou que até 2014 o Brasil deverá se tornar a quinta economia

do mundo. A partir deste prognóstico, pode-se dizer que a porção perversa do capitalismo está com os dias contados no país? Que relação o senhor enxerga na ascensão econômica e perversidade? Não lhe parece incoerência? KS-Mais uma vez o que está em jogo é a natureza contraditória do sistema capitalista. Na medida em que o próprio sistema constrange seus agentes na busca pela acumulação indefinida de capital – sob o risco de esses serem expelidos do “mercado” se não o fizerem – ele também termina por praticamente fundar uma distribuição desigual de renda, pois a acumulação por parte dos capitalistas depende diretamente de sua capacidade em explorar o trabalho nos termos da famosa “mais-valia”. Contudo, há que se matizar a situação concreta de cada país: o Brasil, nos últimos oito anos, vem dando passos largos em direção a uma situação que poderíamos chamar de “social-democrata”, já que neste período houve um aumento constante no número de empregos formais e ascensão de uma grande fatia da população para a chamada “classe C”. Isto não deve ser desconsiderado. P&V- O escritor peruano, Mário Vargas Llosa, em um de seus artigos “Ajuda para o Primeiro Mundo”, publicado pelo jornal madrileno “El Pais”, critica a idéia de que a miséria do Terceiro Mundo seja resultado da afluência do Primeiro Mundo. Llosa aponta a relação acima como ultrapassada, e diz que hoje a pobreza “se produz” da mesma forma como a riqueza, e que ambas são opções ao alcance de qualquer povo. O escritor ainda reforça o argumento de que a grande causa da produção de pobreza seria a corrupção dos dirigentes e a dilapidação dos recursos. A causa da pobreza transcende a estas interpretações? Ela não seria o paradoxo inerente do capitalismo? KS-A causa da pobreza sob o capitalismo é conhecida: a postulação da acumulação indefinida de capital que implica necessariamente em uma desigualdade estrutural na distribuição de recursos e de renda. Por outro lado, o neoliberalismo do escritor peruano – que foi o candidato vencido ao posto de presidente do Peru, nas eleições de 1990, à frente de uma coalizão de direita chamada Fredemo (Frente Democráti-


Pedro Gontijo/Fumec

Shopping de Belo Horizonte: uma das expressões mais ostensivas do capitalismo

co) – também é bastante conhecido. P&V-Tendo em vista essas recentes catástrofes naturais e a solidariedade que os países estão tendo uns com os outros, o senhor acredita que o capitalismo ganhou uma nova face, mais humana, mais sustentável e deixou de lado seu perfil desastroso? Ou não se deve confundir uma coisa com a outra? KS - Não, não se deve confundir uma coisa com a outra. P&V-A palavra perverso, adjetivo comum dado ao capitalismo, é sinônimo de traiçoeiro que, por sua vez, significa “relativo à traição. O sistema capitalista, como já vimos em sua longa estrada, convive com traições intrínsecas que se revezam em crise conjunturais e estruturais. O senhor acredita que um novo sistema econômico está por vir como previa Marx? KS -Como todo sistema social histórico, o capitalismo um dia vai deixar de existir. No entanto, quando isto se dará

e o que tomará o seu lugar é impossível prever. P&V-A exemplo de tantos outros sistemas, a irrigação do nosso sistema econômico se dá, também, através de versões institucionais. Neste mundo cruel, valem os eufemismos “livre iniciativa “ e “globalização”, que pavimentam as esperanças e fantasias de milhões e milhões de cidadãos. No entanto, é muito tênue a linha que separa as promessas das frustrações. Como o senhor analisa este processo? KS-Apesar de estar mais próximo de um slogan do que de um conceito, a noção de “globalização” não deve ser descartada como mero eufemismo, pois ela denota uma característica do atual estágio do capitalismo que é nova: a ausência de exterioridade a este. Durante boa parte do século XX, o bloco comunista conseguiu impedir o avanço do capital, demarcando uma fronteira geopolítica que, como se sabe, deixou de existir.

Hoje, o capitalismo está de fato em todos os lugares. Por outro lado, a tradição marxista aponta para o fato de que o discurso também não é impermeável ao campo de forças econômico-político, por isso a ideologia o atravessa. P&V-A globalização dos mercados financeiros que ocorreu desde os anos 80 permitiu que o capital financeiro se movesse livremente pelo mundo, tornando difícil sua tributação ou regulamentação, sendo esta a causa principal do colapso de 2008, conforme apontou George Soros. Tendo em vista esta afirmação, o senhor acredita que a globalização – considerada forte arma de evolução capitalista-, pode ser interpretada, hoje, mais como empecilho do que como aspecto positivo para o capitalismo? KS-Um ponto interessante que se pode observar a partir da experiência da globalização é a de que quanto mais o sistema se expande mais instável ele fica. Na medida em que a acumulação de capital exige mudanças jurídicas, políticas, até mesmo geográficas (pensemos nas ex-repúblicas soviéticas, por exemplo) e territoriais, tal situação acaba por aumentar o sempre presente espaço do conflito. O que, por sua vez, permite que movimentos anti-sistêmicos, sejam eles: nacionalistas, socialistas, religiosos etc, adentrem zonas (ou vácuos, muitas vezes criados artificialmente) não ocupadas anteriormente. Por outro lado, se o sistema não porta mais fronteiras que demarquem a existência de uma exterioridade a ele, o espaço por ele abarcado passa a ser o único a partir do qual é possível exigir reformas ou mesmo transformações. Se pensarmos no que alguns economistas estão afirmando acerca de uma mudança de paradigma para a economia pós-crise – baseada no uso razoável dos recursos naturais e, principalmente, no abandono da figura do agente econômico egoísta (tão caro ao liberalismo) – talvez o simples fato de que o sistema tenha se expandido desse modo coopere para sua superação. P&V-O protecionismo ocidental, que investiu trilhões de dólares no mercado mundial para enfrentar a crise econômica em 2008, mostra algumas facetas que precisam ser

“O custo da intervenção estatal é a corrupção”, dos economistas Bernardo Guimarães e Eduardo Gonçalves. 19

ABRE ASPAS


20

nômico? KS-Não sei o que pensa o professor Eichengreen, mas sei o que “pensa” a Veja, bastião do jornalismo marrom no país. Esta visão poderia ser considerada infantil, se não fosse uma tentativa consciente de deturpação: essa abstração intitulada “liberdade do empreendedor” depende diretamente de suportes jurídicos, institucionais e sócio-políticos evidentes que, com toda certeza, não contam eles mesmos com “200 anos de experiência”, seja na trajetória histórica estadunidense, seja na expansão geográfica do capitalismo. Pois, se assim não for, se tal “virtude” não depender de constrangimentos legais e políticos, teremos de reconhecer que não há maior exemplo de “empreendedorismo” do que o tráfico de drogas – ou o “tráfico” não constitui um mercado, as “drogas” uma mercadoria e o “traficante” um agente econômico? P&V- A delinqüência congênita mais expressiva do sistema capitalista é o consumo obsessivo, porque nele- não interessa as patologias que gera-, está a garantia de preservação do tripé produção-mercadoriaconsumo. Que conseqüência para as sociedades essa camisa-de-força pode trazer? E como enfrentá-la sem os riscos de provocar uma deserção social? KS - Como já afirmei anteriormente, isto tem a ver com a capacidade de um sistema social e econômico como o capitalismo de produzir subjetividades. Não que nisso ele seja o único: qualquer sistema social participará ne-

cessariamente da constituição psíquica do indivíduo, na medida em que o antecede. Portanto, a questão passa a ser determinada pelo tipo de subjetividade que o capitalismo produz e, para isso, o consumo entendido como uma prática social é um rastro precioso. Pois, obviamente, nenhuma sociedade consome como a capitalista: aqui, o consumo não se relaciona apenas à troca de mercadorias e serviços, mas, ao contrário, parece agenciar a totalidade da vida social – desde a aplicação da mais-valia (que se assemelha a um tipo de consumo da força de trabalho do outro) até a dinâmica de hierarquizações e distinções que acompanha tal prática.

“Um ponto interessante que se pode observar a partir da experiência da globalização é a de que quanto mais o sistema capitalista se expande, mais instável fica”

P&V-Neste cenário absurdamente caótico, a classe média brasileira, narcísica como nunca, assume a função de colchão entre ricos e pobres, conforme interpretação do psicanalista Jurandir Freire Costa, da Universidade Estadual do Rio de Janeiro. Pedro Cunha/Fumec

analisadas conjunturalmente: primeiro, na base do temor pela decadência do capitalismo está a falta de alternativa, face à frustração com o socialismo. Segundo, o consumo é matéria-prima fundamental para manter a ilusão das sociedades e as falsas promessas de ascensão. Terceiro, o Estado, a economia, a política, a cultura, a educação, juntos e misturados, configuram a sociedade do espetáculo, do espetáculo que não pode parar, por mais desastroso que seja, isto é: para manter a saúde plena do nosso sistema econômico, que se danem outras demandas sociais. O senhor concorda? Como o senhor vê a complexidade desta rede? KS-De maneira geral, concordo; ressaltando que o sistema de produção capitalista (e suas emanações políticas, econômicas, jurídicas, tecnológicas, etc.) opera por diferenciação e especialização, o que torna a malha ainda mais intrincada. P&V-Segundo o ex-ministro Mailson da Nóbrega, não há alternativa sistema capitalista, porque é ele que libera as energias produtivas da sociedade, ninguém o supera na geração de renda, emprego e bem-estar. Como o senhor interpreta esta fala, que, entre outros limites, paga o preço da linearidade, e não contempla paradoxos? KS-Trata-se de uma fala ideológica travestida de análise feita por um dos mais diligentes funcionários da especulação nacional. Como se sabe, o exministro é dono de uma empresa de consultoria chamada Tendências, sediada em São Paulo, que é muito utilizada pelas empresas privadas de comunicação impressa e audiovisual – a chamada “imprensa” – para produzir opiniões que detêm a sólida característica de nunca contrariar interesses da banca especulativa nacional. P&V-O professor Barry Eichengreen, da Universidade da Califórnia (E.U.A.), em entrevista na revista Veja (24.02.2010), atribui ao capitalismo a única e promissora liberdade do empreendedor, virtude, segundo ele, sustentada por 200 anos de experiência. Esta visão não lhe parece mais um recorte da realidade, mais um fragmento, propositalmente construído para escamotear as desvirtudes naturais desse sistema eco-

O sistema financeiro abriga sonho e miséria como faces iguais da mesma moeda


Sem Pestanejar

O senhor admite que este colchão não tem vida eterna , o que pode significar um perigo iminente? KS- Sim. Mas, ao mesmo tempo, a classe média no País vem aumentando, o que talvez não fosse aventado por Jurandir à época de seu escrito. P&V-O consumismo e o individualismo estão para o capitalismo, assim como o oxigênio está para a vida. O senhor concorda? KS- Claro que sim. Enquanto o oxigênio nos mantém de pé, o consumo doentio e o individualismo, que expressam sobremaneira o perfil patológico das sociedades urbanas, cada vez mais, contribuem para nossa morte ou invalidez permanente. Tudo isso faz parte do processo de manutenção da sociedade do espetáculo. O Estado é espetáculo, o Judiciário é espetáculo, a política é espetáculo, a cultura é espetáculo, a economia é espetáculo, enfim a vida é um

espetáculo, porque o show, mesmo que mambembe, não pode parar. Esta é a lógica da moral capitalista, que prega a acumulação infinita do capital, esquecendo que somos finitos, que valoriza o “ter” ou o “parecer ter” em detrimento do “ser”, estimulando gradualmente a ideia de que vida feliz só é possível via o mercado, que determina a legitimação de tudo, especialmente da figura hegemônica do consumismo. A eficácia econômica é o critério supremo para todos os juízos morais, como já disse o filósofo e economista Adam Smith. P&V- Além do “livre pensar”, o que a filosofia, muito além das versões, pode fazer por nós, pobres mortais, algozes e vítimas do capitalismo? KS- Não muito. Para além do fato de que também a filosofia não se dá no vácuo – ela nasce e se constitui sempre em relação a alguma configuração sóciohistórica – o “livre ato do pensar” apenas

indiretamente se relaciona com a ação. Existe uma distinção entre o que poderíamos chamar de “razão teórica” e “razão prática”, uma razão que se esforça em determinar cognitivamente aquilo que nos rodeia e, outra, que tenta nos dotar da capacidade para agir (basicamente, por meio de razões que justifiquem a ação). O drama é que, justamente por se tratar de dois tipos de raciocínio aplicados a campos distintos da existência humana – o pensar e o agir – a aliança entre essas “razões” não é automática. Daí, a percepção um pouco insólita de que não é porque se “pensa” bem que se age bem; não é porque se conhece o funcionamento da ratoeira que se escapa dela: é preciso poder escapar. Nesse sentido, é a potência que tem a ver com a ação, não necessariamente o pensamento (ainda que, obviamente, o pensamento possa fortalecer a potência) um estado de coisas que, se, por um lado, decepciona, por outro, alivia.

