Revista laboratório do Curso de Jornalismo Ano 5 | Número 8 - Setembro de 2013
O relato de um soldado judeu torturado por sua tropa
Mazzili revela sua trajetória da medicina às artes
Sergio Utsch e a vida de correspondente internacional
“a dor e a delícia de ser o que é” A belo-horizontina Tereza Brant põe em debate os padrões da formação da identidade sexual de cada um e cada uma
Estudante relata sua trajetória de vida, permeada por fatos históricos Sérgio Utsch como correspondente internacional do SBT em Londres Futebol freestyle requer criatividade e habilidade, além de bom preparo físico
pONtO e vÍRgulA Entrevista com Sergio Utsch
Pág. 04
Entrevista com Tereza Brant
Pág. 11
Futebol freestyle
Pág. 18
Entrevista com Gustavo Faria
Pág. 21
Soldado revela marcas da tortura
Pág. 24
Relatos - Antes e depois de Laura
Pág. 32
Em destaque - Álvaro Castro
Pág. 38
Presidente do conselho executivo Prof. Mateus José Ferreira Presidente do Cons. de Curadores: Prof. Tiago Fantini
Culto à homofobia na política
Pág. 41
Reitoria da Universidade Fumec
Perfil do artista Domingos Mazzili
Pág. 44
Guia Cultural - Bares inusitados
Pág. 58
expediente FUMEC
Fundação Mineira de Educação e Cultura
Reitor: Prof. Dr. Eduardo Martins de Lima Vice-reitora: Profª. Guadalupe Machado Dias
Faculdade de Ciências Humanas
Diretor-Geral: Prof. Antônio Marcos Nohmi Diretor de Ensino: Prof. João Batista de M. Filho Diretor Adm-Financeiro: Prof. Fernando M. Nogueira Coordenador do Jornalismo: Prof. Ismar Madeira
Ponto e Vírgula
Editor: Prof. Aurelio José Silva Editora: Profª. Vanessa Carvalho Editora: Profª. Ana Paola Amorim Coordenação Editorial: Profª. Vanessa Carvalho Coordenação Proj. Gráfico: Prof. Aurelio José Silva Apoio Técnico: Luis Filipe P. B. Andrade Apoio Técnico: Daniel Washington S. Martins Revisão de texto: Prof. Dr. Luiz Henrique Barbosa Logomarca: Rômulo Alisson dos Santos Monitores: Júlia Falconi Janderson Silva Nádia Yasmin G. Schmidt Mariana Naddeo Gráfica: Rona Editora Tiragem: 1.000
Conselho Editorial
Prof. Alexandre Salum Profª. Ana Paola M. Amorim Valente Prof. Aurelio José Silva Profª. Dúnya Azevedo Profª. Vanessa Carvalho Prof. Dr. Luiz Henrique Barbosa
Foto da capa
Sergio Henrique Lucarelli
Silvio Katz (segundo à direita) aos 19 anos, nas Ilhas Malvinas com seus colegas de regimento em 1982
entrevista - sergio utsch
O homem
multimidiático Por Diego Duarte e Júlia Falconi
Enquanto degusta seu chá britânico, Sérgio Utsch lê os jornais brasileiros diariamente e envia de Londres as principais notícias para o Brasil. No ápice de sua carreira, aos 39 anos, ele é o atual correspondente internacional do SBT na Inglaterra e há 15 anos o jornalismo faz parte de sua prática diária. Utsch integra a equipe SBT Brasil desde 2005 e carrega em sua trajetória inovações e um novo modo de fazer jornalismo. Foi repórter do Jornal Nacional e do Jornal da Globo e finalista do Prêmio Esso de Jornalismo, em 2009, com a matéria “Infância à Venda”, realizada no Vale do Jequitinhonha. Responsável por cobrir a Europa, Ásia, África e Oriente Médio, ele apresenta várias descobertas e curiosidades sobre o telespectador e a mídia brasileira e discute o valor noticioso que cada nova reportagem tem para seu público.
4
Revista Ponto & Vírgula — setembro de 2013
Sergio Utsch
Você já afirmou em outras entrevistas que acredita que é possível contar história de uma maneira diferente daquela já consolidada na televisão brasileira. Como você vem fazendo isso? Eu venho fazendo isto buscando alguns elementos que me permitem enxergar o que eu acredito que poucas pessoas enxergam. Isso pode ser, por exemplo, um telefone sobre a mesa, um áudio que a pessoa não valorizou muito. É difícil exemplificar, mas o meu esforço é procurar enxergar alguma coisa que eu acho que vai ser interessante para as pessoas perceberem e fugindo do que é trivial.
Foto: Tiago Ferreira
Acredita que esses novos recursos, como o uso do iPhone, o aproximam do seu público? Acho que sim. O primeiro objetivo na verdade não é nem aproximar o público, acredito que isto é uma consequência. O objetivo inicial é facilitar sua captação.
O que representou para você e para sua carreira ser finalista do Prêmio Esso, em 2009, com a matéria “Infância à Venda”, realizada no Vale do Jequitinhonha? É muito bacana. O prêmio Esso é o mais tradicional do jornalismo brasileiro. Eu não faço matérias
- entrevista
pensando em ganhar prêmios, mas quando acontece é satisfatório. Embora eu não tenha ganhado, me sinto muito honrado em ter sido finalista.
Você trabalhou durante anos na Globo e agora está no SBT. Qual a principal diferença entre o padrão de jornalismo das duas emissoras? Organização. A TV Globo tem uma história no jornalismo que o SBT não tem. Tem uma grade jornalística muito consolidada, uma estrutura maior. O SBT, embora tenha investido bastante nos últimos anos e está em um caminho muito interessante, ainda não possui a estrutura que a Globo tem.
Revista Ponto & Vírgula — setembro de 2013
5
entrevista - sergio utsch Você já cobriu eventos como os Jogos Olímpicos da China, a Copa do Mundo da Alemanha e acontecimentos como o conflito árabe e o último conclave. Qual outro assunto você gostaria de cobrir? Eu já pensei nisso. Quando eu estava no início de carreira, meu objetivo era cobrir uma Olimpíadas, uma Copa do Mundo e uma guerra. Eu já passei por estas três fases, mas sempre tem coisas a fazer. O meu objetivo agora é explorar mais a África longe da oficialidade das visitas presidenciais. A África ainda é um continente que tem muita história não contada. Ser correspondente internacional significa, muita das vezes, ter que tomar todas as decisões numa cobertura. Quais as principais dificuldades? As dificuldades são várias, às vezes a própria estrutura. Por exemplo, no dia que caiu um helicóptero no centro de Londres. Você vai fazer a matéria, mas uma das dificuldades é justamente essa, por que nós estamos fazendo esta matéria? No Brasil tem muito mais acidente de helicóptero do que em Londres. Essa é uma dificuldade editorial, mas você também tem as dificuldades técnicas. Não é toda hora que você tem alguém para te auxiliar e é preciso saber lidar com isso.
Você falou que a grande mudança em assumir o jornalismo internacional é ter que tomar as decisões. Essa é uma característica necessária para o correspondente internacional? Acho que sim. No meu caso, que tenho uma estrutura menor, você tem que ter ali o mínimo de maturidade para decidir o que fazer. Até porque, se eu dependesse da equipe de São Paulo para tudo,
6
Revista Ponto & Vírgula — setembro de 2013
Foto: Tiago Ferreira
Sergio Utsch
não funcionaria. Eu sei que tem situações nas quais a pessoa espera aprovação de passagem de texto para gravar. É uma eterna briga. Se eu precisar de aprovação de editor para gravar uma passagem não posso ser repórter. Eu vejo também que, às vezes , não é nem a experiência do profissional em si, mas como a empresa na qual você está trabalhando funciona. Isso também faz toda diferença. Eu virei correspondente já conhecendo a estrutura da redação. Se eu tivesse sido contratado para ser correspondente internacional sem ter passado por São Paulo, acredito que minha postura seria diferente.
Dentre as coberturas realizadas por você, qual foi a que mais o impressionou? A experiência mais forte que eu tive, sem dúvida, mais do que uma guerra, foi cobrir o terremoto no Haiti. Foi um lugar onde eu vi a morte de perto, eu tenho o cheiro da morte ainda na minha mente. Aquela situação
Foto: Tiago Ferreira
- entrevista
nunca vai sair da minha cabeça. Eu me lembro de ver crianças mortas, pessoas tentando enterrar seus pais e não conseguindo, porque o corpo já estava rígido. Enfim, foi um contato intenso com a morte e naturalmente eu não gostei do que vi. No momento do trabalho, você está em uma adrenalina absurda. Eu acho que só comecei a processar isso depois que eu voltei. E voltei diferente, foi bem forte. Também é difícil você ouvir as pessoas dizerem parabéns pelo trabalho. Aquilo me incomodava, me soava como um xingamento porque não era aquilo que eu queria ouvir, na verdade, eu não queria ouvir nada.
exemplo, outro qualquer país africano. Eu conheço pelo menos uns vinte países africanos, mas o Haiti é pior que qualquer um deles. As imagens eram muito fortes. Eu ficava com consciência pesada até de comer, porque as pessoas não tinham comida. A gente usava uma máscara por causa do cheiro e as pessoas desesperadas pedindo máscaras e nós contribuíamos na medida do possível. Verdadeiramente, eu não sei racionalizar o que mudou em mim, acho que vou ter que fazer uma terapia para descobrir isto. Mas, sem dúvida, eu voltei diferente. E voltei profundamente incomodado com as palavras de pessoas amigas me parabenizando pela cobertura.
Como jornalista, o que o surpreendeu no Haiti e o que efetivamente mudou em você, já que sabia o cenário que iria encontrar naquele lugar?
Porque acho que gostaram da cobertura. Eu gosto dessas grandes coberturas porque você se envolve muito, ao contrário do dia a dia em São Paulo, em Belo Horizonte, em Londres. Quando você está em um lugar desses como o Haiti, você está totalmente mergulhado. No Haiti eu dividia uma barraca com outros vinte jornalistas, que na segunda semana já
Eu sabia, mas não na proporção que efetivamente eu encontrei, porque foi tudo muito rápido. Eu já sabia que teria muita gente morta e que o Haiti é um país muito precário, como, por
Por que você acredita que eles o parabenizaram?
Revista Ponto & Vírgula — setembro de 2013
7
entrevista - sergio utsch cheirava muito mal,enfim, dava para tomar banho na base do Exército a cada dois dias. A gente comia e tinha um “luxo” que a maior parte das pessoas não tinha o que me causava um desconforto. Eu não consigo estar lá comendo do bom e do melhor sabendo que a um quilômetro de mim tinha gente morrendo de fome. Esta história da gente se ausentar completamente, eu não acredito e também não me arrependo de ter me envolvido.
Para você, qual o limite da participação do repórter na notícia? Eu vou lhe responder relatando um caso emblemático que aconteceu no Haiti. Eu acompanhei o resgate de duas irmãs que estavam presas nas ferragens. Elas foram resgatadas depois de cinco dias. Era uma baita história. Eu me lembro de que eu fui cobrado de São Paulo porque não tinha gravado mais passagem. Eu não podia fazer mais participações porque se eu falasse muito alto eu prejudicaria o trabalho dos bombeiros, pois escutar naquele momento era essencial, o silêncio era um instrumento importante. Entre a vida da menina e a minha passagem é a vida dela, sem a menor dúvida. Eu não prejudico ninguém, eu estou falando isso porque a gente vê exemplos no mercado, e não estou dizendo por que eu sou “bonzinho” não, é porque o diferente disso que é estranho. Entre ameaçar de alguma maneira a segurança daquelas meninas e fazer uma boa matéria, eu fico com a primeira opção.
Você emocionou o público com a reportagem, tanto que elas o elogiaram, mas qual papel cumpriu essa cobertura no Haiti? O que você viu de resultado? Várias situações. Primeiro, nós mostramos um pouco da fragilidade da estrutura brasileira no Haiti. É uma boa estrutura, mas tem os seus pontos frágeis, tanto é que morreram policiais. Enfim, a falta de experiência em lidar com o cenário internacional. Eu me lembro que o aeroporto ficou fechado e imediatamente os EUA assumiram o controle. Eu tive a oportunidade de ir ao programa “Sem Censura”, da TV Cultura, eu era um dos entrevistadores do coronel do Haiti e eu perguntei isto para ele. O Brasil era o país que estava à frente da missão de paz. Que sentido fazia os EUA assumirem o controle do aeroporto? Ali ficou muito claro para mim que a gente não estava com essa bola toda. Naquele momento nós fomos incapazes de controlar um aeroporto. Esse foi um dos papéis da cobertura, mas, acima de tudo, mostrar o drama humano é bastante complicado. A sociedade haitiana para mim é o fundo do poço, foi a coisa pior que eu já vi. Quando você
8
Revista Ponto & Vírgula — setembro de 2013
Foto: Tiago Ferreira
sergio utsch mostra esta situação, você desperta nas pessoas sentimentos, bons ou ruins, mas que as ajudam de certa forma a construir alguma coisa melhor. Eu não sei se eu consegui, mas tentei.
Como trabalhar nessa linha tênue do jornalismo, entre dar a notícia e fugir do sensacionalismo, em casos como a tragédia da boate em Santa Maria, por exemplo? Tem uma palavra mágica que se chama bom senso. Eu não acompanhei a cobertura de Santa Maria porque eu estava na Inglaterra, mas um fato desta proporção naturalmente desperta a atenção do mundo. Lá fora eles estavam falando, foi capa de todos os jornais. Mas acho que é o cuidado. No Haiti eu estava trabalhando nesta situação, com dramas humanos. Em uma cobertura dessas como a de Santa Maria é impossível você descartar, por exemplo, entrevistar o parente de uma vítima em um momento de extrema dor. Eu detesto fazer isso. Eu já sofro saindo da redação, mas às vezes é necessário fazer. Eu tenho os meus princípios, já me mandaram várias vezes fazer matérias em cemitério. Eu não acho correto em determinados momentos.
Nestas coberturas que você fez, como no Haiti, teve momentos em que teve que se superar? Sim. No caso do Haiti eu vi o quanto estava complicado, inclusive para chegar. A gente não podia pousar lá, fomos para a República Dominicana, alugamos um carro, demoramos oito horas para atravessar a ilha e chegar ao Haiti. E tinha uma história que eles estavam saqueando os carros. Uma mentira, nós não encontramos nada, um exagero dizer que estavam realizando saque por causa de comida. Nós compramos alimentos, inclusive, enchemos o porta-malas do carro e
demos para as pessoas. Quando você está em uma cobertura como deste nível sobe a adrenalina. Você não come, não dorme e segue em frente.
Como esta sua experiência lhe auxiliou agora como correspondente internacional e não somente como enviado especial no caso do Haiti? Credenciou-me a tomar decisões mais rápidas do tipo aonde ir, o que fazer, que caminho seguir. Até porque tem situações que não dá para você dividir por conta do fuso horário. Então tem situações que tenho que definir sem autorização dos meus superiores. Hoje eu sou mais experiente e menos inocente. Às vezes eu me policio para não ter um excesso de segurança, mas eu sou muito seguro para escolher as decisões e me banco também, mesmo quando erro.
Qual a deficiência comum de um jornalista inexperiente? Trabalhar com estereótipos é uma delas. Aquela história de que todo policial é corrupto, todo político é ladrão, enfim, de trabalhar com estes conceitos que já estão prontos.
Como você avalia a liberdade de imprensa atualmente no Brasil? E a liberdade de expressão? Eu acho que existe liberdade de imprensa no país. Em Minas Gerais tem um problema com o governo do Estado que eu não sei nesse momento como está porque eu estou fora de Minas há muito tempo, mas, quando eu saí, tinha um problema grave com o governo do Estado pressionando as mídias locais. Comparado a outros países nós temos um nível de liberdade muito grande, a questão é como tratamos essa liberdade. Em relação à mídia inglesa, que eu acompanho muito, estou me referindo à parte boa da mídia inglesa, eu acho que nós so-
- entrevista
mos extremamente imaturos ainda. A questão vivida pela BBC é o exemplo. Eu nunca vi no Brasil a lavação de roupa suja ocorrer com transparência como ocorreu neste caso. É de um nível democrático de informação que eu não conhecia. Eu fiquei surpreso de ver como eles tratam os próprios problemas publicamente e situações que têm de ser tratadas desta maneira, porque é o público que está pagando.
Se você voltasse hoje para o Brasil e tivesse que comandar uma emissora, o que você mudaria e implantaria dessa experiência internacional que fosse capaz de ser feito com a nossa realidade? Esta questão de trazer os bastidores para frente das câmeras. As pessoas gostam e têm o direito de saber como e por que a equipe pensou aquela matéria, porque estamos relatando aquele assunto com determinada frequência. É preciso fazer uma discussão mais honesta com o público e até mesmo falar de erros. Nessa cobertura de Roma a respeito do novo Papa, eu insisti para que nós déssemos um tom crítico. A gente fez uma matéria mais analítica mostrando como todo mundo estava errado. Falou-se no brasileiro Dom Odilo, do italiano Scolla, enfim todo mundo caiu. E eu tive um imenso prazer, uma pequena vitória de falar em uma matéria a seguinte frase: “todos nós erramos”; de assumir um erro conjuntamente. Talvez as pessoas não tenham percebido isso, mas para mim aquilo foi emblemático. Nós, assim como boa parte da imprensa italiana que nos influenciou, deixamos ser influenciados. A Igreja nos mostrou um caminho totalmente contrário.
A escolha do Papa Francisco foi política, em função da crise na Igreja Católica? É inocente da nossa parte descartar que não há um componente polí-
Revista Ponto & Vírgula — setembro de 2013
9
entrevista - sergio utsch tico nesta escolha. São 115 pessoas que estão lá escolhendo, levando em conta uma série de fatores, mas não dá para analisar o processo da Igreja Católica como se analisa uma eleição para Câmara dos Deputados ou uma eleição presidencial, é outra coisa. Talvez o nosso erro foi ter encarado essa eleição como uma coisa extremamente política. Ela tem o seu viés político, mas não é só isso. Boa parte de nós jornalistas que estávamos em Roma não estávamos preparados para isso, para lidar com essa realidade. O discurso oficial é que o Espírito Santo desce, ilumina a todos para a escolha. Embora seja católico, eu não sei se é bem isso. Mas que tem algo além do político, com certeza. Acho que a escolha do Bergoglio é uma prova disso.
