A DITADURA DA ÁGUA

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GIOVANNI GALLO

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Giovanni Gallo

Marajรณ A DITADURA DA ร GUA


MARAJÓ - A DITADURA DA ÁGUA

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GIOVANNI GALLO

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Gallo, Giovanni G178 m Marajó, a Ditadura da Água Edições “O Museu do Marajó” Cachoeira do Arari, PArá, 2015

256 p.

1. Marajó (ilha) - Vida e costumes sociais 1. Giovanni, Gallo. II Título

CDD - 309, 1114208111


Giovanni Gallo

Marajó A DITADURA DA ÁGUA

4a edição Marques Editora


Ao meu Marajรณ, minha alegria minha tristeza minha conquista, minha derrota!


A DITADURA DA ÁGUA Dalcídio Jurandir, um dos maiores escritores paraenses de todos os tempos, o grande especialista do Marajó, acompanhava do Rio os artigos de Padre Giovanni. E gostava, demais. Aqui uns trechos de cartas de Dalcídio à família Bruno de Menezes. “O que me chama a atenção: Podre Giovanni meteu os pés, fundo na lama do Marajó e puxa daí as suas reportagens, como tambaquis, trazendo a tona os mil problemas da Ilha". “É um humanista da melhor idade, dirigindo a sua objetiva sobre as grandes feridas da llha-arquipélago". "O padre sente de perto as aflições daquele povo que vive em metade d'água e em metade lama, seguro na pescaria, na vaqueiragem e na caça. Padre Giovanni tem em grande conta o cidadão do mundo, solitário, desamparado, que é o habitante de Jenipapo". “O nosso padre italiano é admirável... Que qualidades de sábio e repórter! O povo, os bichos, as águas sabem conviver com ele. O padre enfrenta a realidade, não simplifica. Tem uma dose de compreensão da mais alta. Lendo-o fico com as minhas raízes marajoaras estremecendo". “Que o padre tire uma coleçâo de reportagens e faça um livro que será retrato da terra e da gente de Jenipapo". "Italiano danado, padre de fibra e corda final"


Marques Editora Av. Magalhães Barata 391 Pesquisa e Coordenação Editorial Carlos Pará Designer Gráfico Resistência Comunicações Capa e Fotos: Giovanni Gallo Direitos Reservadoos Associação O Museu do Marajó Pe. Giovanni Gallo Av. do Museu, 1993 Cachoeira do Arari, Pará CEP: 68.840-000 e-mail: museudomarajo@gmail.com


SUMÁRIO Quem sou eu 15 O medo 21 Meu amigo Chico 25 Marajó que coisa linda 29 Marajó. Aonde vais? 33 O Círio de Santa Cruz do Arari 40 Barco é homem, lancha é mulher 46 Quando os mortos falam 49 O pajé 55 Médico x pajé 59 Estava com sede, não me deste de beber 65 Eu defendo o povo de Jenipapo! 69 O ladrão de gado 75 O ladrão de gado e o padrinho dele 81 Um cruzeiro de catecismo 86 Uma fera chamada piranha 93 Mamãe, não queria ser preta! 99 São Pedro Safadinho 104 Um pescador que pescava na lama 109 É verdade que boto vira gente? 115 Glória a Deus nas alturas e água encanada ao povo de Jenipapo 120 Você fala tupi? 124 Eu vou pra banca 131 Nasceu empelicado 137 No galho do pau 143 Ai céu! Ai céu! 148 O jacaré já era 153 No fim do mundo 159 O padre e as piranhas 165 Os cavalos estão brigando 169 Ismaile, aliás, o barrigudinho 173


Em Santa Cruz, quem não tem cachorro caça com gato Pirarucu, o peixe vermelho como o urucu Experimente: é batata! O padre é barão Era uma vez comadre onça Nossa Senhora me perdoe Uma safra muito péssima Deu a luz um robusto menino O Gebrista O Bornal Pingue-pongue também é peixe A viagem da loucura Quando Deus precisar de você Todo mundo enrolado Político de fabricação caseira Um romeiro de Santa Cruz do Arari Despedida A vida continua