• Um filme: “O Bandido da Luz Vermelha” de Rogério Sganzerla. • Um vexame: o filme “Os Desafinados” de Walter Lima Jr. Vexame recente de um diretor talentoso tempos atrás. • Um livro: “Capitalismo Histórico e Civilização Capitalista” de Immanuel Wallerstein. • Uma decepção: a defesa feita pelo jornalista Mino Carta ao presidente do STF, Gilmar Mendes, em relação à Cesare Battisti. • Uma música: “S.P.Q.R.” da banda inglesa This Heat. • Uma tristeza: as mortes seguidas de três gênios nacionais: Waly Salomão, Raimundo Faoro e Itamar Assumpção. • Uma alegria: minha mulher. • Um sonho não realizado: o socialismo, por ser utópico, é impossível de ser realizado. • Um Ponto G: Jazz. • Uma verdade: os seres humanos acreditam nos artifícios por eles mesmos inventados. • Uma mentira:“não existe tortura no Brasil”, Alfredo Buzaid, Ministro da Justiça, 1970. • Uma traição: todos os discos de Jorge Ben após o ano de 1979; uma traição à sua obra das décadas de 60 e 70. • Dilma ou Serra: Dilma Rousseff. • Quem você deixaria, para sempre, numa praia deserta? um é pouco, dois: Daniel Dantas e Gilmar Mendes, irmãos siameses.

“Quando a razão não fala, põe o coração na boca, e vive. Porque a hora certa de sentir não existe”, da escritora mineira Fernanda Melo. 21

ABRE ASPAS


Entrevista Plínio Sampaio

Uma traição:

“O Governo Lula” A messiânica posição que o “ Lulismo” desfruta (76% de ótimo/bom) indica que o que menos vai acontecer nas eleições para presidente da República, em especial, é o debate profundo, para evitar um sacrifício maior da oposição. O candidato Serra sabe disso e, estrategicamente, não vai meter a mão na cumbuca; que se dane a despolitização Arquivo Pessoal

PLÍNIO A. SAMPAIO, ex-deputado federal

A

o contrário do seu amigo Barack Obama, que alguns meses após sua posse como presidente dos EUA, viu escorrer pelo ralo social a Obamania, Lula, mesmo a poucos meses de trocar a faixa presidencial com a sua irmã siamesa Dilma ou com o “oposicionista” Serra, só viu aumentar a sua popularidade dentro e fora do país. Beatificado pelas massas, cortejado pela elite conveniente e admirado pelos seus pares internacionais – a ponto de ser condecorado repetidas vezes- , o outrora sindicalista combativo e alinhado ao socialismo pragmático, há muito deixou de ser pessoa jurídica para se transformar, magnificamente, a exemplo dos grandes astros, na encarnação do “Lulismo”, princípio, meio e fim de uma filosofia de governo, versão pós-moderna, como foram o getulismo e o peronismo. Mere-

22

cidamente, o sábio Lula, para desespero das oligarquias adversárias, maneja como ninguém suas estratégias de ação, porque, como santo que não é e nunca foi, entende, à sua maneira, que o “Lulismo” é tão generoso quanto perverso, quando busca se fortalecer na geléia geral da política brasileira. Se a porção generosa do “Lulismo” usa a sua origem de retirante nordestino para absolvê-lo de tudo, a porção perversa, pelo contrário, o atingiu em cheio, denunciando seu populismo, sua prepotência, concessões, vaidade excessiva, nem um pouquinho melhor ou pior que seus antecessores. Como mocinho e bandido, dicotomia inerente ao ser humano, e indiferente aos meio utilizados, porque são os fins que o interessam, ele criou, modelou e está vendendo sua sucessora à nação brasileira. Apoiada nas bengalas sociais do tipo PAC e Bolsa Família, a irmã siamesa Dilma Rousseff, não duvidamos nada, é o ponto G de Lula e vice-versa. Para falar do “Lulismo” e suas repercussões que “atropelaram o petismo e dizimou com os ideais do PT” , Ponto & Vírgula ouviu Plínio de Arruda Sampaio, ex-deputado federal por dois mandatos, e fundador emérito do PT. O jurista e professor que experimentou a cassação e o exílio, rompeu com o partido em 2005. Hoje, aos 80 anos, e cada vez mais lúcido, ele preside a Associação Brasileira de Reforma Agrária (Abra) e retorna ao cenário político – de onde nunca deveria ter saído – como candidato do PSOL à Presidência da República. Com a autoridade advinda de sua experiência de vida e da sua ilibada conduta moral, Arruda já adianta aos nossos leitores: entre Dilma e Serra, ele opta pelo voto

nulo, conforme confirmou, recentemente ao jornal O Globo.

Da Redação Ponto & Vírgula - Para evitar que caiamos nas armadilhas factuais da política, quase sempre, avessas ao debate mais analítico, mais profundo, começamos pela pergunta: em nome da democracia, que, do ponto de vista político, não passa de uma razão instrumental utilitarista, usada indiscriminadamente para quaisquer fins, faz-se de tudo em tempo integral, claro, com o apoio, sobretudo, da mídia. Quais as conseqüências desta banalização? Mudou o conceito ou mudaram os candidatos? Até quando suportaremos este aviltamento conceitual? Plínio Arruda Sampaio – Primeiramente, considero importante que os leitores da Ponto & Vírgula se questionem se existe, de fato, democracia no Brasil. Que democracia é essa em que os movimentos de trabalhadores do campo são criminalizados por defenderem a Reforma Agrária? A Reforma Agrária está na Constituição, mas no Brasil só valem as leis que a classe dominante deixa valer: a UDR e a CNA da dona Kátia Abreu, que está cotada para ser a vice do Serra, os banqueiros, o setor industrial cada vez mais internacionalizado. Que democracia é essa em que eu, um homem com 60 anos de vida pública, que fui secretário de Estado, deputado federal por três vezes, constituinte, etc tenho minha pré-candidatura sistematicamente boicotada pela mídia porque não sigo o script montado para a eleição? Aliás,


agradeço à revista pelo espaço porque a mídia grande esconde a minha candidatura e depois diz que eu não cresço nas pesquisas, mas é óbvio, eles negam aos brasileiros saber que eu sou candidato! Bom, respondendo à pergunta agora. Em nome da dita democracia que existe no Brasil, a classe dominante deita e rola e anestesia o povo, convencendo a população de que a política é coisa pra político. A buguesia e seus candidatos não mudaram, nem o conceito sociológico de democracia, o que acontece é que o nosso povo não está organizado. E sem povo organizado a “democracia” é a imposição da vontade da minoria dominante. O povo tem que se organizar e superar o capitalismo, porque só no socialismo – o verdadeiro, e não aquele socialismo real que teve lá na União Soviética com o Stálin – haverá uma democracia plena. P & V - Está mais do que claro para todos nós que uma coisa é campanha política, outra coisa é governo. Nesta distinção perversa, deificada pelos candidatos, cabe de tudo: promessas, mentiras, inauguração de obras inacabadas, liberação ilegal de recursos, coalizões escandalosas, aparições públicas quixotescas etc, etc. Mesmo assim, a candidata-siamesa do presidente Lula – o que não significa, necessariamente, candidata do PT -, em recente entrevista (Revista Veja de 24.02.2010), sem o menor pudor, disse não ver nenhum lugar para a mentira na democracia. Como o senhor analisa essa fala da Dilma Roussef e, especialmente, a mentira como recurso intrínseco à política? PAS – A resposta sobre a frase da Dilma, se ela efetivamente disse isso, pois não li, está contida na sua pergunta. Mas não acho que a mentira seja intrínseca à política. Para construir uma nação, e precisamos construir uma nação, o povo tem que fazer política. Política, com P maiúsculo e não politicagem. A liberdade que os políticos da ordem têm, hoje, para mentir é diretamente proporcional à organização do nosso povo. A minha candidatura é para discutir isso, para gerar consciência social, para dizer o que deve ser dito, mesmo perdendo votos. P & V - Para justificar e amainar o

anacronismo moral que incide sobre a relação mentira versus verdade, o sagaz presidente Lula se defende dizendo não haver crime no fato de um partido ter um programa diferente do governo. Quais são os reflexos desta metodologia política, considerando as expectativas de milhões de eleitores e cidadãos? PAS – Essa postura só fortalece a noção difundida pelo senso comum de que político é tudo igual e afasta os cidadãos do debate político sobre o país.

“Em nome da dita democracia que existe no Brasil, a classe dominante deita e rola, e anestesia o povo, convencendo a população de que a política é coisa pra política”

P & V - A imposição de Dilma Roussef como candidata à Presidência da República é indicativa da presunção do Lulismo em se eternizar no poder através de sua alter-ego? Dilma, que segundo o ministro Tarso Genro, surgiu para ocupar o vazio petista, refém que é do ideologismo renitente, está para Lula assim como o personagem Sherlock Holmes está para seu autor, Connan Doyle. O senhor concorda com esta analogia? Que perigo esta relação, de certa forma esquizofrênica, pode trazer riscos? Por exemplo: jogar todas as esperanças no fenômeno “transferência de votos” pode repetir o que ocorreu nas últimas eleições no Chile, onde Michelle Bachellet não conseguiu eleger seu sucessor, Eduardo Frei? PAS – Penso que a candidatura da Dilma, que é uma pessoa que não conheço, responde a um projeto político. Não considero correto fazer críticas pessoais a ela ou a quem quer que seja. Minha

divergência com ela, com o Serra e com a Marina é de projeto. Eles defendem o capitalismo e eu defendo o socialismo. Sobre o resultado eleitoral, o volume de dinheiro – possibilitado pelo financiamento privado de campanha, ao qual somos contrários -, o peso da máquina do Estado e da popularidade de Lula dão à Dilma uma grande vantagem. Mas o jogo ainda está sendo jogado. P & V - Trinta anos de PT, mais oito anos de governo Lula é igual Lulismo. Há quem afirme que o egocentrismo de Lula é tamanho que “se Dilma vencer a vitória é dele, se perder, a derrota é dela”. Como o senhor avalia esta questão? PAS – Como disse anteriormente, o que está em debate não são as personalidades. Ou pelo menos não deveria estar em debate este aspecto da questão. Respeito pessoalmente o Lula, com quem convivi anos e ajudei a coordenar duas de suas campanhas. Minha polêmica com Lula é que ele passou para o outro lado, traiu a classe. Mas, como foi com o Fernando Henrique quando o Serra perdeu a eleição para o Lula, se a Dilma perder é também uma derrota para o governo que tenta garantir a continuidade de seu projeto. P & V - Nas últimas semanas, Dilma se aproximou rapidamente do candidato Serra, segundo as pesquisas eleitorais. E os indicativos são favoráveis ao crescimento ainda maior dela. A avaliação positiva do governo Lula, padrinho de sua candidatura, chega ao recorde de 75%, e a aprovação do presidente fica em 83%. O quadro vai se consolidando para a manutenção do governo atual? PAS – Como disse antes, a bola ainda está em campo. No entanto, o cenário hoje é bastante favorável para a Dilma, até pela exposição que ela tem de mídia. Se todos os candidatos tivessem um grau de exposição equânime poderia ser diferente. P & V - Em sua opinião, o preconceito de gênero é um desafio para a eleição de Dilma? PAS – Certamente que sim. O Brasil ainda tem uma cultura muito machista. Mas, o fato de terem duas mulheres na disputa vai quebrando essa tradição.