Como você está avaliando a preparação do Brasil para a Copa do Mundo? Como isto está sendo retratado pelos veículos de mídia internacional? O vexame da reabertura do Mineirão foi muito destacado lá fora. O Brasil hoje no exterior é visto de maneira muito diferente, mas eu analiso esta preparação com muita preocupação. Eu peguei um voo para vir a Belo Horizonte. Você chega ao aeroporto e tem baias improvisadas da Polícia Federal, além de uma fila única para brasileiros e estrangeiros. Todos os lugares onde você chega as pessoas naturais daquele lugar têm o privilégio de ter uma fila exclusiva. Aqui você fica na mesma fila e o espaço é muito pequeno para malas, obras que não estão prontas. Eu estou bastante preocupado. Até agora no noticiário internacional eu não vi nenhuma grande denúncia, eu acho que eles ainda não pegaram tão pesado quanto podiam.
O Brasil ainda está na “moda” internacionalmente, como anos atrás? Continua. Antigamente o papo
10
começava com samba e futebol, mas hoje, quando você conversa com uma pessoa, a visão é positiva, de crescimento. Eu penso que eles pensam que nós estamos muito melhores do que verdadeiramente estamos. Este momento ainda não passou e acredito que não vai passar até 2016. Depois deste prazo, acho que o mundo vai se cansar do Brasil.
Quais as principais diferenças nas coberturas jornalísticas realizadas por você em Minas Gerais, depois em São Paulo e, por último, fora do país? Minas tem um noticiário muito voltado para ela mesma. São Paulo é mais mundo, apesar de cobrir a cidade, cobre o Brasil inteiro. Mas ainda é muito complicado, eles não veem Minas como um celeiro para repórteres fazerem cobertura nacional, a não ser que este profissional esteja em SP, no RJ ou em Brasília. Na minha carreira, eu tive a de galgar degraus muito corretos e na hora certa. Eu fui repórter local por muito tempo e depois fui fazer matérias de veiculação nacional. Hoje, lá em SP, por exemplo, chega um profissional e rapidamente ele já vira repórter de rede porque é favorecido pela geografia. Aqui em Minas é diferente, você tem que trabalhar muito para ser repórter de rede. Então, para nós mineiros, as coisas são mais difíceis, a geografia não nos favorece muito, embora o nosso olhar seja privilegiado.
o que está acontecendo no mundo e principalmente saber um pouco de história. Eu tive uma pequena experiência de menos de um ano como professor e eu sentia muito a falta de conteúdo dos meninos e brigava com eles por causa disso. Eu dizia que o caminho da mediocridade era muito fácil. Difícil é você subir a montanha. As pessoas têm que se informar e não ver o jornalismo como um trampolim para um mundo glamoroso, porque não é. E sim de muito trabalho, você tem que doar parte da sua vida mesmo, não tem jeito. Se você quiser ser um jornalista de destaque e não burocrático. O grande problema que eu vejo nessa geração é conteúdo
Quais as dicas que você gostaria de compartilhar com quem está cursando ou tem o desejo de cursar jornalismo? Se informar, eu acho que os jovens hoje são muito mal informados. Falta profundidade nas pessoas, saber
Revista Ponto & Vírgula — setembro de 2013
Foto: Tiago Ferreira
entrevista
elA éO cARA!
Se você se deparasse com Tereza Brant numa balada ou na rua, certamente seria traído pelos seus próprios olhos. O rapaz, no auge da juventude e beleza, é na verdade uma garota. Isso, ao mesmo tempo, tem causado surpresa, admiração e dúvidas Por Joyce Nunes e Mariana Chacon Naddeo
Foto: Sergio Lucarelli
Revista Ponto & Vírgula — setembro de 2013
11
entrevista - Tereza Brant
“Eu sou Tereza. Sou feliz do jeito que eu sou”, afirma a menina com aparência, voz e trejeitos masculinos, sorriso fácil e simpatia indescritível. Com apenas 20 anos, a belohorizontina Tereza Brant “bombou na web” e conquistou uma legião de fãs nas redes sociais (são 78 mil seguidores no Instagram, 105.560 no Facebook e 17 mil no Twitter). Tornou-se também personagem de diversas reportagens de jornais, revistas e tevês do país nos últimos tempos. Depois de passar algum tempo com ela, fica fácil entender
que rótulos não lhe são importantes. De bem consigo mesma, acha graça da confusão que cria na cabeça das pessoas ao se apresentar. O belo rosto masculino e a voz grossa geram duvidas, “como assim, Tereza?”. A reportagem da revista Ponto e Vírgula passou uma manhã com Tereza, que, embora esteja sob os holofotes da mídia, aceitou prontamente o convite para um bate-papo e uma sessão de fotos no estúdio da Fumec. Ao ser indagada se aceitava sempre dar entrevista a todos da imprensa, respondeu com um sorriso no rosto:
“Não tem por que recursar matéria”. Durante a descontraída entrevista, Tereza se divertiu contando várias situações inusitadas que seu corpo masculino, bem definido pela malhação na academia e pelos hormônios masculinos que toma regularmente, provocou e continua a provocar em várias situações do seu cotidiano. Ao mesmo tempo, ela expôs também suas inquietações, sentimentos contraditórios, expectativas para o futuro e um jeito muito peculiar de ver a vida.
Tereza Brant, no mirante do bairro Cruzeiro, observa a cidade
12
Revista Ponto & Vírgula — setembro de 2013
Foto: Joyce Nunes
tereza brant Por que você decidiu continuar se chamando Tereza? Eu não quero me enquadrar em nenhum perfil. Me perguntam: Tereza, você é bi, lésbica, ou o quê? E eu respondo que eu sou eu. Sou feliz do jeito que eu sou. Eu quero ser assim. Eu quero mostrar paras pessoas que elas não têm que se enquadrar em nenhuma perfil pra serem elas mesmas.
me relaciono com héteros porque, quando olham para mim, veem primeiro um homem. Minha aparência externa é de um homem. Depois que a pessoa conversa comigo diz: nossa Tereza, você é totalmente o contrário do que eu pensava. Porque eu sou eu mesma o tempo inteiro. Eu não tento parecer ou ser outra pessoa para me aproximar de ninguém.
Como é quando você se apresenta?
Por incrível que pareça eu nunca fiquei com uma lésbica. Eu sempre
Fotos: Arq. Pessoal
Está namorando? Não. Minha vida amorosa é uma bagunça.
Você pensa em ter filhos?
Você quer fazer operação para mudar de sexo? Não. A única operação que eu penso em fazer é tirar o resto do peito (seios).
Alguém já se sentiu enganado com você?
Seus relacionamentos são com homens, lésbicas ou mulheres ? Como funciona ?
cias assim. Eu deixo por conta do acaso. Aconteceu, aconteceu. Não fico pensando que vou levar a menina ali, fazer isso ou aquilo.
Já pensei em criar filhos, nunca pensei em tê-los.
Eu fico esperando a reação das pessoas. Elas me olham de cima a baixo. A expressão muda totalmente. Ficam procurando alguma coisa no meio das minhas pernas.
Não, isso nunca chegou a acontecer porque, primeiramente, procuro expor para pessoa que eu sou eu. Falo meu nome antes de tomar qualquer tipo de liberdade. Porque isso seria sacanagem. Às vezes, meu amigos adoram brincar com essa minha “dupla personalidade”, digamos assim. Vamos chegar naquelas mulheres ali com a gente, mas você fala que é o Bernardo. Concordo, mas somente até eles entrosarem. Chego converso, entroso todo mundo. Quando me chamam novamente de Bernardo, digo não, Tereza. Aí, aquilo que era segredo vira brincadeira. Pedem para ver minha identidade, para eu levantar a blusa. Teve um menino que pediu para eu olhar paro lado. Eu olhei e ele disse: Nossa, você tem mais gogó que eu”.
entrevista
Isso te incomoda?
Então você já se relacionou tanto com homens quanto com mulheres? No início, quando eu tinha aparência feminina, me relacionava com homens. Mas, agora, nesses últimos tempos, tenho ficado mais com mulheres.
Mas depois dessa mudança você ficou com homens também? Depois do tratamento não. Mas, quando eu tinha cabelos curtos ,vários amigos meus chegaram em mim: Tereza, só te pego porque você é muito gato.
E no sexo? Você usa brinquedos eróticos? Não, nunca usei nada. Com mulher eu nunca tive muitas experiên-
Incomoda um pouco. Eu falo que parece aquele peito de vovó, sabe ?! Uma muxibinha de vovó (risos). É meio chato. Eu estou me desenvolvendo e minha musculatura está crescendo. Antes, eu usava top para não ficar aquela coisa feia. Mas, agora, a asa (musculatura das costas logo abaixo dos ombros) está tão grande que não dá mais para usar top porque aperta bastante, eu fico com uma dor nas costas insuportável.
Quando você começou a se sentir diferente? Em que momento resolveu mudar sua aparência? Bom, foi quando a idade chegou. Meus amigos mudando, todo mundo ficando diferente e eu lá. Com 16 anos ainda tinha carinha de criança. Estava enturmada, até então, porque todo mundo era criança, mas, depois, todo mundo foi ficando mais velho eu fui percebendo que
Revista Ponto & Vírgula — setembro de 2013
13
entrevista - tereza brant Tereza Brant afirma que se diverte com a dúvida que cria na cabeça das pessoas
estava parada no tempo. O critério da mudança foi o espelho para falar a verdade. Então, cortei o cabelo. Continuava com cara de criança e pensei – pô, quero mudar também. Quero ficar diferente. Não quero olhar para o espelho com 60 anos e ter cara de 30. Comecei a procurar alguma coisa que me fizesse mudar dentro da normalidade da vida, que pudesse seguir com isso.
Você começou a tomar hormônio com 16 anos? Não, comecei este ano. Deve ter uns nove ou dez meses.
E é para sempre? Você nunca vai poder parar? É um tratamento pra sempre. Eu vou ter que ficar repondo o hormônio. Como meu organismo não produz, eu preciso repor. Eu só vou
14
olhar direitinho com o médico se tem que diminuir a dose para não me fazer mal.
Como surgiu a ideia de tomar hormônios? Eu conheci alguns grupos transexuais e a saída para eles era essa. Eu pesquisei bastante, vi quais eram os efeitos, se não tinha nada que poderia me prejudicar futuramente, e decidi.
E sua alimentação é diferenciada por causa dos hormônios? Dieta pesada. Comer de três em três horas. Quem controla isso é minha personal. A partir do momento em que decidi fazer essa mudança, procurei todo o respaldo possível. Comecei a praticar academia com personal, nutricionista, médico, toda
Revista Ponto & Vírgula — setembro de 2013
uma equipe para que desse tudo certo. É a minha saúde, né?!
E essa mudança foi como você esperava? Eu estou me surpreendendo cada vez mais. Querendo ou não, não sabia como ia ficar. Foi meio o escuro, meio pagando para ver mesmo.
Tem alguma coisa de que você não gostou? Efeitos colaterais. Mas minha voz agora estou achando até legal. Mas, durante um tempo, ficou como daqueles meninos na adolescência. Na mesma hora em que estava fina, ficava grossa. Acho que para ver a diferença mesmo levou de quatro a cinco meses. Antes, as mudanças eram mais internas, depois, que começou a ficar externa. Meu humor mudou. Sou muito bipolar. Não do
Foto: Joyce Nunes
tereza Brant tipo estou feliz agora e começo a ficar com raiva. Quando alguma coisa me faz raiva, fico com muita raiva. Se eu estou feliz, fico muito feliz e assim sucessivamente. Altos e baixos mais extremos.
Quais outros efeitos colaterais? Além da bipolaridade, muitos pelos crescendo por toda a parte.
E sua força muscular? Estou bem forte. Minha personal muda meu treino de duas em duas semanas, colocando mais treino de força e de resistência. A força era uma das minhas expectativas. Sabia que iria ganhar bastante força, mas, se eu não soubesse usar, seria a mesma coisa que nada.
Você ainda menstrua? Não.
Você se sente feminina ou masculina? Um pouco dos dois. Uma das coisas que não disse sobre os efeitos do hormônio é que a maioria deles é psicológico. Às vezes eu sinto que tem uma cabeça dentro da minha cabeça. Estou pensando de um jeito que eu não pensava antes. Por exemplo, antes, uma mulher bonita passava na minha frente e eu não olhava. Agora eu olho. Às vezes eu vejo que eu olho, paro e penso: nossa, eu estou olhando. É engraçado.
Qual é reação das pessoas a você? A indignação de algumas pessoas é muito engraçada. Mas cada um é cada um. Eu descobri isso agora. Cada um tem uma reação diferente. Se você me visse entrando no banheiro feminino, no shopping você iria falar o quê? Um segurança virou para mim e disse: Pô velho, você
Foto: Joyce Nunes
gosta de mijar sentado? Eu disse: Gosto, qual problema? Aí, ele ficou olhando pra mim meio sem graça.
entrevista
Não. Uma coisa que eu procuro fazer é me divertir com tudo isso. Eu adoro.
todo mundo me conhece, me adora. Quem não me conhece, às vezes, se assusta no banheiro feminino, porque lá eu uso o vestiário feminino. Direto eu estou lá sentada, algumas mulheres olham pra mim, olham para a porta, para a placa e eu fico lá sentada rindo.
E você vai a banheiro feminino ou masculino?
Seus amigos te procuram para pedir conselhos?
Você apela com isso ou não?
Depois da mudança é meio impossível ir ao banheiro feminino em lugares públicos. Mas quando estou com a galerinha, eu vou em qualquer banheiro. É tipo tropa de elite. Eu entro no banheiro feminino e conto até três. Fiz a brincadeira com um amigo. Entrei e contei. Entraram duas faxineiras e um segurança falando que eu não podia entrar lá. Respondi: claro que posso. Já perguntou meu nome?. Elas ficaram me olhando. Surgiu aquela interrogação na cabeça deles. Eu sai rindo do banheiro e aí meu amigo ficou lá, dando quase uma entrevista sobre a minha vida.
Eu sou a conselheira oficial da galera. Tanto de homens quanto de
Você se dá bem com todas as pessoas? Antes de me conhecerem, as pessoas pensam que sou muito antipática, uma pessoa muito tirada, mas não sou assim com quem merece. Eu demoro muito para ser antipática com uma pessoa.
E como é na academia? Na
academia Revista Ponto & Vírgula — setembro de 2013
15
entrevista - tereza Brant mulheres. Porque, quando converso com eles, falo o que têm que fazer e o que elas gostam. E quando converso com elas, eu conto o que eles fazem e por que fazem. Eu fico no meio dessa história toda mesmo.
Qual foi a reação dos seus pais? Meus pais não falaram nada. Sempre me apoiaram nas decisões que tomei. Estão sempre preocupados com minha felicidade, que eu me sinta bem. Se eu estou bem, eles me apoiam.
Como é o assédio? Você tem muitos pretendentes? Pretendentes eu tenho aos montes. Esse fim de semana (24/08/2013) fui na Girus (boate), porque eles me contrataram para fazer presença VIP lá. Entrei, todos na boate estavam dançando e, de repente, todo mundo olhou pra mim (risos). Meu Deus! Eu fiquei meio assim, querendo procurar um buraco pra enfiar minha cabeça. Eu estava andando lá dentro e umas três pessoas chegaram em mim. Eu falo pessoas porque não dá para definir a sexualidade. Eu não sabia quem era o que ali.
E você já estava trabalhando? Não. Eu fui para conhecer o ambiente. O trabalho acho que será na semana que vem ou na outra.
Você recebe muitas críticas? Saber que tinham críticas eu sabia. Normal. Mas fui perceber as críticas mesmo na reportagem do G1. Nos comentários abaixo da reportagem. Eu abençoei a ignorância das pessoas e resolvi não falar nada.
E nas redes sociais? Mais no ask.fm. No meu facebook, twitter e instagram só recebo elogios.
