Agosto / Setembro - 2009
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Agosto / Setembro - 2009
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Ficha Técnica: Diretoria Executiva: Carlos Pará, Laura Santana, Moacir Pereira Projeto Gráfico: Moacir Pereira Direção de Arte: Moacir Pereira, Odir Castro, Ygor Pará. Direção de Fotografia: Elza Lima, Janduari Simões Odir Castro Produção Executiva: Mary Komatsu, Pamela Coelho, Daniel Rocha Pesquisa: Carlos Pará, Ilton Ribeiro, Odir Castro Revisão: Geni Begot Granhen PZZ Paris: Maurice Gey Editor Responsável: Carlos Pará Conselho Poético: Benedito Nunes, Elza Lima, José Roberto Pereira, José Varella, José Oeiras, Gunter Presler, Luis Arnaldo, Célia Maracajá, Chico Carneiro, Charles Trocate, Fábio Castro, Acácio Sobral, Albery Albuquerque, Raoni Beltrão, Rosa Azevedo, Hilton Silva, Zenito Weyl, Isabela do Lago, Karlo Romulo, Ramiro Quaresma, Fernando D’Pádua, Edson Farias, Vicente Cecim, Marinilce Coelho, Almandrade, Ná Figueredo. Distribuição: Brasil, Pan-Amazônia, América do Sul, Europa A Revista PZZ é uma publicação bimestral da Editora Resistência Ltda CNPJ: 10.243.776/0001-96 Av. Duque de Caxias, 160 Loja 14 - MARCO - 66093-400 Belém-Pará-Brasil e-mail: revistapzz@gmail.com Assinatura, números atrasados e Publicidade: 091- 3083-3793 / 9616-4992 / 96370981
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Quando tudo tiver atingido os seus fins, aí começará nossa visível utilidade... Capa: Montagem Digital com a obra, “História de Ismael Nery - IN”.
Revista Pará Zero Zero - PZZ Arte, Política e Cultura ano IV nº08 Agosto/Setembro 2009
Apoio:
A REVISTA PZZ lança seu 8º número, perpetuando-se como projeto editorial inovador na Amazônia e como o único veículo de Comunicação que transporta nossa cultura para além das fronteiras pscico-geográficas que nos isolam. Possibilitamos a divulgação, a exibição, a circulação e, portanto o acesso, das diversas linguagens artísticas, científicas, e expressões simbólicas da cultura paraense e amazônica, de valor universal, formadores e informadores de conhecimento, cultura e memória brasileira através de seus autores ao divulgar o que a mídia tradicional não divulga e ao aprofundar o diálogo sobre os conceitos de Arte, Política e Cultura, estimulando o papel conscientizador e transformador do conhecimento, conferindo maior percepção aos leitores sobre a realidade em que atuam. Fazer a mudança na área da Comunicação como Revista e como um empreendimento editorial revolucionário é estimular a formação de leitores, pesquisadores, escritores, e editores num contexto político favorável que desencadeia a 1ª Conferência Nacional de Comunicação no Brasil. Fortalecer redes de cultura e de mídias livres, construir laços para influenciar a construção de políticas públicas para a comunicação e a cultura é uma das formas de organização, estratégia e luta política ideológica dos grupos de resistência no Pará contra a hegemonia dos meios de produção, acesso, financiamento, programação da Comunicação e da cultura não só em nosso Estado como no Mundo.
Avante!!!!!!
S
egundo o Essencialismo, tudo que existiu foi absolutamente útil; verdadeiramente o homem nada fez que não tivesse pelo menos o grande valor de uma experiência. Conforme se disse, já é tempo de começar a selecionar essas experiências e ordená-las, pois já sentiram o horror de repeti-las. O homem essencialista é portanto o homem que tendo esgotado as experiências que a vida oferece, procura extrair uma filosofia fundada nos resultados de suas seleções. A vida é para o essencialista uma construção que se inicia com o nascimento e que se finda com a morte. Todo o homem possui um coeficiente de energia e de tempo determinado que não poderá ser desperdiçado sem prejuízo final. Eis por que devemos dar a maior eficiência possível às ações de nossas vidas. O Essencialismo chegou à conclusão que a vida não é outra coisa senão uma fornecedora de elementos construtivos, e que ela se nos apresenta sem nenhum caráter de pessimismo ou de otirnismo, sendo as suas reações sempre proporcionais às nossas ações, pois acreditamos ser indestrutíveis o equilíbrio da vida; justificando nossa ação
apenas o dever que temos de dirigi-la, usando nossa razão para poupar esforços inúteis. O homem é impelido para o bem, pois somente nesse estado é que adquire a estabilidade cômoda requerida pelo instinto de conservação. Bem, para nós, é igual a conservação - e mal, tudo que a destrói ern qualquer gradação pessoal ou coletivamente. É absurdo pensar que o mal seja relativo, pois se a essência da vida é incomum a todos os homens, o que há é apenas uma gradação enorme de vidas entre a ideia simples de bem e o mal absoluto. O Essencialismo combate a desproporção, que, a nosso ver é o grande mal da humanidade atual. Preferimos a uma sabedoria desproporcionada uma ignorância harmônica, porém desejamos uma sabedoria harmônica. Ismael Nery Publicado na revista A Ordem. abril de 1935
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Croquis para a capa do livro “Poemas”, 1930 - Ismael Nery
O Poeta do essencialismo
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ManhÃ
A
cordei hoje com a desagradável e estranha sensação de que sou único ser humano sobre a superfície da terra. Os outros homens se parecem animais que nenhuma relação poderão estabelecer comigo. Olho-os com uma indiferença notável - nem mesmo a profunda piedade que costumo ter por eles estou sentindo hoje. Recordo-me de fatos da minha vida, como se fossem histórias que me contaram. Noto que não me deixaram marca nenhuma. A vida para mim está me parecendo a coisa menos importante deste mundo. Poderei continuar a viver como poderei morrer neste instante. Isto me é absolutamente indiferente. Não sinto a necessidade de me mover nem de tomar resoluções. Uma senhora passou e me comprimentou. Confesso que não a reconheci. Meu espínto esta vagando sem curiosidade alguma sobre todas as coisas e ideias. Talvez por hábito. As vozes das pessoas que estão perto de mim me parecem ruídos sem nenhuma significação, como, por exemplo, o barulho que está fazendo a água que cai na caixa do banheiro. Olhei-me no espelho e achei excessiva a anatomia do meu corpo, sobretudo da minha cara. Para que olhos, para que boca, para que nariz? Minha barbicha no queixo me pareceu mais inútil do que um seio para uma mulher que não foi mãe.
- Arte, política e cultura
O homem deveria ser uma bola com pensamento. E das mulheres, que penso eu hoje? Nada! Aliás, sempre pensei nelas muito pouco. Só costumo pensar no que me interessa. Creio que não existem neste mundo três mulheres que me possam interessar - pelo menos ao ponto de pensar nelas. E dos homens, que penso eu? Penso que foram feitos para as mulheres, muito mais do o contrário. E de mim? Creio que eu seja uma coisa qualquer sem classificação, apenas com uma aparência humana. Será que minha vida inapetencia pela vida seja resultado de minha falta de compreensão dela? Não Creio! Creio mesmo o contrário. Mais do que instinto de conservação, penso que seja a curiosidade a moda que nos impele para a vida – digo isto por experiência própria. Tenho a impressão de que nada mais poderei apreender e descobrir na vida. Esta deve ser a única razão do meu desinteresse por ela e do meu profundo desânimo. E a outra vida, como desejaria eu que ela fosse? Um repouso eterno numa paz infinita? Não! Isto mais ou menos foi o que eu sempre tive!...Eu queria que ela fosse a correição da minha vida da terra. Numa progressão infinita. Eu sou bastante medíocre!
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Ismael Nery no sanatório em Correias
POESOFIA
Auto-retrato, Ismael Nery
Para os ricos nascerei na estrebarias, Para os pobres nascerei nos palácios dourados. Nascerei para os maus para fazer-lhes o bem. Nascerei para os bons para fazer-lhes o mal. Para mim eu ainda não acabei de nascer. Tenho mães pequeninas ou que ainda não nasceram Deverei ser parido aos pedaços por todas as mães do universo. De Eva a não sei quem, Como o meu mestre e colega Jesus Cristo, filho da Virgem Maria. Eu também tenho uma mãe oficial - a “Irmã Verônica”.
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POESOFIA
CONFISSÃO
N
ão quero ser Deus por orgulho. Eu tenho esta grande diferença de Satã. Quero ser Deus por necessidade, por vocação. Não me conformo nem com o espaço nem com o tempo, Nem com o limite de coisa alguma. Tenho fome e sede de tudo, Implacável Crescente. Talvez seja esta a minha diferença de Deus Que tem fome e sede de mim, Implacável, Crescente, Eterna Auto-retrato satânico, Ismael Nery
— De mim que me desprezo e me acredito um nada.
- Arte, política e cultura
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EU Eu sou a tangência de duas formas opostas e justapostas Eu sou o que não existe entre o que existe. Eu sou tudo sem ser coisa alguma. Eu sou o amor entre os esposos, Eu sou o marido e a mulher, Eu sou a unidade infinita Eu sou um deus com princípio Eu sou poeta! Eu tenho raiva de ter nascido eu, Mas eu só gosto de mim e de quem gosta de mim. O mundo sem mim acabaria inútil. Eu sou o sucessor do poeta Jesus Cristo Encarregado dos sentidos do universo. Eu sou o poeta Ismael Nery Que às vezes não gosta de si.
Composição surrealista
Eu sou o profeta anônimo. Eu sou os olhos dos cegos. Eu sou o ouvido dos surdos. Eu sou a língua dos mudos. Eu sou o profeta desconhecido, cego, surdo e mudo Quase como todo o mundo.
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POESOFIA
Poema
pós-essencialista
- Arte, política e cultura
Auto-retrato, 1927 - Ismael Nery
O silêncio provocou-me uma necessidade irreprimível de correr. Abalei como uma flexa através dos mares e montanhas com incrível facilidade e sem cansaço. Eis-me agora sentado diante de uma paisagem em formação, ainda não colorida. O meu pensamento agora é que percorre o que acabei de percorrer, e admiro-me, então de nada ter encontrado, senão ao chegar o rastro fosforescente que deixei ao partir. Os mares são agora ridículos lençóis d’agua, de uns três ou quatro palmos de profundidade. As montanhas são nuvens estáticas, que o eterno medo dos homens transformará em granito. Tudo é pavorosamente desabitado. Não há leões nem elefantes nos desertos da África. Não existem as pirâmides nem a Torre Eiffel. Existe apenas Eu mesmo que me percebo inversamente inverso por uma ideia que chamo mulher e que paira rarefeita sobre a superfície do globo. Idéia incompreensível porque nada existe na terra além de mim mesmo. Os mares agora são profundos e as montanhas se solidificam. Aparecem leões e elefantes nos desertos da África. . Construíram as pirâmides no Egito e levantaram a Torre Eiffel em Paris, no ano em que outro Eu nasci em Belém do Pará. Tudo se povoou transbordantemente. Acho-me agora sentado na prisão, olhando sereno através das grades, aguardando o julgamento do crime nefando que cometi de usar a mim mesmo, na minha mãe, mulher, filha, neta, bisneta, tataraneta, nora e cunhada, voltarei, ainda uma vez, para ser meu próprio juiz. Nada existe, além de mim, senão para mim mesmo. Silêncio.
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Fragmentos do meu poema
Visão interna - Agonia, Ismael Nery
A minha angústia aumentará em meus filhos - Angustia que herdei de meus pais e de meus avós Angústia que dia se torna universal Desde o Dia em que Caim assinou Abel Morrerei de sede como o meu xará da Bíblia. Mas não num deserto como o filho da escrava. A minha sede é mil vezes pior do que a dele É uma sede que não é de água, É uma sede insaciável Que aumenta a medida que eu bebo E que não me dá a esperança de morrer já. Sei que és minha tanto quanto a minha mão Que separada do meu corpo morreria. Sei que é minha toda a tua vontade Desde o dia em que sentiste que a tinhas. Confundimos nossos corpos, Misturamos nossas almas E eu ainda não estou saciado de ti! Não basta que eu seja o dono da tua vida Ou que pudesse ser o autor da tua morte. Eu precisaria ter sido o teu inventor Para estar agora satisfeito - Mesmo que pertencesses a outro.
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POESOFIA
POEMA PARA ELA
- Arte, política e cultura
Gravura digital com base em Casal em vermelho, de Ismael Nery
Acabaram-se os tempos. Morreram as árvores e os homens, Destruíram-se as casas, Submergiram-se as montanhas. Depois o mar desapareceu. O mundo transformou-se numa enorme planície Onde só existe areia e uma tristeza infinita. Um anjo sobrevoa os destroços da terra, Olhando a cólera de um Deus ofendido. E encontrou nossos dois corpos fortemente enlaçados Que a raiva do Senhor não quis destruir Para a eterna lembrança do maior amor.
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Poema E
Mente e corpo, Ismael Nery
stou com o olho no telescópio que está dentro da barriga aberta da cúpula. Observo a lua, a filha da lua, a neta da lua, toda a família da lua, menos o marido dela. Eu gosto da cor da lua mas acho incompleta sua forma. A lua é uma mulher gorda, que parece magra, magríssima, abstrata. Eu gosto das mulheres abstratas que vêm ao mundo sem pai nem mãe nem irmãos, e que não nasceram em nenhum país, nem tão pouco no mar. Gosto mais de ter uma mulher em pé na minha cabeça do que pendurada em meu pescoço. O meu pescoço às vezes, não aguenta bem o peso da minha cabeça, porque ela está cheia de coisas que quase sempre eu não gosto. Tenho uma formidável atração pelo que detesto. Inclusive eu mesmo. Ismael Nery. Nunca consegui ouvir nem dizer este nome sem sentir uma comoção - mas não sei bem que espécie de comoção eu sinto ouvindo ou dizendo este nome. Há nomes também que me emocionam e me obrigam a inventar um físico para eles. Nunca vi ninguém que escapasse completamente a uma crítica minha - nem eu próprio. Ter que captar a minha sinceridade em alguém que não seja eu, e até muito pelo contrário - que seja bem diferente de mim. Prefere a olhar as mulheres de cabeça para baixo e suspenso por um fio de aço, do que de outra maneira qualquer. A desorganização das coisas não me agrada, também como a organização. Gostaria de ter um criado moral para arrumar o meu cérebro e consolar nas minhas ausências aqueles que moram comigo, de mim e para mim. O meu maior instinto é o da paternidade, que aplico a tudo e a todos. A minha maior vontade era ser a sombra de tudo e de todos, afim de nascer e morrer com tudo e com todos e em todos os tempos. Não haverá um homem que me determine moral e fisicamente? Sou um germen de um Deus, toda a gente o é também.