177 183 191 197 201 205 211 219 225 231 237 243 251 257 261 266 271 281


PREFÁCIO À PRIMEIRA EDIÇÃO - 1980 Todos os textos do padre Giovanni Gallo são escritos na primeira pessoa do singular. São visões pessoais de uma realidade. Não há ficção. Os seus temas são tirados da vida real e passados para o papel numa ótica extremamente particular. Por essa razão, é importante conhecer o autor, quem ele é. Padre Giovanni se considera um homem rico. Anda sempre de chinela japonesa, com os pés consequentemente sujos, calças largas e rotas e camisas feitas nas melhores costureiras da ilha do Marajó. Compara o lugar onde mora – uma palafita, cercada de piranhas – com Veneza. Um homem que trocou os sofisticados ambientes do mundo religioso europeu pela angustiante rotina dos rios marajoaras. Preferiu rezar suas missas numa improvisada igreja, com um altar que chamam de banca, do que nas históricas catedrais suecas de belos altares. Desdenhou um automóvel zero quilômetro por um pequeno casco de madeira usado. E se considera um homem rico, que vive num mundo ainda mais rico. Ao redor deste homem vivem piranhas e sonhos, bois e lendas, miséria e crenças, fome e fanatismo e, fundamentalmente, homens. Homens pobres, ignorantes, explorados, imprensados por uma natureza que os esmaga e por outros homens que os expulsam e escravizam. É deste mundo que Giovanni fala em seu livro. Um mundo em que os homens aprendem a conviver com os bichos, com a água, com o tempo e com os mistérios. Todos os textos de Giovanni são visões pessoais, amorosas, de alguém que trocou o conforto pela luta, a comodidade pelo amor ao próximo. São textos que refletem uma ânsia de mudanças, de transformações, e tem consciência de seu poder. Certa vez, na redação do jornal, Giovanni me fez ver a necessidade da publicação de um artigo seu, com a máxima urgência, com o seguinte argumento: – Esse texto, publicado no jornal, é o meu passaporte para as autoridades. Esse livro, de uma linguagem viva, dinâmica - alguns textos tem a concisão e a ação de um roteiro cinematográfico – é o passaporte de Giovanni para um público mais amplo que, além de deliciar-se, pode ter a consciência de que um europeu, naturalizado sem papéis como amazônida, pode ensinar muito a todos nós que o somos de nascença, mas talvez não sejamos com o mesmo amor à terra que Giovanni. Afonso Klautau, Belém 1980.


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QUEM SOU EU

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elo amor de Deus, não pretendo apresentar aqui o meu cartão de visita, com referências e benemerências no campo das letras e da pesquisa. O leitor não faz as suas escolhas na base do papel carimbado. O leitor tem em si mesmo o critério para avaliar o atrevido jornalista que se apresente com o rótulo de descobridor do Marajó. Tem o paladar, tem o faro para testar se a mercadoria vendida responde às promessas da auto-apresentação. Gosta, então lê; não gosta, então larga, sem saudade, sem remorso. Estou pronto a enfrentar este julgamento com otimismo e, ao mesmo tempo, com um certo acanhamento: descobrir o Marajó, no ano de 1980, não é sopa, como o povo diz. A pergunta que eu faço a mim mesmo, tem outro sentido, de humildade, de discrição. Quem sou eu, que pretendo entrar de supetão no escrete dos grandes mestres que, faz anos, se aventuraram nesta ilha que boiou do mar, povoada de duendes e de mistério? Ao lado de Dalcídio Jurandir, de João Vianna, eu não sou nada, senão um devoto admirador, que nem pensa em provocar uma comparação. Apesar de tudo, cada um tem seu papel na vida, seu jeito, seu próprio estilo para analisar a realidade. E a realidade, sobretudo a do Marajó, é um tesouro inesgotável, que sempre oferece alguma beleza despercebida a quem se lhe aproxime com sincera simpatia. Seguindo o rasto de José Veríssimo, Luís da Câmara Cascudo, Couto de Magalhães, Osvaldo Orico e outros, vou entrar nos igarapés emprenhados de suspense, nos meandros fascinantes das crendices populares, nas dobras recônditas da gíria. Chegarei também à beira dos tesos onde os índios cinzelavam com carinho as igaçabas, ciumentos do know-how que levaram para outras praias ou para o silêncio da morte. Eu não sou filho do Marajó, o nome mesmo revela a minha origem italiana; nem são muitos os anos que aproei no Jenipapo e em Santa Cruz do Arari, só seis aninhos. 15