Você recebe muitos comentários desnecessários? No instagram, o menos vulgar foi tipo assim: Tereza, me engravida
Identidade de gênero É uma experiência interna e individual do gênero de cada pessoa, que pode ou não corresponder ao sexo atribuído no nascimento, incluindo o senso pessoal do corpo (que pode envolver, por livre escolha, modificação da aparência ou função corporal
16
por meios médicos, cirúrgicos e outros) e outras expressão de gênero, inclusive vestimenta, modo de falar e maneirismos. Identidade de gênero é a percepção que uma pessoa tem de si como sendo do gênero masculino, feminino ou de alguma combinação dos
Revista Ponto & Vírgula — setembro de 2013
dois, independente de sexo biológico. Trata-se da convicção íntima de uma pessoa de ser do gênero masculino (homem) ou de gênero feminino (mulher). Fonte: Manual de Comunicação LGBT
Foto: Joyce Nunes
tereza brant -
entrevista
*
* Dados de 04-09-13
Fotos: Instagram/Arq. pessoal
Revista Ponto & VĂrgula — setembro de 2013
17
reportagem
VOCÊ CONHECE O
fO
tbAll? “Não deixe a bola cair, seja habilidoso, seja freestyle”
18
Revista Ponto & Vírgula — setembro de 2013
Fotos: Pablo Medeiros
freestyle
- reportagem
Atleta do Artbol praticando o “freestyle”
O futebol freestyle não tem uma data de começo exata, pois ele foi evoluindo com os artistas de rua por muitos anos, mas, por volta de 2002, o esporte começou a ganhar o formato atual, desenvolvendo-se em diversos países do mundo. Um dos grandes percussores do freestyle football é o holandês Soufiane Touzani, que, no começo do século 21, postou um vídeo na internet em que mostrava grandes variações e inovações com a bola. Logo depois, vários vídeos começaram a aparecer e novos talentos surgiram. A partir daí começaram a surgir grandes atletas que ajudaram na evolução do esporte, o principal deles, grande ídolo dos adoradores, o sueco Rickard Palle Sjölander, conhecido como Palle, criou manobras e combinações styles. Para organizar o esporte no Brasil, foi criada recentemente a Federação Brasileira de Futebol Freestyle (FBFF). A meta da organização esportiva é ajudar o esporte e seus praticantes a evoluir com o freestyle cada vez mais para alcançar
melhores condições técnicas. O futebol freestyle consiste em fazer acrobacias com a bola, usando diferentes partes do corpo: cabeça, pé, coxa, calcanhares, ombros, nuca, entre outras. A execução das jogadas, manobras ou truques, mais conhecidos como tricks, podem ser feitas em pé, sentado e até deitado. São quatro estilos de tricks no futebol freestyle: Upper - Habilidades com a bola usando cabeça, nuca, ombros e peito. Air ou Lower – Feitas com a bola no ar. Sitdown – Realizadas com o freestyler sentado. Ground – É o mais próximo do futebol: dribles. São feitos no chão. Aqui em Belo Horizonte, o único representante que temos deste futebol de “estilo livre” é a equipe do Artbol Brasil O Artbol foi fundado em 2010 pelo empresário e ex-jogador de futsal Pablo Medeiros, que, naquela época, estava morando na Euro-
pa, onde o esporte estava em plena explosão com os melhores atletas da modalidade. A ideia seria organizar um grupo de atletas de Belo Horizonte e região, porém o desenvolvimento do grupo foi tão rápido, que o Artbol Brasil ficou conhecido nacionalmente participando das maiores feiras de esporte do Brasil, como a Soccerex, no Rio de Janeiro e Intersports Brazil, em Belo Horizonte, e disputando também o campeonato brasileiro em São Paulo, organizado pela FBFF (Federação Brasileira de Futebol Freestyle). Em seu portfólio, apresentações com algumas empresas de renome, como Red Bull, Coca Cola, Park Idiomas, entre outros. O futebol freestyle envolve criatividade e habilidade, e alguns movimentos exigem um bom preparo físico. Não há limites, a ideia é criar novas jogadas. Pode ser feita em qualquer lugar, basta uma bola. O resto é treinar, ter paciência e se divertir. Em entrevista, Pablo Medeiros contou um pouco sobre a história do Artbol e sua paixão pelo futsal:
Revista Ponto & Vírgula — setembro de 2013
19
reportagem - freestyle Como surgiu o Artbol?
Existe o Módulo Feminino?
Esta ideia surgiu na Europa quando eu morei um período fora. O freestyle é bem divulgado no exterior e a ideia seria trazer também um pouco aqui para o Brasil.
No Mundial, sim, mas aqui no Brasil ainda não foi realizado nenhum torneio de futebol freestyle com mulheres. Se falta patrocínio no masculino, imagine para elas?
Participam de campeonatos?
Você como ex-profissional de futsal, se arrisca nos malabares do freestyle?
O campeonato é realizado pela federação brasileira de futebol freestyle uma vez por ano, somente em São Paulo, e neste último campeonato nós levamos três atletas, um deles, o Mathaus, ficou entre os 20 melhores. A ideia é levar todo ano mais atletas para a disputa do brasileiro.
Por que não há campeonatos em Minas Gerais? Falta de investimento e pouco patrocínio? Depende e necessita de um mínimo de organização e, infelizmente, não há patrocinadores para ajudar a realizar este tipo de evento aqui em Belo Horizonte ou em Minas.
Só pratico brincando mesmo, o pessoal é bem profissional. É mais por prazer mesmo, é a vontade de estar criando alguma coisa. Eu proporciono a liga, organizo tudo, porém, a gente não compete como uma equipe, e sim individualmente, mas sempre levando o nome do Artbol.
O que representa a colocação do Mathaus (entre os 20 melhores do Brasil) para o Artbol e para Belo Horizonte? É a segunda vez que ele participa do campeonato de freestyle em São Paulo, é um orgulho pra todos nós da do futebol freestyle, uma posi-
Gol a Gol: Futsal: Paixão. Falcão: Ídolo. Suiça: Boas lembranças. Artbol: Futuro. Pablo Medeiros: Corajoso.
Mathaus em ação
20
Revista Ponto & Vírgula — setembro de 2013
ção incrível no ranking, este ano ele também está entre os 20 melhores. Deu bastante retorno para o Artbol no sentido de divulgação e o trabalho vai continuar desta forma, levando os atletas todo ano para estar disputando.
No período em que jogou na Suíça, batia uma saudade do Brasil? A experiência foi ótima, adorei jogar na Europa, com certeza batia saudade, mas eu também tinha vários amigos, dentro e fora de quadra em Genebra, que me ajudaram muito na questão familiar. Agora é a vez deles fazerem falta, mas vida que segue.
O que é necessário para praticar o futebol freestyle: É só entrar em contato com a gente pelo facebook ou telefone. Estamos sempre procurando atletas aqui em Belo Horizonte. No caso, temos apenas três atletas que participam do Artbol, e quanto mais, melhor
gustavo faria
- entrevista
LANCE CERTEIRO Recém-lançado, livro aborda a assessoria de imprensa esportiva e suas especificidades; área representa uma oportunidade a ser explorada por jornalistas e demais profissionais da comunicação Por Adélia Pinheiro Capaz de movimentar milhões de reais e gerar empregos dentro e fora dos estádios, o futebol representa, há muito, um grande negócio para milhares de trabalhadores. E em tempos em que o esporte anda em evidência no país e no mundo, impulsionado pelos grandes eventos esportivos, não só a carreira de atletas segue em ascensão, como também ganham força extra inúmeros serviços voltados ao setor. É o caso da assessoria de imprensa esportiva particular. Mesmo não sendo pro-
priamente nova, a atividade vem se expandindo muito nos últimos anos e está em ótima fase, em decorrência do boom que o mercado esportivo brasileiro vive. Ao liderar o crescimento de tais atividades, o esporte, que já rendeu ao Brasil o slogan de “país do futebol”, continua contagiando milhões de brasileiros e conquistando vantagens não só em campo, mas também no mundo empresarial. Ciente do quão promissor esse mercado se apresenta, o jornalista
mineiro Gustavo Faria, de 29 anos, que também é especialista em marketing e comunicação, publicou recentemente a obra Assessoria de Imprensa Esportiva. De utilidade no meio acadêmico e profissional, o livro traz informações sobre o atual mercado esportivo, expõe peculiaridades e características do segmento e indica estratégias para o alcance dos melhores resultados no exercício da profissão. Detalhes acerca do trabalho de um assessor esportivo e de como conduzir a relação atleta-
Revista Ponto & Vírgula — setembro de 2013
21
ENTREVISTA - GUSTAVO FARIA
Seu livro Assessoria de Imprensa Esportiva é voltado a um tema considerado paixão dos brasileiros – o esporte. O que o levou para essa área, uma paixão ou uma oportunidade de negócio? Na verdade, foram os dois motivos. Desde que iniciei a faculdade de jornalismo, eu tinha dois sonhos: trabalhar com esporte e com TV. Sempre gostei de esporte enquanto lazer e cheguei a trabalhar durante dois anos em uma TV de Ponte Nova, interior do Estado. Com o passar do tempo e a dificuldade de absorção de tantos jornalistas pelo mercado de trabalho, enxerguei a assessoria de imprensa particular para atletas como uma oportunidade de negócio, em função da demanda existente. A partir de então, passei a me preparar durante alguns anos e a buscar o máximo possível de informações sobre o assunto, já que a profissão não é muito difundida. Depois de algum tempo comecei a trabalhar na área e, aos poucos, fui conquistando meu espaço, ganhando credibilidade e ganhando mais clientes. Como resultado, acabei me especializando no assunto, já que o tema foi também objeto de estudo de minha
22
monografia na graduação e do meu trabalho de conclusão de curso na pós-graduação em Marketing, além deste livro que escrevi.
A assessoria de imprensa esportiva, seja a voltada a clubes ou a que é prestada diretamente a atletas, apresenta especificidades que a diferenciam da assessoria prestada a outros segmentos? Uma das diferenças que posso destacar é a grande demanda de mídia existente no futebol, especificamente.
“
A projeção de um atleta é fruto do seu desempenho, mas um trabalho bem feito de assessoria e marketing pode ajudar no seu sucesso.
“
assessoria-mídia esportiva também fazem parte da publicação, além de um expressivo número de depoimentos de profissionais considerados referência na área. Em entrevista à Ponto e Vírgula, Gustavo parte de sua experiência de oito anos como assessor de imprensa pessoal de atletas em início de carreira para falar sobre a atividade, mostrando ainda com a própria vivência que, se no mundo dos esportes a competição é com o adversário ou entre equipes, no mundo dos negócios vence quem trava a melhor disputa consigo mesmo e sabe aproveitar cada lance na hora certa.
Já trabalhei e ainda presto serviços voltados à assessoria de imprensa empresarial. Nas empresas, é preciso um grande trabalho para conseguir espaço espontâneo em um veículo de comunicação. Já com o futebol é diferente, pois os veículos precisam de boa quantidade de material diário para fechar seus conteúdos. Os jornais de Belo Horizonte, por exemplo, costumam separar pelo menos uma página para notícias sobre Atlético e Cruzeiro. Ou seja, os releases –
Revista Ponto & Vírgula — setembro de 2013
desde que bem feitos – são muito bem-vindos pela imprensa e quase sempre são publicados.
E em relação às demais modalidades esportivas, além do futebol, qual é a demanda existente e a perspectiva de se trabalhar com elas? De forma geral, a procura da mídia pelo esporte especializado não costuma ser tão grande, exceto nos momentos decisivos das principais competições. Enquanto os assessores de imprensa dos clubes de futebol precisam apenas intermediar a intensa procura dos jornalistas, os assessores de outras modalidades como vôlei, basquete, tênis, futsal e natação, entre outras, precisam sempre oferecer aos veículos de comunicação releases e sugestões de pauta interessantes, suprindo de material as editorias de esporte especializado. Se por um lado são modalidades que exigem mais empenho por parte do assessor, por outro lado essa mediação facilita a sedimentação da imagem que se quer divulgar a respeito do clube ou atleta.
Você atualmente presta serviço de assessoria de imprensa particular a atletas que atuam em diferentes estados e até fora do país. Como é trabalhar com esse segmento? Hoje temos em nosso quadro de clientes jogadores que atuam em Minas Gerais, Rio de Janeiro, São Paulo, Paraná, Bahia, na Europa e até mesmo na China. É um trabalho bem interessante, sendo que cada um tem a sua filosofia de trabalho e a sua demanda. Procuramos manter um contato frequente com o atleta, além de acompanhar todas as notícias que envolvem o cliente, assim como a equipe em que joga no momento. É um tra-
GUSTAVO FARIA
Chegar a integrar a Seleção Brasileira e a conquistar títulos e/ou medalhas olímpicas, mesmo nos esportes individuais, é sempre o resultado de um trabalho de equipe, que envolve preparadores físicos, técnicos, assessores de imprensa, profissionais de marketing, entre outros. Como a assessoria particular é percebida pelos atletas, como um trabalho coadjuvante ou potencializador de todos os demais? Eu sempre digo aos atletas que o sucesso profissional deles está relacionado ao mérito individual e ao desempenho de cada um dentro de campo, mas que o trabalho fora das quatro linhas os ajuda a ter projeção e a mantê-los em evidência, além de potencializar o sucesso que eles possam alcançar. Sabe-se ainda o quanto a opinião da imprensa – e consequentemente da torcida – é fundamental para ajudá-los a chegar ao topo e a alcançar o sucesso desejado. Assim, fica evidente a importância de um bom trabalho de imagem, feito a partir da necessidade de cada atleta e de acordo com seu perfil, seu clube atual, entre outros aspectos a serem considerados. Um exemplo a ser citado como vitrine de um bom trabalho de assessoria de imprensa é o desenvolvido com o zagueiro Réver, do Atlético, que hoje integra a Seleção Brasileira na Copa das Confederações. Ele não só tem a imagem de um excelente jogador, como também a de um líder e um atleta modelo.
Em tempos de total conectividade via web, como você utiliza as novas ferramentas e tecnologias da comunicação em seu trabalho? As mídias digitais são ferramentas imprescindíveis hoje para o crescimento de todo negócio. Ter um site oficial, por exemplo, é fundamental para todo atleta que está em uma grande equipe.
“
O assessor de imprensa particular tem a função de ser o elo entre o atleta e a mídia. Ele deve interagir com a assessoria do clube, respeitando a sua hierarquia.
vídeo com os melhores momentos da carreira assistido por um clube grego que, depois disso, fez uma proposta oficial para contratá-lo. Familiares e amigos dos jogadores também podem acompanhar a vida profissional do atleta, especialmente quando ele está fora do país. Todos os sites em que trabalhamos são bem atualizados, com fotos e vídeos de todos os jogos. Além do site oficial, as redes sociais também servem para aproximar os jogadores da torcida, o que é bom para a carreira de todo desportista.
Como você avalia o mercado de assessoria de imprensa esportiva em Belo Horizonte?
“
balho exaustivo, mas prazeroso. Entre as principais funções, que variam de atleta para atleta, atualizamos sites oficiais, enviamos releases para a imprensa e marcamos entrevistas exclusivas.
Ele é o espaço oficial de informação do jogador. Se está ali, é oficial. E por ter credibilidade, a página atende a vários objetivos. Os torcedores podem acompanhar ali as diversas informações do jogador, como notícias, fotos, vídeos, curiosidades, promoções, entre outras novidades. A imprensa também pode ter acesso às notícias, que podem servir como sugestões de pauta, e se atualizar em relação às estatísticas e dados do jogador. O site pode até mesmo servir como uma vitrine profissional para o atleta. Temos um caso de um cliente que teve seu
- ENTREVISTA
É um trabalho que vem ganhando notoriedade. Muitos veículos já usam nosso trabalho com frequência e sabem que podem contar conosco. Outros preferem trabalhar sem o nosso intermédio. Nossa função é ser o elo entre a imprensa e o cliente, mas sempre atendendo aos interesses dos atletas. Tentamos fazer este “meio de campo” da melhor maneira possível. O mercado, no entanto, precisa crescer mais e expandir a sua demanda para outras modalidades esportivas, além do futebol.
Em sua opinião, o fato de o Brasil sediar grandes eventos esportivos mundiais traz oportunidades a jornalistas recém-formados? Acredito que sim, já que esses eventos impulsionam o esporte de forma geral e favorecem, sob vários aspectos, aqueles que direta ou indiretamente estejam ligados ao segmento. A tendência é serem criadas mais vagas nos veículos de comunicação, para a sua cobertura, além de outras oportunidades que possam ser exploradas, daqui pra frente
Revista Ponto & Vírgula — setembro de 2013
23
reportagem
kAtZ: eNtRe O pRecONceitO e A pátRiA Soldado argentino foi torturado durante a Guerra das Malvinas por seu próprio regimento
Cíntia Dabés Passaram-se 22 anos para que Silvio Katz começasse a falar sobre o que aconteceu com ele nas Malvinas, as distantes ilhas que tocam com a ponta dos dedos o fim do mundo. Ele justifica esse tempo de silêncio por ter voltado da guerra a um país “em regime ditatorial”, que
24
o “proibia de dizer qualquer coisa”. Foi nesse ambiente repressor e cinza que o garoto de 19 anos enfrentou a sua mais difícil batalha: a de superar o que vivenciou nas Ilhas, uma luta dele consigo mesmo. A repressão não era situação estranha para Katz. “Meu pai tinha es-
Revista Ponto & Vírgula — setembro de 2013
capado [dos nazistas] na Alemanha na época da Segunda Guerra. Era um homem muito calado e nunca quis comentar sobre o assunto. Minha mãe então pensou que o melhor a fazer em relação a mim era não falar sobre o que aconteceu comigo nas Malvinas”, conta.
Fotos: Cintia Dabes
Silvio Katz com suas medalhas e lembranças da Guerra.
Foto: Hernan Dobry
Revista Ponto & Vírgula — setembro de 2013
25
reportagem - tortura Depois que voltou das Ilhas para a Argentina- sua terra natal- não se comportava como um adolescente que tinha toda uma vida para viver e um mundo ainda por descobrir. Segundo ele, depois do que aconteceu não
conseguia nem trabalhar, “destruíram-me psicologicamente”. Não tendo com quem compartilhar os sentimentos, as tristezas e as dores de seus traumas, tornou-se fechado, não queria mais sair, conversar com outras pessoas e não sorria mais. Flertava constantemente com a ideia do suicídio, a possibilidade de fazer desaparecer todas as emoções tóxicas e aquele vitríolo que envenenava sua alma de uma vez só. “Pus uma arma na boca depois de seis dias que estava de volta [a Buenos Aires]” -comenta com naturalidade similar à de quem conta que quase bateu o carro no dia anterior – “só não atirei porque percebi que estava chorando. Então pensei: ‘se estou chorando é porque não quero morrer’.
Silvio Katz (segundo à direita) aos 19 anos, nas Ilhas Malvinas com seus colegas de regimento em 1982
Juventude perdida No ano de 1982, o então adolescente Silvio Katz sempre ia aos jogos de futebol, encontrava seus amigos, adorava sair para dançar e era “completamente feliz”. O jovem de 19 anos tinha uma vida social bastante ativa, gostava de jogar pelada e se divertia sempre que podia. Mas esse mundo, antes tão colorido, estava prestes a mudar, e muito. Quinze dias antes de sua baixa no serviço militar, foi mandado à base aérea de El Palomar, onde lhe deram um fuzil e o colocaram, juntamente com os companheiros que serviam com ele, em um avião sem assentos. Sem saber para onde estava sendo levado, viajou usando
26
uma roupa leve de verão e, antes de embarcar, tinha acabado de se inteirar de que a Argentina tinha recuperado a posse das Ilhas Malvinas. Na manhã ensolarada do dia 11 de abril de 1982, Silvio Katz chegou às Malvinas junto com seus colegas do Regimento de Infantaria Mecanizada 3 (RIMec 3), de La Tablada ficou horrorizado, juntamente com seus companheiros, por se encontrar em meio a uma zona de combate sem ter tido preparação nenhuma para a guerra. A partir desse dia, passou a ser soldado das Forças Armadas Argentinas na guerra contra os britânicos pela posse das Ilhas. O maior inimigo, como mais tarde descobriu, não estava atrás das linhas inglesas, mas sim, mais perto do que imaginava.