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Duas figuras, Ismael Nery
POESOFIA
Musa decadente
Quem teria descoberto sem mim Que tua nuca pálida e que tuas pernas finas Que tua voz rouca e que teus olhos mortos Que teus cabelos ralos e que teu riso amarelo São coisas belas, mesmo muito belas?... Tu és a minha musa e meu elogio vivo Feito por todos que tentam em vão te conquistar
- Arte, política e cultura
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A virgem imprudente gem! Irias sentir agora que só nos meus braços caberias sem folga que só em frente a mim sentirias o prazer do impudor - que só meus beijos te saciariam e que só os carinhos da minha mão te seriam agradáveis e te poderiam revelar o sentido real da tua forma, desperdiçada e gasta por todos os que te tiveram. Sentirias agora a paz da verdade e a alegria de quem se perpetua nos frutos do seu amor. É tarde, porém - Chegaste a mim exausta, dilacerada e quase extinta. O meu contato faria sangrar de novo todas as feridas do teu corpo; e teus olhos acostumados às trevas, cegariam com a luz ou veriam então o terrível nojo que eu sentiria de encontrar em ti o vestígio dos outros. É tarde demais! Só uma idéia nos poderá consolar: foste usada mas não possuída. És, ainda virgem, Ó imprudente e louca. Mulher sentada com ramo de flores, 1927, Ismael nery
Que incrível loucura a tua, ó virgem imprudente, que fez com que extinguisses a lâmpada do teu espírito antes de te teres encontrado em mim! Que incrível loucura a tua, ó virgem mil vezes imprudente, que te forçou a esgotar os homens na minha fácil procura! Não viste que eu estava em tua frente?! Não sentiste os impulsos do teu ser que te empurrava para mim como uma forte e invisível mão?! Por que gastaste tua mocidade e amoleceste tuas carnes na vã experiência dos outros homens? Não tinhas a prova do teu erro no teu desânimo e no teu crescente cansaço? Porque insististe violentamente nos beijos que só aumentavam a tua insaciabilidade, e nos carinhos ofensivos e sem significação que recebias? Nasceste para mim, e só por isto chegaste a mim. Não te esperava mais, ó desgraçada vir-
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POESOFIA
O ente dos entes
- Arte, política e cultura
Anjo com casal, Ismael Nery
A minha mão gigante rasgou o céu e apareceu a figura do Ente dos entes. Houve confusão tremenda e os homens se misturavam gritando; gritos de alegria, de dor, de espanto e de medo. Os sentidos dos homens se aperfeiçoaram e eles viram, ouviram e sentiram o que nunca tinham visto, ouvido e sentido. Houve, depois, consciência e todos se calaram. E olhavam pasmos a figura do Ente dos entes, que para os homens era uma mulher e para as mulheres era um homem, e que apontava para três estrelas que giravam loucamente em volta de uma grande esfera de aço polido, que tinha a cabeleira como a de uma mulher, e que, serena, caminhava girando sobre si mesma, para o ocidente. Depois, o Ente dos entes abriu suas vestes e mostrou no seu corpo fosforescente três nódoas vermelhas, duas na altura do ventre, e uma em cima do coração. E falou em linguagem desconhecida. Ninguém entendeu o que disse o Ente dos entes, mas todos, no fim, sentiram um grande consolo. Na noite deste acontecimento os homens amaram como nunca tinham amado as suas amadas e estas conceberam filhos para que pudessem ver também o Ente dos entes, que prometeu voltar. Houve paz temporária.
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A
uma mulher Eu queria ser o ar que te envolve Desde o teu nascimento. Eu queria ser o teu vestido que te esconde dos outros. Eu queria ser tua camisa que te conhece em segredo, Eu queria ser o leito onde te abandonas ao teu pr贸prio frio, Eu queria ser teu filho e teu amante, Essencialismo, Ismael Nery
Eu queria que fosses eu. Eu queria ser teu amor e teu Deus, Eu queria n茫o existir.
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POESOFIA
POEMA A
s gargalhadas Os prantos Os gritos de admiração e de pavor Os gemidos de gozo e de sofrimento O múrmurio do mar O troar dos canhões E todos os barulhos do universo — Tudo isto penetra no meu ouvido Como no ouvido De uma estátua de pedra de olhos fechados, Imóvel, Que presidisse a vida, Que registrasse o tempo E que pensasse — O dia em que visses essa estátua olhando Poderias afirmar — não existe Deus. — E terias então o direito de julgar.
- Arte, política e cultura
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Hist贸ria de Ismael Nery - Devorador de mulheres
POESOFIA
ORAÇÃO Meus Deus, para que pusestes tantas almas num só corpo? Neste corpo neutro que não representa nada do que sou, Neste corpo que não me permite ser anjo nem demônio, Neste corpo que gasta todas as minhas forças Para tentar viver sem rídiculo tudo que sou. — Já estou cansado de tantas transformações inúteis. Não tenho sido na vida senão um grande ator sem vocação, Ator desconhecido, sem palco, sem cenário e sem palmas. — Não vedes, meu Deus, que assim me torno às vezes irreconhecível A minha própria mulher e a meus filhos. A meus raros amigos e a mim mesmo? — Ó Deus estranho e misterioso, que só agora compreendo! Dai-me, como vós tendes, o poder de criar corpos para as minhas almas Ou levai-me deste mundo, que já estou exausto. Eu que fui feito à vossa imagem e semelhança.
Amém!
- Arte, política e cultura
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Ismael Nery pediu para ser vestido com o traje da Ordem Terceira Franciscana no seu sepultamento.
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A morte de Ismael Nery
PROPAGANDA
E
Testamento Espiritual
sperei até hoje que vós me descobrísseis. Quis dar-vos o prazer de vos sentir crescer. A minha excessiva proximidade impediu, porém, que me olhásseis como realmente sou. Contar-vos-ei agora a minha história e descreverei o meu físico, para que disto tireis o proveito necessário e justifiqueis a minha e a vossa existência. Pertenço a esta espécie de homens que não constroem nem destroem, mas que dão a razão de toda a construção e de toda a destruição. Eu sou o predestinado, como foram também meus predecessores e como serão meus sucessores. Através dos séculos deveremos desenvolver o gérmen que, no princípio da vida recebemos. Nós somos os grandes sacrificados que sofreram por todo o erro e atraso dos homens. Somos os homens que amam e consolam, e não somos amados nem consolados. Se não fossemos portadores do gérmen de que vós faleis acima, há muito que a nossa raça teria acabado violentamente. Quando tudo tiver atingido os seus fins, aí começará nossa visível utilidade. O homem agora distribui suas esperanças na arte e na ciência. Chegará um tempo em que a arte e a ciência não bastaram para suprir a ânsia crescente de compreensão que a humanidade tem. Toda a arte resume-se em suprir as necessidades científicas, toda a ciência resume-se num estudo de equilíbrio da vida e numa tentativa formidável de reconhecimento matéria da vida. Ah, se nós pudéssemos conhecer, ou se, pelo menos, pudéssemos chegar a conhecer um outro homem! A solidão do homem é o que mais o apavora na vida. Os homens se olham como desconhecidos com as mesmas roupas. Vivemos desconfiados - tudo fazemos para garantir o que possuímos, com medo dos ladrões de toda a espécie, que vemos em todos os homens. Inventamos o direito e a polícia e pomos em nossas casas grades de ferro e portas de bronze. O homem se esquece de que o que possui mo-
ralmente não é acessível aos ladrões - mas aumenta o seu desassossego com suas posses físicas, esquecendo a ciência por ele já conquistada. Para que guarda uma mulher que não é sua? Para que bater-se por uma idéia que não sente? Para que duas casas com um só corpo. Para que o sustento de uma vida sem consolo? Ah! a esperança! Que é a esperança? Tenhamos esperança – Aumentemos a esperança – Eu em Deus e vos em mim e em meus sucessores. Um conselho vos dou, com a autoridade que me confere as rugas da minha testa, o meu olhar febril e as minhas mãos mutiladas: não façais o que vos causar nojo. Mesmo que este nojo seja mínimo. Dirigir vossa ciência para conseguirdes um aumento micrométrico das vossas sensibilidades. Já reparastes, meus irmãos que vivemos num mundo em que existem soldados, juízes e prostitutas! Onde se encarcera um homem pelo depoimento das testemunhas ou se enforca um outro por insultar um líder. Existem testemunhas? Existem líderes? Que é a vontade do povo? Que é o bem geral? Já fizestes, com a ciência que tendes a psicologia de um chefe. Porque não acreditar em Deus, quando acreditais até nos regimes políticos? A fome, a guerra e a peste se apresentaram aos nossos descendentes como a nossa única herança, altruística. A humanidade, como as plantas, precisa de estrume. Dos nossos corpos renascerão aqueles corpos gloriosos que encerraram as almas dos poetas. Tudo foi feito porém tudo só existirá realmente em tempos diversos. Os poetas serão os últimos homens a existirem, porque neles é que se manifestará a vocação transcendente do homem. Todo o homem recita um poema nas vésperas da sua morte - a humanidade recitará o seu nas vésperas da sua, pela boca de todos os homens que nesse tempo serão poetas.
Ismael Nery 25
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Grande Hotel - lugar onde Ismael Nery fez sua exposição. Belém,1929.
Ismael Nery por Claudio de La Rocque Leal
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ão há diferenças verdadeiramente substanciais, no que diz respeito à intelectualidade, entre o que era a Belém de 1929 e a que é a de hoje. Por mais que se seja otimista, com muita facilidade esses dois tempos confrontam-se - praticamente duas cidades distintas - e quase nenhuma mudança foi processada de lá para cá, menos ainda mudou quando pensa-se na questão do moderno dentro da arte. Surpreender-se com isso? Não, basta análise, não muito profunda, sobre importância, influência e significância que a borracha, a exploração do látex, produziu na economia paraense-amazônica, vista como um todo, para compreender-se a grandiosidade do que poderia ter sido a questão intelectual local, caso tivesse havido agentes influenciadores naquele meio cultural, no seio daquela sociedade tradicional e burguesa. Que tentativas houveram, não se discute, no entanto, todas em vão. Arraigada ao
âmago mais tradicional, uma sociedade inteira buscava manter-se a mesma, executando verdadeiro controle sobre o novo, que entrava na região, especialmente no campo das artes e literatura. O que importavam de novidades da Europa, para ouvir ou ler, correspondia a um padrão anteriormente previsto e mantido a qualquer custo pelos aristocratas da borracha. Especialmente no que diz respeito à literatura. Empreender uma busca por estantes de bibliotecas de intelectuais e políticos do final do século passado e das primeiras duas décadas deste é perceber que a tradição, o clássico, preponderou e a muitos norteou. Verifica-se o que as livrarias anunciavam nos jornais, ratifica essa crença de que o novo, por aqui, não era assimilado integralmente, mas sim só na superfície meticulosamente decorada. O que entusiasmava a sociedade paraense de então eram as artes do
espetáculo, as grandes companhias de ópera que aqui aportavam antes mesmo que na capital da côrte (e depois da República), a cidade do Rio de Janeiro, causando frisson na juventude. A música sim, era por demais cultuada, tanto que Carlos Gomes, mesmo que se encontrasse doente e ao final da carreira, foi designado para dirigir o Teatro da Paz. Este, anterior ao Municipal do Rio de Janeiro, e muito mais rico em seu esplendor eclético, recebeu grandes divas. O ecletismo dominava também na arquitetura que, àquela altura, nascia em parte das intenções pretenciosas do intendente Antônio Lemos, o que importa dizer a implantação do neoclássico, por mais que tardio, nas fachadas e casas da cidade, em parte, e também, as influências francesas e belgas, ferro e art-nouveau, não necessariamente nessa ordem. A cidade de Belém é uma das mais ricas quando trata-se de arquitetura do ferro, aqui iniciada em 1880, com a montagem
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da caixa d’água de São Brás. Mas, em nenhum momento o que era tido como arte oficial na cidade, o neoclássico romântico de pintores ao estilo de Estrada e Theodoro Braga (que gozava da intimidade da Intendência, tendo chegado a documentar em guaches e aquarelas aspectos do sítio de “Moema”, de propriedade de Antônio José Lemos), cedeu espaço à menor manifestação do moderno, nem através das gravuras do inspirador de Charles Baudelaire em “Le Peintre de La Vie Moderne”, Constantin Guys. Não ocorreu a assimilação de um todo ordenado, não houve a preocupação com um crescimento intelectual, não tendo se verificado absorção de novas idéias, nascentes na Europa. O que ocorreu foi tão somente – muito mais evidente no campo artístico-cultural — uma série de eventos e apresentações que visava algum fim imediatista, algum possível lucro, que foi disperso no tempo, tendo hoje ficado sem nenhum registro além de raras páginas de jornais. Aliás, como técnica de marketing cultural, os eventos continuam sendo utilizados da mesma maneira, com o mesmo fim, dentro das mesmas
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Documentário
- Arte, política e cultura
possibilidades, sem continuidade. Resumindo a questão da formação de uma cultura mais evoluída em Belém e Manaus, ou simplesmente o incremento da cultura então existente, afirma-se que não chegou a ocorrer assimilação do que era pensado, de fato, nos meios literários europeus. Não houve incorporação, ou representação, de nenhum dos pensamentos que importavam em uma evolução, na mudança, que lá se processava. Alguns casos isolados, como a exposição de Anita Malfatti, em 1917, que era decorrência de um emergente expressionismo, ocorreram, mas não o todo, com uma incorporação do então pensamento moderno do mundo, entendendose como este o que era Paris, Londres, Berlin e, quando um pouco mais além, Boston e Nova York. É muito provável que a angústia percebida em artistas do início do século XX, em que o domínio da exploração do látex era perdido pela Amazônia, tenha ficado irremediavelmente cravado no inconsciente de todo o povo, e na proporção em que o esquecimento começou a ser a regra da região, o processo de empobrecimento foi tornando-se inegável. Talvez ainda envoltos na mesma sensação de angústia, já que a sociedade cobrou e cobra uma posição, os artistas frustem algumas ambições particulares em função do todo - o que pode ter gerado a acomodação como forma de adequação, uma espécie de lobotomia, ou seja, expurga-se os sentimentos mais avançados para não quebrar com o código de honra de uma sociedade imediata-
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mente após o colapso. Foi o caso de Angelus Nascimento, assim como o de Manoel Pastana (que chega a virar sua obra para o campo da pesquisa do desenho indígena e elocubrações de designers tendo como inspiração frutas e fauna amazônicas) e Andrelino Cotta (que toma-se mais conhecido como chargista de revistas como “A Semana” e “Belém Nova”, que propriamente como pintor). Heidegger foi categórico ao expressar esse instante de ser, enunciando que “O que chamamos de ‘sentimentos’ não é nem um epifenômeno fugidio de nossa conduta pensante e voluntária, nem algo provocado por uma simples impulsão ou um estado de fato, com o qual nos acostumamos desta ou daquela maneira”. No enunciado, todo o drama da construção e reconstrução do pensamento cultural no Pará após o episódio, o grande episódio da borracha, que implica na quebra com a tradição portuguesa, o que foi produto direto da maior revolução popular jamais registrada na história do Estado: a Cabanagem. Voltando ao enunciado de Heidegger, o acostumar-se a uma ou outra maneira talvez tenha sido forte demais na formulação da arte na Belém daquela época. Com a queda de Lemos, em agosto de 1912, a situação agrava-se sobremaneira. O que era já segredado, a quebra do látex, a perda do monopólio mundial, é amplamente noticiado, divulgado. A cidade continua, no entanto - o que mostra-se frequente em momentos de crise - à margem da realidade, em arroubos de sonho, delirando
nos passos de Pavlova (1918) e de outras Divas, que ainda pisaram no palco do Theatro da Paz, ou do Palace Theatre, que fazia parte do Grande Hotel, o primeiro hotel brasileiro de categoria internacional, ou intercontinental, como se pode verificar, anos mais tarde, o hotel sendo comprado pela iniciante cadeia de hotéis, a Intercontinental. Esse delírio talvez só finde em 1930, na gestão de Antônio Faciola na Prefeitura de Belém, quando é fincado no centro do sítio onde antes funcionara o prédio da bolsa de valores, o relógio anos antes encomendado, que transformou a pequena praça na “do Relógio”, tornando-se um dos símbolos, ou marcos, de Belém, bem em frente à abertura da Doca do Ver-o-Peso. E a angústia e a melancolia que vão servir de timbre aos paraenses, uma nostalgia imensa pelo que não chegou a ser vivido. Sim, muito mais pelo que não chegou a ser vivido que pelo realmente o foi. Por toda trajetória artística, e de vida, do artista Ismael Nery encontrar-se-á essas angústia e melancolia, algum tédio, enfim, sentimentos irmãos, que distanciam a alma do centro, onde todas as demais harmonizam-se. Unem-se partes distintas dessa nostalgia. Nery aporta na cidade em 1929 para realizar exposição no hall do Palace Theatre, o mesmo que recebeu a apresentação de Ana Pavlova (a bailarina russa dançou no Palace, além de no Theatro da Paz. O Palace, como já se disse, ficava no Grande Hotel, demolido em 1972). A obra de Nery, em si, implica
em uma demonstração, um exercício infinito de desnudamento da alma humana, especialmente depois de sua viagem à Europa em 1927, quando o relacionamento com pintores surrealistas ficou mais estreita e essa influência maior. Toda essa carga emocional encontrada nos desenhos, aquarelas, guaches e óleos do genial artista, eram como o retrato de uma angústia maior, mais completa, comum a todos os que habitavam a cidade natal do artista, que no entanto a abandonara há tanto e na Capital Federal morava. Nery tinha uma boa formação. Havia estudado Filosofia e acreditava-se um dos predestinados a fazer do mundo algo a valer à pena ser vivido. Sua formação artística sempre andou em conflito com a humanística, ao ponto de muitos desenhos e projetos para trabalhos maiores terem sido destruídos. Muito do que se pode ver e ter dessa obra, fragmentária em sua essência, deve-se ao esforço e à amizade, ao artista devotada, de dois homens, Murilo Mendes e Giuseppe Baccaro- Tanto Mendes quanto Baccaro compreendiam que a manifestação do gênio de Ismael Nery encontrava-se no limiar da sanidade e da loucura. Sempre suas fantasias orquestravam a dor de maneira muito específica. Voltado à figura humana - poucas são as obras em que prédios, construções, ou vasos, paisagens e naturezas-mortas são foco principal, explorou-a ao máximo, representando a vida que experimentava sorver à noite, quando as mulheres