MARAJÓ - A DITADURA DA ÁGUA Este fato não cria em mim um complexo de inferioridade, pelo contrário eu o considero até uma nota em meu favor; ainda conservo a curiosidade ingênua do recém-chegado que pode descobrir as banalidades do dia-a-dia que outros olhos não enxergam. Num país tropical, quem não tem em casa uma osga e uma barata? Eu gostaria de apostar com mais de um amigo leitor: será que você já apreciou uma osga caçando uma barata? Sem pavulagem e sem barulho, a osga fica lá, grudada à parede, a respeitável distância, controlando a vítima que parece paralisada pelo medo; talvez aqueles olhos inexpressivos tenham uma mágica; estão mundiando, como a cobra faz com o passarinho. E a barata espera, quiçá planejando o dribbling que lhe permita ludibriar o adversário; só as trêmulas antenas são um sinal de vida. De repente a osga dá um pulo, a boca se abriu e já fechou. Às vezes a barata fica esperneando na boca da caçadora, às vezes cai no chão. A osga nem liga, satisfeita do bote certeiro... e as formiguinhas já chegam para o almoço. Deixando para lá toda forma de inútil modéstia, posso dizer que conheço este recanto do Marajó como poucos. Não fiz a minha aprendizagem engolindo monografias eruditas, mas através de uma caminhada na água, na lama, na terroada. Todo mundo me conhece aqui: eu sou Giovanni, Galo, Galinho, Galinho de Ouro, Padre, Mestre, Galo da Campina, Garnizé. Para as crianças simplesmente Lalá: A benção, Lalá. Desde o começo fiquei à espreita, para captar todas as mensagens, mesmo as mais insignificantes, uma palavra de gíria, uma história antiga, um jeito de ser, sobretudo aquelas coisas que não valem a pena contar. Até que enfim quis ver de perto, experimentar a vida dos meus irmãos, quis ser gente da gente na prática e não somente na teoria, e me empurrei lá, aonde não todos vão. Fui caçar, lancear, lanternar. A pé, no casco, montado. Fiquei semanas fora de casa, prisioneiro de um barquinho, de um conga na beira do rio. Consegui dominar o pavor descontrolado que me assaltava, quando tinha que ficar treze horas dentro de um mosquiteiro, deitado no jiral do casco, perdido lá, na imensidão do mondongo. 16


GIOVANNI GALLO Aprendi um bocado de coisas naquelas conversas sem fim, conversas feitas de nada. Nunca aprendi a vencer o nojo de beber água suja. Não faço essas confissões para esboçar a imagem de um herói, simplesmente para comprovar que tenho na mão as credenciais de pesquisador curioso, que me dão o direito de transmitir as minhas experiências e as minhas descobertas. Apresento aqui uma seleção dos artigos que publiquei entre 1973 e 1980, nos jornais de Belém O Liberal e O Estado do Pará. Estarias de bichos e visagens, folclore, medicina da terra, experiência religiosa, os casos da vida, feitiçaria, ensaios sobre gíria e debates sobre o futuro de um mundo em transformação. É história minha e da minha terra. Não é de estranhar se eu vou me transformando aos poucos, junto com os preços que sobem. As fotografias são minhas. Nem sempre serão uma obra prima sem que eu seja o culpado. Costumo dizer: O Marajó é o paraíso dos fotógrafos e o inferno do material fotográfico. Dá para entender muitas coisas. Eu mesmo revelo e faço as cópias, desafiando descaradamente as leis da química fotográfica: o jeito, a arma secreta do povo do interior, vale também neste campo, quando a gente trabalha num laboratório com 35°. Mais uma palavra sobre a língua. É claro que não aprendi o português no colo de minha mãe. Enfrentei-o, quando já desconfiava das minhas capacidades linguísticas em fase de avançada esclerose. Porém, as duas línguas, a minha e a língua adotiva, são irmãs, isso me oferece a possibilidade de fazer o transplante do meu estilo pessoal, sem sacrificar a gramática e a sintaxe. Algumas vezes poderá até escapulir alguma expressão meio esquisita que trava a língua. O leitor então terá a possibilidade de uma escolha: preciosidade literária ou burrice enfeitada. De qualquer jeito a minha língua será sempre a língua do povo, com a sua beleza, com os seus limites. Tenho a certeza de que nunca faltará entre nós a ligação de uma amizade sincera, que nos acompanhará nesta viagem à descoberta do Marajó, daquele Marajó que os brasileiros, e às vezes os marajoaras não conhecem. 17