Revista Ponto & Vírgula — setembro de 2013
“Pus uma arma na boca depois de seis dias que estava de volta [a Buenos Aires], só não atirei porque percebi que estava chorando. Então pensei: ‘se estou chorando é porque não quero morrer’”. O espinho das Flores Assim como seus companheiros do La Tablada, Silvio estava tendo grandes dificuldades em se acostumar com a baixa temperatura do outono austral que predominava nas Ilhas naquela época do ano. Localizada no extremo sul do hemisfério sul do planeta, as Malvinas têm um clima quase polar por sua proximidade à Antártida. O corpo de Katz doía e suas extremidades congelavam por ficar o dia inteiro na trincheira do campo de batalha,
Fotos: Arquivo Pessoal de Silvio Katz
tortura esperando o desembarque dos ingleses para o ataque. Foi nesse lugar e nessas condições que Katz conheceu Eduardo Flores Ardoino. Katz é um nome judeu e, apesar de nunca ter sido muito religioso, a cultura judaica faz parte de quem ele é, de onde veio e de sua família. Ele explica que a Argentina dos anos 1980 era bastante “nazi” e, no exército, isso era ainda mais As Ilhas Malvinas são consideradas um arquipélago e são constituídas de duas ilhas principais: Grande Malvina (Falkland Ocidental) e Soledad (Falkland Oriental). Têm uma área de 12 173 quilômetros quadrados e possuem cerca de 2 mil habitantes. Sua capital é Stanley, anteriormente chamada de Port Stanley.
Localização das Malvinas no globo
Fotos: The Journey/Flickr
pronunciado. Ardoino, subtenente do exército argentino, era um exemplo disso. Sabendo de sua herança semita, o superior de Katz o marcou assim que leu seu sobrenome na lista de soldados de seu regimento. “Me castigou todos o dias [na Guerra] por ser judeu”, contou. Eduardo Flores Ardoino foi procurado pela reportagem para comentar as acusações e não respondeu a nenhuma das inúmeras tentativas de contato.
Inferno
reportagem
O que foi a Guerra das Malvinas? Também conhecida como Guerra do Atlântico Sul ou “Falkland War” - em inglês - foi um combate armado entre o Reino Unido e a República Argentina nas ilhas malvinenses Géorgia do Sul e Sandwich do Sul, ocorrido de 2 de abril a 14 de junho de 1982. A Guerra se deu pela disputa da soberania das Malvinas, território que foi conquistado pelos ingleses em 1833 e dominado por eles desde então. Morreram quase 400 combatentes argentinos e pouco mais de 250 britânicos no conflito. Na Argentina, a derrota na Guerra ajudou a queda da ditadura da Junta Militar. Já no Reino Unido, o êxito no combate garantiu a então primeira-ministra Margareth Thatcher outra vitória nas eleições de 1983.
“Congelava as minhas mãos na água, jogava fezes em meu prato e me fazia buscar a comida com a boca”, acusava Katz. O veterano ainda afirmou que sofria abusos verbais constantemente e que Ardoino dizia que “todos os judeus são covardes” e que seu povo “matou a Deus”. “[Ardoino] gostava de me ver sofrer e isso o fazia feliz. Ele ainda falava aos outros soldados que aconteceria o mesmo a eles se estes também fossem judeus como eu”, recorda. O excombatente relembra que, durante a guerra “os militares torturavam a todos os soldados” mas que, por ser judeu, os maus tratos que recebia eram ainda piores. Além de o fazer comer fezes e ficar com as mãos submersas em um
lago com água congelada por cerca de vinte minutos, o subtenente obrigou a todos os soldados de seu regimento a urinarem nele. Nessa situação, seus membros estavam estirados em quatro estacas, seu corpo, a um palmo do chão, usando somente suas roupas de baixo na temperatura quase polar das Ilhas. Por medo de serem punidos da mesma maneira e intensidade com que os militares castigavam a Katz, seus companheiros de regimento não o ajudavam. Segundo relato do ex-soldado, a tortura física também era sofrida de outras formas: “Tinham dias que [os oficiais] não me davam comida (...). Tenho mais de quarenta testemunhas que provam que Ardoino quis que eu morresse (...), tentou me matar de frio e de fome”, acrescenta. Nas raras ocasiões em que Katz e seus companheiros soldados tinham algum tempo de folga, não se perdiam em devaneios sobre os prazeres que tinham deixado para trás, em seu país, a quilômetros de distância. Estavam em modo de sobrevivência,
Revista Ponto & Vírgula — setembro de 2013
27
reportagem - tortura o que implicava que só falavam de comida: “Não nos importavam mais as mulheres ou o futebol, somente queríamos comer”, comentou. Além da tortura física e psicológica, das humilhações e da privação não só de dignidade, mas também de algumas condições básicas de sobrevivência, Katz, assim como os soldados, passava noites inteiras em claro por causa dos estrondos das bombas. “Quando parecia que íamos entrar em combate, [Ardoino] pegava uma garrafa de whisky, nos colocava enfileirados e dava aos soldados uma dose, para manter o calor no corpo. Quando chegava a minha vez, dizia: ‘você não porque irão te matar’.” Com essa “cerimônia” de humilhação, Katz ia para o campo de batalha, sem mais esperança de voltar, de se alimentar, de viver dignamente e muito menos de ser feliz novamente. Ele relembra que, após o ocorrido, chegou a pensar que “realmente era melhor morrer, que talvez esse poderia ser o dia”.
Um amigo inesperado Já no final da Guerra, a tropa de Katz foi capturada pelos britânicos. O que parecia ser o golpe final do destino na história do jovem soldado revelou-se uma surpresa agradável. O veterano recorda que, após o fato, os soldados rasos foram separados dos oficiais de patente mais alta. “Os ingleses nos colocaram em um galpão com toda a comida que era para os oficiais [do exército argentino]. Os que estavam do lado ‘inimigo’ me deram comida, assistência médica e me trataram como se fosse um deles”. De acordo com o ex-combatente, o verdadeiro inimigo, em meio à fome e ao frio, eram os oficiais argentinos. Ele fala que, apesar de não estar de acordo com as políticas de Margareth
28
“Congelava as minhas mãos na água,
jogava fezes em meu prato e
me fazia buscar a comida com a boca” Thatcher (primeira-ministra britânica na época), respeita os soldados britânicos, principalmente por terem tratado a ele e aos outros soldados de sua tropa “como seres humanos, com dignidade e respeito”, mesmo sendo seus prisioneiros após o fim da Guerra. Contou que, durante o tempo de prisão com os britânicos, ele e seus colegas aproveitaram-se das circunstâncias e local do cativeiro. Nunca comeram tanto, passavam o dia jogando baralho e fazendo uso do es-
toque de bebidas e cigarros que deveria ser destinado aos militares do exército argentino. Logo foram enviados de volta a Buenos Aires. Não foi direto para a casa de sua mãe, como imaginava, em vez disso, foi levado pelo Exército, juntamente com os outros soldados, ao Hospital Militar da cidade. Lá, conta ele, os oficiais queriam “engordar” os soldados, pois a grande maioria estava muito abaixo do peso e outros até com anorexia. Isso foi causado pela privação de comida e, quando finalmente iriam fazer uma “refeição” , essa vinha em pouca quantidade. Apesar de seus últimos dias nas Malvinas, deleitando-se no estoque militar de comida, Katz ainda estava subnutrido e magro. Ficou internado cerca de um mês no Hospital Militar até ganhar uma aparência saudável. O veterano afirma que os militares não tomaram essa atitude porque estavam preocupados com a saúde dos soldados, “nos internaram para que as pessoas não vissem como o exército realmente nos tratou, o que fizeram conosco,
Soldados argentinos após serem capturados pelos britânicos no final da Guerra
Revista Ponto & Vírgula — setembro de 2013
Fotos: Wikipedia Commons
tortura como voltamos de lá”, observa. Ele conta que, quando sua mãe foi visitá-lo no hospital, ela não o reconheceu de tão magro que estava. Ele afirma que todo soldado que saía do hospital era coagido a assinar um termo de compromisso dizendo que qualquer problema físico ou psicológico que ele pudesse ter no futuro não era de responsabilidade das Forças Armadas. Quando deram alta a Katz e lhe entregaram o papel, este se recusou a aceitar os termos. “Falei: ‘não vou assinar nada!’. Depois disso, me disseram que não iriam me deixar sair do hospital até que eu assinasse. Me prenderam lá por dez dias, depois desistiram e me liberaram”. Algumas semanas depois, o exsoldado já estava na casa de sua mãe e os oficiais o foram procurar mas, por sorte, este não estava. Após o incidente, nunca mais o incomodaram. Porém, o medo, os pesadelos, os traumas e todas as outras sequelas do que viveu continuavam com ele, sempre presentes.
Corpo sem alma “Quando voltei a Buenos Aires, o jovem Sílvio Katz morreu”, assegurou. Segundo o veterano, lhe “incendiaram etapas”: “antes da Guerra tinha 19 anos. Quando voltei, meses depois, me sentia como um homem de mais de 30.” Depois de ver mais de cinquenta colegas morrerem nas batalhas, e com tudo que vivenciou, ouviu, sofreu e tentou inutilmente esquecer, o ex-soldado se tornou uma espécie de fantasma. Seus amigos de outrora o chamavam para sair `a noite para dançar, mas em vez de aceitar e ir com um sorriso no rosto e se divertir como sempre fazia, recusava enquanto vinha o pensamento: “Que sair para dançar, que nada! Isso é coisa de moleque!”. Silvio também falou que não tinha condições emocionais para jogar pelada com os amigos e evitava situações
reportagem
A bandeira das Ilhas Malvinas possui referência à bandeira do Reino Unido e os dizeres: “Desire the right”, que traduz para “deseje o correto”
de convívio social. Entrou em depressão, pensava em tirar a própria vida e voltavase para a comida em uma tentativa de frear sua ansiedade. Vivia com medo dos militares o perseguirem, de irem até sua casa tirar-lhe de seu ambiente seguro e torturá-lo novamente. Não conseguia dormir à noite, assombrado pelos pesadelos de amigos mortos, momentos de maus tratos e o rosto de seu subtenente – misturando delírio a memórias reais.“Depois que voltei, levei mais de seis meses para rir com vontade, mas até hoje me sinto incomodado quando estou no meio de multidões.” As sequelas físicas também não foram poucas: dentre elas, a quase perda dos dedos dos pés e das mãos e uma pneumonia muito forte que - em seu caso, foi causada por desnutrição, baixa imunidade e peso poderia tê-lo matado.
“(...) antes da Guerra tinha 19 anos. Quando voltei, meses depois, me sentia como um homem de mais de 30.”
Esperança e retorno Após 22 anos, Sílvio Katz finalmente contou sua experiência. Hoje, após mais de três décadas da Guerra das Malvinas, fala sobre o que aconteceu como se não fosse nada, apenas algo natural. “Nos últimos anos, já contei o que aconteceu comigo tantas vezes que nem sinto nada mais. As primeiras vezes que
Revista Ponto & Vírgula — setembro de 2013
29
reportagem - tortura me abri, no entanto, era um baque muito forte e chorava muito”, revelou. Ele ainda conta que, quando começou a dividir suas experiências, tentou reprimir por mais de vinte anos, era como se estivesse revivendo toda a história. Ele afirma que quem o ajudou a desabafar foram sua esposa, Verónica Moreno, e o amigo jornalista e autor, Hernan Dobry. Fala ainda que quer ser um pai aberto e carinhoso, diferente do seu, para seus dois fi-
lhos, que tiveram um grande papel em sua recuperação. “Depois que comecei a falar, não parei mais”, brincou. Katz já deu entrevista para vários jornais, revistas e programas de televisão, tanto argentinos quanto estrangeiros. Ele também colaborou para o livro de Dobry, Los Rabinos de Malvinas (Os Rabinos das Malvinas), em que estão inseridas outras histórias de tortura similares às suas na Guerra, sofridas por outros soldados judeus. A reportagem tentou entrevistar outros soldados que passaram pela mesma situação na época, mas, com exceção de Katz, não quiseram dar entrevistas. Já faz algum tempo que o ex-soldado vai a sessões de terapia pagas pelo Exército, juntamente com muitos dos que fazem parte da associação dos veteranos das Malvinas – direito concedido depois de muita insistência, de acordo com ele. As sessões com terapeutas, sua família e seu retorno às Ilhas em 2001 foram, e ainda são, motivação para se sentirse melhor.
Silvio Katz
Há 12 anos, depois de abrir um maço de cigarros, Katz se deu conta de que tinha uma mensagem lá dentro. Depois de lê-la, não acreditou: estava escrito que tinha ganhado a promoção da marca e que tinha direito ou a uma soma em dinheiro ou a uma viagem com acompanhante às Malvinas. O ex-combatente escolheu revisitar as Ilhas com sua esposa e substituir os traumas que viveu na região por boas lembranças. Quanto ao seu torturador, o veterano não expressa o desejo de pro-
Linha do tempo do O jornalista, escritor e professor Hernan Dobry O navegador inglês John Davis fez o primeiro registro das ilhas.
1690
John Strong, outro inglês, batiza as ilhas com o sobrenome do tesoureiro da Marinha Real inglesa, o Visconde Falkland.
1592 30
Franceses instalam uma colônia em Port Louis, no leste.
1764
Revista Ponto & Vírgula — setembro de 2013
Os britânicos são expulsos das ilhas pelos espanhóis.
1766 Franceses são expulsos das ilhas pelos espanhóis.
1770 Fotos: Hernan Dobrytos
tortura Os Rabinos das Malvinas Escrito pelo jornalista e professor da Universidad de Palermo Hernan Dobry, o livro Los Rabinos de Malvinas (ainda sem tradução para o português) conta a história de cinco rabinos que foram servir como capelães, no período da Guerra das Malvinas, nas tropas na Patagônia e nas Ilhas– dispondo os sacerdotes católicos desse título pela primeira e única vez na história argentina. O livro também conta a história de Sílvio Katz e de vários outros soldados judeus que lutaram na guerra e sofreram maus tratos de seus superiores por antissemitismo.
- reportagem
curá-lo ou pedir alguma explicação a ele. De acordo com Katz, há um processo contra Ardoino tramitando no tribunal de cassação. “Até chegar à Suprema Corte eu não desisto da causa e mesmo se o absolverem, estarei em paz comigo mesmo, pois fiz tudo que pude”.
Visões políticas “As Malvinas são argentinas!”, ecoava a frase tão dita e difundida em seu país. Para ele, o território das Ilhas vai sempre pertencer `a Argentina por direito. Em relação a recém-falecida exprimeira ministra britânica Margareth Thatcher, Katz é irredutível: “Não desejo a morte a ninguém, mas gostaria que [ela] tivesse continuado viva e consciente, sendo julgada pelo Tribunal Internacional por seus crimes de guerra. Uma morte salva muitas vezes o criminoso de seu castigo.”
Margareth Thatcher, primeira-ministra da Inglaterra que foi uma das principais figuras na Guerra das Malvinas
Capa do livro Los Rabinos de Malvinas
conflito 1811 Após lutas de independência na América do Sul, os espanhóis abandonam as Malvinas.
Já independente, a Argentina envia colonos ao local.
1833 1827
Fotos: Wikimedia Commons/ Chris Collins
Os britânicos colonizam as Malvinas.
A ONU chama representantes do Reino Unido e da Argentina em sua sede para tentar resolver o conflito pacificamente.
1965
1982
Margareth Thatcher é reeleita como primeira ministra por sua vitória nas Malvinas e Raúl Alfonsín assume o poder na Argentina, o primeiro presidente civil após a ditadura militar, que se enfraqueceu após a derrota na Guerra.
Ano da Guerra das Malvinas, que começou dia 2 de abril e terminou dia 14 de junho com a vitória dos britânicos.