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Documentário assombreavam-se no amor obrigatório, ou mesmo quando os homens buscavam uns aos outros na ausência de uma alma ferida para ser curada. Ismael possuía a mente híbrida e tanto assim o era que a união com a poetisa Adalgisa Nery foi antes uma união que um casamento propriamente dito. Baccaro lembra que o artista retratava a mulher de várias e possíveis maneiras: “Ele pintava Adalgisa o quanto desse. Fez poucos retratos de outras pessoas, mas muitos dela”. A exposição em Belém
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Vida e morte, Ismael Nery
ery só realizou duas exposições em vida, além da de Belém, outra no Rio de Janeiro — foi marcada para o sete de setembro de 1929, às 10 horas. Nela, o universo habitual retratado, as mulheres da noite, os homens e sua brutalidade, todos os crimes subscritos, os pianos, a noite, a amargura, as dores, amores, sedução e mortes. Toda uma atmosfera de amor e sexo, sem ser necessariamente expresso, explícito, mas sendo certo, correto, ereto. Nos trabalhos, como “Samba”, ou “Yaras” (este em técnica muito semelhante à utilizada por Angelus Nascimento no “O Bailado da Árvore”), a notável volumetria de Nery, absorvida e adaptada do cubismo de Braque, especialmente de Braque. Na mostra do Palace Theatre, também, uma das raras cenas de rua, possivelmente a Igreja do Carmo, em Belém, a que dominava a paróquia que o menino Ismael frequentara, quando morou na cidade de Belém, o local próximo
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de onde nascera, deverás com a consciência do nascimento na inquieta alma. A dor de saber-se vivo. Na representação da Igreja do Carmo, a aquarela treme e desliza, desagua, como se uma chuva tivesse lavado e levado todo o peso, toda a angústia de dias aparentemente intermináveis. Difere-se o prédio do original. Em outra obra, a influência metafísica se mostra inquestionável, “O Silêncio”, uma obra de impacto dentro da pintura brasileira, talvez uma das mais importantes, levando-se em conta a data de realização da mesma, que é o ano de 1928, ainda que aparentemente fosse das mais ‘comportadas’ dentre as expostas naquele sete de setembro. “O Silêncio”, é como o espelho de Magritte, é a esplêndida observação da inutilidade da vida que, algum cronista no jornal observou, por vezes o artista fazia parecer amarga demais: “Dahi esse ambiente de sympathia espontânea que nos deixa, depois da contemplação - da meditação sobre a vida que elle nos apresenta, nítida, embora às vezes um tanto trágica, como naquellas “Irmãs” que a vida airada desleixou e enfarou...”. Nery mostrava-se feitura de seus desenhos, aquarelas, guaches e até mesmo concepção de arte importava na representação do sentimento e não na exarcerbação total da forma, levando-a a cabo, ou seja, aos limites permitidos, ou aos tidos como determinantes. Esses limites Nery expulsou de sua própria vontade. Não havia espaços para o braço bem delineado porém, mesmo com a volumetria cubista esgarçada, lá
na limita-se a defender como um artista defenderia outro, iniciando sua ‘crítica’ com o seguinte: “Não fosse a obra de arte o reflexo da alma do artista, não existia, de certo, em todo o universo, coisa alguma que merecesse a religiosa guarda dos grandes museus dos centros civilizados, onde atravessam os séculos as obras de nossos antepassados...”. De imediato ele descarta a possibilidade de Belém ser um desses privilegiados centros. Pastana vê em Nery a possibilidade de expressão, talvez, que nunca tenha tido, ou conseguido erguer, por uma questão de medo da reacão social que poderia desencadear, comodismo. Quando da mostra com Angelus, seus trabalhos, intitulados de “Prainha, Mosqueiro”, “Calçada do Colégio, Belém”, “Santo Alexandre” (nocturno), não suscitam nada além da enumeração de seus títulos. O difícil é entender esse trocar de exposições, como que para voltar à ordem quebrada por um universo que no fundo refletia a alma. O que Ismael Nery expunha, era pura alma. A imprensa local encarregou-se de noticiar amplamente a chegada do pintor e a abertura de sua mostra individual, como já foi comentado. Nery havia experimentado o reconhecimento de sua arte rica e rara quando de sua estadia em países europeus em 1924 e em , 1927, e isso contava muito
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Dançarina noturna, Ismael Nery
encontrava-se exposto braço e veias. Esse é o universo exposto e subscrito, raro e fértil, que fez com que Marc Chagall se apaixonasse de modo irreversível. De algum modo, Ismael absorveu muito mais a leveza surreal de Chagall que a metafísica de De Chirico ou Marx Ernst. Nery expôs o seu “Hamlet”, misteriosamente desaparecido, mas seguramente um trabalho mais formal, mais denso e de acordo com a mesmice que a cidade acostumara-se. Claro que, um dos trabalhos mais comentados àquela época, “Idílio Negro”, que trazia em si todas as possíveis manifestações da incongruência da vida, toda a contraditoriedade desse viver, do sofrimento à exaustão, não era obra para ser vista por moçoilas normalistas que frequentavam a capa da revista “A Semana”, uma das que mais estardalhaço fez sobre a chegada da mostra, resumindose depois a tão somente uma pequena nota que chamava atenção para a exposição que entraria no lugar da de Nery, a de Angelus Nascimento e Manoel Pastana, aí sim, com a concordância da cidade, sem as verdades noctâmbulas do “Comentador da Natureza”, como o quis Bruno de Menezes. E Pastana escreveu no Folha do Norte colocando-se a favor da exposição do paraense que era surrealista e superava a visão e compreensão de todos. No entanto, em seu artigo, Pasta-
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Documentário para a sociedade paraense. No Rio de Janeiro, amigos fiéis davam a dimensão de seu talento, como o escritor Murilo Mendes. Participara da Semana de 22, no Rio de Janeiro, e levara outro paraense, então na Capital Federal, a participar das manifestações, Angelus Nascimento, um dos amigos que Nery contava na cidade natal. Nery hospedara Angelus quando este tentou a vida no Rio de Janeiro, mudando-se para lá em 1913, e permanecendo pelo menos até o ano de 1923 - “O Bailado da Árvore”, (imagem ao fundo da página) que é baseado em uma lenda da Ilha de Paquetá, data de, 1923, ou 24. As notícias sempre chamavam a atenção para o reconhecimento do talento do artista fora do país. A importância que a exposição iria ter só seria verificada com o correr do tempo, com o passar dos anos. A pintura de Ismael Nery trilhou caminho igual ao de muitos outros pintores, utilizando-se, no início, do expressionismo, realizando retratos, no caso dele, soturnos com algum resquício do romantismo, ao fundo, em outras palavras, o que se absorvia na Escola Nacional de Bellas-Artes, às primeiras décadas deste século -para se ter idéia, o último Salão Nacional do Império deu primeiro prêmio, à obra de Eliseu Visconti. Quando ocorre a viagem à Europa, em 1924, os trabalhos de Nery já possuíam estilo e estética próprios, que distinguia-os dos demais artistas. A questão da aceitação ou não, então, não chega a incomodar, mas o mundo já era delineado segundo a dor e visão do próprio Nery, mesmo às belas cenas de bordéis e de Fonte: Biblioteca Nacional de Belas Artes
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interiores (alcova), que tornar-se-ão, posteriormente, mais frequentes até o surgimento da influência metafísica exercida a princípio por De Chirico e Marx Ernst, e depois mais atenuada e lírica, por Marc Chagall, por quem Nery nutrirá intensa admiração e amizade, levando-o a realizar a bela aquarela “Como meu Amigo Marc Chagall”. Dir-se-ia que após 1924 sempre com a volumetria cubista. O curioso é que o cubismo que vai interessar Nery não é o desenvolvido por Picasso - mais tarde inteiramente liberto da marca e da influência de Braque, que os fizeram, no início, não assinarem os trabalhos, tão semelhantes eles o eram. O que foi diferindo Braque de Picasso foi o mesmo que influenciou a arte de Nery: o talento. Pura e simplesmente a questão do talento. Nery possuía registro e estética próprios, um timbre que ninguém jamais poderia imitar, a ponto de saber-se de imediato de um trabalho é ou não dele. Nota-se ainda, que quanto à metafísica, quer na influência de De Chirico, de Ernst, ou no surrealismo de Chagall, só é perceptível depois de esgotados todos os esquemas de estudo e construção que o cubismo, enquanto escola, propiciava. Daí porque tantos desenhos, tantas experimentações. As experimentações de Nery eram especiais, mesmo que advindas de outros. Alguns sentimentos pareciam ter sido sentidos e expressos pela primeira vez ali, naquele pedaço de papel, sobre aquela tela. Em Nery a questão do desenho é mais nítida e importante, sua obra em óleo sobre tela tem menos importância do que a que deixou sobre papel,
Bloco de carnaval, Ismael Nery
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desde os mais simples e rápidos rabiscos, traços ríspidos e rígidos, até elaboradas e líricas aquarelas, que em alguns momentos mostram-se quase alegres, quase sem dor. Mesmo que tenha sofrido as influências mais fortes que uma arte possa suportar, sempre a marcação do próprio artista foi maior, mais segura, preponderante. Em determinadas épocas, no conceito, na temática, não era onírico, não acreditava no sonho, desdenhando da própria obra. O sonho tomava-se a verdadeira realização, com a forma utilizada como concretização da ideia. O expressionismo ainda era muito forte em quase todos os países do mundo - essa influência vai durar muito mais que décadas, mesmo contando com Hitler e a Segunda Grande Guerra. Outro ponto utilizado no fortalecimento da escola alemã encontra-se na postura assumida por seus artistas chefes, Kandinsky e Klee, como pelos arquitetos e poetas, respectivamente, Walter Groupius, e Bertold Brecht, que especulavam uma arte mais voltada ao proletariado, ao povo, distanciando-se assim dos ditames oficiais então vigentes, ou seja, os excessos da arte dos príncipes alemães. E a época de obras voltadas para o operariado: saída de fábricas, enfim, um mundo diferente era mostrado pela arte. Em 1917, na União Soviética, o mundo via passar para a prática, pelo menos a princípio, o que haviam proclamado
as palavras - evita-se aqui discutir, por exemplo, a política de Stalin. A República de Weimar, berço da escola alemã, não tinha tido sua extinção formalmente decretada. Além do que, no Brasil, processava-se a fase de transição da primeira geração do modernismo. Essa transição iria levar à arte politizada, plena de intenções subterrâneas utilizando-se de uma licença poética, distintas experiências que o expressionismo, em suma, pregava em seu bojo; não havia mais a busca do bem-estar do operariado e de toda uma classe menosprezada. É bem provável que essa mudança de intenção básica, observada na escola, tenha se desenvolvido na própria Alemanha, mais ainda, na própria Weimar, especialmente quando ficou explícita a participação de um pensamento viciado, doentio, esmagador, que visava acabar de vez com qualquer nova aspiração: o nazismo - a revista “Simplississimus” (1918-1930), editada em Weimar, demonstra todo esse caminhar, esse evoluir, da teoria e prática do nazismo de Hitler às avessas, ou seja, ridicularizando o que o Fürer apregoava. Nesse mundo em agonia, Nery travou sua maior batalha: contra o ego esmagado, em sofrimento e culpa. Sua autovigilância o punia por não poder dar mais à família. Sacrificava a si mesmo. O filósofo, destruía a maioria do que o artista produzia. Se o expressionismo de Oswald
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Documentário
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Goeldi, na fase dos subúrbios cariocas, por exemplo, quando suas gravuras esvaziaram-se de figuras humanas e representaram a solidão através de mesas e cadeiras vazias, copos com alguma bebida a ser sorvida, gatos e luares espectrais, a obra de Nery só fixava o homem enquanto centro de todas as atenções. Talvez muito mais expressionista o fosse, porque buscava na representação do homem o retrato da opressão que sentia, a opressão que fazia com que apertasse contra o peito todas as dores universais, as insuportáveis dores assumidas por ele e que não lhe pertenciam, pelo menos não exclusivamente, sua obra tem o homem por tema central e, consequentemente, a agonia e a glória de ser humano tornamse mais universais que qualquer outra e rompem com ditames e limites de uma arte oficial, ultrapassando a barreira do sonho, através da introdução do surrealismo, quer nas telas azuladas com figuras duplas e duplificadas - o outro, a sombra, o eu, quer através da dor exposta em um braço que exibe chagas mais profundas ao tempo em que olhos impassívos de mulher prescrutam imperiosamente. Ver intuitivamente, tocar o inconsciente coletivo e extrapolar o momento da vitória e fazer voar, flutuar sobre todas as cabeças, prédios e homens, de flores carregada, uma Ofélia desnudada e alada, símbolo maior da melancolia, que foi imaginado, há tanto, por Dürer. A melancolia é a sensação alada, daí a queda de Ícaro representar sem mistérios uma das impotências do homem. O que Nery expôs
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em 1929, no hall do Palace Theatre, nada mais era que a singeleza de uma pintura honesta, sentimento humano expresso, ainda que em seus meandros, por entre as subterrâneas galerias, a leitura sempre se formula da maneira mais complexa, e muito do agônico, próprio da alma do artista, à superfície aflorasse. O artista expunha alma, pura e simplesmente, essa alma foi o que assustou a cidade, quando desperta naquele sete de setembro, já alertada através de crítica/artigo/resenha - que nome dar ao que o poeta Bruno de Menezes publicou naquela manhã no jornal “A Folha do Norte”?-, onde chamava atenção para o veriam e o que na realidade encontrava-se ali contido. No entanto, para um centro burguês, apontar suas falhas burguesas é o mesmo de dizer que não concorda com ele e, com isso, despertar-lhe a ira. Bruno vinha declaradamente alertar aos paraenses para o que eles tinham o raro prazer de ver. Sob o título de “Um Comentador da Natureza” - nada mais apropriado -, o poeta desfolhava a bandeira dos sentimentos ocultos, naquele sábado de brilhante manhã. Bruno iniciou: “Belém vai assistir nos dias que se seguirem além de hoje, às 10 horas da manhã, ao curioso e interessante espetáculo da ‘première’ de uma exposição de pintura a realizar-se no salão de entrada do Palace Theatre pelo pintor brasileiro Ismael Nery. Constituirão nota imprevista e enigmática estas horas de arte porque nossa selecionada assistência a estas manifestações da beleza irá admirar um profissional da
palheta, que anima as telas, distribuindo as nuances, a gradação dos planos, os coloridos, as miragens-perspectivas, o movimento interior das figuras, de tal forma e com tal vigor que nossa análise intelecto-psica (psíquica) se toma de sobressaltos ao pretender investigar as tendências, os motivos, a estética ou o cânon, em que o artista se acrysola para conseguir o rumo dos seus quadros.” Bruno continua alertando que: “Ismael Nery, para nós, afora o Angelus, um dos íntimos que ele veio encontrar aqui entre surpreso e encantado, será novidade como interpretação cerebral, nos seus desenhos, nas suas aquarelas, nas suas manchas. Igualmente assim o acolheu a Europa, principalmente a França, onde suas originais criações, vencendo a hostilidade acadêmica, mereceram a crítica maravilhada e argurta de conscientes e cultos pesquisadores da essência, da lógica, da filosofia e da moral existente nas obras de arte. Vivendo no Rio, desta vez lembrou-se de vir sentir o esmagamento da província natal. E aqui o temos, paraense convicto e crente de maiores realizações pelos seus conterrâneos, os quais, numa frase de incisiva oportunidade são os ‘místicos de instintos polimorfos’. Uma sincera advertência, entretanto, torna-se mister fazer aos críticos, aos amadores e profissionais, sobre a exposição pictural de Ismael Nery; — ele não de (se) adstringe a qualquer das famosas escolas estatuídas ‘aprés la guerre’. A sua maneira de agitar a alma do quadro é toda a consequência de abstrações concretizadoras de arte. Ele não anseia a busca à beleza superficial que serve de modelo à cor, às linhas, à anatomia estilista dos outros pintores. O seu pincel laiva de tintas a tela
para comentar, para deixar à margem da realidade palpável o tom claro ou carregado da beleza abscontida, imprecisa, onde ondula em fortes agudezas de seus virgíneos a promessa inicial do sexo”. O que Bruno busca é paulatinamente introduzir o espectador, então leitor, no mundo de sonhos e delírios do pintor. Bruno ainda avisa Ismael quanto ao esmagamento da província. Os desenhos de Nery exprimem com nitidez a dor que se desenvolvia em seu interior. Mas, o que mais registrou foi o dia-adia de um mundo, um submundo, ao qual ele, estranho e boêmio, fazia parte. E curiosíssimo o fato da inexistência de cenários em seus desenhos, ou de espaços onde desenrolem-se os dramas representados. Na maioria dos desenhos, porém, talvez para intensificar o próprio drama dos ‘atores’, ou para dinamizar a interação que tem de haver entre o espectador e a obra, é tão somente a figura humana que é mostrada. Bruno de Menezes entendeu perfeitamente que a obra de Nery era especial e merecia ser vista com maior atenção. Disse: “Os seus operários, as suas cabeças, as suas irmãs perdidas, não devem ser olhadas como trabalhos futuristas ou possíveis de catalogarem-se entre a evolução do desenho, que forneceu muitos títulos do sectário, desta ou daquela escola, a pintores de técnica livre. Vamos, portanto, examinar os quadros de Ismael Nery, ao serem apresentados ao nosso culto meio admirador das belas artes, com uma idéia simpática e independente de desvendar neles o desdobramento interior de quem os elaborou, dissecando a verdade, o belo e o horrível, o poético e o trágico, e, so-
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Ismael Nery
Interior do Palace Theatre. Foi no Hall desse teatro que Ismael Nery realizou sua exposição em Belém, em 1929. in VERIANO, Pedro, Cinema no Tucupi, Belém, Secult, 1999.