“Eu sou o beijo da boca de lixo, na boca do luxo. Eu sou o beijo da boca de luxo, na boca do lixo”, do poeta e cantor Cazuza. 23

ABRE ASPAS


Agência Brasil

Confiando cegamente na transferência de votos, o presidente Lula e sua alter-ego Dilma não abrem mão do projeto petista de continuidade do governo

P & V - Criada pelos tucanos, a CPMF recebeu, na época, feroz oposição dos parlamentares petistas. No governo Lula, no entanto, foi renovada e defendida em nome dos investimentos na saúde, ao passo que o PSDB incitou o fim do imposto e saiu vitorioso contra a sua própria criação. Qual é o reflexo na política nacional de tamanha flexibilidade moral? PAS – O descontentamento do povo e seu afastamento da política, o que só favorece aos poderosos. P & V - Fala-se em um fenômeno na política mineira chamado “Lulécio” (a aliança oficiosa entre Lula e Aécio). O senhor considera que o governador se empenhará na campanha de Serra ou optará por fazer uma campanha mais tímida, que favoreceria a candidatura da ministra Dilma? PAS – Avalio que o Aécio vai se jogar, em primeiro lugar, na campanha dele mesmo. Do ponto de vista do projeto de país, vença Dilma ou Serra, para ele não fará diferença porque o projeto é o mesmo: o neoliberalismo. P & V - Sobre o ainda não sepultado “mensalão do PT”. Como o senhor avalia as novas acusações que apontam para a participação do exprefeito de Belo Horizonte, Fernando Pimentel (PT), em esquemas de superfaturamento e evasão de divisas? Como isso pode influir ou não na candidatura de Dilma? PAS – Em primeiro lugar, toda denúncia de corrupção deve ser apurada

24

a fundo, imputando-se a devida responsabilização e punição sobre o corruptor, o corrupto ou o denunciante leviano caso se comprove que as denúncias eram infundadas. No entanto, é importante frisar que a corrupção é inerente a esse sistema e sua ordem, deve ser combatida, mas não vai acabar enquanto não acabar o financiamento privado de campanha, a impunidade, a lógica sistêmica de funcionamento do capitalismo. E, no caso das eleições, depende de como a mídia realçar o assunto porque, em geral, a mídia tem se pautado pela sucessão de escândalos, o que também contribui para o afastamento do povo da política. P & V - Segundo seu colega, o cientista político Francisco C. Weffort, em artigo publicado no jornal “O Estado de S. Paulo” (24/01/2010), até mesmo uma possível derrota de Dilma, “que nunca teve nenhuma significação política”, será uma vitória. O senhor concorda? Por quê? PAS – Eu avalio que vitória é vitória, e derrota é derrota. Do ponto de vista do projeto implementado pelo PSDB e também pelo PT, ganhe quem ganhar dos dois o projeto seguirá. Mas a Dilma perder será uma derrota para o PT enquanto gestor do Estado. P & V - O senhor, que foi um dos principais fundadores do PT, e que o deixou em 2005, afirmou ao jornal “O Globo” (21.02.2010) que o partido virou um amontoado de caciques e que o Lulismo destruiu o petismo. Como o senhor interpreta este caos interno da agremiação?

PAS – Eu costumo dizer que não fui eu que saí do PT. Foi o PT que saiu de mim, quando abandonou o caminho do socialismo. Houve foi um desvio de cúpula, que se perverteu, e isso destruiu o projeto do petismo. A partir de 1998, o PT preferiu o caminho do poder e deixou de ser socialista. Por isso, sua estrutura orgânica foi destruída. P & V - Aclamada como a candidata oficial do PT à Presidência da República, Dilma prometeu, sob orientação e vigilância expressas do seu padrinho siamês Lula, um Estado forte e de coalizão. O que isto significa para o senhor? Há alguma novidade neste discurso ou é mais um eufemismo para fazer o velho parecer novo? PAS – Você acha que é possível um Estado forte que não controla nem a sua política monetária, a sua moeda. Uma das coisas que levou à minha ruptura com o PT, simbolicamente, foi quando o governo Lula concordou em dar cada vez mais autonomia ao Banco Central. E Estado forte com forças armadas na situação lastimável que temos no Brasil? Por outro lado, desde o tempo do Collor que o Estado brasileiro é cada vez mais forte para reprimir os movimentos sociais e os trabalhadores e garantir os interesses da burguesia. Com Dilma, Serra ou Marina, isso vai continuar. P & V - Outrora inimaginável, como o senhor vê hoje a aliança do PT com o PMDB? Qual o tamanho da importância desta relação e quais as implicações dela para o projeto futuro do partido e da nação brasileira? PAS – A aliança do PT com o PMDB, o PP do Maluf, o PTB do Collor e do Roberto Jefferson e outros partidos da burguesia mostra o que eu já disse antes, o PT optou pelo caminho do poder e abandonou o caminho do socialismo. É uma aliança eleitoral forte para manter tudo como está. P & V - Na defesa do Lulismo, o presidente investe no “pragmatismo e na moderação” como pavimentos fundamentais para a vitória de Dilma e do seu virtual governo. Essa fala é a vitória do fazer pelo fazer, em detrimento do pensar? É mais uma demonstração do caráter utilitarista da administração pública? PAS – É mais uma demonstração de que o PT virou um partido da ordem. P & V - O pragmático e vaidoso


políticos tivessem, no cargo, a mesma remuneração que teriam no mercado de trabalho na sua profissão, se tivéssemos outro sistema eleitoral, seria diferente a situação do país. Por outro lado, o direito do voto no Brasil se perdeu enquanto direito porque a nossa democracia é de fachada. No entanto, a luta pelo direito de voto custou a vida de muita gente na luta contra a ditadura militar. É importante que isso também não passe em branco.

“Eu costumo dizer que não fui eu que saí do PT. Foi o PT que saiu de mim, quando abandonou o caminho socialista. Houve um desvio de cúpula, que se perverteu”

P & V - Como se não bastassem os elogios e condecorações recebidas da comunidade internacional, a consagração de Lula – leia-se do Lulismo – se confirmou com o filme “Lula, o filho do Brasil”. Há quem diga que

tudo isso faz parte de um complô para perpetuar o PT no poder. O senhor acredita? Qual o seu ponto de vista a respeito dessa armação? PAS – Não há nenhum complô para manter o PT no poder, há uma adaptação do PT ao poder. E uma utilidade da atual postura do PT para a classe dominante. Enquanto for útil mantê-lo no poder, tudo bem. Quando não for mais, a burguesia atuará para eleger outro administrador do capital que seja do seu interesse. E isso só vai mudar quando o povo se organizar e fizer valer a sua força de maioria. P & V - A perspectiva de volta do Lula, em 2014, se possível nos braços do povo, nos faz presumir, por mais que neguem, que Dilma é uma candidata-tampão, cuja função é marcar território na Presidência da República para o retorno triunfante de seu criador. Essa engenharia maquiavélica coloca o governo em segundo plano e a nação em terceiro. Porque para este vale mais um poder nas mãos do que dois voando. Este jogo não lhe parece muito cruel? PAS – Por isso saí do PT, ingressei no PSOL e hoje sou candidato. Para discutir os problemas do país e as soluções efetivas para eles, custe o que custar. Precisamos de um projeto de nação e, para isso, o povo trabalhador tem que fazer políAgência Brasil

Lula, de uns tempos pra cá, entrou numa de criticar publicamente a imprensa. É possível dizer que a relação Lula/mídia é de amor e ódio? Seria reflexo do vezo antidemocrático do presidente falando mais alto? PAS – A relação do Lula com toda a burguesia, incluindo a grande mídia, que é cada vez mais um partido da classe dominante no Brasil, sempre será de amor e ódio. Pelo simples fato de que o Lula não é um homem de origem da classe dominante. Ele nunca será um legítimo representante do lado de lá. Mas ele se dispõe a ser um bom gestor para o outro lado, que ainda tem o elemento positivo de anestesiar a massa e os movimentos sociais. Não sei por que ele reclama tanto da mídia também, porque alimentou ao longo de todo o governo as contas desses veículos com verbas publicitárias, foram mais de R$ 6 bilhões nesses oito anos. E, obviamente, os veículos retribuíram o agrado quando realmente necessário. P & V - O senhor concorda com o fato de que o Lulismo é um instrumento contra a tradição conservadora e patrimonialista da elite brasileira. É esta a chamada “vitória da esperança sobre o medo”, tão difundida pelos marqueteiros do presidente? PAS – Não, não concordo. Se o PT e o Lulismo se adaptaram à ordem estabelecida, não podem ser o símbolo do novo. P & V - O analista político e presidente do Ibope, tradicional instituto de pesquisa de opinião pública, Carlos Augusto Montenegro, afirma, categoricamente, que o Lula não fará seu sucessor. O senhor pensa igual? Por que? PAS – Não se afirma nada categoricamente em termos de previsões eleitorais. É só lembrar de 1985, quando o Fernando Henrique já estava sentado na cadeira da prefeitura e foi derrotado no dia da eleição pelo Jânio Quadros. P & V - O voto obrigatório é uma excrescência do sistema político brasileiro. Como falar em democracia, em participação popular, com um fardo autoritário deste, que nem sequer é lembrado? PAS – Veja bem. Essa questão é contraditória. Se o voto fosse opcional e os

Com promessas sem limite, Dilma, Serra e Marina Silva, candidatos à Presidência da República debatem na 13ª Marcha dos Prefeitos, realizada em Brasília (DF)

“Se Hitler invadisse o inferno, eu faria pelo menos algumas referências favoráveis ao diabo, na Câmara dos Comuns”, do ex-premier inglês, Winston Churchill. 25

ABRE ASPAS


Sem Pestanejar

tica, tem que questionar o capitalismo pela raiz e apresentar uma alternativa anticapitalista de caráter socialista. P & V - Para os seus inimigos mais íntimos, a porção caudilhesca da personalidade de Dilma Roussef é imutável e intransferível, tanto quanto é, proporcionalmente ao inverso, a simpatia de Lula. Enfim, o que falta de savoir faire em Dilma sobra em Lula. As conseqüências dessa radical diferença nem Deus sabe prever. Como o senhor analisa esta questão? PAS – Acho que não terá grande significado porque há o controle da máquina do Estado e os marqueteiros para, numa campanha construída para não debater o que interessa, para seguir o script do debate técnico, fazer as diferenças entre Lula e Dilma se dissiparem. Até porque, o essencial é que o projeto é o mesmo. P & V - Como a obsessão pelo poder não tem limite, o Lulismo tentará fazer de Dilma um Lula de saias. Essa projeção, que beira a neurose, pode se redundar em pesados ônus e sacrifícios para o país. O senhor concorda?

26

Agência Brasil

A inauguração de obras pelo Brasil afora, fictícia ou não, integra a estratégia do PT para eleger sua candidata, Dilma Rousseff

PAS – O projeto político neoliberal é o mesmo, para Lula, para Dilma, para Serra e até para Marina. Portanto, vença quem vencer destes candidatos, os trabalhadores do país continuarão sacrificados e os ricos continuarão beneficiados, por mais que o marketing diga o contrário. Há uma campanha de que a vida do brasileiro pobre melhorou porque uma parcela de cerca de 20 milhões

de brasileiros recebe o Bolsa Família e outros 50 milhões entraram no plano do consumo de bens como microondas e geladeira. Pelo efeito de demonstração que isso tem, efetivamente uma melhora para essas pessoas, parece que a vida de todo mundo melhorou. Mas eu pergunto ao leitor/eleitor: a sua vida melhorou? A saúde pública está melhor? A educação pública é melhor?

• Um filme: Short Cuts, de Robert Altman. • Um vexame: o povo passar fome num país rico como o Brasil. • Um livro: “Guerra e Paz”, de Tolstoi. • Uma decepção: não ver a Reforma Agrária realizada. • Uma música: Funeral de um Lavrador. • Uma tristeza: ver um menino pedindo dinheiro num sinal de trânsito. • Uma alegria: falar para três mil Sem-Terra na Jornada de Agroecologia, no dia 20.05.10. • Um sonho não realizado: ter uma filha (tenho seis filhos homens). Mas, agora, curto as netas, que são uns amores. • Um Ponto G: ganhar a eleição. • Uma verdade: o socialismo. • Uma mentira: o capitalismo. • Uma traição: governo Lula. • Dilma ou Serra: voto nulo. • Quem você deixaria, para sempre, numa praia deserta? Katia Abreu.


Entrevista Sandra Starling

Quem é mais danoso: os partidos políticos ou os políticos?

“Ambos”

Renato Cobucci - Jornal Hoje em Dia

Indiferentes à propalada Reforma Partidária e às promessas de moralização do TSE, os 27 partidos políticos brasileiros, cada vez mais fisiologistas, consumiram, só nas duas ultimas eleições (2006/2008) o equivalente a R$312 milhões de financiamento público, ou seja, nosso dinheiro, distribuído pelo Fundo Partidário.

SANDRA STARLING, ex-deputada federal pelo PT-MG, desfiliou-se do partido

A

mineira Sandra Starling, cientista política, ex-deputada constituinte por Minas Gerais e ex-deputada federal por dois mandatos consecutivos, traz, em seu currículo político e profissional, três invejáveis exemplos de competência e virtude ética, dos quais ela tanto se orgulha: criou o Partido dos Trabalhadores em Minas Gerais (PTMH),em 1979, foi demitida do cargo de secretária-executiva do Ministério do Trabalho, em 2003, pelo ministro Jaques Wagner (Governo Lula), hoje, governador da Bahia, e, mais recentemente, assumiu publicamente ser contrária à indicação da desconhecida Dilma Rousseff como candidata à Presidência da República, atitude que ela considerou arbitrária , porque prescindiu de uma consulta às bases e conseqüente debate político interno no PT, e , mais do que isso, mostrou que o PT, hoje, não passa de refém do presidente Lula.