Revista Ponto & Vírgula — setembro de 2013
1983 31
relatos
Minha vida antes e depois de Laura Por Mariana Chacon Naddeo
Trocar a vida de adolescente pela de mãe não é uma decisão fácil, mas Mariana encarou o desafio e conta como superou as dificuldades, descobrindo a alegria em sua nova família 32
Revista Ponto & Vírgula — setembro de 2013
Fotos: Mariana Chacon Naddeo
relatos
Com quase 21 anos e, apesar da pouca idade, já vi e vivi muito. Sei que ainda tenho muito pela frente, mas as circunstâncias da vida me fizeram crescer um pouco mais rápido que o habitual. Há 9 meses precisei deixar para trás minha adolescência de festas, bebidas e boates para dar lugar a uma vida de mãe e, acreditem ou não, foi a melhor coisa que já me aconteceu e eu não trocaria isso por nada. Ao descobrir a gravidez, senti tanto o peso de uma vida em minhas mãos como também o olhar de preconceito e desconfiança das pessoas,
além de um misto de apreensão e alegria. Foram momentos difíceis, que me fizeram dar valor às pessoas que vivem ao meu lado e que realmente querem o meu bem. Ao mesmo tempo, percebi também as inúmeras mudanças físicas e psicológicas às quais fui submetida. Cresci em um mundo em que os avanços tecnológicos ocorreram muito rapidamente e que geraram mudanças também nas pessoas. Acompanhei o lançamento do primeiro celular; a televisão a cabo; o começo da internet, o primeiro no-
tebook, os inúmeros Iphones, Ipods e Ipads. Além disso, fui capaz de ver imagens da Lua, de Marte e de milhões de estrelas da nossa galáxia com uma tecnologia antes desconhecida. Vi noticias também do primeiro clone de animais e até sobre o primeiro transplante facial. Porém, percebi que o capitalismo, os avanços e a globalização fizeram com que o mundo se aproximasse em alguns aspectos, mas que tal proximidade não trouxe apenas mudanças positivas sobre as pessoas. A competição e o egoísmo parecem tomar conta das
Revista Ponto & Vírgula — setembro de 2013
33
relatos
relações, os sentimentos bons e a pureza do ser humano hoje são mais difíceis de ser encontrados. Pensando sobre isso, lembro-me da minha infância, período que, a meu ver, é o de maior pureza e inocência – seria bom se isso não se perdesse pelos anos. Passei a maior parte dela com a minha avó, pois, quando nasci, minha mãe tinha apenas 20 anos, já estava casada há 2, mas ainda fazia faculdade e meu pai trabalhava. Portanto, eu frequentava muito com a vovó seus encontros de tricô e reza na Igreja, junto com suas amigas. Eram tantas
34
comidas, cheiros e sons que até hoje guardo em minha memória. Aos dois anos, entrei em uma creche e lá fiz a minha amiga mais antiga. Mesmo com o passar do tempo e a mudança de escola, ela se tornou como uma irmã e fez parte dos meus melhores momentos até hoje. Tive uma infância extremamente feliz. A maior parte dos meus fins de semana quando pequena foi passado no sítio da minha família. Nos outros, ficávamos em casa ou saíamos para passear. Mudamos de casa cinco vezes. Sempre que íamos nos mudar eu odiava a
Revista Ponto & Vírgula — setembro de 2013
ideia, mas logo me acostumava com a nova casa. Mudei de escola, conheci novas pessoas, fiz novos amigos. E o tempo foi passando. Em 2001 assistia a televisão quando o desenho que passava foi interrompido pela famoso gingle de “urgência” da Rede Globo . Assistimos aviões atingindo, ao vivo, sem entender exatamente o que estava acontecendo os dois maiores prédios de Nova York. Naquele momento, fui despertada por uma imensa vontade de saber mais sobre o que estava acontecendo, o que motivou aquilo. Acredito que curiosidade faz parte de qualquer criança e fui criando um hábito de querer saber sempre mais, de procurar as informações. Me apaixonei perdidamente pela história do mundo. Minha grande paixão por volta dos 10 anos, era o Egito. Amava tudo sobre aquele mundo antigo e incrível. O meu grande sonho era ser egiptóloga, morar no Egito, desvendar todos os segredos que ainda deveriam ser descobertos, poder entrar em lugares restritos. Sempre quis frequentar os lugares que ninguém mais podia. Entrar nas portas trancadas de igrejas famosas, andar dentro das pirâmides onde era permitido apenas funcionários, entrar no Vaticano onde guardavam documentos importantes. Minha adolescência foi movida a história e isso me diferenciava dos outros com a mesma idade, todos estavam preocupados com outras coisas enquanto eu admirava e buscava entender o mundo em que vivemos. Passei minha adolescência tendo convicção de que seria historiadoraegiptóloga. Dizia isso e todos riam. “Mas você vai fazer história? Ninguém ganha dinheiro com isso”, era o que muitos me diziam. Com o passar do tempo, minha vontade continuou intacta mas se distanciou da história egípcia e passou a explorar o mundo atual. Comecei a me interessar imensamente por política. Passei a explorar a história do resto do mundo e a me
relatos
interessar por política. Meu pai sempre foi muito politizado e interessado, e foi ele quem me ensinou muito do que eu sei hoje. Comecei então a me intrometer em discussões sobre partidos, eleições e por muitas vezes briguei com professores. Me tornei também uma antipetista fervorosa, mesmo sem saber muito bem o porquê. Tive alguns namorados, muitas amigas e não saía quase nunca durante o ensino médio. Mesmo já namorando há algum tempo, decidi que gostaria de fazer intercâmbio. Meus pais mais que prontamente apoiaram a ideia e escolhi o meu destino : Itália. Escolhi viver 10 meses de pizza, bruschetta e Berlusconi. Fui escolhida por uma família siciliana, moradores de uma cidade chamada Giardini Naxos, com 7 milhões de habitantes e 5km², com duas avenidas principais e quase nenhuma loja. Foi nesse ano, 2009, que me tornei consumista ao extremo e consegui engordar 10 kg. Os
Filippello foram incríveis e me acolheram como uma verdadeira filha, apesar de existir uma grande pressão para que eu namorasse o filho do meio. A pressão me venceu e no começo de 2010, embarquei na minha primeira “fidanzata ufficialmente con Francesco”(relacionamento sério com Francesco). O que acreditem, para alguns pode ser considerado um erro, mas eu não me arrependo nem um pouco. Acabei mudando de família, mas pude viver ao máximo a cultura italiana e presenciei também o grande escândalo de “Berlusconi e le sue ragazze” (Berlusconi e as suas garotas), em uma saga incrível de sexo, orgia e dinheiro público. Esse tempo na Itália me fez crescer como nunca e aproveitei a vida como nunca antes. Fui encontrada bêbada na praça da Igreja, ganhei uma pichação de um namorado italiano no pátio da escola, fui adorada por uma família que me acolheu incrivelmente bem, fiz muitas compras, viajei de trem sozinha, me encantei com o vulcão Etna
sendo a vista do meu quarto e adorava ir pra varanda da casa observar o mar e a cidade de Taormina ao fundo. Mas, como tudo na vida acaba, voltei a minha realidade determinada a me tornar economista. Quando retornei ao Brasil, com alguns quilos a mais e extremamente bronzeada, todos os meus amigos tentavam me convencer a não escolher a carreira de economista. Estava muito cheia de mim para escutar o que todos diziam e, no fim de 2010, fui aprovada no vestibular do Ibmec, uma das faculdades mais difíceis e caras de Belo Horizonte e já no primeiro dia de aula percebi que estudar lá significava esforço e dedicação. Com 18 anos e acesso liberado a boates e bebidas, a última coisa que eu e meus amigos pensávamos era em ficar em casa estudando. Nessas saídas comecei a me interessar muito por um colega de sala, fiquei tão fascinada pela maneira como ele simplesmente me ignorava, que me apaixonei e passei meses tentando conquistá-lo. Até que
Revista Ponto & Vírgula — setembro de 2013
35
relatos consegui e foi muito melhor do que eu esperava. No dia 11 de outubro, uma bomba caiu sobre nós com o nome de Laura. Descobri nesse dia que estava grávida e é impossível transcrever o que senti naquele momento. Ao mesmo tempo, consegui ir de um extremo a outro, senti uma imensa felicidade e ao mesmo tempo tristeza. Mesmo com tudo contra nós, nossas famílias nos apoiaram e nós nos unimos. Foram nove meses complicados e maravilhosos, não foi nada fácil carregar o peso de ser mãe tão nova e as pessoas que não conheciam minha história nem mesmo os meus sentimentos julgavam e me olhavam com desdém. Foram várias as vezes que cheguei em casa aos prantos, querendo me esconder para sempre no quarto e evitar todos os olhares e comentários. Ninguém entendia como uma menina de 19 anos poderia sentir alegria por estar grávida. Mas no dia 22 de junho de 2012 nasceu o meu grande presente e todo o resto perdeu importância.
36
O nascimento da minha filha fez com que eu olhasse a vida com outros olhos. Percebi o quão era infeliz estudando ciências econômicas e não poderia ensinar minha filha a realizar seus sonhos e felicidades se eu mesma não me sentisse realizada. Foi então que abandonei o curso de economia e fui atrás do que eu sempre gostei, mas fugi por muito tempo. O curso de jornalismo era perfeito para tudo aquilo que eu pretendia fazer na vida e não imaginava como. Sempre quis fazer justiça, mostrar a verdade ás pessoas e presenciar fatos incríveis. A única maneira de unir tudo isso era sendo jornalista. E hoje, sigo o meu sonho e sei que escolhi o caminho certo. Olhando para trás, percebo que tudo o que fiz e vivi faz parte de quem sou hoje e da vida que tenho. Sei o que quero, entendo minhas convicções e tenho algumas ideologias formadas. Não tenho a ilusão nem a pretensão de ser a próxima Fátima Bernardes do jornalismo, escolhi essa
Revista Ponto & Vírgula — setembro de 2013
profissão porque acredito que temos o poder de levar informação e abrir os olhos das pessoas. Hoje consigo lutar por aquilo que sou contra e também pelo que acredito. Considero incrível a oportunidade de enxergar as coisas com outra visão, identificar o que é relevante ou não. Me emocionei com o Papa Francisco sendo eleito, me revoltei com a eleição da Dilma, vibrei com a morte de Osama Bin Laden, assim como me indignei com o massacre de crianças em Realego e chorei de alegria com o resgate dos mineiros chilenos presos em uma mina. Tudo o que acontece em nossa volta nos afeta de alguma forma, nos faz dar valor á vida e ás pessoas que temos ao redor. Tudo aquilo que acontece no mundo nos influencia e mesmo que de imediato não percebamos, muda de alguma forma quem somos. Sou completa por ser quem sou e por ter escolhido todos os caminhos, que hoje me trouxeram a escrever esse texto sobre a minha vida
em destaque - álvaro castro
Na Produção de conteúdo online
Por Raquel Couto
Álvaro Castro é jornalista, mas, quando criança, segundo lhe contam, sua grande vontade era ser professor. Ele brincava de dar aula para seus bonecos e nem imaginava ser Jornalista. Antes do curso de Comunicação, Álvaro estudou História na UFMG, mas não chegou a se formar. Ele tem uma irmã jornalista, mas afirma que não veio dela a influência para a nova profissão. Curioso, sempre gostou de ler muita notícia e hoje, não é apenas consumidor, mas também produtor de conteúdo. Formado, desde 2008, o ex-aluno da FUMEC é atualmente repórter do Portal de Notícias do jornal Hoje em Dia e se tornou referência para os estudantes. 38
Revista Ponto & Vírgula — setembro de 2013
Fotos: Raquel Couto
Álvaro castro
- em Destaque
uma ex-aluna da Fumec. Eu enviei o currículo, fui entrevistado e aprovado como treinee. Fui efetivado como repórter e, um mês depois de ser efetivado, fui convidado para participar de um processo seletivo para assessor de comunicação do Conselho Regional de Psicologia de Minas Gerais. Eu participei e fui aprovado na seleção e topei o desafio dessa nova experiência. Após alguns meses, o Hoje em Dia me convidou para voltar e eu achei por bem retornar ao Hoje em Dia.
Jornalismo ou assessoria? O que mais te atraia?
Como surgiu a opção pelo curso de jornalismo? Eu gosto muito do futebol, uma coisa que me puxou muito pro Jornalismo foi querer escrever, falar, debater futebol. Eu saí do curso de História e em um processo de orientação vocacional e dentre as opções do psicólogo que me entrevistou, estava comunicação.
Qual foi sua primeira matéria publicada? Qual teve maior importância para você ao longo da sua formação profissional? Minha primeira matéria publicada foi uma chamada para o jogo amistoso entre Cruzeiro e América em 2008, que foi publicada no site do Cruzeiro. Uma matéria que me deu muito orgulho, bem bacana, foi sobre o blog Estradão Tarados do Busão, um blog com vídeos de pessoas bolinando mulheres dentro de ônibus. E a gente foi atrás dessa história. Conversamos com polícia federal, com a Google... Uma matéria investigativa de que eu gostei muito de fazer.
Quais são as principais características importantes para um jornalista que trabalha com jornalismo on-line? O jornalista de portal não pode se prender a editoria, principalmente quando você não tem uma equipe muito extensa. No jornalismo on line, todo mundo tem que saber fazer um pouco de tudo e acompanhar um pouco de tudo.
Como foi sua trajetória ao longo do curso? Quais experiências você passou durante a formação? E como foi a passagem para o mercado de trabalho? Quando eu entrei na FUMEC, por já ter uma bagagem do curso de História, eu sempre me dediquei e interessei por matérias mais densas como teoria e semiótica. Eu fiz monitorias, fiz estágio no Cruzeiro (sou cruzeirense fanático e conheço muito da história do time), depois fui indicado pelo professor Alexandre Sallum para o Sistema Estadual de Meio Ambiente e fiquei na assessoria deles até eu me formar. No Hoje em Dia, eu entrei por indicação de
Eu gosto muito de ambos. Quando eu saí da imprensa e fui para o outro lado – assessoria - é porque eu realmente gosto muito dessa área. Não deu muito certo minha passagem pelo Conselho, mas é uma área que eu pretendo voltar. Aliás, para os estudantes saberem, a Assessoria de Imprensa é hoje o grande filão de empregos, na qual grande parte dos jornalistas está sendo empregada e com grandes salários.
Jornalista ganha pouco? Como você o mercado? Jornalismo é uma profissão engraçada. Eu li que foi publicada uma pesquisa sobre as profissões que ganham mais e que ganham menos e jornalismo estava nas duas pontas. Nós temos um piso baixo, uma categoria pouco unida, os veículos pagam como querem, mas, na outra ponta, se você observar figuras como os grandes editores, diretores de empresas de comunicação, âncoras de jornais importantes, eles têm os salários muito altos. Então, tem esses dois universos.
Você pensou em algum momento, em mudar de profissão? Não. Agora não. Eu fiz isso quando troquei da História para Jornalismo.
Revista Ponto & Vírgula — setembro de 2013
39
em destaque - álvaro castro O Jornalismo foi o meu porto seguro com relação à formação. Apesar de adorar História como conhecimento, eu não estava satisfeito e feliz. Eu não me via sendo historiador, eu não me via fazendo aquilo. E agora eu não me vejo como outra coisa que não jornalista. Talvez com outras funções no Jornalismo.
Como você se informa? Você tem o hábito de ler revistas e jornais? Eu faço um pouco de tudo. Eu leio jornal impresso e procuro ler vários jornais , eu preciso saber o que os principais jornais do estado estão publicando. Eu sou também um grande consumidor de conteúdo on line. Eu leio notícia o tempo todo, o dia inteiro. Jornalista de web tem que ser uma figura que não pode desligar, pois o mundo muda muito rápido.
Como é sua rotina de trabalho? Eu trabalho em uma redação, em frente ao computador, com um telefone ao lado e vou pouco para rua. Eu saio pouco da redação. Trabalho essencialmente com apuração on-line, com recebimento de email e administração de conteúdo de agências. É uma rotina “sentadinho” mesmo dentro da redação. Essa coisa mais romântica do jornalista que desbrava, que sobe favela, que vai ver a Caatinga e sentir com está a seca, eu ainda não peguei, mas espero ver isso em breve.
Você já cometeu algum erro curioso no trabalho? Todo mundo erra. E jornalista de web erra talvez mais que os outros porque a gente não tem muito tempo para poder esperar, para reler, tem que escrever com mais pressa. Então podese dizer que a gente erra quase todo dia. Mas a gente tem oportunidade de consertar. A internet dá a possibilidade de corrigir o que você fez errado.
40
Qual dica você acha essencial para os estudante de jornalismo que em breve estarão no mercado de trabalho com você? Leiam muito, leiam jornal, leiam mais de um jornal, mais de um site. Procurem se informar. Leiam outras coisas. Não se limitem a ler aquilo que você gosta. Se force a ler coisas mais complexas e densas como literatura, literatura internacional, pois independentemente do veículo ou meio em que você vai trabalhar, o seu principal instrumento de trabalho é a língua e a gente só desenvolve o vocabulário lendo. Não tem outra forma, leiam bastante e aproveitem as matérias teóricas, pois isso faz diferença como profissional. Jornalista não é um técnico, não é um operador. Precisamos ter discernimento, contexto, cuidado com a forma de publicar e tratar um determinado assunto. Muitos estudantes têm um anseio grande pelo contato com a técnica. Mas a técnica você pode aprender em qualquer momento e até em outros cursos. A Universidade é lugar de formação do ser humano, que é algo mais do que um operador. É importante adquirir conteúdo denso para que isso possa pautar sua formação.
Qual sua opinião sobre a obrigatoriedade do diploma para o jornalista? O mercado essencialmente não contrata pessoas sem diploma, pelo menos no chão de fábrica – repórteres e o pessoal que trabalha na reportagem – sempre ou quase sempre, tirando figuras da velha guarda. Na minha opinião, essa questão é polêmica, mas eu acho que é possível ter bons jornalistas que não sejam formandos
Revista Ponto & Vírgula — setembro de 2013
em Jornalismo. A gente viu isso a vida inteira. No passado, grandes figuras do jornalismo jamais passaram por faculdade de Jornalismo. Eram médicos, advogados, escritores, que escreviam para jornal. Se a pessoa tem um bom texto, passa informações de forma clara, tem consciência na hora de apurar e lida com as informações de forma correta com respeito pela informação e pelo leitor, eu acho que não tem necessidade intrínseca que aquela pessoa tenha passado pelo curso de Jornalismo. O diploma é importante, mas a obrigatoriedade não tem necessidade
Bate Bola Revista: Piauí TV: Sensacionalista Portal: Hoje em Dia Rádio: CBN
reportagem
A gOtA d’águA NO cOpO dO pRecONceitO A polêmica em torno da homofobia praticada pelo pastor Marco Feliciano tem sido o pontapé inicial para mudanças na visão sobre a homossexualidade na sociedade brasileira Por Anna Tereza Clementino e Laura Abreu Março de 2011, Twitter do deputado federal Marco Feliciano (PSCSP): “A podridão dos sentimentos homoafetivos leva ao ódio, ao crime, à rejeição”. Tais declarações como a do pastor causaram revolta no meio artístico e impulsionaram alguns famoso a se declararem contra a homofobia e a se colocarem à frente do movimento pró-gay. “O Feliciano é uma benção de Deus. Ele é tão nazista, arcaico e egoísta que enfim estamos acordando para a homofobia e o preconceito. Graças a isso a homofobia daqui a pouco vai acabar, como acabou a escravidão”, ironiza a atriz Letícia Sabatella, em declaração ao site Glamurama. Ainda em meio a desabafos dos famosos, a cantora Daniela Mercury soltou o verbo e declarou seu engajamento em entrevista ao programa Fantástico, da TV Globo: “Estou comunicando uma relação com uma mulher, porque acho natural. E isso vem reforçar essa liberdade de ser como se quer. É a luta fundamental da comunidade de gays e lésbicas. Eu não gosto de rótulos, mas estou nessa luta política, sem dúvida, e sempre estive”.