questão da pintura, do desenho, da vida, é claro. Assim, sem exageros, sem desperdícios, fazia-se suficiente, na medida. Na exposição de 29, todo o sentir encontrava-se reunido e exposto no hall do Palace Theatre. A imprensa chamou muito a atenção sobre a mostra, antes dela se realizar; na realidade criou-se certo frisson em torno da exposição do artista que voltava à terra para mostrar o que aprendera no tempo em que permaneceu no Rio de Janeiro. Porém, não havia um sentido de retorno, de volta definitiva, até mesmo dir-se-ia o contrário. Nery experimentara o que era a cidade através de relatos de amigos que lhe visitavam com frequência quando de passagem pela, então, Capital Federal. Antes mesmo da mostra de 1929 Nery já havia formulado integralmente o conceitual de sua produção artística, assim como o seu pensamento filosófico. Havia a volumetria do cubismo, detectável especialmente nas sombras dos corpos humanos, em suas geometrias, assim como alguma proposta metafísica. Quando à primeira, a mostra era recheada de aquarelas onde a dor era posta em xeque e veias, ossos, entranhas, eram expostos. Em um dos seus trabalhos, a sexualidade é colocada em foco. Raras vezes pintava alguma coisa que não fosse a figura humana, o homem por excelência. Raras vezes, chegou a realizar trabalhos que enfocassem prédios, por exemplo. Na mostra de 29 há registro de apenas dois trabalhos que tinham por modelo não uma figura humana, e sim lugarejos da cidade. Um deles retrata uma igreja, talvez a
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A noite, de Ismael Nery
bretudo, o doloroso sentimento humano de sua arte tumultuaria e dinâmica”. O desdobramento interior, o doloroso ofício de ser, de viver. Bruno era consciente que seu artigo/crítica seria lido, porém pouco ouvido. Havia motivos de sobra para constrangimentos naquela Belém, como haveria nesta. E quando forma e conteúdo abrem-se na proposta mais moderna que qualquer movimento de vanguarda brasileira jamais ousara propor que a dor humana da solidão, do viver, inerente ao respirar, andar, ver, crer, amar, errar, intensificam-se com a propositura da estrutura (forma) do artista que, destarte de sua bela e rica fase de pintura a óleo, constrói com a espontaneidade do desenho obra mais rica (o que desfaz as intenções pecuniárias do mercado de arte), não mais simples proposta, e não mais artística, mas sim de arte. O desenho é em si, destarte de quaisquer preconceitos contra ele existentes - a maioria dizendo respeito à durabilidade, a mais importante manifestação artística, quer enquanto documento) humano, quer enquanto obra de arte concluída. E através da espontaneidade do desenho que Nery trava a reflexão sobre si mesmo. O artista também passa a ser espelho até de sentimentos alheios; todo o seu ser é reflexo alheio, reflexo de outro sentir, que ele representa de maneira inigualável. Nery desvela mistérios de cada uma de suas personagens. E são quase sempre mulheres, ou seres híbridos, que encontram-se na bravata em que implica a vida. A filosofia, o essencial, era o que ditava toda a
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Duas figuras, Ismael Nery
Documentário
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do Carmo, rara e curiosa aquarela. O outro, não poderia deixar de ser, o cartão postal da cidade: o Ver-o-Peso. Ainda assim, neste último, Nery consegue transformar o banal, a habitual cena, pura e simples, em alguma coisa a especular quanto à condição humana. Utiliza-se de detritos, representa o odor, talvez até se nos induza através da utilização da figura de um urubú. Até nos desenhos mais leves, como nos de cenas de praia, Ismael consegue mostrar um mundo além da fronteira da agonia. Cenas íntimas e domésticas, algumas mulheres beijam-se, se querem e entregam-se, alguns poucos homens tocam-se com maior ou menor expresividade; a obra de Nery é notadamente voltada para o elemento feminino e nele não a catarse de um desejo mal realizado, ou mesmo não realizado, mas sim a questão do ser e do não ser, a eterna dor que importa a vida, enfim, o sofrimento em seu mínimo limite, seu terreno demarcado em claustrofóbicas medidas. Os ícones, os símbolos de uma caligrafia rápida, ríspida, riscada quase que a esmo, esférica, profícua e eternamente marcada por linha, de sofrimento, vão encontrar somente em poucos surrealistas. Na realidade, Nery é o primeiro surrealista brasileiro. A fase em que Cícero Dias se toma surrealista é uma investida lírica sobre o universo de Chagall, de quem Nery absorveu muito, mas mantendo a unidade, a cara-
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crerística própria. Criou um código próprio. Há um par, atemporal, que se lhe cabe feito luva na igualdade de sentimentos: Flávio de Carvalho. Crê-se até que igualem-se em sofrimento, medo e angústias. Em ambos, a questão do desenho é importante. E esse é um ponto fortíssimo. Há a consciência inabalável da crença, do credo. Jacques Lacan, observa em “Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano” (1900), que “em Hegel, é ao desejo, à Begierde, que compete a responsabilidade pelo mínimo de ligação que o sujeito precisa guardar com o antigo conhecimento, para que a verdade seja imanente à realização do saber. A astúcia da razão significa que o sujeito, desde a origem e até o fim, sabe o que quer”. Hegel não admitia o belo natural, somente o artístico. O que se vê na obra de Nery é o domínio próprio do desenho, bem como a predileção por este. E também o fato de nunca ter invadido outra seara qualquer. Suas leituras são próprias, dignas dele mesmo. A cor é sempre a do drama, o azul mais intenso, o vermelho mais sangrado, o amarelo mais próximo do enlouquecimento, enfim, o sol a brilhar na palheta, sem ser jamais desperdiçado. Murilo Mendes disse certa vez que Nery tinha do artista um conceito diferente tio de ser. Para Nery, o artista era quase um vidente, mais ou menos como o disse Rimbaud, na famosa carta que escreveu
infortúnios, reunindo história e vida, mescladas as duas a uma boa dose de irrealidade, como o sol a esquentar as orelhas e a por frio pelos ossos. Quando acercava-se da morte, o artista foi desnudando o homem, retirando a pele, mostrando, expondo entranhas, ficando cada vez mais conciso - o realismo ao extremado ponto da visão. O artista abandona o terreno das hipóteses e adentra no da realidade concreta. Acercam-se anjos, um coro deles. O voo será alçado. Mas para um homem que aprendeu a desafiar a Lei da Gravidade, voar não é improvável, é fácil de realização, tal e qual em um de seus mais lindos desenhos, a desnudada forma feminina alça voo, de flores carregada, sobre cidades, homens, sonhos, ombros, sombras, sóis, terra, cruzes, mares, enfim, o universo inteiro e mais a Via-Láctea. Cláudio de La Rocque Leal Belém, agosto de 1999
Cláudio de La Rocque Leal foi jornalista, artista plástico, crítico de arte, curador de exposições e pesquisador da história da arte e da literatura. Dedicou-se a nomes como Fidanza, Theodoro Braga, Angelus Nascimento, Pastana, Ismael Nery entre outros.
Auto-retrato (toureiro), 1922, Ismael Nery
a Georges Hambard (13 de maio de 1871). A missão que assumiu para si mesmo, Ismael, foi a de poder especular sobre o próprio homem sem o ferir, sem o tornar menor, retratando-o em seus extremos, fez com que crescesse sobremaneira, ao tempo em que a dignidade ficou soberana. A obra de Nery torna-nos todos um pouco mais dignos, mesmo sendo humanos que somos, porque transporta-nos a uma imensidão incompreensível, ainda que simples, do domínio do conhecimento humano. Nery torna-se mais humano na medida em que despe sua arte de artifícios esperados por grandes grupos de marchands, vendedores. O que ele constrói é um código próprio e obriga um mercado logo a aceitá-lo na proporção em que torna-se escasso, pouco e raro. E claro que a obra acrescida de trabalhos que são resultados de estados de ânimo não alterado e busca incessante do ser, como o auto-retrato em traje de toureiro, ou mesmo série de nus femininos executados em óleo sobre tela, toma-se mais rica. No entanto, é no desenho que delineia a si mesmo de forma definitiva. Esse eterno construir-se faz de Ismael Nery um artista em constante busca, o que o torna atual. Isolamento e morte, o artista sucumbe a seus próprios golpes, ao que vislumbra e que, muitas vezes, graças ao enfraquecimento físico, não corresponde à fidelidade, à realidade mais fiel. Isolamento e morte, o artista sucumbe a seus próprios golpes de
Pesquisa Texto: Ilton Ribeiro iltonribeiro@gmail.com Imagens: Carlos Pará Agradecimentos: Mary Komatsu (Museu Nacional de Belas Artes), Jaime Barbosa e Alice Silva, Letícia Pará, Secretaria Estadual de Cultura, Fundação Cultural do Pará Tancredo Neves, Carlos Correa Santos, Maria Alice, Centro Cultural Banco do Brasil, Corredor Polonês.
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Belém Nova
Marinilce
Oliveira Coelho marinilce@amazon.com.br
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atmosfera literária em Belém da década de 1920 é libertária. A publicação em 1923 da revista Belém Nova abria espaço para o Modernismo, e dela resultaria novos conceitos estéticos. A revista apoiada nos fatos inovadores da literatura nacional e no princípio da renovação entra em choque com os últimos movimentos literários do século XIX, o Parnasianismo e o Simbolismo, que de um modo ou de outro ainda serviam como modelo para a literatura. Logo, estabelece superação a uma crise literária e divulga um grupo de escritores e intelectuais de tendências modernistas. O grupo é composto por Apollinario Moreno, Abguar Bastos, Augusto Meira, Bruno de Menezes, Carlos Nascimento, Chermont de Brito, De Campos Ribeiro, Dejard de Mendonça, Eneida de Moraes, Elzeman de Freitas, Eustachio de Azevedo, Farias Gama, Fran Pacheco, Jacques Flores, Ignácio de Moura, Luiz Gomes, Lívio Cezar, Olívio Rayol, Paulo Oliveira, Pereira de Castro, Severino Silva, Vicente Abranches. Do Rio de Janeiro e de outros Estados brasileiros, a revista paraense recebeu a colaboração de escritores como: Almacio Diniz, Adelino Magalhães, Assis Garrido, Antônio Garrido, Carlos Garrido, Carlos Fernandes, Francisco Galvão, Jayme d’Altavilla, Martin Napoleão, Raul Bopp, Peregrino Junior e Tasso da Silveira. O grupo, entusiasmado com os versos livres e os manifestos, empenha-se à consolidação das tendências inovadoras. A literatura, por sua vez, acentua as diversas modificações estéticas, políticas e culturais. Belém ingressa no Modernismo.
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om o Modernismo, a literatura brasileira modificou-se expressivamente. Um acontecimento na história da literatura que não aconteceu de dia para o outro, mas que se deve em boa parte às aceleradas transformações culturais, políticas e sociais ocorridas no Brasil e no mundo, desde a primeira metade do século XIX. O professor Francisco Foot Hardman, em seu artigo Antigo modernistas (1992), destaca o fato de que por volta de 1870, ou seja, meio século antes da Semana de Arte Moderna, ocorrida em 1922, em São Paulo, já havia um grupo de pensadores e uma série de obras que já se inscreviam num movimento sociocultural de ideias e de reivindicações com base no livrepensamento, na oposição à monarquia católica e nas mudanças operadas na Europa. Entre os nomes, o do crítico paraense José Veríssimo, que já usava o termo modernismo para conceituar tal empreendimento no campo das ideias em repercussão no país, desse período. O Modernismo trouxe mudanças decisivas à cultura brasileira. Facilitou o desenvolvimento, “até então embrionário”, como afirma Antonio Candido, da sociologia, da história social, do folclore, da etnografia, da teoria educacional. E, uma revista, como a Belém Nova serviu como meio importantíssimo para que tanto o leitor quanto os autores locais compreendessem o que estava acontecendo no universo literário, na arte, no pensamento. Fruto da consciência da necessidade de mudar, Belém Nova exerceu papel importante no contexto da época, lançada em 15 de setembro de 1923, sob a direção de Bruno de Menezes (1893-1963), circulou até 15 de abril de 1929. Vida bastante longa para um periódico literário, se lembrarmos de outras revistas lançadas na mesma época, como, por exemplo, Klaxon (1922-1923), em São Paulo, que teve a frente Menotti del Picchia, Guilherme de Almeida, Mário de Andrade, entre outros; Estética (1924-1925), no Rio de Janeiro, dirigida por Prudente de Moraes Neto e Sérgio Buarque de Holanda; A Revista (1925-1926), em Minas Gerais, dirigida por Martins de Almeida e Carlos Drummond de Andrade.