A dissonante e bem humorada Starling, como se não bastasse sua experiência docente, parlamentar e executiva, é autora de dois livros: “A lei? Ora a lei... Constituinte, Constituição e Movimentos Populares” e “Uma eterna aprendiz no PT”. Haveria alguém melhor para falar à Ponto & Vírgula sobre a excrescência dos partidos políticos brasileiros, do que Sandra Starling? Confira.

Por: Ana C. Amaris 7ºG de Jornalismo Ponto & Vírgula - Em página pessoal na internet, a senhora escreveu que a Reforma Política no Brasil pode ter vários significados. Quais são os principais?. No aspecto eleitoral, que mudança a senhora considera a mais urgente? Por que? Sandra Starling - Reforma Política

pode ser um termo utilizado para significar a reforma do sistema eleitoral, ou a reforma da relação entre instituições ou a reforma interna de um dos poderes públicos. Quanto à reforma eleitoral, penso que a mais urgente é a que se refere à adoção do voto proporcional no sistema belga. Por esse sistema, o eleitor dá dois votos: um na lista feita pelo partido e outro no candidato do partido que ele preferir. As vagas do partido são preenchidas alternativamente: ora seguindo a lista fechada, ora pelo nome mais votado. Esse sistema impede o predomínio das burocracias partidárias e oferece oportunidade ao eleitor para escolher quem ele acredita ser o melhor candidato em um partido. P&V - Uma das mudanças propostas numa reforma eleitoral é o voto em lista fechada. Esta pode ser um meio dos partidos políticos recuperarem a credibilidade? SS - Reenfatiso a lista fechada, como vem sendo proposta tem a enorme desvantagem de dar todo poder às burocracias partidárias em detrimento do eleitor. P&V - Outra proposta pretende indeferir candidaturas de pessoas que estejam sendo processadas. Esta pode representar uma maneira de combater a corrupção política, mas pode significar uma injustiça no caso de uma absolvição ao fim do processo. A senhora concorda com isso? SS - Penso que se alguém está sendo processado por crime contra a administração pública, contra a vida ou por roubo, furto etc., deve ser impedido de concorrer mesmo havendo o risco de haver no fim do processo uma absolvição. É que, nesses casos, prevalece a proteção

“Aproxima-se o desconhecido e, junto dele, a gritaria dos grandes começos, que ainda não sabem dizer com quantas rouquidões se faz um recuo”, da poeta carioca, Bruna Beber. 27 ABRE ASPAS


cabal ao interesse público. Nos demais casos, é de bom alvitre aguardar a decisão final do processo. P&V - O jornalista Ricardo Abramovay escreveu na Folha de São Paulo que “ aos movimentos sociais seu poder transformador é um dos desafios mais importantes”. Qual o papel da sociedade na luta por uma reforma eleitoral e quais os meios que podem ser usados para essa conquista? SS - A sociedade só vai se mobilizar sobre esse tema se perceber os malefícios que decorrem da situação eleitoral vigente. Atualmente, isso não é claro para todos, então, fica difícil mobilizar. P&V - Em sua opinião, por que o cidadão brasileiro se sente tão distante da política? SS - Não creio que esse sentimento seja diferente do sentimento de outros cidadãos em outros países. A desinformação ou a má informação (como é o caso brasileiro) responde por esse descaso. P&V - No cenário atual, os partidos estão passando por uma crise de legitimidade enquanto estruturas de organização de interesses e representação política? Por que? SS - Porque não são representantes verdadeiros nem organizações de interesses coletivos... P&V - O Brasil tem hoje 27 partidos políticos, número que o deputado Artur Bruno (PT) considera alto, já que, segundo ele, não haveria ide-

28

ologia para tantas siglas. A ideologia ainda é fator importante na constituição dos partidos ou a tendência é que estas organizações tenham identidades cada vez mais maleáveis – ou nenhuma identidade como acontece atualmente com o PMDB – abrindo portas para o fisiologismo, e, conseqüentemente , para corrupção?

“ O presidente Lula impõe sua vontade, porque as lideranças internas do PT são frouxas e dependentes dele. A base ficou esquecida”

SS - O critério ideológico acaba cedendo lugar ao interesse em agradar o eleitor. Isso ocorre à direita e à esquerda. Eleições não são um bom momento para choques ideológicos, exceto em circunstâncias muito especiais. E os partidos podem representar interesses outros que não apenas os ideológicos (como a defesa do meio-ambiente). P&V - O professor Paulo Bonavides acredita ser necessária a regionalização das organizações partidárias,

pois “se compadece com a nossa vocação federativa de país de dimensão e diversidade continentais”. Para ele, regionalizar os partidos significa, em certo sentido, federizá-los. A senhora concorda com esse pensamento? Por que? SS - Discordo. Política regionalizada é assunto para governadores, deputados estaduais, prefeitos e vereadores. Penso, inclusive, que seria bom (feitas outras alterações) que o voto fosse nacionalizado. P&V - O voto distrital é adotado em países desenvolvidos como Alemanha e Estados Unidos. A adoção desse sistema seria viável no Brasil? Por quê? SS - O voto no Brasil já é distrital. Se adotarmos, de direito, o voto distrital, não vai sobrar uma cadeira a ser disputada por quem não tem dinheiro. P&V - Qual a principal diferença do Partido dos Trabalhadores que a senhora ajudou a fundar em 1980, e o de hoje, considerado por muitos, refém do presidente Lula? SS - A grande diferença está embutida na pergunta: naquela época,o PT não era refém do Lula. P&V - Em 1911, o sociólogo Robert Michels criou a expressão “lei de ferro da oligarquia”, segundo a qual, “a organização, ao mesmo tempo que assegura o funcionamento da totalidade abrangida, afeta-a de um modo inevitável, pois tem com efeito dividí-la em duas partes: uma minoria dirigente e uma maioria dirigida. Enquanto os primeiros se integram numa estrutura que lidera e controla, os segundos, sem relações formais permanentes entre si , não têm outra alternativa senão obedecer”. Pode se afirmar que foi isso o que aconteceu na imposição da candidatura de uma Rousseff pelo presidente Lula, independentemente da vontade do PT? SS - O Lula impôs sua vontade porque as lideranças internas são frouxas e dependentes dele. A base ficou esquecida. P&V - O presidente Lula disse, em entrevista à Folha de São Paulo (22.10.09), que se Jesus estivesse no Brasil, teria de chamar Judas para fazer coalizão. As coligações feitas entre partidos políticos e políticos que defendem idéias diversas é sinal de que o preço da governabilidade é a


sobreposição dos interesses pessoais aos princípios éticos e aos interesses dos eleitores? SS - Discordo. Basta ver o que Obama vem fazendo: em lugar da cooptação que ocorre no Brasil – com Lula e com outros – Obama busca apoio direto na população e encurrala os representantes do povo. P&V - “Não gostamos de política”: um número expressivo de brasileiros assumem esta assertiva e admitem que não votam em partidos, mas nas pessoas. Essa aversão encontra uma justificativa histórica. O que a senhora pode fa-

lar a respeito? SS - O povo age assim, porque a maioria dos que o representam também agem como se não tivessem compromisso com os partidos. Veja o Lula. P&V - Mudar de partidos ao sabor dos casuísmos e interesses imediatistas é uma prática recorrente do processo de filiações e desfiliações. Como assegurar a tão falada ética partidária frente a esta perversidade interna dos partidos? O multipartidarismo fragmentado e uma legislação permissiva podem ser considerados as causas principais desta volatividade http://4.bp.blogspot.com

“A sociedade só vai mobilizar sobre esse tema se perceber os malefícios que decorrem da situação eleitoral vigente. Atualmente, isso não é claro para todos, então, fica muito difícil mobilizar”

Até quando a obrigatoriedade do voto exclui a ideia de cidadania e consciência política?

“Porque, quando a ignorância é posta de lado, cessa o deslumbramento, único meio pelo qual a autoridade é mantida”, do filósofo Spinoza. 29

ABRE ASPAS


Sem Pestanejar

partidária? SS - Sem sombra de dúvida. Olhe só a conseqüência da decisão da Justiça Eleitoral punindo os que trocam de partido: não há mais o troca-troca do passado. P&V - No titulo do seu livro, a senhora encontra uma definição para si mesma : “Sandra Starling – uma eterna aprendiz no PT”. A senhora acredita que o partido possa ensinar algo novo tanto aos filiados quanto à sociedade em geral, mesmo tendo se rendido aos encantos do poder? SS - Hoje eu não adotaria esse título. Escrevi sobre o passado. P&V - No mesmo livro, a senhora conta toda a sua trajetória política desde a fundação do PT até a exoneração do cargo de secretária – executiva do Ministério do Trabalho e Emprego, passando pelos mandatos

30

de deputada estadual e federal. Hoje, a senhora está afastada dos cargos políticos. Este afastamento é uma trégua ou uma desilusão com a política? SS - No dia em que houver uma reforma política, volto a tentar me eleger. Quanto a ocupar um cargo público, ninguém quer alguém que não se submete, não? P&V - A resolução do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), que visa à identificação dos candidatos beneficiados por doações de recursos para os partidos, é uma medida estrutural de transparência ou os partidos terão outras alternativas de camuflar as doações? SS - Foi excelente essa decisão do TSE. Oxalá ele aperte o cerco em outras práticas, como agora com as campanhas

fora do prazo... P&V - Com a sua experiência política, quem é mais danoso à sociedade: os partidos políticos ou os políticos? Por que? SS - Ambos. P&V - É possível acreditar nos partidos políticos que se defendem como instrumento da democracia, embora não a pratiquem dentro dos seus próprios partidos? SS - Não, claro que não! P&V - Segundo o filósofo Nietzsche, a realidade se cria na linguagem, isto é: fora das versões – e os partidos são exemplos expressivos dessa estratégia - , só há um vazio à espera da palavra, do verbo, que cria o homem e o mundo. Como seguir em frente? SS - Fazendo da utopia seu alento e sua esperança.

• Um filme: Dersu Usala. • Um vexame: trocar os nomes das pessoas. • Um livro: “A montanha mágica” de Thomas Mann • Uma decepção: o governo Lula • Uma música: a 5ª sinfonia de Mahler • Uma tristeza: a morte • Uma alegria: o futebol • Um sonho não realizado: um Brasil mais igual • Um Ponto G: ?! • Uma verdade: Mandela • Uma mentira: a justiça social no Brasil • Uma traição: Lula em relação ao PT • Dilma Rousseff ou José Serra? Marina Silva • Quem você deixaria, para sempre, numa praia deserta? Zezé Perrela, presidente do Cruzeiro Esporte Clube


Entrevista Zander Navarro

D do NA MST

Odiado, temido e amado, quem é e qual é a do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), entidade popular que sobrevive da leniência da legislação brasileira, dos generosos e escusos financiamentos públicos (R$145 milhões, entre 2003 e 2008, segundo a Revista Veja) e da utopia da revolução agrária no país, alimentada pela fúria desmedida e autofágica.

o çã o a c bli o nã elo u P fot a p da rizad tado to vis au ntre e

se autocriminaliza e assume um lugar marginalizado na sociedade de hoje. Para onde caminha o MST? Quais suas saídas? E, no meio disso tudo, onde fica a Reforma Agrária, antiga pauta de suas reivindicações? O discreto mineiro, professor e sociólogo, reconhecido internacionalmente, Zander Navarro, PhD em sociologia pela Universidade de Sussex, na Inglaterra, e, atualmente, membro da Assessoria de Gestão Estratégica do Ministério da Agricultura, responde estas e outras perguntas, com a propriedade de quem sabe o que diz.