Nem a legalização do casamento entre pessoas do mesmo sexo, que ocorreu em cinco de maio de 2011, data na qual o Supremo Tribunal Federal (STF), na ocasião do julgamento da ADIn (Ação Direta de Incostitucionalidade) nº 4277 e da ADPF (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental) nº 132, que reconheceu, por unanimidade a união estável homoafetiva em todo território nacional, teve tamanha repercussão e mobilização quanto as frases preconceituosas e homofóbicas do pastor Marco Feliciano. O deputado federal foi nomeado presidente da Comissão de Direitos Humanos e Minorias em março de 2013 e, em vez de defender os homossexuais, acabou atacando-os. Por mais controverso que isso possa parecer, situações como essa de rejeição aos que se relacionam com pessoas do mesmo sexo são recorrentes, porém, há tempos o casamento gay, a aceitação da chamada “opção sexual”, tem sido pauta de conversas e discussões por todos os cantos do país.
Em protesto às atitudes puramente preconceituosas de Feliciano, os cinco deputados que fazem oposição ao parlamentar anunciaram que irão renunciar ao cargo que ocupam na Comissão de Direitos Humanos. Dentre eles está Jean Wyllys (PSOLRJ), defensor fiel da causa homossexual. Os deputados Domingos Dutra (PT-MA), Érika Kokay (PT-DF), Luiza Erundina (PSB-SP) e Chico Alencar (PSOL-RJ) decidiram também, em conjunto, entregar suas vagas. “É melhor a gente fortalecert a Frente Parlamentar em Defesa dos Direitos Humanos, criada em contraponto à Comissão, fortalecer outros espaços que o regimento da Câmara nos garante, do que ficar num ringue permanente na Comissão de Direitos Humanos”, disse Dutra, à Folha.com. Em meio à polêmica que se instaurou em torno do assunto, outros artistas, além de Daniela Mercury e Letícia Sabatella, também tentam usar sua influência na mídia para combater a intolerância, como o ator global Alexandre Nero, 43, que virou um dos nomes mais comentados da in-
Revista Ponto & Vírgula — setembro de 2013
41
reportagem - homofobia ternet após dar uma lição em uma fã que o criticou por se declarar contra o pastor Marco Feliciano. Tudo começou quando o ator se posicionou sobre o assunto em seu Instagram: “Sou ator. Represento o Feliciano, mas o Feliciano não me representa”. A fã, que disse ter amigos gays, respondeu que queria saber como o ator reagiria se estivesse em um restaurante e visse dois homens se beijando. Ela contou ainda ser contra o casamento entre pessoas do mesmo sexo e que Feliciano estaria apenas querendo preservar as famílias ditas tradicionais. Alexandre respondeu que a considerava homofóbica. “Nada mais homofóbico do que ter medo de ver gays por aí beijando na boca e se amando. Você não é amiga dos gays, ou se é, eu que não quero uma amiga assim, que não luta pelo amor de um amigo”, completou. “Eu
tenho amigos gays e luto pelo que eles amam, e não o que eu amo”. O posicionamento do ator teve mais de 6 mil likes e rendeu diversos comentários e compartilhamentos no próprio Instagram e em outras redes sociais. Enquanto o movimento cresce no Brasil, ainda existem aqueles que não concordam e até mesmo não aceitam, como Matheus Mesquita, estudante de Engenharia Civil, de 22 anos, que afirma que a atitude gay em público é o que incomoda. “Os homossexuais têm que ser no mínimo dis-
Alexandre Nero e Daniela Mercury usam a fama para divulgar a causa homossexual
42
Revista Ponto & Vírgula — setembro de 2013
cretos, afinal, a pessoa é diferente do padrão imposto pela sociedade, que é homem se relacionando com mulher e vice-versa”, opina. Em contraponto, o psicólogo Clever Araújo, que atende homossexuais em seu consultório, destaca que qualquer atitude preconceituosa, seja ela em público ou não, pode ser nociva ao bem estar social. “Todos possuem o direito de manifestar seus sentimentos e emoções. O homofóbico é tão perigoso como um bandido ou assassino existente na sociedade”, avalia. O bom convívio, para o psicólogo, é alcançado por meio de um trabalho
homofoBia pessoal e interno de cada um, com o objetivo de atingir a aceitação de todo e qualquer indivíduo considerado “diferente”. “A liberdade de expressão, inclusive a sexual, permite ao ser humano um desenvolvimento mais amplo e evoluído. Ninguém pode ser mensurado socialmente pela sua sexualidade ou o que faz dela, que é uma escolha individual e intransferível”, completa. O que homossexuais e simpatizantes buscam nada mais é que a liberdade de poder ser quem são sem medo de repressão e julgamentos. Uma prova disso é a homossexual assumida, Érika Albuquerque, estudante de Produção Multimídia, de 24 anos, que afirma que até ir ao banheiro público se torna complicado quando se é fora dos padrões. “Passo por preconceitos basicamente todos os dias, no sentido de ficarem me encarando, ou um olhar torto acontece quase sempre. Pra mim, já é normal passar por esse tipo de situação, então se não ofenderam diretamente, eu ignoro. À noite, geralmente, é pior, quando a pessoa preconceituosa está bêbada ou com um grupinho de amigos, as ofensas são bem mais diretas, já apanhei na rua, inclusive”, aponta a estudante. A socióloga Maria Helena Barbosa observa que o Brasil está caminhando para ser um país de direitos iguais para todos. “De uns tempos pra cá, temos observado que as pessoas estão deixando de lado o conservadorismo e adotando posturas de maior tolerância e até mesmo defendendo os homossexuais, coisa que antes era tratada como tabu na sociedade brasileira”. São com essas opiniões, com esses apontamentos, que o Brasil caminha, portanto, para ser uma sociedade cada vez menos preconceituosa e mais aberta às diferenças. O homossexual está ganhando o espaço que é seu por direito, porque, afinal, são todos cidadãos e cidadãos são todos iguais perante a socsociedade
- reportagem
E ainda há quem defenda “Hoje, se tenta eliminar o preconceito contra gays substituindo por um preconceito contra religiosos”, defendeu a ex-senador Marina Silva. Segundo ela, o pastor está em um “jogo de injustiças”, e é uma das vítimas nesta inversão de valores. “Feliciano está sendo mais hostilizado por ser evangélico que por sua declarações equivocadas”, completou, declarando ainda que as afirmações atribuídas a ele são uma fraude.
Letícia Sabatella soltou o verbo contra o pastor Marco Feliciano
Revista Ponto & Vírgula — setembro de 2013
43
reportagem
Domingos Mazzilli com uma de suas obras; artista plástico alinha sua arte a temas que retratam a atualidade e seu universo interior
Da MEDICINA às artes O artista mineiro Domingos Mazzilli Júnior revela como 17 anos dedicados à medicina contribuíram para definir um universo novo nas artes plásticas Por Ana Luisa Altieri
44
Revista Ponto & Vírgula — setembro de 2013
Foto: Cristiano Quintino
mazzilli -
Q
ual o dia mais marcante da sua vida? Você já parou para pensar sobre isso? Então, pare e pense! Para o artista plástico mineiro Domingos Mazzilli Júnior, 50, esse dia foi 02 de março de 2007. Precisamente às 17h30. O médico e então aluno de artes plásticas da Escola Guignard da UEMG se viu diante de um desafio: apresentar um trabalho acadêmico sobre suas férias. Nessa data e horário, levou para a sala de aula o trabalho intitulado “Balas”, em que substituiu as balas de confeito vendidas no semáforo por balas de munição, com o intuito de denunciar a exploração do trabalho infantil, a violência urbana, a miséria e o desemprego que levam centenas de crianças a mendigarem nos sinais de trânsito. “É evidentemente uma ameaça ao futuro: o menino que hoje tem suas balas-confeitos rejeitadas, amanhã, oferecerá balas-munição ao motorista, seja na forma de assalto, bala perdida ou pelo tráfico”, afirma o artista. Segundo Mazzilli, há uma mensagem bem irônica e que reflete uma realidade contemporânea. “Quando eu levei esse trabalho para a sala de aula e a professora Claudia Renault disse: Para mim, isso é arte, isso é para salão, tal fato foi um divisor de águas em minha vida e, posteriormente, fez um grande sentido”. Este trabalho já tinha sido pensado seis meses antes, mas ele se concretizou ali, numa sexta-feira. Mazzilli se diz um antropófago intuitivo. Depois de ter uma ideia instituída, começa a pensar. “Ponho. Componho. Recomponho. Disponho. Ou mesmo bem depois. Só assim eu posso capturar o isso da coisa, aquilo que escapa”, afirma o artista em tex-
Foto: Raquel Couto
to de seu site (www.mazzilli.art.br). Com referências como o Bispo do Rosário, que tem um dia marcado para sua entrada para as artes, e o escritor Fernando Pessoa, que criou um heterônimo em dia específico, Mazzilli diz, com convicção, que há algumas pessoas dentro das artes plásticas e da literatura que tem o seu dia, considerado um corte, um rito de passagem.
O artista revela que começou tarde nas artes e, por isso, não tem tempo a perder. “Comer tarde tem suas vantagens. A primeira é saber que nada, nem a arte, traz salvação. A Deus, as ilusões. Adeus às ilusões”, confirma o artista, que considera que sua obra já nasce madura e isto não possibilita futuros arrependimentos. O fato de iniciar tarde não é motivo de constrangimento. É bem melhor, pois não se é aprisionado por instituições e galerias. Ele considera a liberdade ferramenta indispensável para a criação.
reportagem
ORIGEM Nascido em quatro de maio de 1963, em São José do Rio Pardo, caçula de uma família de sete irmãos, cinco mulheres, Mazzilli viveu em Muzambinho, interior de Minas Gerais, até os 17 anos. Seus pais, Domingos Mazzilli e Dona Lica, foram os proprietários da Casa Mazzilli, fundada em 1944, que funcionou por 65 anos. Era uma loja de tecidos, confecções e artigos. “Desde pequeno, eu já tinha um senso estético bem apurado, combinava cores, roupas, cuecas e lenços com as calças curtas” (risos). Em sua adolescência, começou a trabalhar na loja dos pais fazendo vitrines e exposições. Mesmo sendo de forma impensada, tal ocupação o possibilitou a trabalhar com o tridimensional, adquirir noções de espaço, cores, formas, volume e luz. As artes nunca fora sua primeira opção de Mazzilli. Não passava em sua cabeça que um dia trilharia este caminho. “Nunca pensei em ser artista plástico”, enfatiza. Em sua família, ninguém seguiu a área de exatas, o que prevalecia eram as áreas de humanas e biológicas. Ele justifica a sua escolha pela medicina por ter sido um excelente aluno e ter uma irmã médica. Mas ele se lembra bem do momento em que recebeu a notícia que havia passado no vestibular, disse para si mesmo: “O que vou fazer com a minha criatividade?”.
A ESCOLHA PELA MEDICINA Em 1980, mudou-se para Belo Horizonte e ingressou no curso de Medicina da UFMG. Em 1987, já estava formado. Durante o período
Revista Ponto & Vírgula — setembro de 2013
45
reportagem - mazzilli acadêmico, fez estágio no Hospital Galba Veloso. Depois, fez residência no Hospital Raul Soares. Trabalhou na rede pública como perito, logo em seguida, em atendimento ambulatorial e também deu plantão no Hospital Santa Maria. Em 1990, especializouse em Psiquiatria no Instituto Raul Soares e, em 1991, fez sua segunda especialização em Medicina do Trabalho. Foram 17 anos de dedicação total à Medicina. A aproximação com as artes plásticas se deu no final dos anos 80 e em um primeiro momento foi teórica. Concluiu em 2005 sua pós-graduação em História da Arte na PUC. Aos 43 anos, repensando sua vida, lhe veio a vontade de retornar à academia e conviver com gente jovem. Pensou fazer vestibular para Filosofia, arquitetura ou artes plásticas. No entanto, acabou optando pela última, porque filosofia era muito “pesada”, angustiante e, na arquitetura, teria de estudar matemática, coisa que, jurou, nunca mais fazer na vida. Depois de 25 anos longe de vestibulares, estudou apenas história e literatura e passou em artes visuais na Escola de Belas Artes (EBA) – UFMG e em artes plásticas na Guignard - UEMG. “A partir deste momento, tive a certeza de que era isto que eu gostaria de abraçar dali para frente. Foi então que comecei a produzir muito e recebi retornos preciosos sobre o meu trabalho.” Portanto, optou gradualmente por fazer esta transição para as artes plásticas. Aos quarenta e três anos, “juntou todos os fios da vida”, como ele mesmo diz, deu um único nó: “nesta amarra, condenso vivências do interior, tradições católicas, tecidos da loja de meu pai, gosto pelo bordado herdado de minha mãe, tradição de costureiras e alfaiates, o curso de medicina, a psiquiatria e a psicanálise, a paixão por antiguidades, a teoria da arte, visitas a museus, viagens, enfim, tudo o que me constitui.”, afirma Mazzilli em seu site.
46
A ARTE MAZZILLIANA Sua arte está alinhada com a atualidade. Nas obras, retrata seu universo interior, sua expressão, “enfim... seria esse meu universo interior embalado numa forma mais ou menos rígida, num rigor formal. É uma visão minha do mundo, confirma o artista, que acredita que em arte tudo é autobiográfico. “É por aí que cada vez mais se corporifica e se cristaliza o meu trabalho”, afirma o artista em seu site. Portanto, seu interesse está no íntimo, no subjetivo e no universal. “Pelos meus anos de análises, com minha formação em psicanálise e psiquiatria, eu não faço um trabalho que fique só numa autorreferência, eu procuro uma universalidade”, revela Mazzilli. É alguma coisa que diz respeito ao que ele sente, é a sua individualidade e subjetividade, mas que é tão dele, é tão do ser humano, que serve para outra pessoa em qualquer parte do mundo. Quando ele borda o coração com pérolas, ele tem certeza que em qualquer lugar do mundo as pessoas entenderão o seu trabalho. Tanto que considera seu trabalho uma expressão de sua subjetividade, algo muito íntimo. Seus trabalhos comunicam. Não é algo somente do seu universo, há uma interlocução com o mundo. Mazzilli faz parte da arte contemporânea, uma arte conceitual dos anos 1960 que, segundo o consultor João Carlos Lopes dos Santos, “[a arte contemporânea] passou a trabalhar mais com a cabeça do que com as mãos”. Indignado com injustiças, violência, fome, má distribuição de renda, Mazzillli não fala sobre política, ele não vem para questionar as questões sociais. Está mais para falar sobre o interior do ser, o mais íntimo do ser. “Eu mergulho cada vez mais pra dentro, pra dentro de mim, numa busca desesperada pelo universal e pela síntese”, afirma Mazzilli em seu site. “Até pela minha formação por Clarice Lispector, de que gosto muito, que puxa muito
Revista Ponto & Vírgula — setembro de 2013
QUEM É? DOMINGOS MAZZILLI JR 50 ANOS
Origem
São José do Rio Pardo, SP Formação Cursou disciplinas no curso de artes Visuais na EBA - UFMG e em artes plásticas na Escola Guignard - UEMG Pós-graduação em História da Arte pela PUC Minas - 2005 Especialização em Medicina do Trabalho - UFMG 1991
Especialização em Psiquiatria - Instituto Raul Soares - 1990 Graduação em Medicina - UFMG - 1987
Foto: Raquel Couto
mazzilli
- reportagem
referência, que são em sua maioria a margem da arte contemporânea”. Figuram, nesse aspecto Arthur Bispo do Rosário, Farnese, Joseph Cornell, Louis Burgeois, Leonilson, Maria Bethânia. Ou seja, artistas que criam os seus universos e traçam seus caminhos de forma autonôma, sem se preocupar muito com o que o mercado ou a arte está querendo. E Domingos Mazzilli Jr se identifica com eles.
O BORDADO
para o íntimo e Fernando Pessoa que são poetas e literatas ligados à palavra e a questão do subjetivo. A Maria Bethânia, dentro da música popular, mostra de uma maneira muito forte o universo dela ”, afirma. Ah! Mas tem algo que ele sabe fazer com muita propriedade: falar dele mesmo. “Falar de mim de uma forma que aquilo vá tocar ao outro e vá significar alguma coisa para o outro e que não vá ficar no vazio”, completa. Para Mazzilli, a arte contemporânea, às vezes, exige posição política, fazer trabalhos políticos e interações públicas, com mais interlocução com o social. “Mas meu trabalho sempre
Fotos: Raquel Couto
vai um pouco na contramão do mundo. Pelas próprias pessoas que me são
“Aprendi a olhar para um objeto, a descobrir, em meio a centenas, aqueles que me interessam. Tenho um olhar infernal!”