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Revistas
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elém Nova chegou a uma tiragem de cinco mil exemplares mensais. A impressão visual é extraordinária: faz uso de ilustrações, charges, fotos. As capas coloridas, a paginação, a propaganda dos anunciantes (tais como o “Café da Paz”, o “Grande Hotel”, produtos alimentícios, higiênicos, agências de viagens) causam impacto no leitor devido à originalidade. Todo esse trabalho era feito pela Gráfica Oficial do Estado. A Redação funcionava na Rua 28 de Setembro, número 6, em Belém. A revista imprimia em suas páginas as feições da cidade com as livrarias, as ruas, as mangueiras, os bondes, os cafés, os costumes de uma classe média urbana, que se esforçava para se adaptar a nova situação econômica deixada pelo declínio da borracha. A vida mundana, a política, o esporte, a festa, como, por exemplo, a do Café da Paz, em pleno domingo, que chegou a distribuir nada menos do que dois mil sorvetes aos “petizes paraenses”, ao som do “jazz-band”, serviram de assunto para crônica, artigo, poema de intelectuais como Abguar Bastos, De Campos Ribeiro, Eneida de Moraes, Bruno de Menezes (que assina textos, algumas vezes, com os pseudônimos de Berilo Marques ou de Zé Boêmio). A linha editorial da revista é definida no primeiro número, do qual se destacam: reação ao passadismo; renovação; coragem da mocidade; culto ao progresso. No “Pórtico” do primeiro número da revista, assinado por Severino Soares, apresenta necessidade de criar, de renovar a literatura do norte do país e para isso aposta na mocidade da terra. - Arte, política e cultura
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e 1923 a 1929, os modernistas paraenses constituíram-se como grupo atuante no meio literário e publicaram obras inovadoras. Contribuíram para revigorar a literatura paraense da primeira fase modernista. Uma literatura construída com a forte presença do índio, do caboclo e do negro, além do destacar as mudanças da fisionomia da cidade de Belém. A poesia Flami-n’-assú, marcada pelo uso de termos regionais, expressa sentimentos do homem amazônico, em seu mundo mítico, universal. Em linhas gerais apontam-se como características da literatura dessa fase: acentuada inspiração nacionalista; maior aproximação entre a língua falada e a escrita; valorização do coloquial e do prosaico; a conquista do verso livre; a incorporação de aspectos da vida moderna, liberdade de criação, humor, irreverência. A poesia modernista considera que qualquer tema pode ser transformado em poesia. Por isso, os poetas participantes desse movimento, logo nos primeiros anos de existência, associavam às ideias dos poemas às imagens de um Brasil meio esquecido pelos parnasianos e simbolistas, tão absorvidos pelos vasos chineses, colunas de mármores, neblinas e cânticos serenos. Na poesia modernista, o fato comum, da vida simples e cotidiana ganha relevância. Assim, a gente humilde dos bairros do Umarizal, Pedreira, Jurunas começa a surgir nos poemas modernistas publicados na Belém Nova. O longo poema de Bruno de Menezes Batuque (1928) – que posteriormente, em 1931, seria título do livro de poesia do autor – celebra a vida, as tradições populares, as festas religiosas e nos terreiros, numa certa ascendência poética com Jorge de Lima. O poema quando mais tarde publicado em livro sofreu alterações por parte do poeta, ganhou mais na musicalidade e na presença de dados da cultura local. A respeito desse livro de poesia de Bruno de Menezes, o romancista Dalcídio Jurandir escreveria: “É um retrato de Belém, história do Umarizal, da Pedreira e da Cremação do cais e das velhas docas. O subúrbio e o terreiro, em suas páginas estão cantando e dançando.”
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grupo de Bruno de Menezes, Abguar Bastos, Jacques Flores, Eneida de Morais, De Campos Ribeiro teve voz para falar sobre a liberdade de criação poética. Belém Nova encerrou sua edição em 1929. Nos anos seguintes, lançaram livros individuais e seguiram itinerários diferentes. Alguns autores mudaram-se para outros Estados. Outros continuaram morando em Belém. Ageração que se autodenominou de “Vândalos do Apocalipse” (título criado por Bruno de Menezes) conquistou estima de vários intelectuais da sociedade local e realizou o projeto de receber e ampliar ideias modernistas da literatura e de outras artes. Certamente, deve-se a essa geração de intelectuais a contribuição crítica que permitiu o surgimento do modernismo no Pará.
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Bento Bruno de Menezes Costa (1893-1963) nasceu em Belém. Filho de pais pobres, estudou apenas o curso primário no Grupo Escolar José Veríssimo, iniciando-se logo na vida de aprendiz de encadernador na oficina de Tó Teixeira – mestre de violão e figura da música popular paraense. O objeto do oficio despertoulhe o interesse pela leitura, ajudando-o a tornar-se autodidata. O escritor teve papel importantíssimo no Modernismo literário no Pará, onde fundou e dirigiu a revista Belém Nova (1923–1929), reunindo jovens poetas e intelectuais paraenses a fim divulgarem as novas idéias estéticas e literárias do movimento modernista. Bruno de Menezes assinava, também, com os pseudônimo de João de Belém, Berilo Marques e Zé Boêmio. Faleceu em Manaus. Livros: Poesia – Crucifixo (1920), Bailado lunar (1924), Poesia (1931), Batuque (1931), Lua sonâmbula (1953), Poemas para Fortaleza (1957), Onze sonetos (1960). Folclore – Boi bumbá: autopopular (1958), São Benedito da praia: folclores do Ver-o-Peso (1959). Estudos Literários – À margem da cuia pitinga (1937) – estudo sobre o livro do poeta Jacques Flores. Ficção – Maria Dagmar (1950) novela e o romance Candunga (1954).
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A Revista Belém Nova circulou entre15 de setembro de 1923 a 15 de abril de 1929.
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e fato, a partir dessa obra começaria a ficar mais definido o estilo literário de Bruno de Menezes. Então, o cotidiano da cidade, expresso numa linguagem simples, acessível, moderna, toma conta das dezenas de páginas escritas por esse autor. Também, nos números 6, 10 e 11 da revista Belém Nova, publicados entre janeiro a março de 1924, Bruno de Menezes publicou a novela Maria Dagmar, que seria lançada em livro em 1950. A novela conta a história de Dagmar, moça pobre e bonita, morava num subúrbio de Belém dos anos 1920. A moça tinha a esperança de viver o grande amor, mas acabou caindo nos laços da sedução. Dagmar seduzida por um rapaz de classe média,
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que logo a abandona, sofre o desengano amoroso e os preconceitos do lugar. Numa narrativa que se apóia na fala coloquial e na utilização de períodos curtos, a prosa modernista de Bruno de Menezes traz à tona o drama de uma mulher solteira, numa mistura de paixão, preconceito social e solidão. O segundo livro de poesia de Bruno Menezes, Bailado lunar, lançado em 1924, quando a revista Belém Nova estava no segundo ano de circulação, recebeu elogio no ensaio literário de Luís Gomes, publicado na mesma revista naquele ano. Bailado lunar representou, aos olhos da crítica local, a consolidação do ideal da poesia moderna.
Prof. Marinilce Coelho é autora do livro “O Grupo dos Novos Memórias Literárias de Belém do Pará”- Editora Universitária da UFPA
Artes Gráficas e anúncios de época - Revista Belém Nova
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O MANIFESTO DA BELEZA
Nós estamos no instante da Beleza. Botaram por terra os falsos ídolos. Nós não consentimos mais no assalto vandálico dos bárbaros - os que procuravam mentir à Arte, encarcerando-a nos muros estreitos da Forma. A Arte venceu o Artificio. Todo aquele que atraiçoar a Beleza será castigado pela sua infâmia criminosa. Porque nós sabemos afastar o joio do trigo, o ouro da prata, o alumínio do cobre, a platina do estanho. Os “ourives” do verbo passaram. Foram-se os realistas sanguinolentos. A Arte não admite cerceamento. Anseia e quer Liberdade. Uma ideia não pode estar presa nos catorze versos de um soneto parnasiano. Não. Nem na simetria paralela de rimas raras e ricas, como apregoam os bufarinheiros do artifício. Não e não. Nós compreendemos a grandeza da nossa missão. O Brasil adquiriu a liberdade dos escravos; teve a democracia como forma de governo. Mas a Literatura estava entregue ao contrabando criminoso dos “ pivetes” nacionais. Copiava-se Bourget, imitava-se Zola, plagiava-se Alexandre Dumas. Todo mundo plagiava. Todo. - Arte, política e cultura
A poesia é a mesma da França! Vinha-nos de Paris, diretamente. De Castro Alves a Alberto de Oliveira. Do condoreirismo inquieto das “espumas flutuantes” ao parnasianismo régio, engomado das “meridionais”. Estamos no instante luminoso da Beleza. Chegou o momento da Liberdade! Nós estamos fazendo a Arte verdadeira, a Arte-Arte. Não copiamos e não plagiamos. Guerra de morte aos pastranos, aos nulos de toda a espécie. Nós estamos realizando a Arte Legítima. São Paulo está com as nossas ideias. “Klaxon” é um grito de revolta na amplidão. Graça Aranha, na Academia, como Augusto de Lima, estão vibrando com a Mocidade. Renovação! Nós temos ao nosso lado a inteligência luminosa de Ronald de Carvalho, a operosidade brilhante de Almachio Dinis, a encantadora erudição de Renato de Almeida. Renovação! Menotti dei Picchia, Oswald de Andrade, Guilherme de Almeida, Mário de Andrade, Afonso Schmidt e outros, vibram ao nosso lado. Renovação! Ângelus, Di Cavalcanti, Correia Dias, Cunha Barros, Paim, Brecheret, na Pintura e na Escultura, estão sob a nossa bandeira. Renovação! Na Música, possuímos Villa-Lobos. Renovação! Paulo Torres, Carlos Fontes, Oswaldo Orico, Onestaldo Penafort, Jarbas Andrea, Olegárío Mariano, Zoláquio Dinis, Carlos Drummond, Sérgio Buarque de Holanda, Teixeira Soares, Carlos Lobo de Oliveira, além de outros,
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estão vibrando em nome da Arte Nova! Renovação! Guerra sem tréguas aos imitadores! A Arte venceu o Artificio. Renovação! A Beleza, para o sempre a Beleza, a embriaguez deliciosa da Beleza. Nós vencemos em nome da Beleza. Nós somos a força e a renovação do Brasil, do Brasil que aspira e quer a vitória da Beleza. Meus irmãos de Arte, ovelhas pacientes que vos apascentais ainda nos rebanhos, pelas planuras áridas do Parnasianismo, desgarrai-vos em nome da Beleza. Vinde ter ao nosso chamado. Porque nós estamos fazendo a grande obra da criação de uma Arte puramente nossa, verdadeiramente nacional, dentro dos limites da Beleza. Renovação! Renovação! Renovação! Numa tarde cheia de sol, em setembro de 1923. (Da Belém Nova, n° 2, de 30.09.23)
A GERAÇÃO QUE SURGE! Mocidade: É chegada para o Norte brasileiro a hora extraordinária de seu levantamento. Ergamo-nos! Seja o Pará o baluarte da liberdade nortista! Cangloremos trompas de ouro para o rebate da Ressurreição! Cangloremos! O Sul, propositadamente, se esquece de nós. A Literatura equatorial é uma história de mitologia que se anda a contar nos corredores da Academia Brasileira. O Norte tem poder, tem força, tem filhos guerreiros e filhos altruístas! O Norte tem os seus gênios, os seus estetas, os seus cientistas, os seus filósofos! O Norte é dinâmica! É temperamento! É vibração! É intelectualidade! Ergamo-nos! Criemos a Academia Brasileira do Norte! Façamos os nossos imortais; coroemos os nossos príncipes de Arte; estabeleçamos concorrência; analisemos os valores! Publiquem-se livros! Movimentemos as estantes. Que Bahia, Pernambuco, Alagoas, Rio Grande do Norte, Paraíba, Ceará, Maranhão e Amazonas, se unam, se
fraternizem para o apoio da nossa Renascença! Que o intercâmbio entre esses Estados seja um fato nacional! Mocidade! Tendes uma Academia de Direito, uma Academia onde o talento fez o seu lar! Que essa Academia seja a torre de marfim do nosso princípio de solidificação! Os mestres serão os Palinuros! Os mestres serão os Sacerdotes! Os mestres serão os Medicis! O Norte precisa ser brasileiro! Unamo-nos. A união faz a Força! A Força faz a Vontade! A vontade é o predomínio! Libertemo-nos! Mostremos aos anêmicos de iniciativa, de patriotismo, de atividade, que o Norte pode ter a sua Literatura! Criemos a Academia Brasileira do Norte. Sagremos e imortalizemos! Façamos concursos interestaduais. Movimentemos as livrarias! Movimentemos os Cenáculos! Cada Estado mostrará para curiosidade de seus filho, a efígie de seus patronos. Bahia mostrará Rui Barbosa! Pernambuco mostrará Joaquim Nabuco! Ceará mostrará José de Alencar. Maranhão, Gonçalves Dias. Pará e Amazonas, irmãos siameses, mostrarão, maravilhados e grandes, a História coletiva de seus Homens, homens de letras, homens de combate,
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homens de gênio! Reunamo-nos. Movímentem-se as sociedades, as escolas, as Academias! Exportemos as obras dos Estados do Norte. Exportemos! Finquemos as bases da nova Babilônia. A Academia será a nova Semíramis! Batalhemos! Sejamos japoneses no patriotismo! Façamos a Literatura do Norte! As Academias do Norte! As Edições do Norte! O Intercâmbio do Norte! Mocidade: Amazonas é nosso! Maranhão é nosso! Pernambuco é nosso! São nossos com os nossos Ideais! Levantemo-nos! ABGUAR BASTOS (Belém Nova, n° 5, de 10.11.23)
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Revistas
MANIFESTO AOS INTELECTUAIS PARAENSES
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ão é um apelo de audácia nem de reclamo. E um apelo de necessidade e independência. Como há dois anos atrás, recorro ao meu dundunar de sapopema oriunda - porque eu vos falo da ponta dum planalto amazônico, entre selvas, uiáras e estrelas. Sapopema é o clamor do viajeiro que se perdeu nas matas e apela; não é só isto, pode ser, também, o símbolo da voz da mocidade que teve comigo idêntica maqueira d’oiro para um sonho extraordinário de liberdade literária. Ride, ó vós que não atinardes com as minhas palavras, ride-vos, a socapa escondidos nos cipós da intriga como curupiras de casaca a asso-viar feitiços atrás das encruzilhadas. Ride. Eu terei a serenidade dos morubixabas heróicos e sorrirei, também, de vossa agonia em me não compreender. OUVI Primeiramente vos, poetas e prosadores divinos da minha geração. depois de vos, prosadores e poetas, apajelados à sombra das vossas tabas primitivas e que estais a ver, espetados em paus sagrados, os despojos, as glórias, as caveiras - das vossas escaladas às cordilheiras da Ilusão. Àqueles a minha voz vai confiada. A estes ela se intimida. Àqueles ela se recolhe como um zangão à sua colmeia. A estes ela recalcitra. Não que os receie no choque, mas, de fato, porque eles não procurarão, sem estorvou dolorosos, metê-las em suas sacolas de Arte. Assunto- vos agora o meu propósito de uma corrente de pensamento. cara a cara à que se inicia no sul com esta pele genuína: “Pau-brasil”. - Arte, política e cultura
Oiço, rascantes, os agudos de serrotão das gargalhadas puristas. E oponho- lhes, seguro, esta verdade: nem um dos garimpeiros desse bando correu à briga, sem ter uma bagagem de vulto onde toda a gente meteu a mão e trouxe pepitas faiscantes. Eles correram, escoteiros, todas as escolas, acordando, maravilhosos, o ritmo do universo, com a mais intuitiva segurança. E venceram. E glorificaram- se. E entenderam, por fim. que nem uma delas era verdadeira para o espirito nacional. Rasgaram, pois, as redes do passadismo e deixaram passar a piracema da mais alta expressão da independência emocional. Houve balbúrdia, como em chinfrin de tosca, à-toa. mirabolante até num grande revoar de papagaios arrepiados, papagaios teratològicos porque tinham dentes de ouro no bico e poleiros de jacarandá. Apesar disso, noto, inflexível, que o repiquete “paubrasil” ainda não é o próprio volume da nacionalidade. Dai a minha ideia com um titulo incisivo:- FLAMIN’-ASSÚ. É a grande chama, indo-latina, daquilo em que eu penso poderem apoiar-se as gerações presentes e porvindoiras. FLAMI-N’-ASSÚ é mais sincera porque exclui, completamenle qualquer vestígio transoceânico; porque textualiza a índole nacional: prevê as suas transformações étnicas; exalta a flora e a fauna exclusivas ou adaptáveis do país, combate os termos que não externem sintomas brasílicos, substituindo o cristal pela água, o aço pelo acapu, o tapete pela esteira o escarlate pelo açaí, a taça pela cuia, o dardo pela flecha, o leopardo pela onça, a neve pelo algodão, o veludo pela pluma de garças e sumaúma, 48
a “flor de lótus” pelo “amor dos homens”. Arranca, dos rios as maravilhas ectiológicas; exclui o tédio e dá de tacape, na testa do romantismo, virtualiza o Amor, a Beleza, a Força, a Alegria e os herpes das planíceis e dos sertões, e as guerras de independência, canta ruidosa os nossos usos e costumes, dando-lhes uma feição de elegância curiosa. E, assim, FLAMI-N’-ASSÚ marchará, selvas a dentro, montanhas acima, conservadora patriótica, verde-amarela. FLAM-N’-ASSÚ não é um estorvo aos grandes chamariz da civilização. Não! Ela admite as transformações evolutivas. O seu fim especialissimo e intransigente é dar um calço de legenda à grandeza natural do Brasil, do seu povo, das suas possibilidades, da sua história. Entrego aos meus irmãos de Arte o êxito desta iniciativa, lembrando que o Norte precisa eufonizar na amplidão a sua voz poderosa. ABGUAR BASTOS (Belém Nova, n° 74, de 15.09.27)
Cinema