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O MEDO

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az dois anos que estou aqui no Jenipapo, na boca do lago Arari. O aniversário ficou despercebido, posso assim saborear o sentido autêntico deste pedacinho da minha vida, talvez o mais marcante, sem dúvida o mais característico e espetacular. O dia da minha chegada ficou gravado na memória; parece experiência de hoje. Acompanhou-me Padre Silvério, de voadeira. O almoço foi marreca que ele atirou durante a viagem, a caça que não chama Tempero, só sal. Acredito, porém, que se a cozinheira tivesse trocado sal com açúcar, nem teria percebido. Estava na minha nova casa. Uma palafita, mas dentro tanta bagunça e tanta sujeira. Que pena ver aquelas tábuas de andiroba, os esteios de acapu borrifados de tinta branca. Teria sido tão linda uma mão de verniz copal, deixando à madeira a cor da natureza. Sou um gordão e todos os gordos são brincalhões; naquele dia, porém, as piadas me deixavam na boca um sabor de amargura, tinha a impressão de não ser sincero. Isso mesmo. Mas para ser sincero devia dizer ao meu colega, na hora da despedida: Tenho medo. Um homem, porém, nunca diz uma coisa dessas: eu sou padre, mas também sou gente. Medo de quê? De tudo e de nada. O medo é também pesadelo, quando a gente não sabe como se defender, porque ignora de onde sai o inimigo, nem quem é. Só percebia confusamente que o inimigo era aquele mundo arcano no qual tinha caído. Um povoado de palafitas para um homem que tinha conhecido Berlim, Paris, Estocolmo, Basileia, era um cair dentro da máquina do tempo e voltar aos primórdios da história da humanidade, quando o homem fazia sua moradia em cima da água. Talvez medo não seja a palavra certa. Sim, era medo mas não só isso. Era um mal-estar com feições indefinidas. Entrava na jogada o fator físico e o elemento psicológico, diria quase uma dialética de pergunta e resposta, de apelo e de porfia, onde sonho fantástico e cálculo frio se alternavam sem sossego, numa inesgotável reação em cadeia, à procura de um esclarecimento que não podia chegar. Senti sede. Não era sede no sentido normal da palavra, era a necessidade e o desejo de fazer alguma coisa que pertencia à minha vida de sempre, na ilusão de que tragando aquela água conseguisse engolir também aquele negócio, que me apertava na garganta. Não tinha água em casa. Fiquei à janela, os olhos encandeados por aquela imensidão de água. Passou um casquinho, deslizando ligeiro sobre a superfície; uma criança olhou para mim, estranhando. Eu disse: – Boa tarde e a única resposta foi um remar mais vigoroso, para se afastar mais 21