A relação com o bordado é antiga. Dona Lica, sua mãe, bordava nos anos 1930 e 1940. “Conheci esses bordados em toalhinhas, toalhas, panos de prato e lençóis. Vi também os samplers, amostras de bordados feitos pelas minhas irmãs em colégios de freira nos anos 50 e 60”, recorda o artista em seu site. No final dos anos 1960, em São José do Rio Pardo, viu os vestidos bordados com pedrarias de suas irmãs. E a presença do bordado continuou forte em seu trabalho como artista plástico “Escrituras & Bordaduras – I da trilogia da dor - 1°ato” expôs materiais que trazem lembranças de uma outra época. Primeiramente, a exposição foi apresentada no hospital psiquiátrico Instituto Raul Soares. Depois, foi exposta na Biblioteca Pública. Foi um fato relevante, pois essa foi a primeira exposição de arte do hospital psiquiátrico. Ao som de boleros e sambacanções de Dalva de Oliveira foram expostos luvas, lingeries, bordados, vestes litúrgicas, rendas. “Se, por um lado, os objetos são familiares, mesmo que não mais em uso, por outro, a releitura feita por Mazzilli provoca uma misto de atração, fascínio e certa repulsa. Como se uma intimidade fosse devassada, trazendo à luz o que deveria permanecer oculto”, afirma Ana Maria Portugal, psicanalista da Escola Letra Freudiana, em texto do catálogo da exposição. O espectador foi convidado a interagir e se viu diante do erotismo, do sofrimento e experiências de
Revista Ponto & Vírgula — setembro de 2013
47
Reportagem - mazzilli 2
1
3
1- Breakfast At Tiffany`s (2007) 2- Balas (2007) 3- Regras [Homenagem a Gertrude Stein] (2007)
48
Revista Ponto & VĂrgula — setembro de 2013
Fotos: Cristiano Quintino e Adriana Moura
mazzilli -
Etc [livro-objeto] Homenagem a Artur Barrio (2008)
que a vida é um paradoxo. Segundo Hélio Luar, no site do próprio artista, Escrituras & Bordaduras “ orbita em torno do feminino, recolhendo deste lugar enigmático os seus fluidos e perplexidades, para encantá-los como objeto para a arte.” Entre os objetos expostos, há vestimentas íntimas femininas, como, por exemplo, o tecido de anágua, em que Mazzilli bordou “Mulheres se submetem às regras”. Ele sempre brinca com a palavra. “As mulheres se submetem às regras, que regras? A regra menstruação e a regra norma, há esse duplo sentido”. No mesmo tecido, há uma tinta que simula a menstruação. O artista revela que isso não passa de uma técnica. Há também uma calçola em que ele a intitulou “Sônia”. Nela, está bordada na parte inferior da calcinha “Minha filha quem lava a calcinha da dona é a dona da calcinha”. É uma frase contestatória. Mazzilli disse que, nesta exposição, uma mãe trouxe a filha para mostrar-lhe este objeto. O fato é que a filha não lavava as calcinhas e deixava tudo para a mãe. Foi uma lição de moral na filha. Na exposição, estava o “tubinho preto de Hepburn”, intitulado “Breakfast at Tiffany’s”; o vestido é
Fotos: Daniel Mansur
reportagem
Sem título - Calçola (2007)
bordado com pérolas em forma triangular na região pubiana. Mazzilli diz que a maioria das mulheres não usaria o vestido, mas revela uma vontade: quer que uma mulher use esse vestido no alto da Afonso Pena. Dentre os materiais expostos há uma calçola de gestante rosa, intitulada “Mirthes”. Nela, há o bordado, a pérola que remete à pureza, o lacre que representa a região vaginal e um fio de costura que é o espermatozoide. “O ato de corte que o bordado faz produz uma escrita, que é ambígua”, afirma Ana Maria Portugal. Mazzilli diz que, assim como Clarice, trabalha com achados e perdidos. As rendas desta exposição são de família e as lingeries dos anos 1950. O artista revela, no texto do catálogo, que aceita doações de roupas íntimas anteriores a 1970. Mazzilli trabalha com o feminino e com suas palavras: “o feminino sempre incomoda muito porque ele não se submete à razão, ele é da ordem do desregramento”. No Blog da Comunicação, o artista declara o fascínio com o universo feminino. “As mulheres sempre foram muito mais interessantes que os homens. Têm semitons, são desdobráveis. Apontam para o desejo de
uma forma sinuosa, enviesada.” No texto disponível no site do artista, “Obra de Mazzilli: conceito, antropofagia, subversão”, Augusto Nunes-Filho, mestre em filosofia, psiquiatra e psicanalista descreve a obra “mazzilliana”: “o eixo conceitual, matriz da obra de Domingos Mazzilli, se expressa na particularidade de sua lida com pares até então considerados opostos ou postos em posições antagônicas: masculino/feminino, sagrado/ profano, cru/cozido, estranho/familiar, intimidade/publicidade”.
“O meu trabalho é uma tentativa de paralisar o tempo, contabilizar perdas e dar um sentido a elas. Assim, faço arte.”
Revista Ponto & Vírgula — setembro de 2013
49
Reportagem - mazzilli
Mazzilli comme La Perla
50
Revista Ponto & VĂrgula — setembro de 2013
Foto: Felipe Ferreira
mazzilli o corpo no que ele tem de mais real se faz presente. Assim como a miséria humana,” afirma. Depois, no consultório, continuou bordando gente e, como ele mesmo diz, “me deparando - reparando com os esgarçamentos da ‘alma’ humana.” A medicina, a psiquiatria e a psicanálise mudaram sua visão de mundo. “Mudaram minha visão do outro, do corpo, da dor, do sofrimento e do ‘humano demasiado humano’”, reflete o artista.
O FEMININO Quando se trabalha com o feminino, isto causa um incômodo às mulheres.Enfim um penico em um museu também incomoda. Mazzilli, ao expor 70 camisolas no corredor cultural da Biblioteca Pública de Minas Gerais, diz que as pessoas querem registringir, controlar. “Por que o feminino tem essa questão que é o desregramento, uma liberdade, uma coisa de que a sociedade não gosta, não está acostumada, né. Tem a questão do controle, de um racionalismo e as mulheres às vezes vêm com a loucura toda, e com esse despudor e isso foge dos padrões e então a primeira tendência é de cercear”, diz. “O que me interessa é o que é ser mulher, o vazio, a sexualidade, a dor, a perda, as regras e isto são questões não apenas da mulher burguesa. Reduzir a isto seria empobrecer meu trabalho”, afirma em seu site.
MEDICINA VERSUS ARTE Tamanha foi a contribuição que a medicina proporcionou a seu universo das artes. Mazzilli recorda que começou “bordando” gente no Hospital de Pronto-Socorro João XIII, em 1986, quando aprendeu a fazer sutura. Aprendeu com os cirurgiões plásticos, que detinham este saber. Mazzilli disse que tinha muita habilidade. “De cara, Fotos: Raquel Couto
ARTESANATO E CULINÁRIA A dor bordada na carne vem daí. Para tanto, expôs a continuação da Trilogia da dor 2° ato, intitulada “Mineirianas”, que faz uma mescla entre artesanato e culinária. Mazzilli se considera intuitivo. Tão logo fez seus primeiros bordados em tecido e ao olhar para um antigo ralador em sua casa, pensou em bordá-lo, utilizando seus próprios furos. A partir daí passou a furar alguns objetos que não eram furados como o latão de leite, a tábua de carne, dentre outros. Mazzilli confessa que detesta cozinhar, mas diz que o universo da gastronomia lhe é muito familiar. Afinal, foi criado no interior e tem um grande apreço à gastronomia e á cozinha caipira. Foi a partir daí que criou a série Mineirianas. Com anti-
reportagem
gos utensílios culinários de cozinha, bordou penicos, comadres e livro de carne e, posteriormente, percebeu que havia criado um banquete antropofágico. O artista, ao juntar o animal abatido (carne), o preparo da comida (utensílios bordados), a ingestão de alimentos (prato bordado) e a excreção (penicos), representou o ciclo digestivo completo. “Mas isto tudo foi um pretexto para sair com o bordado do tecido, buscando outros suportes inusuais como o esmaltado, a madeira, o metal e o zinco galvanizado. Através do furo, crio o que chamo de ‘bordado expandido’ que me permite bordar o mundo. Esta série foi, para mim mais um exercício de liberdade de criação”, afirma Mazzilli, que adoraria voltar a bordar gente. Nesta série, o artista deu destaque ao trabalho manual e desapareceu com a palavra. “Descubro que posso trabalhar com o precário e o transitório”. O artista recorda a etimologia da palavra culinária em texto do catálogo : “(...) O prefixo cu(l) se refere também à parte anatômica do corpo: é o mesmo de cueca, cueiro, recuar.” Ele comenta que, até o século XIX, as latrinas e banheiros faziam parte das cozinhas, “seja por economia de en-
Revista Ponto & Vírgula — setembro de 2013
51
Reportagem - mazzilli ``Tudo pode virar uma poética, tudo pode virar motivo de arte``
canamento ou para exorcizar o cheiro insuportável. Então faz sentido o penico, a comadre e o compadre usados em meio aos objetos de cozinha. Íntimos e familiares, eles provocam estranhamento, nos causam fascínio e repulsa”, diz Mazzilli. “Comemos coisas mortas”, é assim que o artista inicia seu texto no catálogo da série Mineirianas. “Um pé de alface ou uma vaca têm que ser assassinados para nossa sobrevivência. E a etiqueta e o ritual que inventamos para a mesa (...) servem ao propósito de dissimular algo insuportável para a humanidade: a agressividade que existe no ato de comer”, completa o artista. A inspiração para compor esta exposição vem do livro “O ritual do Jantar” (1998), de Margaret Visser, que trata o papel da etiqueta no processo civilizatório fazendo desaparecer a agressividade do ato de comer. Segundo o artista, o livro descreve desde rituais antropofágicos primitivos, passando pela cozinha da corte de Luis XIV até o McDonald’s e o kani-kama. “É justamente aquilo que queremos esquecer que Mazzilli vem nos lembrar: alimentar é um gesto de violência. É
52
quando um organismo tem que ingerir o outro.(...) O artista, ao bordar pérolas nestes objetos, cria outras significações, outros sentidos, quando os desloca e destitui de sua função original”. Outro ponto interessante é a última página do catálogo, em que há um menu que remete os nomes dos objetos, algo para ambientar o expectador, que pôde conferir raladores, tábuas de carne, passadores de tomate e espremedores de batata, utensílios que transmitem a violência. “As dores femininas se fazem presentes de forma surrealista em longas cabeleiras e tranças nes-
“Embora tenha alguns trabalhos líricos, eu não adoço. O que faço é desconcertante, desconfortável”
Revista Ponto & Vírgula — setembro de 2013
tes objetos antropomorfizados. Elas lembram sangue que escorre em fios vermelhos”, diz o artista no catálogo, que compara as perólas como gotas nos latões de leite e gotas de urina nos objetos de toillete. Elementos presentes em Mineirianas, a pérola e a carne, segundo o artista, são antagônicas em determinados aspectos. “A pérola traduz a beleza, delicadeza, eternidade e feminilidade, enquanto a carne nos causa asco, nojo e repulsa, além da agressividade e da precariedade que remete à passagem do tempo, ao efêmero, à morte”, afirma Mazzilli. Uma coisa que gosta de fazer é brincar com a ambiguidade, com estes opostos, “tudo ao mesmo tempo e agora”. Tanto a pérola quanto a carne traduzem a dor. “Creio que o bordado aliado à perola e à carne intensifica a dor e o feminino. Afinal, na nossa sociedade, em tempos de Lady Gaga, o corpo feminino muitas vezes continua sendo ainda pura carne”, completa. O artista gosta da beleza da carne como suporte, o vermelho das fibras, as formas estranhas dos animais marinhos como o polvo, o mexilhão e o lagostim.
Foto: Raquel Couto
mazzilli VIDEOARTE: REGISTRO DE UMA POÉTICA Estes elementos estiveram presentes em sua exposição virtual “Carnes”, em setembro de 2012, no site de Mazzilli e divulgado em seu perfil no Facebook. Foram oito vídeos curtos de três a seis minutos cada, que têm em comum a dor bordada na carne. “Nestes vídeos, homenageio alguns nomes da arte contemporânea brasileira como Leonilson, Arthur Barrio, Nazareth Pacheco e Bispo do Rosário”, diz o artista em seu Facebook. A exposição é o terceiro ato da Trilogia da dor. O público conferiu vídeos e fotos como, por exemplo, de um terço de coração de boi com uma cruz com ossos. O trabalho ganhou autonomia como videoarte e registro de uma poética. “O vídeo surge no meu trabalho, num primeiro momento, como algo documental, para registro de exposições. (...) Nele, eu posso tornar público o meu trabalho, catalogá-lo de certa forma, mostrar como eu gostaria no futuro que minha obra fosse vista”, afirma o artista em texto
no seu site. Nas palavras do artista, “o vídeo é contemporâneo” e tem vantagens, “possui portabilidade e grande aceitação pelo público, principalmente o jovem.” Em seu site, pode-se conferir 10 vídeos, como, por exemplo “Das tripas, coração”, em que borda com pérolas um coração. Ele comenta que o vídeo traz a dramaticidade que nem sempre se obtém em uma exposição e “nele eu posso exercer a síntese, o absurdo e a fantasia”, afirma. O vídeo “Regras [performance] ”, exposição que fez parte do evento de performance - 3ª mostra perplexa, ao som da música “Segredo”, na voz de Dalva de Oliveira, pode-se ver o artista passando roupa íntima feminina e, depois, dependurando-as na parede. O público pôde conferir o extenso acervo. Na opinião do artista, mesmo que a exposição tenha durado um mês, na verdade, está mais para um ou dois anos. É uma exposição que não tem fim e o ponto interessante é que pode-se transportar para qualquer lugar. “Eu posso fazer essa exposição no Gabão, não tem tempo
reportagem
e local para terminar, isso é muito louco”, afirma Mazzilli. Segundo o texto sobre o artista, a descoberta do vídeo foi interessante, pois nele pode-se congelar coisas e gente querida.
SEUS OBJETOS Mazzilli trabalha com frequência com objetos repulsivos como carnes, penicos, calçolas e outras peças íntimas antigas. “Eu não represento, eu ‘presento’ estes objetos dentro de um novo contexto depois de modificá-los, fazer interferências”. Sobre as dificuldades que encontra (de modo geral), o artista diz que algumas instituições de arte têm certa dificuldade em lidar com objetos perecíveis como a carne e, outras ainda seguem o politicamente correto. “E, em arte, não podemos tomar este caminho, esta censura, porque o trabalho, o resultado final, sai pasteurizado, pouco potente”, afirma Mazzilli, que não considera seus trabalhos decorativos. Ele diz que não se pode colocá-los impunemente na sala de visita, no hall ou numa gale-
Esfinge Decifra-me ou te devoro (2007), Latão de leite bordado com pérolas (2008) e Colar Lady Gaga (2012)
Fotos: Cristiano Quintino, Wilson Lemos e Felipe Ferr Revista Ponto & Vírgula — setembro de 2013
53
Reportagem - mazzilli ria elegante.
O PÚBLICO E como o público reage às exposições do artista? “O público geralmente não fica indiferente ao meu trabalho, seja porque estes objetos lhe são familiares e remetem, portanto, à memória e também pela força e estranheza do que faço com eles”, diz Mazzilli, que já presenciou crises de choro, quando apresentou trabalhos em sala de aula. Ele soube de pessoas que passaram mal diante de determinadas peças, outros sonharam com alguns objetos, sobretudo com a série de assemblages e bordados. Embora sem esta obrigação – a arte não há que ter uma função – eu quero muitas vezes tirar o fruidor, o participador, do conforto da sua vida, ainda que seja por alguns segundos, promovendo uma experiência nova”, diz o artista. “Embora tenha alguns trabalhos líricos, eu não adoço. O que faço é desconcertante, desconfortável”, afirma texto em seu site. Mazzilli só expõe quando tem algo a dizer. Nunca expôs por expor. Ao mesmo tempo em que está fazendo uma coisa, ele está fazendo outra coisa completamente diferente. Ele diz que não é do tipo do artista que pintou um quadro e logo entrega para a pessoa. “Pelo fato de eu produzir objeto, eu preciso estar ali, para ver como que eu vou colocar, o que eu vou colocar perto de quê. Uma exposição minha me cansa”, afirma Mazzilli, que, após uma vernissage, sai acabado, como se tivesse dado um show. “Me dedico à criação, à expografia, divulgação, telefones, contatos, catálogos...uma série de coisas que vai afunilando naquele momento de exposição e chega ali e você tem que estar inteiro”, afirma. Ele tem um cuidado grande em tudo o que faz.
OLHAR CLÍNICO
54
Frequentador de brechós, topatudo, mercados e feiras, Mazzilli trabalhou com antiguidades e “recheio de casa”, e isto lhe possibilitou o contato com objetos e materiais variados, descobriu formas e funções e, sobretudo, entender os estilos de épocas. “Aprendi a olhar para um objeto, a descobrir em meio a centenas, aqueles que me interessam. Tenho um olhar infernal!”, completa.
OS SUPORTES Uma das características do artista contemporâneo é o abandono dos suportes tradicionais. Questionado sobre de onde vem o material para compor suas exposições, Mazzilli diz que a grande maioria vem de acervo particular doméstico, alguns são do final dos anos 40 e 50 , de sua mãe, Dona Lica. São rendas, tecidos, bandeiras, fotografias. “Meu trabalho tem objetos que levam a matriz popular, de arte popular. Quando você vê esses raladores, objetos de cozinha, eles estão ligados à cultura popular, não é uma cultura pop, da loja de 1,99, dessa cultura de massa, de consumo, sem a pátina do tempo”, afirma Mazzilli apontando os objetos de sua casa. Mas ainda sim, alguns objetos o artista compra em lojas, mas alerta: para encontrar é preciso ter muita paciência. “Eu sou um fuçador (risos). Eu praticamente consigo tudo o que quero. Tenho muito facilidade, tenho um olho clínico muito grande”, afirma demonstrando habilidade para isso. Ele diz que, quando chega em uma feirinha ou loja, e há muitos objetos entulhados, em segundos decompõe tudo aquilo ali e já vai no que realmente quer. “As pessoas às vezes ficam atordoadas com aquela quantidade de informações, eu já vou direto e falo: Eu quero aquela mesa, que tem o pé palito, tá de cabeça pra baixo, tira aquela pra mim (risos). Tenho muito facilidade pra isso, é uma questão de experiência”, relata. É uma sensiblidade que é dele e
Revista Ponto & Vírgula — setembro de 2013
Fotos: Raquel Couto
mazzilli -
Polvo detalhe e Das Tripas, Coração (2009)
reportagem
que vem do fato de ter trabalhado com recheio de casa, com intermediação de objetos, é assim que justifica o seu olhar clínico. Segundo Augusto Nunes-Filho, mestre em filosofia, psiquiatra e psicanalista, “os suportes utilizados pelo artista configuram cenário à parte na sua produção. A subversão efetuada não se limita à escolha dos suportes escolhidos. Ela estende-se, sobretudo, ao uso e operação neles efetuados”. Em seu texto, Mazzilli diz que há excesso de inutilidades no mundo. “Então pego objetos desprezados, esquecidos e dou um novo sentido a eles. Às vezes retornando a um sentido primeiro, original que se perdeu no tempo”. Aí vem a sua criação: na assemblage, colagem, no bordado e, segundo o artista, “na frase feita e pervertida”. “Eu ressemantizo e ressignifico o mundo. Opero muitas vezes por deslocamentos.”