“Linha de Montagem” Renato Tapajós tapajosr@terra.com.br
Ficha Técnica: Direção - Renato Tapajós Fotografia - Zetas Malzoni Trilha sonora - Chico Buarque de Holanda Montagem - Roberto Gervitz Produção - Tapiri Cinematográfica
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m 1979, Lula me ligou. Desde 1977, eu vinha desenvolvendo um trabalho com cinema junto ao Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo e Diadema. O trabalho tinha começado com um curso de apreciação de cinema / formação de espectadores e evoluído para a realização de alguns documentários. Em 1979 já havíamos realizado, com produção do Sindicato, dois filmes (“Acidente de Trabalho” e “Trabalhadoras Metalúrgicas”) e eu estava trabalhando em outro documentário, que nada tinha a ver com o Sindicato (era o “Luta do Povo”, produzido pela Associação de Saúde da Zona Leste II). O telefonema do Lula tinha me intimado a filmar - a greve que acabara de começar no ABC e que fazia suas primeiras assembléias no Estádio de Vila Euclides, porque nenhuma
sede sindical poderia abrigar a massa humana que atendera à convocação grevista. Argumentei que estávamos sem dinheiro para a produção. Lula disse que devíamos começar a filmar de qualquer jeito, porque dinheiro, película, laboratório, produção, isso tudo viria naturalmente, como decorrência do próprio movimento. A confiança dele era tanta que não hesitei. Procurei o Zetas Malzoni, fotografo de cinema, que já se havia interessado pelo trabalho que eu desenvolvia com cinema junto aos movimentos sociais. Ele tinha uma câmara 16 mm, uma Éclair e juntou-se entusiasmado ao projeto. Através do Francisco Ramalho e de sua produtora Oca Cinematográfica conseguimos levantar algumas latas de negativo 16 mm, de diferentes idades e procedências, além de ter acesso ao Nagra - clássico 51
gravador portátil de áudio, que usava fitas de rolo de ¼ e fazia gravação sincrônica com a câmara. Como voluntários mobilizados pelo impulso do momento, integraram-se à equipe Maria Inês Villares, cineasta e montadora, na função de assistente (de câmara e de direção) e Francisco Cocca, técnico de som que trabalhava na ECA-USP e com o qual eu já havia realizado alguns documentários anteriormente. Nós quatro, ora usando meu fusca, ora usando a Brasília de Zetas, começamos ali, a aventura que, quatro anos e muito trabalho depois, iria gerar o longa metragem “Linha de Montagem”, o registro do nascimento do novo sindicalismo brasileiro, dos movimentos iniciais para a criação do PT e o momento em que surgia no cenário nacional a liderança de Luís Inácio Lula da Silva. Mais tarde, quando o material www.revistapzz.com.br
já estava todo filmado, outras pessoas importantes se uniram ao projeto: o cineasta Roberto Gervitz, que foi o montador do documentário e, principalmente, Chico Buarque de Holanda, que compôs a trilha sonora, criando, no processo, a canção “Linha de Montagem”, que acabou dando nome ao filme. O “Linha de Montagem” acompanhou todo o processo de greves desde 1979, indo até 1981. Nossa proposta era a de se colar ao movimento, trabalhar com ele – e não sobre ele –, aprender com ele a dinâmica de nossa luta de classes e produzir um filme que fizesse parte integrante do movimento que ali se desencadeava. Nosso público alvo era o próprio movimento operário e sindical e o objetivo do filme era criar um instrumento que permitisse aos grevistas discutir, criticar, compreender e fazer avançar seu próprio movimento. Não estávamos fazendo um filme para que o resto da sociedade compreendesse o - Arte, política e cultura
movimento grevista do ABC: estávamos fazendo um filme para que os próprios sindicalistas, os próprios operários dispusessem de um registro que ajudasse no desenvolvimento de seu próprio movimento. Logo nos primeiros dias de filmagem nos reunimos para discutir o que estávamos fazendo. Se o objetivo era refletir o movimento para ele mesmo, devíamos optar por filmar aquilo que era fundamental para a evolução do movimento. Devíamos escolher que aspecto era aquele que iria fazer a diferença numa revisão posterior do movimento por seus próprios participantes. A escolha recaiu sobre dois aspectos: as formas de organização da greve e a liderança de Lula. E, evidentemente, implicou no abandono de outros aspectos como o desenvolvimento das posições e opiniões do governo e do empresariado – incluindo, portanto, o abandono do registro das negociações entre operários, patrões e governo, bem como da evolução da abertura política que acometia a ditadura naquela época. O aspecto das formas de organização era evi52
dente: a greve de 79 saiu por pura mobilização inspirada, de um lado, pelo fato dos operários não agüentarem mais o arrocho da ditadura (tanto no plano salarial quanto no plano da falta de liberdade sindical) e de outro, pela liderança pessoal de Lula. Durante quase dois meses, com intervenção federal no sindicato e repressão nas ruas, sem fundo de greve nem organização de base, a greve se manteve por mobilização direta e pelo carisma de Lula. Pela avaliação de participantes, foram aproximadamente 60 pessoas, fazendo trabalho de agitação e propaganda, que conseguiram manter a mobilização de mais de cem mil operários. Já na greve de 1980, as coisas se deram de forma diferente: o Sindicato organizou bases dentro das fábricas e nos bairros, contou com uma rede de apoio fora do ABC, formada por outras categorias profissionais, estudantes e políticos e estruturou um fundo de greve, coordenado pela Associação ABCD Sociedade Cultural, que coordenava a solidariedade vinda de diversas categorias sociais e de todos
Linha de Montagem os pontos do país. Em certo sentido, a greve de 1980 catalisou, em organização nacional, os diversos movimentos difusos da sociedade civil, que vinham pipocando em oposição à ditadura. Foi essa organização ampla que permitiu à greve manter-se mesmo com o sindicato sob intervenção federal e com sua diretoria presa no DOPS. E foi tudo isso que deu origem ao movimento nacional que acabaria por gerar, pouco tempo depois, a CUT e o Partido dos Trabalhadores. O filme “Linha de Montagem” retratou todo esse processo e o devolveu aos metalúrgicos de São Bernardo do Campo e Diadema para que pensassem sobre o que haviam construído e quais os caminhos que se abriam para eles no futuro. O filme foi visto, em seu lançamento, por dois mil operários no Sindicato e, nos anos seguintes, por intermédio de vinte e cinco cópias distribuídas pelo Sindicato e pelo PT, por aproximadamente 250 mil pessoas. É bom destacar que, embora tendo os metalúrgicos como público alvo, o filme foi amplamente visto por todas as outras categorias profissionais – estudantes, jornalistas e a classe média em geral – e chegou a ser convidado para o Fórum da Juventude do Festival de Berlim, sendo lá projetado em 1984.
Chico Buarque
Linha linha de montagem A cor a coragem Cora coração Abecê abecedário Ópera operário Pé no pé no chão Eu não sei bem o que seja Mas sei que seja o que será O que será que será que se veja Vai passar por lá Pensa pensa pensamento Tem sustém sustento Fé café com pão Com pão com pão companheiro Pára paradeiro Mão irmão irmão Na mão, o ferro e ferragem O elo, a montagem do motor E a gente dessa engrenagente Dessa engrenagente Dessa engrenagente Dessa engrenagente sai maior As cabeças levantadas Máquinas paradas Dia de pescar Pois quem toca o trem pra frente Também de repente Pode o trem parar Gente que conhece e prensa A brasa da fornalha O guincho do esmeril Gente que carrega a tralha Ai, essa tralha imensa Chamada Brasil Samba samba são Bernardo Sanca são Caetano Santa santo André Dia-a-dia diadema Quando for, me chame Pra tomar um mé
Ensaio Fotográfico
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FotoAtiva é um espaço que se transformou num reduto da arte fotográfica em Belém, um movimento que se iniciou sempre na perspectiva de trabalhar em conjunto, em trabalhar em grupo e fortalecer-se mutuamente. Espaço-Tempo de experimentação da arte ativa numa vida de vivências e observações, oficinas de fotografias, intervenções urbanas, festas, foto-varal, projeção de slides e filmes, desfiles, oficinas de pin hole, exposições coletivas. Um processo vivo a FotoAtiva tem um papel histórico em Belém e é considerado como um dos movimentos mais importantes do Brasil. Em suas audácias fotográficas que agradava a todos porque as soluções criativas re-criativas onde experimentar a magia e a alquimia da foto-grafia revela uma escritura na cena da história da fotografia e dos fotógrafos. Uma escola de formação, do olhar sobre a cidade, um olhar atento, que descobre novas cidades dentro da cidade, isso é um patrimônio valioso construído na fotoativa nestes 25 anos.
- Arte, política e cultura
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er uma foto é ficar impressionado, ver as impressões da vida brotando de um nada onde pode brotar todas as coisas, ver-se revelado (a), emoção forte que se abre como uma porta e a cidade já não é mais a mesma.
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FotoAtiva é um processo de organização, sistematização, encontros e de difusão, sempre buscando, buscando-se num caráter investigativo, sempre aberto a novas possibilidades de sentir, sentir-se sempre na fronteira do real e do imaginário, atravessar o véu que encobre a verdade das coisas. Pensar a fotografia, a formação de fotógrafos é uma idéia, uma prática que perdura por tantos anos e que produz tantos resultados bons e influi decisivamente na maneira de entender um lugar que foi planejado para viver a sociedade e que possui muitos esconderijos, e faz parte da decifração da cidade, é uma das frentes de descoberta da cidade e de quem mora ou esconde-se dentro dela.
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arlos Pará
www.fotoativa.org.br
Arte Digital: Moacir Pereira
PAN-Amaz么nia
Fotos: Valter Oterloo
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e Lima até Puno são 24 horas de estrada morro acima, saindo do nível do mar até 3.800 metros de altitude ao lado do Titikaka - o lago do Puma – na língua quéchua , de onde saíram o primeiro homem e a primeira mulher, de acordo com as histórias dos incas e de muitos outros povos que já passaram por esta região. Estamos no outono, o altiplano tem uma cor terrosa que domina o ambiente e contrasta com os cumes nevados das montanhas. O soroche,o mal das alturas faz suas vítimas. Falta fôlego, dor de cabeça, enjôos. O frio também não dá tréguas e a cada dia o termômetro desce mais um pouco. Com tudo isto, Puno, uma pequena e simpática cidade indígena e universitária, localizada no extremo sul peruano é e será nos próximos dias a capital de Aby-Ayala – palavra quéchua que denomina a faixa de terra que vulgarmente conhecemos como América.. Aqui será realizada a IV Conferencia Intercontinental dos Povos Indígenas, o congresso máximo daqueles e daquelas que orgulhosamente se intitulam os povos originais e que voltaram a empunhar suas lanças e tacapes. Condores, Águias e Gaviões A moderna insurgência indígena foi relançada em 1994 pelo Exército Zapatista de Libertação Nacional das montanhas de Chiapas no sudeste mexicano. Com o passar dos meses o mundo foi descobrindo que aquela guerrilha latinoamericana tinha traços que a distinguiam sobremaneira de suas antecessoras. O principal deles: era e é uma rebelião indígena que não ambiciona o poder central, embora lute para derrotá-lo. Reivindica fortemente a autonomia dos povos indígenas e nos
territórios que comanda abdica do poder em favor das Juntas de Bom Governo eleitas e controladas pela população. Do México, este rastilho desceu pela América Central, deixando em polvorosa a Guatemala, atravessou o istmo do Panamá, subiu pela cordilheira dos Andes, se espalhou pelo Peru, e se transformou, no Equador e na Bolívia , em vendaval que derrubou presidentes e elegeu, no primeiro país, um aliado dos povos originais e no outro Evo Morales, o primeiro presidente indígena de Aby-Ayala. Agora, de Puno, os povos originais da América lançam suas propostas para o mundo. Para a IV Cumbre se reuniram mais de 5.000 indígenas de 16 países americanos. As delegações mais robustas vieram do Peru, naturalmente, da Bolívia, Equador, Guatemala, países onde os indígenas constituem a maioria da população. Porém, representantes de todo os países americanos estão presentes, assim como uma senhora loura de olhos azuis, enviada pelo povo Sami que habita as regiões árticas dos países escandinavos e um veterano guerreiro Masai do Quênia, no centro do continente africano. A Conferencia foi puxada por organizações indígenas centrais como a Coordenadora de Organizações Indígenas –CAOI, Coordenação das Organizações Indígenas da Bacia (Cuenca , em espanhol) Amazônica – COICA e pela Coordenação Indígena da Centro América – CICA. Salita aos olhos o grau organizativo alcançado pelo movimento. São inúmeros os Conselhos, Confederações, Federações e Coordenações, representando povos, territórios, gêneros, juventudes, movimentos sociais. Todos dispostos a fazerem escutar a sua voz.
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No dia 27 de maio, Puno amanhece com grupos organizados de mulheres indígenas percorrendo as ruas em direção à Universidade do Altiplano, onde a Cumbre se inicia com o primeiro dia dedicado á Conferencia das Mulheres. Elas vão chegando com suas roupas incrivelmente coloridas e os vistosos chapéus, muitas precedidas por grupos musicais. A Universidade fica nas margens do Titikaka, numa paisagem encantadora. Antes de se iniciarem os trabalhos ocorre o ritual propiciatório, realizado ao ar livre. Sacerdotes e sacerdotisas queimam as folhas de coca e em quéchua invocam Tata Inti, Pachamama e os quatro elementos,soprando a fumaça sagrada para os quatro pontos cardeais. É a primeira vez que as mulheres indígenas se reúnem numa conferencia própria de caráter intercontinental. É o que algumas das participantes chamam de “dinâmica dentro da tradição” Nos grupos de discussão, as opiniões são diferentes. Umas falam da complementariedade dos papéis tradicionais da mulher e do homem, outras reclamam do machismo nas aldeias e comunidades. Indiscutível é a força destas novas amazonas no interior do movimento. Além de serem muitas, caminham com a cabeça erguida, orgulhosas, falantes, de suas lutas e organizações. Uma das mais importantes é a Federação de Mulheres Indígenas Bartolina Sisa ,da Bolívia.. No século XVIII Bartolina e seu companheiro Tupac-Katari,ambos da etnia aymara,
lideraram uma poderosa rebelião contra o colonizador espanhol.. Derrotados, presos, executados tiveram seus corpos esquartejados e agora ressurgem numa memória que 500 anos de colonização não foram capazes de apagar. Mamita Coca Para combater o soroche, o chá de coca é essencial. Já industrializado na forma de saquinhos ou simplesmente misturando as folhas na água quente é uma bebida indispensável nos Andes. Pelas ruas é mais do que comum ver-se homens e mulheres mascando a mamita coca. Por ajudar seu povo sobreviver às duras condições de vida e trabalho, a coca é planta sagrada que nas mãos de sacerdotes e curandeiros desvenda passado, presente e futuro. Há alguns anos atrás, num encontro em Quito, capital do Equador, tive a oportunidade de ouvir Domitila Chungara, líder histórica das mulheres bolivianas contar uma das histórias fundamentais da coca. Dizia ela que logo após a conquista espanhola, Tata Inti apresentou uma semente da folha a um sacerdote dizendo que era um presente para seus filhos. A folha que surgiria da semente os ajudaria a vencer a fome, a sede, o cansaço e daria forças para resistirem ao cruel dominador. Temeroso, o sacerdote objetou que se a folha era assim tão boa, inevitavelmente seria roubada pelos brancos. Papa Inti sorriu e disse: “aquilo que para nós será vida para eles trará a morte”
A defesa ostensiva da folha de coca é uma das marcas de Aby-Yala. Na Conferencia, ela está em todas as partes: in natura e na forma de chás, bolos e confeitos. Assim como sua gente, a mamita verde rompe os véus da clandestinidade e exige o seu reconhecimento. A coca é poderosa. Não é à toa que um dos seus filhos, o cocalero Evo se tornou presidente de todos os bolivianos. O Grito da Selva No dia seguinte enquanto as mulheres concluem seu encontro, no Coliseu (ginásio) da Universidade tem início o II Encontro Intercontinental da Infância e Juventude Indígena. Depois do indispensável ritual, jovens de diferentes países contam suas experiências e lutas para preservar e desenvolver as tradições. Entre todos e todas se desta ca a bela Schunitza, índia ashaninka, povo que vive na selva central peruana e também no Acre brasileiro.Num encontro com presença majoritária dos povos andinos, ela chama atenção por seu cocar, sua pintura e sua túnica, indiscutivelmente amazônicas. Também chama atenção por suas palavras: há mais de dois meses os indígenas da selva peruana estão em luta contra decretos assinados pelo presidente Alan Garcia que possibilitam a venda de terras indígenas ancestrais e facilitam a instalação nelas de corporações mineiras e petrolíferas. Tais decretos fazem parte de um ajuste da legislação nacional às regras do Tratado de Livre Comércio assinado recentemente entre Peru e Estados Unidos. Inconformados, ashaninkas, jivaros, awajuns e outras etnias bloquearam estradas e um porto fluvial. O governo respondeu denunciando por rebelião (o que pode acarretar vinte anos de prisão) o líder indígena Alberto Pizango.