MARAJÓ - A DITADURA DA ÁGUA depressa. Acompanhei-a com o olhar e a vi levar à boca a água da cuia. Que água? do rio ? do lago? que água é essa? Pensei em fazer a mesma coisa mas senti nojo; era claro que todos os dejetos eram despejados ali. Lembrei-me dos dias difíceis passados no meu bairro em São Luís do Maranhão, por causa da giárdia e engoli um pouco de saliva. Será que não passa ninguém para eu pedir um pouco de água? Mas que água? Dona Lídia, dando-me boas vindas me tinha dito: – Se o senhor precisar de alguma coisa, minha mãe mora aqui perto, o nome dela é Zidoca. Só chamar ela. Será que eu podia gritar Dona Zidoca, Dona Zidoca! Teria faltado só isso: aquele grito inócuo, pulando de casa em casa, ter-se-ia transformado em não sei qual sinal de desespero, de grito misterioso. Lembrei-me mais uma vez do bairro da Floresta, em São Luís, a primeira tarde passada na minha casinha de taipa. Estava à porta do quintal, escutando o murmúrio informe que chegava da rua da malária, lá em baixo. Dona Rita me tinha trazido um prato de arroz e feijão: ela sabia que ainda não tinha fogão e não podia cozinhar. Ali, sentado no degrau, vi um gato sobre o muro da cerca. Devagarinho lhe deixei uma colherada de comida. Ele ficou olhando, depois comeu, e se aproximou pedindo mais um pouco. A história não acabou ali. No dia seguinte, o gato, que era uma gata, me trouxe três gatinhos e os depositou na porta. Eles entravam em casa, a mãe não, só vinha umas vezes por dia para amamentá-los, nem se atrevia a pedir algo para si, satisfeita de ter encontrado um abrigo seguro para os seus filhotes. O primeiro amigo no bairro foi uma gatinha, mas deixei muitos: Apolônio, o dono do Boi, Zé Pessoa, Raimundinho, Antônio, Dona Mundica... até perdi a conta... Tinha toda tarde à disposição para pensar, para curtir saudades. Estava preso na minha palafita, Instintivamente pensei que a vontade de Deus, representada pela vontade dos Superiores tinha-me destinado a outro lugar, Estocolmo. Naquela ocasião eu tinha percebido que Estocolmo não era para mim, mas não tinha argumentos para me opor como quando tinha recusado a Missão de Vasteras: Não tem trabalho bastante, se eu fosse uns quinze anos mais velho talvez daria certo. Em Estocolmo devia tomar conta das Missões Católicas Italianas na Escandinávia toda, Suécia, Noruega e Dinamarca, trabalho pra burro, mas eu sentia que não era o meu galho! Um dia recebi uma carta do chefão. Acho que ele queria me convencer, estava farejando as 22


GIOVANNI GALLO minhas dúvidas. Porém, fez um erro: para me aliciar, mandou-me alguns prospectos do Volvo. Assim mesmo, pela minha posição destacada eu não teria recebido um vulgar Volkswagen, mas um Volvo, último modelo, zero quilômetro. Fiquei revoltado e disse: Não ! Não podia aceitar, não sou padre para ter carro bonito... Naquela tarde, essa lembrança passou pela minha mente, mas não como uma auréola de um ato heróico, parecia-me uma suprema gozação. Coitado, besta, por quê? Todos os amigos que tinham lutado para que eu não deixasse a Suíça, os encontrava agora, uma turma compacta para achar graça de mim, um herói de meia tigela, vítima da sua fantasia doentia. Mas aquelas lembranças que se concretizavam em formas humanas não eram senão a materialização de uma problemática de fundo. Esta escolha heróica não seria por acaso uma fuga? Com toda esta Igreja em Aggiornamento, este choque apocalíptico entre os valores de ontem e as dúvidas de hoje, nesta visão assustadora de um futuro sem padres, esta minha escolha do Marajó não será por acaso uma evasão, uma frustração disfarçada? Neste remoinho de pensamentos e de lembranças, senti-me perdido, pequeno, tive medo. Foram-se dois anos. Quem passa remando debaixo da janela, sentindo-me bater à máquina, dá um grito: Giovanni, está trabalhando? Quase sempre me levanto para acompanhar aquela voz amiga e responder às crianças que me chamam do jirau, abanando as mãozinhas em sinal de alegria. Passaram-se dois anos e este Marajó misterioso, aos poucos, me desvendou os seus segredos. Uma história fantástica, onde santos e caboclos vão de mãos dadas, onde a medicina da terra complementa as receitas da Ciba e da Geigy, onde a linguagem tem um sentido diferente, o raciocínio segue esquemas arcanos. Um lugar que não tem telefone, não tem correio, não tem água encanada, não tem nada; um lugar porém onde todos sabem tudo. Horas de alegria e de desespero curtidas na imensa solidão, descoberta exultante de um mundo completamente novo, serão o pano de fundo das páginas deste meu diário.