Por: Isabela Linke 5ºG de Jornalismo ZANDER NAVARRO, sociólogo

H

á 26 anos, em Cascavel (PR), centenas de trabalhadores rurais decidiram fundar um movimento social camponês, autônomo, que lutasse pela terra, pela Reforma Agrária e pelas transformações sociais necessárias para no nosso país. Eram posseiros, atingidos por barragens, migrantes, meeiros, parceiros, pequenos agricultores. É o que diz o site oficial do MST sob o título “Quem Somos”. Os tempos são outros, as bandeiras também. Presos em uma política mais eleitoreira que social, o MST tem perdido simpatizantes ao ser protagonista de cenas arrasadoras, como a destruição de 7.000 pés de laranja em uma fazenda da Cutrale, no interior de São Paulo. O movimento

Ponto & Vírgula - Por diversas vezes, o senhor assinalou que o MST deixou de ser um movimento social, burocratizou-se, aferrou-se ao leninismo. Em que momento pode-se dizer que essa virada aconteceu e é possível contar suas causas ou, talvez, os responsáveis mais diretos? Zander Navarro - Esta mudança ocorreu em 1986, por decisão de seu fundador principal, João Pedro Stédile. O nascente MST, constituído dois anos antes, percebeu que poderia obter fundos de igrejas e grupos solidários europeus sem a mediação de religiosos. Inspirado no “partido leninista” (isto é, inteiramente centralizado), Stédile, assim, estruturou a organização. Poucos dentro do MST conhecem a história da-

quele autoritário modelo, mas seguem o que foi imposto, inclusive porque não existe debate interno democrático. P&V - “A terra improdutiva, a propriedade mal utilizada e a gleba que produz produtos proibidos caracterizam ilícito político, social e penal, respectivamente. O trabalhador rural tem direitos sobre elas. E esses direitos devem ser atendidos pelo poder público, sob pena da omissão.” A fala é do Juiz federal, Marco Falcão Cristsinelis, e me leva a perguntar: Na equação do direito legítimo, há uma política pública da terra, versus a ilegalidade da atuação do MST, versus a omissão do poder público na satisfação do poder social, qual o vetor pesa mais? Há alguma maneira de resolver esse imbróglio? ZN - Se estivéssemos na década de 1950, esta seria uma equação insolúvel, pois a maior parte da população vivia no campo e desejaria o seu quinhão de terra através da reforma agrária, mas confrontaria o conservadorismo agrário. Em nossos dias, pode ser solucionada, até facilmente. Bastaria existir um Estado republicano, não capturado por grupos específicos, à esquerda e à direita. Isto ocorrendo, se perceberia que a demanda social por reforma agrária é atualmente muito baixa e existem terras para todos os demandantes. Fosse racional, e não ideológica, a reforma agrária brasileira já teria sido finalizada. P&V - Emanuel Cancella, diretor do Sindicato dos Trabalhadores da Indústria do Petróleo do Estado do

“Deseducamos o jovem o tempo todo. Se o desejamos sem limites de consumo, não podemos cobrar recato, dignidade e comedimento”, da psicanalista Inez Lemos. 31

ABRE ASPAS


Rio de Janeiro (Sindipetro-RJ), escreveu no Jornal O Globo, que a Reforma Agrária, no Brasil, geraria empregos no campo, evitaria a migração, aumentaria a oferta de alimentos de qualidade, puxando os preços para baixo. No final de seu texto, Cancella deixa uma pergunta que eu a repasso ao senhor: a quem, afinal, interessa manter os latifúndios no Brasil? Por que? ZN - A ninguém, exceto seus proprietários. Contudo, é preciso considerar um fato concreto: como a demanda social por terra vem caindo rapidamente e a urbanização é processo irreversível, aqueles imóveis ainda farão parte da fotografia rural por algum tempo, mesmo que os governos persistam com a reforma agrária, pois faltarão interessados em ocupá-los. Mas os latifúndios são parte insignificante das áreas rurais, pois a modernização da agricultura tem sido bastante acelerada, transformando-os gradualmente em empresas rurais. P&V - É nítido que a cobertura da mídia tem papel fundamental na construção de uma imagem criminalizada do MST. Mas, sem a cobertura dela, o movimento não teria a visibilidade que tem e talvez cometeria ações ainda mais drásticas na tentativa de alcançá-la. Seria a relação MST versus mídia como “o ovo ou a galinha”? Isto é, a criminalização do MST é um produto da atenção da mídia ou a cobertura midiática que a entidade tem hoje é um produto de sua própria violência e ilegalidade? ZN - Creio que ambos concorrem para criar uma imagem negativa da organização. Parte da mídia é realmente preconceituosa em relação à Reforma Agrária e ao MST, e a revista “Veja” é emblemática. Por outro lado, muitas das ações do Movimento, nos últimos dez anos, têm sido quase delirantes, sem qualquer inteligibilidade política, pois a organização não tem hoje uma estratégia. Como parte significativa daquelas ações adentra o campo da ilicitude, é claro que contribuem para ampliar a sua má imagem. P&V - É impossível evitar que caiamos num maniqueísmo que nos leva a santificar ou demonizar o MST. Considerando, então, que hoje o movimento carrega uma bandeira mais eleitoreira que social, qual caminho o senhor acha que este movimento

32

popular deveria escolher para descriminalizar-se, retomar seu papel primeiro e ainda fazer ouvir a questão necessária da Reforma Agrária? ZN - Aos poucos esta polaridade começa a abrandar. Posições muito acirradas começam a se tornar minoritárias. Minha visão sobre o MST está afirmada em diversos documentos: para voltar a receber maior atenção pública, o MST precisa institucionalizar-se e participar, como as demais organizações, do jogo político. Por que se manter na semiclandestinidade, haveria alguma explicação razoável para tal escolha? Se o Brasil democratizou-se e há uma busca permanente de transparência, por que apenas o MST acha que deve ficar na penumbra da política, agindo através de organizações marionetes, como suas cooperativas? Esta escolha política é burra e fruto do pensamento militarista e simplório de sua cúpula. P&V - No Brasil, o agronegócio passou a responder por um terço das trocas mundiais de alimento. Uma agricultura modernizada e convertida em um setor dinâmico de uma economia que jamais esteve tão aberta ao exterior. Uma indústria que se gaba de uma produção abundante, de qualidade e a baixos custos. Talvez financeiramente. Mas a que custo social? ZN - É preciso mais distanciamento analítico sobre o tema. O agronegócio, por exemplo, inclui também a maior parte dos pequenos produtores. Já a formação da estrutura fundiária, tal como atualmente existe, remonta a uma história de violência e impunidade. Mas, no período recente, esta relação entre grande propriedade e custo social não é mais direta como sugere a pergunta.

A modernização recente da agricultura ensejou, sobretudo, um custo ambiental (que vai sendo sanado), mas seu custo social foi sendo minimizado exatamente em função da democratização do país, que abriu espaços para os setores sociais mais pobres se organizarem. Ainda existe um custo social, mas existe também um processo de aperfeiçoamento das relações sociais no campo. As migrações rurais-urbanas, que resultam daquele custo social, ainda mantêm alguma significação, mas há um bom tempo os fatores de atração é que fazem famílias rurais procurarem as cidades, não os fatores de repulsão. P&V - A construção histórica do Brasil conta com uma eterna dinâmica de distribuição elitista e gritantemente desigual. Porém, essa prática nunca foi condenada ou sequer questionada. Para citar exemplos mais recentes, há pouco tempo o governo decidiu anistiar proprietários rurais que expandiram seus domínios com a ocupação de áreas públicas na Amazônia. Neste caso, é válido ser dois pesos e duas medidas? ZN - Também julgo aquela medida equivocada. O bioma amazônico deveria ter uma política específica, que o preservasse cada vez mais, pois atende a uma necessidade do planeta. Mas milhares de produtores de menor escala foram beneficiados com a medida e, desta forma, talvez seja um exagero, pelo menos neste caso, achar que prevaleceu novamente uma “inclinação elitista”. P&V - Como não conseguimos enxergar além da politicagem e da ilegalidade de MST, acabamos condenando o movimento por ações similares a essa e nem nos lembramos do nosso histórico de práticas

Fazenda Nova Alegria, em Felizburgo, no interior mineiro

Incra/MG


ilegais de distribuição da terra nesse país. Por que isso acontece? Porque o elitismo reina soberano, acima de qualquer crítica social e a reivindicação do trabalhador é vista como crime e condenada ferrenhamente pela sociedade? ZN - A estrutura política do país sempre foi conservadora e tenderia a sugerir que o imaginário social dominante é também conservador, inclusive entre os mais pobres. O período pós-Constituinte, contudo, vem aprofundando a natureza democrática do regime político e, desta forma, aceitando mais a pluralidade de opiniões e o conflito decorrente das disputas sociais. Não parece ser verdadeiro que as elites hoje dominem a sociedade sem contestação política. E a sociedade ainda apoia a Reforma Agrária, mas desconfia do comportamento não-democrático do MST. P&V - O Brasil é o único país com dimensões continentais que ainda não fez a reforma agrária. Os países desenvolvidos já a executaram. O que nos falta para que consigamos realizá-la? E quais as decorrências da Reforma Agrária nesses países, quais os avanços – ou retrocessos – causados por ela? Será que temos medo de executá-la por algum motivo escuso que está guardado nas mãos de nossos governantes? ZN - Que fique claro: a Reforma Agrária brasileira está no seu capítulo final e nada mais substantivo será feito, seja qual for o governo eleito neste ano. A razão é simples: há cada vez menos interessados em tal política. Desta forma, o futuro rural deve manter uma dualidade estrutural, com milhares de pequenos produtores (os chamados ‘familiares’), especialmente no Sul do Brasil, onde se concentram em grande número, enquanto no Centro-Oeste prevalecerá a propriedade de grande escala, dedicada à produção de grãos ou à pecuária intensiva. Nas demais regiões, conviverão aqueles dois grandes grupos de produtores. Além disto, não é correto afirmar que os países desenvolvidos já fizeram a sua Reforma Agrária. Alguns fizeram (o Japão, por exemplo), mas a maioria deles não observou tal política, pois ou já tinham no passado uma estrutura fundiária com forte presença camponesa (o

caso europeu) ou foram objeto de colonização (Estados Unidos, Austrália).

“Muitas das ações do MST, nos últimos dez anos, têm sido quase delirantes, sem qualquer inteligibilidade política, pois a organização não tem, hoje, uma estratégia”

P&V - Colocando, então, MST nesse lugar de deslegitimação do movimento enquanto movimento social, adotando uma luta puramente ideológica, eleitoreira e marginal, eu pergunto: existe, no Brasil, algum outro movimento que reivindique a redistribuição de terra? Ou o MST concentra, em si, toda a voz da causa agrária? (Voz, essa, que vem sendo abafada nos últimos tempos) ZN - Algumas federações estaduais ligadas à Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag) são também ativas em alguns Estados, no tocante à Reforma Agrária. Existem outros pequenos grupos que pretendem representar os sem-terra, mas são localizados e de menor expressão. No caso específico da Paraíba, a Pastoral da Terra é a própria “organização dos sem-terra” e, em Pernambuco, existiram oito organizações com o mesmo objetivo em certo momento. Nenhuma delas, no entanto, é rival para o MST, o único com trunfos específicos, que são os seus vínculos, são o Governo Federal e a Igreja Católica. O primeiro provê recursos financeiros, e a Igreja oferece a sua benção. P&V - Os integrantes do Movimento dos Sem Terra (MST) poderiam ser reconhecidos por outras ausências : sem emprego, sem oportunidade, sem visibilidade, sem subsistência etc. Vivendo em um meio desequilibrado, desigual, que favorece poderosos e elite e dá as costas àqueles que foram regurgitados pela sociedade, os Sem-Terra podem ser con-

siderados produtos do meio? Se sim, sua causa não seria, então, mais legitima e mais humana do que somos capazes de enxergar pela crescente marginalização do movimento? ZN - É evidente que a luta pela terra é moral e politicamente legítima em um país como Brasil. Seria insanidade discordar de tal fato. O que tenho insistido é apenas que “o tempo da reforma agrária passou”, ou seja, saliento apenas um fato da vida real. Se não foi realizada antes (por exemplo, nos anos sessenta, antes do golpe), não será implantada mais em escala considerável. A urbanização brasileira “matou” esta demanda, que foi forte no passado. E a população está se desinteressando pelo tema. Se existe oferta abundante de alimentos e matérias-primas, se os preços têm se mantido baixos, se não existe mais a mesma “questão social” no campo, por que insistir com a Reforma Agrária? O problema social brasileiro, atualmente, está nas cidades, e cada vez menos no campo. P&V - O MST não existe juridicamente, isto é, não tem cadastro na receita Federal e, portanto, não pode receber verbas oficiais (fonte VEJA, 02/09/09). Porém, é sabido que quase todo capital do movimento vem de repasses do governo - ou seja, dinheiro público – através de entidades laranjas, como a Anca e a Cepatec. O que o senhor tem a dizer sobre o envolvimento do governo no financiamento das ações do MST? Quer dizer que nós financiamos esse movimento? ZN - Em grande medida, sim. Há uma proporção de recursos que é oriunda de doações internacionais, mas a parte mais considerável é formada de recursos públicos que são repassados pelo Estado. Isto ocorre porque o MST está dentro do Estado brasileiro, sobretudo no Instituto de Colonização e Reforma Agrária (Incra). P&V - Que ligação existe entre o MST e as Farc? ZN - O MST tem contatos com a maior parte dos grupos de esquerda da América Latina, incluindo as Farc. Mas apenas isto, pois não existem relações, digamos, de “cooperação técnica”. Inclusive, porque o MST não optou por uma via de

“Quando iludo você, hipnotizo-me com suas ilusões. Quando consigo prendê-lo, sou eu quem me encarcero”, do publicitário Roberto Menna Barreto. 33