PAN-Amazônia O conflito em terras peruanas é emblemático das divergências entre Aby-Ayala e o mundo que a cerca. Para os indígenas uma reivindicação fundamental é o auto-governo ou seja a autonomia dos territórios em que vivem ainda que isto não signifique rompimento com o estado nacional. Para o governo peruano a onipotência do estado nacional é inquestionável e portanto o direito de dispor livremente do solo e do subsolo das terras indígenas é indiscutível. Qualquer semelhança com o Brasil não é mera coincidência. Da Natureza dos Deuses Para quem passou a vida inteira considerando abominável à subordinação da política à religião não deixa de ser embaraçoso participar de um evento onde estas duas esferas voltam a estar imbricadas. Na IV Cumbre todas as atividades são precedidas de invocações a Tata Inti e Pachamama. Conversando com uma sacerdotisa quéchua de Puno não resisto e disparo a pergunta provocadora: “Seus deuses foram derrotados pelo deus dos cristãos e por Jesus Cristo. Vocês acreditam que eles possam ressurgir?” Sorrindo como fazem os sábios diante dos ignorantes, ela responde: “Nós não acreditamos em deuses. Os ocidentais nos vêem falando com Pachamama e Tata Inti e traduzem que estamos rezando para deuses. Mas estamos apenas agradecendo à Natureza. - Arte, política e cultura
Sem ela não estaríamos vivos.É o mínimo que pessoas educadas podem fazer”. Para os povos de Aby- Ayala sem a retomada das relações sagradas entre o Homem e a Natureza será impossível superar a crise ambiental que devasta o planeta. É difícil dizer que estejam errados. Em Defesa da Mãe Terra A Praça das Armas de Puno está lotada de gente . À sombra da catedral de quase 400 anos,.símbolo do poder espanhol se realiza uma cerimônia inca tal qual se acredita tenha sido realizada nos dias gloriosos do Tahantisuyo, denominação quéchua do império cujo último governante foi Athaualpa, estrangulado no garrote vil pelo conquistador Francisco Pizarro. Os incas estão de volta. A multidão rica de cores e sotaques circunda por três vezes a praça e segue para às margens do Lago Titikaka. Depois dos encontros de mulheres, jovens e crianças vai ter início a parte final da IV Cumbre. Esta se constitui de duas mesas de conferencistas que proferem suas palestras na beira do lago sagrado, mais de sessenta mesas de discussão, reuniões de sistematização e uma plenária final. Os temas magnos são o bem viver e a construção de Estados Plurinacionais vistos pelos povos de Aby-Yala como as respostas às múltiplas crises – financeira,política, econômica,social e ambiental que sacodem o planeta. São temas em desenvolvimento e extremamente questionadores. O Bem Viver rechaça a noção do
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desenvolvimento como paradigma a ser buscado pelas sociedades terrestres. A humanidade não pode ser escrava de um desenvolvimento perpétuo e sem limites das forças produtivas que em última instância busca o lucro e não a felicidade. Homens e mulheres em nome do próprio bem estar e da sobrevivência do planeta devem impedir a mercantilização dos bens naturais e a destruição da natureza. Devem dar um basta à lógica destrutiva do capital e dar início a um novo mundo onde homens e mulheres sejam senhores de sua vontade.Esta utopia anti-capitalista tem sua expressão política na proposta dos Estados Comunitários Plurinacionais. Como indica o nome devem ser estados que reconheçam no seu interior a existência de muitas nações com investidura de poder real às suas comunidades, inclusive a de auto-governo sem que isto implique em cisão do território nacional. Estados onde a lógica de um poder central dominante será invertida a favor de uma construção de baixo para cima, onde a vontade estatal é fruto da composição dos interesses das múltiplas comunidades. Não se tratam de temas específicos. São propostas para o mundo. Na beira do lago, o coordenador da Ecuarunari – A Federação dos Povos Quéchua do Equador é taxativo: O Estado Plurinacional não é apenas para os indígenas. É também para os negros, para os pobres e para todos os explorados pelo capitalismo E arremata: “Não existe Estado Plurinacional sem Reforma Agrária...... Não existe Estado Plurinacional sem
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a estatização sob controle popular das corporações mineiras e petrolíferas”. A ênfase no minério e no petróleo é facilmente compreensível. Das atividades industriais estas são as mais danosas à Mãe-Terra, a Pachamama. Porém não é assim tão fácil compreender a busca de alianças entre indígenas e trabalhadores industriais, considerando a atual crise de desemprego que em tese deveria estar levando categorias como a dos mineiros, uma das mais tradicionais do proletariado andino, a buscar mais postos de trabalho. Mario Palácios, coordenador-geral da Coordenação de Comunidades Atingidas pela Mineração – Conacami- Peru, nos explicou como se desata o nó: “Já foi o tempo em que a atividade mineira era uma grande empregadora. Hoje uma empresa como a Cerro de Pasco Coprporation, retira cinco vezes mais minério com um terço dos empregados que utilizava há vinte anos atrás. Ela promove a poluição da terra, do ar, dos rios, destrói a agricultura e causa um sem-número de doenças. Promove incontáveis prejuízos e em troca não oferece mais do que 1.500 postos de trabalho. Ou seja sua atividade é um prejuízo para a Terra, para o povo e para o estado peruano.Ela só é lucrativa para seus patrões’’. Roberto Spinoza, assessor da CAOI diz que a compreensão deste fato já atinge os sindicalistas mineiros que estão dispostos a discutir um período de transição desta atividade pra outras formas de ocupação laboral.. Afinal de contas, os mineiros em sua gran-
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de maioria são também indígenas e dentro deles também deve bater forte o lema : A terra não se vende. A terra se defende Voando para o Futuro Após plenárias, mesas de discussão, grupos de sistematização, a IV Cumbre chegou ao seu final aprovando uma Declaração Política onde ao lado do apoio à reeleição de Evo Morales,repudia o bloqueio econômico contra Cuba, defende a aliança entre os indígenas os trabalhadores e os pobres do planeta e convoca a construção de estados plurinacionais nos países de Aby-Ayala . Uma clara demonstração que o movimento dos povos indígenas, hoje já uma importante força política na América Latina, está se preparando para vôos maiores. Em tempo: A IV Cumbre decidiu também abolir como auto-identificação as palavras índios e indígenas, considerando estes termos como uma tentativa do colonizador de uniformizar uma diversidade humana que não conseguia entender. De agora em diante e para sempre se auto-denominam como povos originais. Como diz a frase final da Declaração Política : “Agora o condor e a águia voam juntos outra vez.” MASSACRE NA SELVA O presidente Alan García esperou o término da IV Cumbre para tentar dobrar por meios violentos a resistência dos indígenas da selva peruana contra os decretos que abrem caminho para a privatização de suas terras ancestrais. Utilizan-
do forças policiais e militares, inclusive helicópteros que dispararam sobre os manifestantes, o governo atacou um bloqueio próximo a cidade de Bagua. A população da cidade solidarizou-se com os indígenas e generalizou-se um conflito que terminou com aproximadamente cinqüenta mortos – a grande maioria civis e alguns policiais. Apesar da decretação do estado de sítio em Bagua e do estado de emergência em quase todas as províncias da Amazônia Peruana, a resistência prosseguiu firme com apoio de uma vasta solidariedade internacional. Após uma semana de impasse o governo cedeu, suspendendo provisoriamente dois dos decretos – os mais graves em termos de violação dos direitos dos povos da selva- e abriu uma mesa de negociação, prometendo inclusive revisar os planos da construção de seis hidrelétricas na região. OS ALTOS DE LA PAZ A República da Bolívia não existe mais. Por força da nova Constituição o país passou a se chamar Estado Plurinacional de Bolívia, reconhecendo assim 36 nacionalidades indígenas que passam a gozar os mesmos direitos que brancos e mestiços, inclusive o de terem suas línguas oficializadas, ao lado do castelhano, como idiomas oficiais. Na viagem de volta para casa resolvemos passar por La Paz, a capital do primeiro país que se orgulha de pertencer à Aby-Yala. Dispusemos apenas de dois dias que, entretanto, foram suficientes para vivenciar duas experiencias reveladoras. A primeira estava em El Alto, município de um milhão de habitantes que ocupa as
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PAN-Amazônia montanhas que cercam o vale onde está La Paz. São montes cheios de histórias: de suas alturas Tupac Katari e Bartolina Sisa impuseram um prolongado cerco ao colonizadores espanhóis. Trezentos anos depois de seus cumes baixaram milhares de indígenas para derrubar o presidente Gonzales Losada, um neoliberal que falava espanhol com sotaque gringo e culminou na eleição do líder cocalero, Evo Morales. Em El Alto caminhamos por uma feira que deve ser a maior do mundo em céu aberto.Tudo se vende e tudo se compra : de animais à carros, de artesanato à móveis, de comida à flores. Uma multidão incaiculável de indígenas, tangidos para a cidade pela crise na agricultura e mineração aí se amontoam entregues às duras lidas da sobrevivênca.Em El Alto todos ou quase todos estão em pé de guerra, apoiando o estado plurinacional. Estávamos gravando e fomos intrrompidos por uma das senhoras que agressivamente nos perguntou: Estão filmando para quem? Alertados previamente por nossos amigos respondemos sem pestanejar: Para o Canal 7, programa Puente entre Culturas. Foi como pronunciássemos um salvo-conduto e seguimos trabalhando em paz. O Canal 7 é a tv estatal do Estado Plurinacional da Bolívia. Nas suas transmissões é possível encontrar telejornais com apresentadoras aymaras,com seus trajes tradicionais e falando em seu idioma. Além disto veiculam programas realizados pelo CEFREC- um centro de produções voltado para a capacitação de técnicos em audiovisual e cineastas indígenas.. Tudo faz parte de um programa governamental voltado ao empoderamento dos indígenas nos modernos meios de produção de arte e comunicação. No CEFREC travamos contato com fotógrafos, montadores e diretores de vários povos – desde do altiplano até a Amazonia Boliviana .Produzem filmes documentários e de ficção e estão convencidos de que estão filmando o futuro de Bolívia. Esta animação contamina também os veteranos. Jorge Sanjinés é um deles. Expoente ao lado de Glauber Rocha de que nos anos 60 chamouse de novo cine latinoamericano,acaba de lançar seu último longa-metragem que conta a história de um índio que perde a sua identidade, colabora com a ditadura e depois preso de uma crise de consciencia retorna ao seu povoado , carregando nas costas a fantasia de um personagem das tradicionais diabladas - O Grande Danzanti.No torrão natal, dança até morrer,buscando apagar seus erros e conquistar um renascimento. O título do filme é A Nação
Clandestina.
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José Varella Viagem filosófica à guisa de manifesto do caboco do Marajó a caminho de Brasília, Rio, São Paulo, Paris e outras aldeias globais desde Vilarana do Curralpanema, aliás Itaguari [Ponta de Pedras-PA] e Belém do grão Pará: demanda do “Apocalypso”, no Fim do Mundo, a saber: quem inventou o vasto mundo de ritmos e rimas sem métrica nem solução?
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ão é todo dia que se topa com caboco, a exemplo do bon sauvage, que repele o gramatical “l” de lex, “r” de rex e “f” de fé da santa madre Religião. E, custe o que custar, na ambição do Céu dá com os burros n’água no Inferno verde... Não é qualquer brancarana que se assume iberiano em odes à divina Preguiça, como tapuia fabrica puçanga enquando o Diabo pisca um olho... Não é toda gente ribeirinha nestas paragens do sol e da chuva, desde menina, esperando Godot ou o Mar-Oceano vir afogar as terras-baixas abaixo do equador. Digo e repito, não é todo caboco que cospe fora da boca o “l” civilizacional e sai do mato sem cachorro a ostentar que tem consciência do sangue de índio que lhe corre nas veias cultivando orgulho varonil do Brasil gigante dos pretos, encarnados, brancaranas, pardos e amarelos de todas latitudes e tribos da Terra sem males.