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MEU AMIGO CHICO

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hico não era marajoara, porém merece ser lembrado aqui porque a história dele pode ser a história de qualquer um dos seus colegas marajoaras. São todos iguais, tirados com a xerox: engraçados e sem-vergonha, carinhosos, covardes, atrevidos, sobretudo amigos da gente. Estava morando no bairro da Floresta, em São Luís do Maranhão, um recanto de pobreza e alegria: pobreza sempre, alegria sobretudo quando estourava o Bumba-meu-boi de Apolônio Melônio. Um dia me ofereceram um macaco: É manso, olha só! Fiquei encabulado, nunca tinha visto um macaco tão de perto, mas valia a pena tentar a aventura, a despesa não era astronômica, quinze cruzeiros. E fiquei com o macaco. Para começar dei-lhe um nome digno: Garibaldi. Ele não gostou. Todo macaco brasileiro chama-se Chico ou Mico Explicou-me Raimundinho. Foi o jeito chamá-lo de Chico: não resolveu nada. O Chico continuou a me olhar desconfiado; pegava na banana e trepava na sua casinhola para comê-la às pressas, mais longe possível, sempre em estado de alerta. Um carinho nunca. Zé Pessoa me deu a razão: Não gosta de cheiro de branco. Ora essa! É mais fácil trocar o nome do bicho do que o cheiro do dono! Um dia Chico arrebentou a corrente e fugiu pelos telhados. A rapaziada foi atrás dele, um safari épico, acompanhado pelos berros das comadres que contavam as telhas quebradas; até que enfim foi tarrafeado com uma camisa e a turminha barulhenta me entregou o fugitivo. Chico teve um relâmpago de incerteza, olhou para mim, me abraçou; ficamos amigos. Arrumei-lhe, no quintal, uma morada sofisticada: uma escada com pontas de ripas, uma corrente, uma balança, um pneu velho. Só aparecer uma visita e Chico se exibia em piruetas e caretas. O ponto alto do show era a demonstração de como sabia desenrolar a corrente, com a esperteza de um campeão. Titico, um pirralho meu vizinho, me perguntou: - É homem ou mulher? Evidentemente Titico estava ainda na fase da inocência, porque as características somáticas do macaco prego são de uma evidência chocante. – É homem. – Então, ele gosta de mulher. É verdade, não dá para apresentar aqui o resultado da pesquisa, só essa que me contou Mano Cito. Na Fazenda Matinadas, no Marajó, havia um macaco manso que vivia solto, entrando 25


MARAJÓ - A DITADURA DA ÁGUA e saindo de casa à vontade. Quando alguém estava tomando banho, ele se aproximava cauteloso, tirava uma telha para espiar. Era homem, tapava e fugia. Era mulher, destelhava, Chico tinha um caráter imprevisível, cismava sem motivo. Um dado, porém, está certo: entre preto e branco ele sempre escolhia o preto. Como todo macaco, gostava muito de catar. Eu não tenho piolho, garanto, mas ele achava sempre alguma coisa interessante. Sobretudo se coçava. Talvez ele tivesse algum piolho, mas fundamentalmente se coçar era um vício atávico, um jeito como outro para se comunicar. Se coçava um pouco mais? Certamente tinha feito alguma travessura, sei lá, quebrado uma telha ou roubado o sabonete. Gostava do meu cachimbo, mas não da fumaça. Quando eu lhe soprava a fumaça nos olhos, ele automaticamente cocava o traseiro, sinal este que a coceira dele era puramente psicológica, já que aquele lugar nada tinha a ver com a fumaça. Voltando para casa, sempre lhe fazia visita de cortesia no quintal e ele botava logo a mão no bolso da minha camisa. Um dia, no supermercado, em lugar do troco, me deram um bombom. Chico o encontrou e desde aquele dia sempre viveu na esperança de que voltasse do supermercado. Chico era essencialmente otimista. Podia saborear a comida mais gostosa, mas vendo qualquer movimento na cozinha jogava tudo fora, na certeza de ganhar coisa melhor. Os gostos dele eram requintados: não aceitava fruta vagabunda, chupava o coco e cuspia o bagaço. Na Festa de Santo Expedito, também Chico participava da vida paroquial, ofereci-lhe um gole de cerveja. Só aceitou para não fazer desfeita e ficou bêbado: tufando o peito balançava terrivelmente as pernas tortas, na típica pose do famigerado King-Kong. Apesar de tudo, gostava mais de amizade do que de comida. Voltando para casa, não adiantava que eu lhe jogasse alguma iguaria: nem ligava, precisava mesmo brincar uns minutos com ele. Depois sim, pegava na comida, mas gostava mais de pegar na minha mão, como uma criança mimada. Um dia no quintal entrou um hóspede novo, um carumbé (lá o chamam de cágado). Chico ficou um bom tempo, trepado lá em cima, olhando desconfiado e meio ciumento aquele sujeito engraçado. Depois arrumou coragem, baixou devagarinho, chegando a tocar a carapaça dele. Naturalmente não houve reação. Tendo certeza de que o bicho não era perigoso, pegou o vício de passear de carona nas costas dele. Quando cansava, em lugar de pagar a passagem, virava o bicho de perna para cima, deixando-o horas naquela agonia, esperneando. Já se sabe, macaco é também covarde. Tinha raiva de urubu, ameaçava-os quando sentavam no telhado. O dia, porém, em que um deles esbarrou na linha elétrica e caiu meio morto no quintal, pouco faltou para que o Chico desmaiasse de susto. Só disparar um foguete, era o fim! 26