ABRE ASPAS


34

em São Paulo, “ representa um bem para a humanidade”. O que o senhor acha disso? A ideologização do movimento não seria uma estratégia inteligente para escamotear a ilegalidade e sua pratica? ZN - Obviamente, trata-se de uma tolice. A ideologização do MST é fruto de sua, digamos, “visão de mundo”, que tem origem, quase exclusivamente, na cabeça de João Pedro Stédile, que é o todo-poderoso da organização. E seus seguidores seguem o que o chefe manda. Como estratégia, pode proteger em parte a organização, que é ilegal, mas não sei se é inteligente. Após a democratização brasileira, quando todos querem transparência na ação dos atores políticos, por que seria esta uma estratégia arguta? P&V - Sedutor e vaidoso, graças ainda aos resquícios de uma simpatia ideológica adquirida junto a alguns intelectuais remanescentes da década de 80, o líder João Pedro Stédile assegurou que os movimentos populares estão mais unidos do que nunca. O senhor concorda que esta fala esconde uma ameaça de uma futura guerrilha rural? Ainda há espaço no Brasil para ter esta prática ou isto não passa de um marketing social? ZN - Stédile sorrirá ao ler que alguns

possam vê-lo como sedutor. Também não é vaidoso. É sim, dado a bravatas quase ridículas, do ponto de vista da sensatez política, mas que soam como música para setores mais à esquerda. Estudantes universitários, mais radicalizados, idolatram-no e o tratam como um grande interpretador do Brasil, o que é hilário. Atualmente não existem movimentos sociais dignos do nome, e aquela é outra bravata do comandante do MST. Assim, nem remotamente existe a possibilidade de surgir alguma ação de guerrilha rural, este é um fantasma que povoa mentes excessivamente conservadoras ou, então, completamente desinformadas. P&V - O ministro “ideólogo” Tarso Genro considera que há uma demonização contra o MST, quando da invasão da propriedade rural de São Paulo. Como o senhor interpreta essa fala, sobretudo quando se cogita pela candidatura de Genro ao governo do Rio Grande do Sul? ZN - Tarso Genro não é um ideólogo, na conotação negativa da pergunta. É um dos poucos, dentro do campo petista, que se esforça para “pensar a política” e tentar rejuvenescê-la, a partir de uma perspectiva de esquerda. O que disse, por outro lado, foi apenas a preparação de sua fuEber Faioli

confrontação que contemple a hipótese armada. E nem o fará, estou convencido disto. P&V - “O MST é formado por alguns desvalidos, vários aproveitadores e muitos bandidos”, disse Gilberto Thums, do Ministério Público gaúcho. Por que o movimento, hoje, conta com essa composição e vem arregimentando pessoas que talvez nem saibam qual a bandeira que carregam? ZN - Discordo daquela afirmação, que revela um desconhecimento sobre a base social do MST. Inclusive, todas as tentativas até aqui realizadas de recrutamento entre setores mais pobres das cidades fracassaram, em quase todas as regiões. O MST recruta, majoritariamente, trabalhadores rurais pobres, sem terra ou com pouca terra e, também, para as suas ações, membros das famílias assentadas. Em alguns estados, como no próprio Rio Grande do Sul, esses últimos formam a maioria, quando ações públicas são realizadas pela organização. P&V - Sobre o caso da fazenda invadida no interior de SP, onde mais de 7 mil pés de laranja foram destruídos, a violência da ação foi televisionada, exibida em horário nobre e chocou todo o pais. Após esse episódio, o STF, o Senado e o alto escalão do governo condenaram a ação e defenderam a punição dos responsáveis. E se não houvesse a exposição da mídia? STF e o governo (que auxiliam e protegem o MST) tomariam alguma atitude? ZN - É pelo menos um exagero afirmar que o STF protege o MST. Há decisões controvertidas, mas tal acobertamento não parece ser a regra. A exposição das ações nos meios de comunicação, em especial a televisão, cria, por certo, um “fato público”, que exige resposta das autoridades. É claro que sem a filmagem do trator destruindo os pés de laranja, a reação teria sido menor. Basta que nos lembremos de Eldorado dos Carajás, em abril de 1996. Sem a filmagem daquele triste episódio, a história do MST nos anos mais recentes poderia ser bem diferente. Não existiriam nem mesmo as rotineiras campanhas sob o rótulo de “abril vermelho”. P&V - Recentemente, o coordenador Regional do MST, em Pernambuco, Jaime Amorim, afirmou que a ação criminosa na Fazenda Cutrale,

O leninista João Pedro Stédile, líder do MST, que atribui a violência promovida pelo movimento à condição inerente da luta pela Reforma Agrária


tura campanha eleitoral, pois o MST é relativamente influente no Rio Grande do Sul, inclusive dentro do PT. Esta afirmação de Genro (a qual, de fato, ele não acredita) tem relação apenas com o público interno petista daquele estado. P&V - Arriscando uma previsão: para onde o senhor acredita que tudo isso vai caminhar? Onde há uma solução para este buraco que o MST se meteu?

ZN - Repito parte das conclusões de um artigo que publicarei em abril (1). Qual o futuro do MST? Atualmente, a organização observa o seu ocaso e tem apenas um caminho pela frente, que é a sua institucionalização e democratização interna, se transformando em uma organização formalmente reconhecida, com um sólido mandato em favor dos mais pobres do campo. Se persistir em sua estrutura e lógica de ação, apenas

acentuará a sua agonia política. Como a reforma agrária, aos poucos, deixa de ser importante, é preciso ter outra agenda, e rapidamente. Se assim não for, o MST logo entrará para os livros de História”. (1) “The Brazilian Landless Movement (MST): critical times”, a ser publicado na revista “Redes”, Unisc (Santa Cruz do Sul).

23.10.09

3.bp.blogspot.com

Sem Pestanejar

O MST divide o seu tempo entre as práticas de guerrilha, a luta contra o Estado (foto acima), invasão e ocupação de fazendas e, claro, o afago rentável do PT e do poder público (foto ao lado)

• Um filme: “Blade Runner” • Um vexame: a chamada “classe política brasileira” • Um livro: toda a obra de Pierre Bourdieu • Uma decepção: o “mensalão”, pois desmoralizou o sonho da ética na política • Uma música: “Baba O’Riley” (The Who); toda a música de Mozart • Uma tristeza: o baixo pendor democrático dos brasileiros • Uma alegria: a vida, em geral. É um privilégio a sua fruição, não? • Um sonho não realizado: fazer um segundo doutoramento, mas em Filosofia Política • Um Ponto G: existem em muitos lugares. Mas para achá-los é preciso atribuir significado à vida • Uma verdade: a democracia é um valor universal • Uma mentira: minimizemos a democracia, porque ela é culturalmente relativa • Uma traição: as promessas pré-eleitorais, depois esquecidas • Dilma ou Serra: um contra o outro, Serra tem mais “visão de Brasil” e até vejo-o como mais progressista. Mas, o Brasil é governado por coalizões de partidos e, por este ângulo, a escolha se torna muito mais difícil • Quem você deixaria, para sempre, numa praia deserta? Todos aqueles que rebaixam a vida cultural brasileira

“Se amas a vida ou dizes amar a vida, e não aceitas a morte, não amas a vida tal qual ela é, porque a vida inclui a morte”, do filósofo Michel de Montaigne. 35

ABRE ASPAS


Entrevista Luciano Costa

[Entre tapas e beijos]

O jornalismo continua

Imprescindível Quase 1.100 registros de jornalistas profissionais a trabalhadores sem diploma na área (dados de maio deste ano) foram concedidos pelo Ministério do Trabalho, atendendo determinação esdrúxula do Supremo Tribunal Federal (STF). Arquivo pessoal

paulista, e autor de ensaios e romances dos quais se destaca “O Mal estar na Globalização”, além da larga experiência na mídia internacional como consultor e conferencista, dá uma geral sobre o jornalismo, os principais atores que dele fazem parte, direta e indiretamente, as crises e pespectivas desta controvertida e apaixonante profissão.

Por: Renata Valentim 8ºG de Jornalismo

LUCIANO COSTA, jornalista

M

esmo atingido covardemente pelas costas, pela desobrigação do diploma de jornalista para o exercício da profissão, imposta por um surto moralista do STF, e ameaçado quase sempre pelo Judiciário Brasileiro, que continua censurando a mídia, país a fora, num flagrante atentado à liberdade de expressão e ao direito à informação, o jornalismo brasileiro, como vítima ou algoz, enverga, mas não cai, porque sabe que “ruim com ele, muito pior sem ele”, respaldado que sempre foi pela opinião pública, em geral, e pela sociedade civil organizada, em particular. Nesta entrevista exclusiva à Ponto & Vírgula, o conceituado jornalista Luciano Martins Costa, apresentador do Observatório da Imprensa/SP e colunista do jornal Brasil Econômico, também editado na capital

36

Ponto & Vírgula - A julgar por atitudes como a do desembargador do Distrito Federal que proibiu a publicação de informações do caso Fernando Sarney no Estado de S. Paulo e, também, pela queda da obrigatoriedade do diploma de jornalismo, decidida por oito votos a um, até que ponto o senhor acredita que a Justiça brasileira pode subverter a Constituição para servir a interesses diversos aos da sociedade? Luciano Martins Costa - A Justiça brasileira nunca deve subverter a Constituição. Tem agido de maneira controversa, em alguns casos, porque muitos de seus integrantes se submetem a pressões da mídia. Os dois casos citados são distintos. A decisão do desembargador de Brasília, conforme foi explicado pelo jurista Dalmo de Abreu Dallari no Observatório da Imprensa, não constitui um ato de censura: ele apenas proibiu o “Estado de São Paulo” de publicar notícias referentes ao caso envolvendo o empresário Fernando Sarney, quando originárias de

gravações não autorizadas judicialmente. Se houvesse censura, os outros jornais, como a “Folha de S.Paulo”, não teriam continuado a publicar reportagens sobre o caso. A queda da obrigatoriedade do diploma foi o resultado de uma longa campanha iniciada pela “Folha de S. Paulo” no final dos anos 1980. Logo após a implantação do projeto de reforma do jornal, a direção se deu conta de que os suplementos e cadernos de serviços, como os guias de cinemas e de restaurantes, tinham um custo elevado porque eram feitos por jornalistas profissionais. O Sindidato dos Jornalistas de São Paulo fazia, na ocasião, uma campanha salarial e os gestores da Folha entenderam que, para fazer listas de filmes e copiar cardápios de restaurants não era preciso ser jornalista. O trabalho podia ser feito por um digitador ou uma secretária. No entanto, esses cadernos precisavam ser considerados material jornalístico e não propaganda, condição para garantir uma série de benefícios tributários. No mesmo período, durante os debates sobre a campanha salarial, dirigentes do sindicato questionaram o fato de o diretor de Redação da Folha, Otávio Frias Filho, não ser jornalista profissional diplomado. A Folha tomou esse assunto como questão de honra e iniciou a campanha pelo fim da obrigatoriedade do diploma. A Folha não tinha, na ocasião, participação ativa na Associação Nacional de Jornais. Passou a atuar na ANJ, tendo como bandeira o fim do diploma de jornalismo. A questão foi levada ao Judiciário, o debate foi boicotado pelos jornais, que garantiram uma tribuna permanente para o en-


sentantes da oposição. Se Chaves é um relação com a complexidade dos propersonagem controverso e propenso ao cessos contemporâneos de comunicaautoritarismo, isso não tem afetado o ção. É mais uma frase para a História funcionamento e a pluralidade da im- do que para a vida real. A esquerda preprensa venezuelana. O mesmo posso dominante aborda o tema imprensa de afirmar sobre a Argentina, o Paraguai e uma forma mais sofisticada, discutindo a Bolívia, alguns dos países onde estive meios alternativos, jornalismo público trabalhando recentemente. e protagonismo social. A decadência da P&V - Alguns grupos favoráveis à imprensa tradicional e os novos meios criação do CFJ usam como argumen- tecnológicos criam a oportunidade para to de defesa da sua implantação o pa- ações mais efetivas por uma ampla lipel de “ regulamentar a profissão do berdade de expressão e de acesso ao jornalista”. O que se pode interpretar conhecimento do que a luta nos moldes desse movimento de ataque à profis- propostos por Lenin. A liberdade de imsão, observadas a queda da obrigato- prensa deve ser um instrumento de luta riedade do diploma e a tentativa de da sociedade por uma democracia mais transferência de regulação por um ampla e efetiva. órgão ligado ao Estado? P&V - Mesmo quase um ano após LMC - É preciso regulamentar a pro- a queda da Lei de Imprensa, criada fissão de jornalista no Brasil, assim como para dar aos militares controle soé necessário monitorar os cursos de Jor- bre o que era publicado, vê-se que nalismo para garantir a qualidade do en- o monstro da censura prévia ainda sino. O argumento usado por um minis- existe no país, tendo como exemplo tro do STF, comparando jornalista com mais recente o caso Fernando Sarcozinheiro, é uma rematada bobagem. A ney versus Estadão. Não teria se contentativa de auto-regulamentação, feita cretizado em vácuo normativo a parem 2004, foi transformada em crise de tir da queda da lei? governabilidade pela grande imprenLMC - Minha opinião sobre o caso sa, que se aproveitou do momento de Fernando Sarney foi exposta anteriorfragilidade do governo. As empresas de mente. Complementando, acho que a comunicação poderiam ganhar com a censura prévia existe, sim, mas de maregulamentação, mas seus donos são ex- neira diversa. Ela é exercida dentro das tremamente conservadores e não enxer- próprias redações, quando os jornalistas gam esses benefícios. Preferem distorcer são pressionados ou convencidos a dar o debate do que ouvir o outro lado. um viés específico, orientado de cima P&V - “Dar à burguesia a arma da para baixo, em muitas reportagens. Há liberdade de imprensa é facilitar e evidentemente um vácuo normativo ajudar a causa do inimigo. Não de- desde que foi extinta a Lei de Imprensa sejamos um fim suicida, então não a sem que se houvesse regulamentado, daremos.” Essa declaração de Vladi- por exemplo, o direito de resposta. Ora, mir Lenin, na sua opinião, juntamen- se tudo que foi criado na ditadura tiveste com o cenário político da America se que ser extinto, estaríamos acabando latina, sintetiza o olhar da esquerda à imprensa? LMC - Não acho que a esquerda latino-americana tenha hoje o mesmo olhar dos anos 60 e 70, quando era mais atuante, apesar do massacre das ditaduras na região. A famosa declaração de Vladimir Ilich não tem qualquer Apreensão nas redações com a decisão imoral do STF