Deixa estar que, na verdade, não é um qualquer Zé, adepto do zen bubuia da maré, que louva a mistura fina do povão hermano latino-americano. Aqui o Kuarup antropoético: a ressurreição mágica dos Atahualpas, dos Guatimozim, dos Ajuricabas, dos Zumbis dos Palmares re-suscitados do covão da cultura popular pra pular etapas, entre tapas beijos do deus-Progresso... Brega subversivo, mais velho do que a Sé de Braga, trovas messiânicas joaquimitas surdidas do gueto por arte do sapateiro da vila de Trancoso, o condenado Bandarra na ressurreição geopolítica do rei Dom Sebastião morto no Marrocos. A mina de tambor de Mina na vertigem das noites quentes de terreiro no Pará e Maranhão. Velho ska de Moçambique a virar calypso e ecoar sobre o apocalipse indígena do Caribe. Na grande ilha das Guia-
nas, batuque do mocambo “Maravilha” mato adentro, voz ancestral malauí remontando cachoeiras do Trombetas a fim de dialogar com os “nèg marrons” do Maroni, entre a Guiana francesa e o Suriname. Rotas clandestinas de contrabando e resistência. Os sermões sebastianistas do payaçu dos índios e imperador da língua portuguesa, com certeza, o Padre grande Antônio Vieira assombrado do passado dos impérios caducos com a História do Futuro, novinha em folha de papel almaço; imerso no rio da imaginação no escuro da cela da Inquisição. Invenção do Quinto Império do Mundo ou o quinto dos Infernos; necessidade e acaso de aliança estratégica do mito tupi-guarani da Terra sem mal. Paresque, a demanda do Santo Graal no alto-Amazonas por “índios cristãos” e cristãos-novos à bordo da flotilha do capitão Pedro Teixeira, viagem redonda Belém-Quito-Belém a cabo de dois anos passados à força de 1200 arcos e remos tupinambás (Ai Jesus! Que não nos ouçam, pelo amor de Deus, devotos do Santo Ofício nem fiéis neopentecostais da teologia da Prosperidade)... Profetas e poetas do Apocalypso, revelação psicodélica das Bachianas no país do vento, Amerika. Anjos tatuados e cabeludos guitarras elétricas e zabumbas furibundas em punho! Espírito do tafiá 50° e alopração de marijuana... Que nem delírio antropoético deste velho bardo tardo que vos fala, mescla marajoara de bárbaro celtíbero desterrado
da Galiza e deportado no país das Amazonas entre chuvas e esquecimento, no ilhamento global. Acima de tudo um animal exótico da diáspora pós-diluviana, em vias de extinção, aclimatado por necessidade e acaso na zona tórrida das Antípodas: decidido a tudo ou nada! A gritar alto e forte de Sul a Norte: he, aí todo mundo; esqueceram a gente! Criaturada grande das Amazônias latinas, anglo-neerlandesas, afro-ameríndias! Aqui o plano Mandela! Socorro que nem o Marshall dos brancos! Negritude além da melanina, pois aonde vai o mundo, axi; não presta! Combustão de miolos ardentes das passadas e futuras gerações do estúrdio “Homo sapiens var. Tapuya” (curiosa taxinomia dada ao homem amazônico pelo sábio Alexandre Rodrigues Ferreira, de Coimbra, na Viagem Philosophica), aprendemos a ler e escrever para desconstruir a ilusão da nobre, santa e acidental Civilização: sacrifício ritual da divina Antropofagia manifesta no cruento e arcaico culto do deus-Jaguar convertida pelo beato Anchieta na adoração do Sagrado Coração de Jesus. Verdade verdadeira posta em leilão na Bolsa de futuros obscuros, garrafa de náufrago do Terceiro Milênio e tábua de salvação da Modernidade na maré das especulações financeiras e climáticas do climatério de Gaia. Iberiana é coisa louca ultramarina, Ibéria desvairada d’além mar. Fé cega, faca afiada, sangue e areia de tourada. Amor carnal, romance de dona
O “algo mais” iberiano irmana índio, preto e brancarana. Aqueles uns que serão capazes de reinventar a História dos homens desde a ciência nova de Vico até a práxis econômica do materialismo dialético de Marx, numa boa: a saber, com quantos paus se faz uma canoa... Viagem peripatética rumo à complexidade de Edgar Morin e a sociológia do Ócio criativo de Domenico De Masi: vingança total e final dos caraíbas buscadores do paraíso selvagem sobre o santo império dos Reis Católicos e a ditadura de Descartes. Penso, logo desisto de toda e qualquer certeza absoluta! Iberiana rima com Vilarana, esta é vila que nem vila era; aquela vasto mundo das Amerikas latinas. Vilarana, flor da nossa varja, o fim da estória que transfigura o Fim do Mundo no Apocalypso: contracultura apocalíptica contra veneno da teoria do caos. Sítio Araquiçaua (lugar sagrado aonde o sol vai atar a rede do crepúsculo, tomada do mito da primeira
noite do mundo). Capital imaginária das Amazônias na paisagem cultural do golfão marajoara. De grão em grão, do Grão Pará, catei lendas pela contracorrente do Tocantins, antes que Tucuruí metesse rolha de ferro e cimento ao rio. Do Amazonas e Xingu levei na bagagem Cobra Norato e Maria Caninana até às Águas Emendadas. Planalto central dos Brasis. Daí Brasília se disparte em alvoradas ao velho Chico, ao Prata através do rio Paraná e ao Amazonas pelo curso do dito rio dos Tocantins... Em dezembro fui ao Rio de Janeiro a primeira vez, chovia a cântaros. Descobri Nova Iguaçu antes de ver o Pão de Açúcar. Depois de descobrir, em São Paulo de Piratininga, que o grito do Ipiranga poderia ter sido, em verdade, por causa de comida estragada no jantar da marquesa de Santos; peido do imperador Pedro primeiro. Poluição inaugural do riacho da nossa retocada independência... Na Paulicéia desvairada eu quis saber do jesuíta Oscar Quevedo o segredo dos pajés. Ele não estava, mas ganhei o livro “A face oculta da mente”, paresque livro de São Cipriano liberado e revisado pelo Santo Ofício; oferta gentil de um seminarista aprendiz do bruxo sacerdote. Que nem um tio avô de minha mãe, padre da Galiza com fama de mago, falecido há tempos. Este um atravessava o Oceano por riba das nuvens, paresque, para visitar os parentes emigrados no Pará. Naquele tempo não havia televisão, mas a telepatia fazia sucesso... Fiz a
Foto: Carlos Pará
Silvana nos campos alagados do Marajó, carnaval devoto. A Corda umbilical edipiana que nem rosário de pecados e a imagem da santa Mãe com o Menino no colo a bordo da Berlinda... Arte barroca neotropical, psicodrama popular do carro dos Milagres nos caminhos marítimos e fluviais do Círio de Nazaré: de Belém da Palestina desde menina até mulher feita em Belém da Amazônia. Quem há de nos salvar de nós mesmos? Bicho folharal incentivado pelo sistema mundial com jeitinho bem brasileiro pelas margens direita e avessa da História.
Foto: Carlos Pará
volta do Sul onde o vento minuano faz a curva, caminhei pela margem esquerda do Rio da Prata antes de conhecer o Guaíba, no Rio Grande do Sul. Andei uma tarde inteira em Montevidéu, espantosamente parecida com a Província do Pará durante os anos de chumbo, a procura da “Memória do Fogo”, de Galeano ... Foi lá que tive notícias de Santa Maria, de Juan Carlos Onetti; e me deu à telha começar a debuxar Vilarana ressurgida dos escombros da lembrança do Fim do Mundo. Lugar de infância que me acompanha como uma sombra. Claro que, por uma sina inexplicável de monge copista, Vilarana virou mistério. Romanceiro secreto da estória-geral do Curralpanema jamais acabado.
mundo. Parei uns tempos no pais de Atipá (as Guianas ou El-Dorado). Aprendi a falar, um pouquinho, em kréol, um tiquinho assim de taki-taki, compreendi que a Orinoquia está viva e que os Boni, Saramakas, Paramakas, Djukas e outros “quilombolas” tinham lá um “papiamento” que se pode entender misturando inglês banana em Curaçao até Aruba... O Rio Negro se despejou pelo Caribe bem antes de Colombo! Já havia aprendido de um camarada índio maquiritare que aquela gente sabe escrever nas estrelas o nome dos heróis imortais junto aos deuses, no círculo equinocial celeste. Ri-me cinicamente da adorável literatura de Guimarães Rosa, que eu havia canibalizado, em vão, em horas mortas pelas bibliotecas de Brasília.
Caminho do feio é por onde veio... Voltei ao Norte da minha sorte sempre em busca de saber quem inventou o
O longo e avesso percurso do caboco. Então, chegou o grande dia em que pude ver de perto moinhos
de vento da velha Holanda (felizmente, eu havia deixado Rocinante na outra margem do Atlântico, solto nos campos de Cachoeira do rio Arari: por incrível que pareça, era dia de aniversário de Dalcídio Jurandir). Obsessão comparativa à antiguíssima engenharia dos tesos arqueológicos nos campos alagados na ilha do Marajó. Os Nheengaíbas erraram bestamente ao aceitar a falsa paz de Portugal? Quando eles, com a superioridade de armas que tiveram nos primeiros dias da invenção da Amazônia; podiam manter a amizade e comércio da Batávia que já durava meio século. O vento frio nórdico veio me alertar: se não fora o enorme erro dos antepassados, não haveria Brasil gigante... Não existiria o País do Futuro. E eu não poderia estar ali àquela hora, a sacar lição da história para ela não se repetisse mais como farsa.
Em Paris, brevemente, eu não fui infeliz. Nunca antes lá estivera, porém havia algo familiar que os livros me contaram. Mas, quase morri ao subir escadaria na ladeira de Montmartre, que nem naquela vez em Vilarana, digo, Ponta de Pedras; quando o rio Marajó-Açu queria me afogar: aqui, escapei com ajuda de um colega pretinho que nadava feito peixe... Salvou-me talvez para inventar estória daquela gente do Fim do Mundo, paresque... Aqui não findei os dias para saber mais daquela história desatada que me levou lá em riba, onde o basco Ignácio de Loyala formou soldados de Cristo a conquistar o mundo desconhecido. Do átrio da igreja do Sacré-Cœur vi o sagrado coração de Paris, ao pé de Montmartre, embaixo de névoa
cinzenta como que rendada de lendas heróicas. A imagem não me foi mais impressionante do que aquela, na cordilheira Parima; império do El-Dorado, Amazônia. Quando solitário vi ao fim da tarde os começos do mundo sobre a imensa floresta que, de tanto verde, confundia-se com o infinito azul na amplidão. A solidão da serra virgem estava povoada de signos de vida por todos os poros do espaçotempo... Então, pude comprender o pajé Ianomami dizendo ele que com seus confrades seria capaz de salvar o enlouquecido mundo dos homens brancos. Dia seguinte visitei Versalhes. Era domingo de céu límpido e frio glacial, o vazio gritava com o vento, tão diferente de Parima. Onde estavam todos? A Bastilha, pelo menos, estava viva com gente mais ocupada em comer do que saber da Revo-
lução... Finalmente, na despedida, ouvi a temível questão a qual sempre quis ter resposta: do Brasil poderá sair uma civilização para o mundo em decadência? Passado tempo, eu ainda não tenho explicação. Desdenho tentativas para explicar o país do Futuro. Mas, quando me recordo da invenção da Amazônia, na inacreditável saga do bon sauvage em busca da mítica Terra sem mal; e da embaixada do tremendão Tupinambá à corte de Henri IV, de que Montaigne falou, como sugestão da revolução de 1789, não hesito em declarar com a fé dos caraíbas: je crois! _______________ José Varella Pereira Belém- PA, 5 de setembro de 2009
O FIM DA ARTE como meio de conhecimento
por Almandrade
almandrade2008@gmail.com
Não temos a capacidade de destilar em palavras as experiências visuais que fazem o belo repousar naquilo que é apreendido pelo olhar. Uma obra de arte é tudo que ela contém: forma, textura, cor, linhas, conceitos, relações, etc. É aquilo que se vê, e o que se diz não corresponde exatamente ao que se vê. Não representa nada como imagem de outra coisa. E para ler um trabalho de arte é necessário se partir de um modelo (referências, informações…). Existem códigos a priori (aqueles utilizados pelo artista) e códigos a posteriori (aqueles utilizados pelo espectador). A virtude da arte é afirmar um conhecimento, propondo instrumentos que seduzem a inteligência. A invenção de uma linguagem é o resultado de um exercício paciente de contemplar outras linguagens. Como todo discurso é resultado de outros discursos. Exige-se um método. A arte é o que está além dos limites de tudo o que se considera cultura; não pode se restringir a um exótico experimento ou aparência da superfície de um trabalho, que fica para trás, como uma coisa vazia, no primeiro confronto com o olhar que pensa. A arte, entendida, como meio de conhecimento, hoje em dia, vem cedendo lugar a uma experiência ligada ao lazer e a diversão, que envolve outros profissionais como responsáveis pela sua legitimação: o curador, o empresário patrocinador e organizador de eventos, marchands, profissionais de publicidade, administradores culturais e captadores de recursos. Com as leis de
incentivo a cultura e a presença marcante da iniciativa privada, paradoxalmente, levou a arte a um limite, o fim da obra, do trabalho ligado a um saber. E o artista, nem artesão e nem intelectual, sem dominar qualquer conhecimento, está cada vez mais sujeito ao poder do outro. As grandes mostras são grandes empreendimentos para atender à indústria do entretenimento, (mais empresarial e menos cultural), que movimentam uma quantidade significativa de recursos e envolve um número assustador de atravessadores. As contradições modernidade / tradição, contemporâneo / moderno, neste início de século, cede lugar a uma outra contradição: artistas que pertencem ao metier e artistas estranhos ao metier, inventados por empresários da cultura, cujos trabalhos se prestam para ilustrar uma tese ou teoria imaginária de um suposto intelectual da arte e garantir o retorno do que foi investido pelo patrocinador e pelo comerciante de arte. Uma mercadoria fácil de investir, sem risco de perda, basta uma boa campanha publicitária. O artista pode ser substituído por um ou por outro, a obra é o menos importante. Aliás, é o que a indústria do marketing tem feito com as mostras dos grandes mestres como: Rodin, Manet, etc., pouco importa as obras desses artistas e sim o nome e o patrocinador. A publicidade leva consumidores/espectadores como quem leva a um shopping center. A quantidade de público garante o sucesso. O público é como o turista apressado, carente de lazer cultural que visita os centros históricos com o mesmo apetite de quem entra numa lanchonete para uma alimentação rápida. Na “sociedade do espetáculo”, regida pela ética do mercado, o artista sem curador, sem marchand, sem patrocinador, é simplesmente ignorado pelas instituições culturais, raramente é recebido pelo burocrata que dirige a instituição. Seus projetos
são deixados de lado. Também pudera, essas instituições, sem recursos próprios, tem suas programações determinadas pelos patrocinadores. Numa sociedade dominada pelo império do marketing, a realidade e a verdade são mensagens veiculadas pela publicidade que disputa um público cada vez maior e menos exigente. A vida é vivida na especulação da mídia, na pressa da informação. E neste meio, a arte é uma diversão que se realiza em torno de um escândalo convencional, deixando de lado a possibilidade do pensamento. O fantasma do “novo”, que norteou a modernidade foi deslocado para o artista que está começando, pelo menos novo em idade, o artista/atleta, a caça de novos talentos e de experiências de outros campos sociais. Totens religiosos, a casa do louco, a rebeldia do adolescente… Tudo é arte, sem exigir de quem faz o conhecimento necessário. Todo curador quer revelar um jovem talento, como se a arte dispensasse a experiência. Um “novo”, sinônimo de jovem ou de uma outra coisa que desviada para o meio de arte, funciona como uma coisa “nova”. Um novo sempre igual, a arte é que não interessa.
Hyeronimus Bosch
Praticamente trinta anos depois do aparecimento da chamada arte contemporânea no Brasil, recalcada nos anos 70 pelas próprias instituições culturais, um outro contemporâneo surgido nos anos 90 passou a fazer parte cotidiano dos salões, bienais, do mercado de arte, das grandes mostras oficiais e de iniciativa privada. Uma contemporaneidade sintomática. Estamos vivendo um momento em que qualquer experiência cultural: religiosa, sociológica, psicológica, etc. é incorporada ao campo da arte pelo reconhecimento de um outro profissional que detém algum poder sobre a cultura, (tudo que não se sabe direito o que é, é arte contemporânea). Como tudo de “novo” na arte já foi feito, o inconsciente moderno presen-
te na arte contemporânea implora um “novo” e nesta busca insaciável do “novo”, experiências de outros campos culturais são inseridos no meio de arte como uma novidade. Deixando a arte de ser um saber específico para ser um divertimento ou um acessório cultural. Neste contexto, o regional, o exótico produzido fora dos grandes centros entra na história da arte contemporânea. Nos anos 80, foi o retorno da pintura, o reencontro do artista com a emoção e o prazer de pintar. Um prazer e uma emoção solicitados pelo mercado em reação a um suposto hermetismo das linguagens conceituais que marcaram a década de 70. Acabou fazendo da arte contemporânea, um fazer subjetivo, um acessório psicológico ou sociológico. Troca-se de suporte nos anos 90 com o predomínio da tridimensionalidade: escultura, objeto, instalação, performance, etc., mas a arte não retomou a razão. Na barbárie da informação e da globalização, estamos assistindo ao descrédito das instituições culturais e da dissolução dos critérios de reconhecimento de um trabalho de arte. Tudo é tão apressado que acaba no dia seguinte, os artistas vão sendo substituídos com o passar da moda, ficam os empresários culturais e sua equipe. Uma corrida exacerbada atrás de uma “novidade”, que não há tempo para se construir uma linguagem. O chamado “novo” é a experimentação descartável que não chega a construir uma linguagem elaborada, mesmo assim, é festejado por uma crítica que tem como critério de julgamento interesses pessoais e institucionais. A arte pode ser qualquer coisa, mas não são todos os fenômenos ditos culturais, principalmente os que são gerados à sombra de uma ausência de conhecimento. *Almandrade é artista plástico, poeta e arquiteto.