A DESCOBERTA DO LIXÃO “Hoje posso dizer que consigo qualquer objeto que eu queira”, diz o artista que, há alguns anos, descobriu os lixões e de maneira imediata foram incorporados em seu trabalho. Em 2012, expôs “Bacio – Alcova” no Casarão do Museu Abílio Barreto, segundo disse o artista, aquela foi a primeira vez que o museu recebeu a arte contemporânea. Como parte da exposição, do lado de fora, houve intervenção em sua parede, na qual dependurou bacias, encontradas no lixão. “Eu estou muito feliz com esta nova vida de descobertas e sinto o maior orgulho da minha produção e determinação”, disse o artista. Do lado de dentro, o artista expôs materiais que já pertenceram de outras exposições como os penicos, comadres bordados em
Fotos: Felipe Ferreira e Daniel Mansur
Revista Ponto & Vírgula — setembro de 2013
55
Reportagem - mazzilli pérolas. E qual o significado de bacio e alcova? O artista diz que bacio em português quer dizer penico. Há também a referência a pronúncia de vazio em espanhol, mas Mazzilli o relaciona a bacia, ao objeto doméstico que se encontra no banheiro e na cozinha. `` Diz respeito ao meu trabalho que se estrutura em torno do vazio, da intimidade, do lugar onde se lava a roupa suja``, afirma o artista para o Blog da Comunicação. No entanto alcova é característico das casas antigas, que não continha nem portas e janelas, adaptado às mulheres solteiras, docentes e as que prestavam alguma devoção.
O RECANTO DO ARTISTA O ex-médico, que vive exclusivamente para as artes desde 2007, não se preocupa em retratar o presente. Faz questão de fazer aquilo que sua expressão pedir. O encontro para a entrevista aconteceu na casa do próprio artista, localizada em São Sebastião das Águas Claras, no distrito de Nova Lima. O artista que mora lá há 16 anos, considera sua casa “um pequeno museu do século XX”, como afirma texto disponível em seu site. E ele julga sua cabeça como “depositária de memórias”. Na casa de Mazzilli, respira-se art-déco, há objetos que fizeram parte de suas exposições. Em sua bela sala, ele destaca a bacia na parede, quadros e luminárias. O artista se revela um fascinado por art-déco. O que o chama a atenção é a elegância. Ele não se interessa pela “grande antiguidade”, mas sim pela antiqualha, aquele objeto singelo e de alma “O art-déco é um estilo completo. Você pode ter uma casa, um móvel, um botão, um prato art-déco. Ele é muito variado”. Para todo lugar de sua casa, ele foi apontando os objetos e pacientemente explicando-os. Em seu quarto, próximo de sua cama, está o seu material favorito: chama-se “Medu-
56
sa”, que fez parte da exposição “Relicário”, e que, segundo o artista, foi conceitualmente muito forte. Esta exposição contemplou outras duas: O Tempo Redescoberto e Escrituras & Bordaduras, respectivamente de objetos e bordados. O artista homenageou sua mãe, Dona Lica. “A palavra reLicário guarda em si o apelido de minha mãe”, diz no catálogo da exposição. Nele pôde-se conferir objetos familiares, do cotidiano. “Todos, mesmo as pessoas de menor formação intelectual, sempre têm algo a dizer sobre o que veem, seja uma calçola, um penico, um faqueiro ou uma bala”, diz o artista, que considera que seu trabalho não é excludente: “E é nesta hora que percebo a força dele, quando a faxineira para e observa, o pedreiro, o pintor de paredes, nas vésperas do vernissage”.
HORAS VAGAS: ARTE Quando perguntado sobre quando não está ocupado, o artista diz que já não é mais possível separar, sempre está pensando em alguma coisa que envolva arte. “Aí você pensa, mas um artista está trabalhando ou não está trabalhando, para o artista é complicado, por que quando ele está divertindo, assistindo um filme, de repente tem a arte ali, daquele filme pode sair”. O artista disse que, em uma conversa banal, pode-se sair algo relevante. “Então tudo pode virar uma poética, tudo pode virar motivo de arte”, observa.
AS PREMISSAS DO ARTISTA O artista tem como premissas a síntese, a economia e a depuração. Para ele, estamos vivenciando uma síntese excessiva. Ele está atrás do desregramento sintético. A tradução de tudo o que ele tem a dizer é a gota de sangue. A sua forma básica, tensão e instalibilidade da gota, é o que o chama atenção. E além disso, tam-
Revista Ponto & Vírgula — setembro de 2013
bém o sangue vermelho, que é somatório de outros elementos. “Estamos diante de uma síntese excessiva. Traduzo assim a forma limpa com o conteúdo intenso, passional. Era a isso que me referia quando digo que o meu trabalho é a transposição do canto de Billie, Piaf, Dalva, Callas ou outra cantora dramática ou trágica. No coração de carne bordado, tenho certeza de que consegui isto. No vídeo voodoo, nas jóias e no terço de carne também”, afirma Mazzilli em seu site. Para ele, a música dá uma contenção a esse conteúdo desesperado.
REFERÊNCIAS MUSICAIS E LITERÁRIAS E quando o assunto é música, Mazzilli se empolga, espalha seus CD’s na mesa. O artista diz escutar de tudo, tirando pop, rock e sertanejo, pois não fazem sua linha. Mas ele gosta de jazz, MPB e canção de cabaré. “E daí a esquisitice do meu trabalho, que uma Madonna ou Michael Jackson, Lady Gaga embora às vezes eu goste da figura delas, mas o canto delas não representa nada pra mim. Sabe...uma Carmen Miranda, uma Maísa me diz muito mais. Então aí é que dá esse descompasso com o mundo contemporâneo”. Ele prefere a música cantada, mais que a instrumental. O motivo? Há a palavra dita. A preferência musical do artista é por músicas cantadas por mulheres. “Eu acho que as mulheres, mais que os homens, têm uma força no cantar que é diferente do homem. Talvez esse cantar uterino que os homens não conseguem”, afirma. E dentro disso, ele gosta das cantoras dramáticas e trágicas como Édith Piaf, Dalva de Oliveira, Billy Holiday, Amália Rodrigues, Maria Bethânia. Ele diz que são cantoras que transmitem um conteúdo intenso, passional, que vem embalado em um rigor formal. “Cresci ouvindo muita MPB, a
mazzilli -
reportagem
Máscaras-Dietrich (2013)
geração genial dos anos 60 de Jobim, Chico Buarque, Caetano, Gil, Milton, Bosco, Ivan Lins, depois Djavan, Gonzaguinha, Cazuza. Junto a estes ouvi os antigos compositores como Noel, Ary Barroso, Assis Valente, Caymmi, Lupicínio, Braguinha, dentre outros”, diz o artista em texto em seu site. Na literatura o artista plástico diz que o apreço pela palavra vem de sua infância. Foram os discos e shows de Maria Bethânia que o apresentaram a Fernando Pessoa e Clarisse Lispector. “Na adolescência tomei contato com a obra de Drummond, Mário e Oswald de Andrade, Pagu, Manuel Bandeira, a poesia concreta dos irmãos Campos e Pignatari, Verlaine, Rimbaud, Neruda, Ferreira Gullar e tantos outros”, afirma o artista. Entre os poemas de que mais gosta, está “O beco”, escrito por Manuel Bandeira. “Porque você pode estar vivendo um monte de
Foto; Domingos Mazzilli Jr
coisa, mas você pode ver o beco. Então vê o sem saída, o trágico e às vezes o meu trabalho é um pouco isso, eu sou uma pessoa trágica em relação ao mundo”, completa.
O TRABALHO Mazzilli só expõe quando tem algo a dizer. Nunca expôs por expor. Ao mesmo tempo em que está fazendo uma coisa, ele está fazendo outra coisa completamente diferente. “Meu trabalho é absolutamente solitário. É uma coisa minha”. Segundo o artista, é na mais profunda solidão. Para o artista trabalhar em grupo é muito difícil : “Você tem que abrir mão da atitude individual, para você acomodar a individualidade do outro”. Mazzilli revela que não gosta bordar na frente dos outros. Ele tem horror! Considera o bordado algo muito íntimo. Mazzilli relembra quando ia
apresentar os trabalhos em sala de aula. Um fato curioso: ele sempre levava o trabalho coberto. “Eu só abria no momento em que eu tinha que apresentar. Queria ver o impacto, como as pessoas iriam reagir, analisar os momentos. “Eu queria que as pessoas pudessem colocar para fora seus sentimentos, queria que as pessoas chorassem.” E o artista define o seu trabalho em duas palavras: intimidade e honestidade. “Sou verdadeiro com o que faço. Ainda que seja a minha verdade, sou muito verdadeiro, eu não minto no meu trabalho”, diz. “Falo de um mundo que desaba, que está desmoronando, ruindo. Daí a nostalgia, a memória e certa saudade do paraíso perdido. O meu trabalho é uma tentativa de paralisar o tempo, contabilizar perdas e dar um sentido a elas. Assim, faço arte. Se quiserem adjetivá-la, se isto for realmente imperioso, chamemna de arte existencial.”
Revista Ponto & Vírgula — setembro de 2013
57
guia cultural
Saidera inusitada Por Anna Tereza Clementino, Rafaela Borges, Tatiana Campello e Thaynara Tanure
Em uma cidade onde tudo termina tomando uma gelada com os amigos, convencer os “botequeiros” que determinado estabelecimento é o melhor para aquele happy hour depois do trabalho não é tarefa das mais fáceis. As opções são inúmeras, basta olhar para o lado para encontrar um – ou vários- bares prontos para oferecer a cerveja mais gelada, o drink mais colorido e o petisco mais saboroso. A grande frequência dos belo-horizontinos nos bares da cidade contribuiu para que a Lei 9714/2009 fosse sancionada, considerando Belo Horizonte a Capital Mundial
dos Botecos. Apesar de assíduos, os consumidores estão cada vez mais exigentes e menos fiéis ao “bar de sempre”. Agora eles buscam o que é novo, diferente e até mesmo inusitado. E o grande número de bares tem atraído não só os mineiros, como também turistas de todo o mundo, que encontram na cidade muito mais do que um simples happy hour. Entre bebidas e petiscos, os turistas são contemplados com a beleza arquitetônica e cultural, locais que motivaram o título de “Capital Mundial dos Botecos.” Na cidade onde não faltam bares, fica cada vez mais difícil seguir
o mesmo roteiro, que inclui mercados, museus e praças, e é tudo logo ali, bem perto daqueles que, na falta do mar, resolvem se divertir no bar. Pensando nisso, os donos de bares não cansam de bolar estratégias para chamar a atenção de seus clientes. As peculiaridades são muitas, tem bar na árvore, outro com tema havaiano, tem ainda bar com tabuleiros de jogos que remetem à infância e até com a temática da bolsa de valores americana. Tomar a saideira nunca foi tão divertido... e curioso!
De acordo com associação do setor, existem 12 mil bares em Belo Horizonte para 2.375.444 habitantes. Assim:
Há 130 pessoas para cada bar.
58
Revista Ponto & Vírgula — setembro de 2013
guia cultural
dow jones:
quanto mais se bebe, menos se paga
Mauro Castelo Branco resolveu mudar de outlet à bolsa de valores. O ponto do atual bar Dow Jones era tão requisitado, que o dono resolveu inovar para não perdê-lo e, como o próprio nome diz, transformar o Happy Hour já comum aos mineiros em algo incomum a eles. Você senta, pede um chopp, conversa com os amigos. O chopp acaba. Você pede mais um e, de repente acontece o pregão. O chopp que era antes R$ 6,90 passou a custar R$ 5,40. E então, a clientela começa a pedir mais e mais e você acompanha. Assim funciona o bar Dow Jones, na famosa Avenida Francis-
co Sá, no bairro Prado, região Oeste de Belo Horizonte. A ideia de imitar a bolsa de valores surgiu de um bar semelhante em Barcelona (La Bolsa) e também em São Paulo (The Wall Street Bar). A novidade foi que, ao invés dos preços subirem como no pregão, aqui na capital dos botequeiros, ele desce, porque todo bom mineiro quer a cerveja mais barata. Quanto mais se demanda, menos se paga, ou seja, o lucro é garantido e todos podem acompanhar a cotação ao vivo, através de TVs espalhadas pelos ambientes. Para facilitar a atualização dos preços, os garçons utilizam terminais touchscreen que
mostram a nova cotação das bebidas automaticamente. Os petiscos do cardápio têm preço fixo e entre as sugestões estão o Filé ao molho Roquefort (R$ 29,90), Mix de Pastel de Angu (R$ 19,90) e Fritas com Queijo e Bacon (R$ 16,90). O menu conta ainda com drinks variados, como o Mojito (R$ 9,90). “O bar é muito bom, considerando que é o único com esse tema e diferente de todos os outros aqui em BH. Os preços realmente caem, e a cerveja é gelada como prometido. Com certeza vou voltar”, elogiou Rafaela Queiroz, 23 anos, formada em eventos.
Revista Ponto & Vírgula — setembro de 2013
59
guia cultural
SOHO PUB: de volta a sua infância Para quem quer reunir a turma após o trabalho e ainda relembrar os bons tempos de infância, o Soho Pub é a escolha ideal. O bar, que foi inaugurado em agosto de 1992 fica localizado na região sul de Belo Horizonte e conta com um vasto “cardápio” de jogos de tabuleiro. Não, você não entendeu errado, os clientes que frequentam o bar tipicamente nova-iorquino podem escolher entre os mais de cem jogos disponíveis no local. E tem para todos os gostos, War, Imagem e Ação, Detetive... A lista é imensa e a cada dia atrai mais grupos de amigos que procuram uma novidade para incrementar ainda mais o happy hour. Segundo os donos, os jogos são um atrativo para os clientes, mas, como um bom mineiro preza acima de tudo uma cerveja estupidamente gelada, a ideia foi inovar também nas promoções. Toda terça-feira, quando o sino toca, o chopp é liberado e permanece assim até que alguém vá ao banheiro. Quem preferir frequentar o Soho às quartas e quintas poderá aproveitar a degustação de batata e refrigerante por R$26,00 por pessoa. Para petiscar em grupo a opção mais pedida é a torre de batata frita, a porção gigante serve cinco pessoas e custa R$35,50 e pode ser acrescida de bacon e queijo. “Eu adoro o Soho, sempre fui desde a minha adolescenca. Acho incrível essa ideia de misturar os jogos de infância com o Happy Hour dos amigos. A batata gigante é ótima para divir e já vim em uma terça feira e quase morri com vontade de fazer xixi”, contou Marcela Lassi, 23 anos, formada em Direito.
60
Revista Ponto & Vírgula — setembro de 2013
guia cultural
Lanikai tiki bar: o hawai é logo ali
Para os que estão cansados da mesmice e pretendem fugir mesmo que momentaneamente do estresse diário, que tal uma passadinha rápida pelo Havaí? Se você achou essa ideia um tanto quanto improvável, certamente ainda não conhece o Lanikai Tiki Bar. O restaurante é tipicamente havaiano, e as referências ao estado estão presentes no cardápio e na decoração. As mesas em formas de pranchas enormes de madeira, a iluminação suave, os colares no estilo “ula-ula”... Tudo vai contribuir para que você realmente se sinta no
meio do Oceano Pacífico. O menu também oferece delícias do arquipélago e conta com diversas variedades de peixes e frutos do mar, sanduíches típicos e temperos essencialmente havaianos. O queridinho do cardápio é o Loni-Loni que tem como base o salmão cru temperado e molhos à escolha do cliente. A cartela de drinques também não poderia ficar de fora, as bebidas super coloridas são as que mais chamam atenção. O mais pedido e curioso é o Fish Bowl, que leva doses generosas de gim, vodka, rum, sprite
e curação blue. A mistura é servida em um aquário gigante e se você não pretende sair de lá falando “aloha” é aconselhável que beba juntamente com os amigos. “O Lanikai fica em uma rua onde existem vários bares de todos os tipos, e bem no meio você acha um bar completamente diferente de todos os outros. Lá é aconchegante e tranquilo, e, se você vai com uma turma grande de amigos, o Fish Bowl é a dica. Se você for beber sozinho, vá de taxi,” nos contou a estudande de Direito Ana Luisa Prado, 22 anos.
Revista Ponto & Vírgula — setembro de 2013
61
guia cultural
freud bar:
uma experiência sem explicação Se a sua intenção é curtir um clima bem aconchegante, tranquilo e em contato com a natureza, pare tudo que estiver fazendo, pegue um bom casaco e vá ao Freud Bar. Localizado próximo ao Vale do Sereno, com acesso realizado por uma pequena estrada às margens da mata do Jambreiro, em Nova lima, o bar dispõe de mesas sobres árvores, redes e fogueiras. A luz do céu estrelado e das velas também fazem parte da decoração do local. O ambiente intimista se contrapõe
62
ao caos da cidade grande, a baixa temperatura independe da estação, mas nada que os cobertores disponíveis no local e as delícias do cardápio não resolvam. Uma variedade de caldos e choconhaques prometem livrar do frio os frequentadores do bar, além da clássica cerveja gelada e das porções que não podem faltar no cardápio mineiro. “O Freud é aquele bar diferente de todos que você vai em BH, completamente fora do padrão. Pra quem gosta, como eu, de natureza e um bom
Revista Ponto & Vírgula — setembro de 2013
friozinho, aqui é sensacional. A cerveja é super gelada, o único problema hoje são as blitz, agora, sempre que venho tem que ter um motorista da rodada”, contou a Isabella Carvalho, 20 anos, estudante
O inusitado do Freud Bar é que o mesmo se encontra em cima de uma árvore, o que o faz se diferenciar ainda mais dos outros bares de Belo Horizonte.