“O homem é o ser que projeta ser Deus. Como a idéia de Deus é contraditória, o homem é uma paixão inútil”, do escritor existencialista Jean Paul Sartre. 37

ABRE ASPAS

jie.itaipu.gov.br

tão presidente do STF, ministro Gilmar Mendes. Dessa associação de interesses saiu a decisão judicial que extingue na prática a profissão de jornalista. Não tem nada a ver com liberdade de imprensa, liberdade de expressão ou qualquer outra causa mais nobre. Pura e simples picuinha de um dono de jornal interessado em reduzir os custos da redação. P&V - A iniciativa frustrada do atual governo de criar um Conselho Federal de Jornalismo (CFJ), em 2004, tem sido ressuscitada nos últimos meses. O texto base da II Conferência Nacional de Cultura, divulgado em janeiro deste ano, fez referência à ausência de normatização quanto à regionalização e a produção de conteúdo dos veículos da mídia brasileira. Diversos setores reagiram negativamente a mais essa investida, vista como uma maneira eufêmica de ameaça à liberdade de imprensa. A exemplo de experiências como da Argentina e Venezuela, não seria essa uma maneira de institucionalizar o controle dos meios de comunicação no Brasil? LMC - Essa é uma agenda de grupos que militam pelo aperfeiçoamento do processo de construção da democracia brasileira. No entanto, em meio a esses grupos existem militantes que acreditam, equivocadamente, que se deve criar mecanismos de controle dos meios de comunicação pelo Estado. Na verdade, há aqui uma contradição típica de todos os momentos de mudança e avanço nas conquistas sociais: seus protagonistas muitas vezes são acusados de desejar na verdade atacar as liberdades civis. Objetivamente, não há nenhuma ameaça à liberdade de imprensa no controle social dos meios de comunicação, especialmente no que se refere às concessões privadas do direito público à exploração de emissoras de radio e televisão. Estive na Venezuela e na Argentina há pouco tempo e não vi sinais de censura. Viajei pela Venezuela e, em todas as regiões por onde passei comprei jornais de oposição – um deles, de Maracaibo, chamava Hugo Chaves de “cachorro”. Ouvi programas de radio fazendo piada sobre Chaves e vi programas de TV com debates dos quais participavam repre-


SJPMG

Ouro Preto (MG) sediou manifestação pública contra o STF e a favor do diploma para jornalistas.

também com o Fundo de Garantia e outros benefícios criados por governos não democráticos. P&V - “Os jornalistas devem ser como um monitor independente do poder”. Essa é uma das nove postulações feitas pelo Comitê de jornalismo Bill Kovach e Tom Rosenstiel, cuja obra é referência para todo estudante e profissional da área. No Brasil, esse princípio básico da atividade jornalística se choca com as concessões de rádio e TV, largamente distribuídas entre parlamentares e, curiosamente, durante o governo Sarney e que parece se repetir no governo Lula, agora sob a forma de veículos educativos. Como denunciar tal prática ao grande público? LMC - Esse princípio básico da atividade jornalística não é praticado de maneira igualitária pela imprensa. Há evidentes discriminações nas coberturas de atos governamentais, segundo o partido ao qual pertence o governante. Mas, também, existe um jornalismo de resistência em todo o País, por meio de jornais alternativos ou através da internet e radios comunitárias. Talvez fosse o caso de se criar uma rede de apoio mútuo entre esses meios, como uma espécie de agência de notícias de interesse social. P&V - Ainda falando nas mutilações sofridas pelo jornalismo brasileiro, na sua opinião, qual foi a motivação maior para o fim da exigência

38

do diploma de jornalismo? LMC - O motivo maior, conforme já mencionei, foi o desejo das empresas jornalísticas de manter os profissionais pressionados por um mercado de trabalho restrito, submeter as redações ao crivo ideológico dos donos da empresa e sufocar reivindicações por melhores condições de trabalho. P&V - Pode-se afirmar que o ataque feito à regulamentação da profissão de jornalista foi favorecido com a passividade de profissionais e estudantes? LMC - Sim, e já escrevi sobre isso no Observatório da Imprensa. Evidentemente, os estudantes não se mobilizaram o suficiente, e entendo que muitos tiveram medo de cair na lista negra da mídia e ficar com dificuldade para encontrar um emprego depois. P&V - A ausência de um debate público mais amplo sobre a questão na grande mídia, especialmente na TV, pode ser vista como sintoma da má fé expressa por essa desregulamentação? LMC - Houve absoluta má fé por parte dos donos dos meios de comunicação, não apenas na televisão, mas também no radio e nos jornais. Da mesma forma como distorceram o debate sobre o Programa Nacional de Direitos Humanos, os donos da mídia eliminaram qualquer possibilidade de discussão honesta e inteligente sobre tudo que se refere à regulamentação do trabalho jornalístico.

P&V - Defensores da extinção da obrigatoriedade do diploma argumentam que, em potências como Alemanha, França e Estados Unidos, não há exigência e formação específica para o exercício do jornalismo. Quais são os perigos de uma comparação simplista dessas com o cenário brasileiro, que desconsidera análise e instâncias importantes, como a formação educacional tanto do profissional quanto da audiência? LMC - Houve muita má fé e ignorância em todo esse debate. Não se pode ter uma discussão minimamente aceitável sem colocar em questão as características de cada sociedade, os meios que essas sociedades construiram para assegurar os direitos civis, as estruturas educacionais e de carreiras. Em todos esses países citados pode-se escolher disciplinas para uma formação específica em Jornalismo. E a maioria das empresas jornalísticas prefere contratar profissionais com essa formação específica. Os defensores da extinção da obrigatoriedade do diploma usaram e abusaram da desonestidade intelectual. P&V - Como o senhor vê a qualidade do ensino do jornalismo no Brasil? LMC - Como todos os cursos superiores, a qualidade do ensino de Jornalismo vive no Brasil uma crise crônica, nascida da falta de cuidado com o ensino básico. Mas não creio que devemos discutir o ensino do Jornalismo separadamente do de outras profissões. Comparando com os diplomados em outras carreiras, posso assegurar, pela observação, por exemplo, que os jovens formados em Jornalismo costumam demonstrar mais cuidado com a ética do que os diplomados em outras carreiras, como Direito, Economia, Administração. Porque, por pior que seja a qualidade do ensino nas escolas de Jornalismo, o estudante é permanentemente submetido a cobranças éticas e de comportamento essenciais para quem vai lidar com informação de interesse público. P&V - Ao final dos debates públicos promovidos pela comissão criada pelo MEC incumbida de repensar as diretrizes do curso de jornalismo, cogitou-se a possibilidade das universidades oferecem cursos de pós-graduação para ensinar técnica jornalística a profissionais de outras


áreas, como Direito, Economia e tantas outras. Não seria essa uma maneira de formar um contingente excessivo de jornalistas especializados? LMC - Essa seria uma maneira de encher as redações de técnicos sem os anos de cobrança ética que são impostos nas faculdades de Jornalismo, não apenas pelos professores, mas também na convivência dos alunos entre si. Creio que o Jornalismo perderia com um enorme contingente de profissionais com essa formação mambembe. P&V - Por outro lado, o presidente da comissão do MEC, professor José Marques de Melo, afirmou que a sociedade brasileira necessita, tal como precisa de profissionais da notícia especializada, de jornalistas generalistas, bem formados e que sejam capazes de se dirigir eficientemente para toda a população e de interpretar a realidade de forma mais ampla. O que o senhor pensa a respeito? LMC - Concordo com ele. A especialidade poderia vir no último ano do curso de Jornalismo, ou, nos casos de formação mais complexa, como Economia e Jornalismo Científico, numa pós-graduação de dezoito meses. O essencial é formarmos jornalistas com muita consciência social e bem instrumentalizados para a pesquisa, investigação, organização de informações e escrita (com as qualificações adicionais de postura, voz, apresentação etc, necessárias aos meios eletrônicos). P&V - O senhor acha que a Proposta de Emenda Constitucional (PEC 386/09), feita pelo deputado Paulo Pimenta (PT-RS), que visa restabelecer a exigência de diploma de curso superior para o exercício da profissão de jornalista, tem chances de ser aceita pelo Congresso?Por que? LMC - Acho que tem condições de ser aceita, mas é preciso que os estudantes se mobilizem para contrabalançar o poder do lobby das empresas de mídia. P&V - Segundo o sociólogo Demétrio Magnoli, o governo de Dilma Rousseff poderá trazer riscos à liberdade de imprensa, “ porque fortalecerá correntes stalinistas do PT. O senhor acredita nesta possibilidade ou tudo não passa de uma neurose conspiratória ?

LMC - Acho que o sr. Demétrio Magnoli é um indigente, em termos intelectuais. Escreve mal, raciocina primariamente e só tem espaço na mídia porque escreve tudo que os donos dos jornais querem que escreva. Aliás, são raros os pensadores independentes na grande mídia.

“As empresas de comunicação poderiam ganhar com a regulamentação da profissão de jornalista, mas seus donos são extremamente conservadores e não enxergam esses benefícios. Preferem distorcer o debate do que ouvir o outro lado”

P&V - Fugindo um pouco das questões acima, o senhor acha que o jornal impresso, no modelo tradicional, tem vida curta em função das novas tecnologias midiáticas? LMC - No longo prazo, o jornal impresso não vai existir. Falo num cenário de trinta anos. Não apenas em função das novas tecnologias, mas principalmente pelo modelo de negócio e pela estreiteza das estratégias editoriais. Os jornais se tornam a cada dia menos relevantes. Exceções para os jornais especializados em economia e negócios, que em geral ainda conseguem fazer uma boa mescla entre informação e análise que tem utilidade para muitos leitores. P&V - A fidelidade dos leitores e anunciantes passa, constantemente, por reformas gráficas dos jornais. Mais recentemente, a Folha de São Paulo fez mudanças, também, na qualidade editorial para atender demandas dos seus interlocutores. Afinal de contas, a crise é estética ou conjuntural? LMC - Essas reformas costumam ser

apenas maquiagem. A crise é de modelo, não de design ou formato. Claro que isso pode ajudar, mas essas reformas geralmente não atendem às demandas essenciais por mais qualidade jornalística. P&V - Do ponto de vista ético, a mídia, de uma maneira geral, em nome de uma esquizofrenia alimentada pela vaidade do ”4° Poder”, continua abusando da sua capacidade de pautar a vida pública, claro, com a aquiescência dos seus leitores. Como o senhor analisa esta complicada relação? LMC - É preciso destacar nesse cenário a chamada “grande mídia”, que sempre pautou a agenda pública. Creio que, no Brasil, essa mídia só fala atualmente para uma parcela da população, cada vez mais restrita. Neste ano eleitoral vamos ter um grande teste dessa influência. O problema é que, mesmo com menos poder sobre a sociedade, essa mídia influencia as instituições, como o Congresso, o Judiciário, os representantes do Executivo nas instâncias municipal, estadual e federal. E os integrantes dessas instituições fazem as políticas públicas, ou seja, a sociedade fica indiretamente sob a influência desse poder conservador e não confiável que é a imprensa. P&V - A diretora de Redação do jornal “Le Monde”, Sylvie Kauffmann, no dia de sua inusitada posse no novo cargo, disse que a internet é uma oportunidade e não uma catástrofe para imprensa escrita. Até onde o senhor concorda ou discorda desta Fenaj

“Os inconformistas intelectualizados, bons militantes esquerdistas, são conformistas que ignoram o próprio conformismo enquanto criticam a alienação”, do jornalista Juremir Silva. 39 ABRE ASPAS


Sem Pestanejar

afirmativa? Por que? LMC - Concordo em termos. Pode ser uma oportunidade se a imprensa escrita tiver capacidade e disposição para assumir o caráter aberto e democrático da internet. Mas, em geral, a imprensa tradicional tenta manipular os novos meios. Então, passa a ser uma oportunidade para outros protagonistas. P&V - Conhecido pela sua acidez ideológica, o jornalista Juremir Machado da Silva considera, “em termos caricaturais” três elementos que contemplam e convivem com o contexto mídia/mercado: o esquerdista ilustrado, o aluno-modelo dos cursos de jornalismo aplicado e o idiota tecnológico. Para ele, o esquerdismo continua a ser a doença infantil das esquerdas pós-muro de Berlim; o aluno-modelo, fornecido por grandes empresas de comunicação, que acredita, antes de tudo, nas “regras do bom jornalismo” e na palavra do manual de redação; o idiota tecnológico, recém- chegado na paisagem midiática brasileira, acredita que a democracia virtual já começou e que o mundo inteiro esta ligado na internet. O que o senhor acha dessas considerações? LMC - Se ele fala “em termos carica-

40

turais”, nada a considerar. Cada um ri do que achar mais engraçado ou ridículo. Mas essas considerações não sobreveriam a um debate sério, porque não se pode classificar aleatoriamente o ser humano ou o jornalista em tipos elementares, porque somos todos muito complexos. Seria o mesmo que eu dizer que todo colunista conservador é um cagão, porque está sempre alinhado com o que pensam os donos do poder e tem medo de contestar o status quo. Muitos analistas desprezam jovens jornalistas identificados como “esquerdistas”, esquecendo que esses são os que ainda conservam algum ideal, embora necessitem amadurecer sua visão de mundo. O alunomodelo pode ser o embrião de um bom gestor de empresa de comunicação ou de um empreendedor em comunicação, tarefas que exigem capacidade de organização, flexibilidade e persistência. O “idiota tecnológico” pode ser o autor da futura revolução na mídia. Mas um colunista conservador sera sempre, e apenas, um puxa-saco do patrão. P&V - De que forma o Observatório da imprensa pode colaborar com a manutenção de um jornalismo de qualidade, independente e promissor? É possível acreditar nele como um instrumento necessário de cons-

trução e reconstrução do movimento humano? LMC - O Observatório da Impreensa tem atuado há mais de dez anos como mídia e como espaço de análise crítica da imprensa. É formado por profissionais com larga experiência em várias funções e setores da comunicação, além de acadêmicos reconhecidos por suas pesquisas, estudantes, juristas, economistas e outros profissionais que consideram essencial que a sociedade monitore a qualidade do Jornalismo. A observação da imprensa é um instrumento essencial à liberdade de imprensa. P&V - O que o senhor diria para quem ainda cogita em inscrever – se para concorrer a uma vaga no curso de jornalismo diante desse cenário institucional, editorial e ético? LMC - Que se mantenha fiel a seus valores e ideais, que aprenda a distinguir utopia de ilusão (Uma dica: utopia é o ideal construído em cima de premissas verdadeiras, ilusão é o ideal construido em cima de premissas falsas – e reconhecer o falso e o verdadeiro entre as premissas exige muita leitura, muito filme de qualidade, muita música de qualidade, muita reflexão e muitas boas conversas). E que nunca perca o gosto de aprender.

• Um filme: “Matadouro número 5”. • Um vexame: perdi as anotações de uma entrevista. Mas, não conto. • Um livro: “Massa e Poder”, de Elias Canetti. • Uma decepção: a leitura semanal de Veja. • Uma música: “Imagine”, John Lennon. • Uma tristeza: a revista Adiante, que criei e tive que fechar por falta de publicidade. • Uma alegria: cada texto que consigo fazer com qualidade. • Um sonho não realizado: fazer cinema. • Um Ponto G: o olhar. • Uma verdade: “Jornalismo é a busca da verdade”. • Uma mentira: “Jornalismo é a verdade”. • Uma traição: torci contra o Corinthians uma vez, pra prejudicar o São Paulo. • Dilma ou Serra: o voto é secreto. • Quem você deixaria, para sempre, numa praia deserta? Paris Hilton e todos os demais párias.


Farpas & Confetes

“O José Sarney não nasceu com aquilo virado para a lua. Ele nasceu com a lua naquele lugar”, do senador Pedro Simon. Revista Isto É, de janeiro de 2010.

“Detesto essa maneira de que nada se pode dizer que não seja adulação à Lula”, do cantor Caetano Veloso. Revista Veja, de novembro de 2009. Washington Possato

“Muitos políticos deveriam ter carimbo com prazo de vencimento na testa, porque têm cabeça atrasada e maldosa”, do presidente Lula. Jornal O Globo, de 28.01.10.

“Era um Deus e descobri que é uma banana de pijama”, da atriz Luana Piovani, sobre o artista Caetano Veloso. Revista Isto É, de maio de 2007.

Caetano Veloso

“Serra, cuidado com o Aécio: o mineiro nunca é o que parece, sobretudo, quando parece o que é”, do jornalista Millor Fernandes. Revista Veja, de julho de 2009.

“Defendo o ministro Lobão, porque temos de defender todas as espécies”, do ex-ministro de Meio Ambiente, Carlos Minc. Revista Isto É, de janeiro de 2010.

Agência Brasil

“A cada vez que ouço/vejo a candidata-ministra discursando, é uma sensação de fora do lugar, de quadro de cabeça para baixo, que só não desligo como penitência pela profissão adotada”, do jornalista Jânio de Freitas. Jornal Folha de São Paulo, de 25.01.10.

“O ex-governador de Minas, Aécio Neves, e de forma mais contida, o ex de São Paulo, José Serra, acham que fazendo vista grossa a todo tipo Carlos Minc de transgressão estão sendo politicamente espertos, quando apenas fogem de suas responsabilidades como homens públicos que se pretendem íntegros”, da jornalista Dora Kramer. Jornal O Globo, de 10.04.2010.

“A fissura pela aparência deflagra nosso subdesenvolvimento. Quanto mais culto um povo, menos ele se ocupa de frivolidades”, da psicanalista Inez Lemos. 41

ABRE ASPAS


Gustave Dore

Reprise Artigo

Um medieval Arquivo pessoal

com estilo*

Luiz Felipe Pondé

A

cabo de chegar de Istambul, para onde fui por razões profissionais. No avião li o belo livro “A resistência”, do escritor argentino Ernesto Sabato. Trata-se de uma peça de resistência à estupidez do mundo moderno. Sabato lamenta a ganância que nos assola sob a forma de projeto social para a felicidade. Estive em Istambul há 15 anos. Nunca esqueci a Igreja de Sana Sofia. A Turquia tem um dos maiores patrimônios arqueológicos do mundo antigo. Pena que esteja na moda. Em 1995, andei pela Santa Sofia (eu e minha pequena família), sozinho por algum tempo, mergulhado no silêncio daquele monumento ao cristianismo antigo. A Turquia, naquele tempo, tinha a benção de ser esquecida pelo mundo. O Cristo Pantocrator (o senhor do universo) no alto e os demais ícones bizantinos eram as únicas companhias. Hoje, a Santa Sofia parece uma Aparecida do Norte sob os pés da multidão. Se aqui são os crentes que assolam o espaço, lá são as novas formigas devoradoras do mundo, esses novos bárbaros, os turistas. Hoje, o impasse, para quem ama conhecer o mundo, é como escapar da indústria do turismo e sua breguice de massa. O capitalismo aqui revela uma de suas maiores contradições: para ganhar dinheiro, muitas vezes, há que fazer tudo parecer a “25 de março”. E, com isso, chegamos ao “progresso” da Turquia. É, a Turquia “progrediu”. E o “progresso moderno” é uma praga de formigas assolando a vida. “Progresso” é uma dessas idéias típicas da modernidade que deve ser mani-

42

pulada como quem manipula o bacilo da lepra. Aos 50 anos, começo a ter aquele sentimento clássico de que o “passado” detém uma dignidade essencial. Acredito firmemente que toda redenção vem apenas dos mortos. Pouco importa se as almas superficiais me taxarem de nostálgico. Ser odiado pelas almas superficiais é parte da minha ética. Ser superficial nada tem a ver com ser ignorante, muitas vezes a erudição está serviço da superficialidade. Desprezo a democracia como forma de sensibilidade, aliás, a considero como um desses remédios necessários, mas horríveis (como quimioterapias) para uma doença humana incurável: nossa natural vocação para abusar do poder.

“O progresso deve ser manipulado assim como quem manipula o bacilo da lepra” Prefiro almas pecadoras a almas eficazes (como diz Sabato), culpadas em sua agonia, conscientes do mal que causam no mundo, presas em suas fraquezas, aniquiladas por seu orgulho ridículo, com olhos vidrados de dor. Prefiro ser um pecador ( e com isso não faço elogio a autores medíocres como Sade, mas, sim, me coloco sob a sombra de grandes filósofos como Santo Agostinho), a ser um “cidadão que crê no progresso”. Uma amiga minha me define com precisão matemática, como “um medieval com estilo”. As almas superficiais dirão que “todo medieval é sem estilo”, mas, de novo, as almas superficiais não têm a mí-

nima idéia do que seja um medieval. Um medieval vaga por um mundo devastado, pressentindo a esperança sempre como filha do mistério. Uma espécie caçada, a cada dia, pelos superficiais crentes no progresso “humanista”. O que me encanta em Sabato é a forma que assume sua crítica, seu viés nostálgico, traço do que há de melhor no romantismo, sua dor diante da barbárie que é a sociedade da eficácia em que vivemos, sem o ridículo do filme “Avatar”. Mas ele esbarra num impasse clássico: confessemos, a sociedade da eficácia nos serve a todos com sua medicina, seus aviões, seus computadores. Abrir mão dela é abrir mão dos ganhos técnicos que ela gerou. Ninguém abre mão disso, por isso, todo mundo prefere a infelicidade permeada pela higiene da solidão, porque o amor não é eficaz. A resistência proposta por Sabato passa pela crença numa saúde espiritual, fincada em nossa vocação para o sagrado e para os valores eternos. Neste movimento, ele ataca o humanismo da eficácia e chama para si a herança de russos como o filósofo Nicolai Berdiaev (século XX). Berdiaev chamava de “Nova Idade Média” a devastação da vida causada pela sociedade do progresso tecnológico. Ele era um dostoievskiano e nietzschiamo e, por isso mesmo, alguém que desprezava a sensibilidade burocrática da democracia em favor da sensibilidade criadora e libertária. Os superficiais, essa maioria que infesta o mundo, dirão que isso é um desvio aristocrático. Pouco importa, mesmo que sejamos sempre derrotados, o que importa é termos a coragem de fracassar da forma que escolhermos. (*)Transcrito do Jornal Folha de São Paulo (caderno Ilustrada), de 19.04.10


Uma universidade deve atuar além da sala de aula.

GRADUAÇÃO A Universidade FUMEC integra ensino, pesquisa e extensão.

VESTIBULAR, TRANSFERÊNCIA E OBTENÇÃO DE NOVO TÍTULO. www.fumec.br / 0800 0300 200


Uma universidade precisa encurtar a distância entre o aluno e o mercado.

GRADUAÇÃO

A Universidade FUMEC mantém parcerias com grandes empresas. 0800 0300 200 Ċ www.fumec.br

Administração Ċ Arquitetura e Urbanismo Ċ Biomedicina Ċ Ciência da Computação Ċ Ciências Aeronáuticas Ċ Ciências Contábeis Ċ Comunicação Social - habilitações em Jornalismo e em Publicidade e Propaganda Ċ Design - habilitações em Gráf ico, em Interiores, em Moda e em Produto Ċ Direito Ċ Educação Física (bacharelado) Ċ Educação Física (licenciatura) modalidade a distância Ċ Enfermagem Ċ Engenharia Ambiental Ċ Engenharia Bioenergética Ċ Engenharia Civil Ċ Engenharia de Produção/Civil Ċ Engenharia de Telecomunicações Ċ Fisioterapia Ċ Fonoaudiologia Ċ Negócios Internacionais Ċ Pedagogia Psicologia Ċ Terapia Ocupacional

Ponto & Vírgula FR-0016-10A AD03.indd CURSOS44 2010.indd 1

12/20/10 7:45:49 PM 04/06/2010 19:02:49


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.