GIOVANNI GALLO Chico gostava muito da família de Raimundinho, onde eu o deixava quando devia sair do bairro. Domingo à noite, chegando à casa dele, me largava logo e se esquecia de mim. Porém, quando voltava, reconhecia de longe o barulho do meu jipe, e não tinha mais sossego até que se segurasse no meu pescoço. Parecia que ele sabia que a minha ausência não ia demorar. Digo isso, porque uma vez que eu devia ser internado no hospital e consequentemente devia deixá-lo lá um par de semanas, fez a maior confusão na hora da despedida. Abraçava-me, puxava a corrente, chorava; todo mundo ficou arrepiado, pensando em algum lúgubre pressentimento. Outra vez, eu ia fazer uma viagem ao interior. Na hora da despedida, de novo aquele desespero descontrolado. Era presciência mesmo. Quando voltei, dona Rita estava me esperando na Igreja dos Remédios. – Padre, o Chico está passando mal. A gente fez tudo o que podia. Ele ficava triste, não queria comer. A gente pensava que fosse saudade. Talvez saudade tinha, a causa porém era outra. Chico sempre vivia acorrentado, senão quebraria tudo. Pulando e puxando sem sossego, a cinta tinha ferido o couro dele. Se eu tivesse estado lá, acho que teria dado um jeito, porque esse problema já tinha aparecido outra vez. Então eu lhe fiz o curativo, Chico ficou olhando, esticando a barriga com as mãos. Não gritou, mas chorou, lágrimas de verdade. Depois, devagarinho tirou a gaze, observou-a com atenção, farejou o methiolate, coloco-o na boca para testar. Depois o pôs outra vez no lugar, satisfeito. Desta vez ninguém reparou que estava ferido, só tarde demais, quando a infecção já tinha tomado conta do doente. Encontrei o Chico deitado de bruço, sem corrente: com aquela atadura parecia um ferido de guerra. Ao lado dele, Mestre Antônio, triste como se estivesse velando um filho; só se afastava para pedir um café. O bichinho dava pena mesmo. Um macaco prego é pouca coisa, não tem substância, é só pavulagem. Naquele dia parecia só um espanador. Estava com febre alta, a cabecinha ensopada de suor, um olhar triste, as pernas já paralisadas. Chamei-o. Reconheceu logo a minha voz, tentou inutilmente levantar a cabeça. Só esticou o braço, fez pio, pio como um passarinho e morreu. Para morrer Chico quis me esperar. Ele não gostava de cheiro de branco, nem do meu sotaque de gringo, porém era meu amigo de verdade. Falei para Raimundinho: – Será que você me faz uma fineza? Vá enterrar o Chico, não quero que seja comido pelos urubus. Chico não gostava de urubu.

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MARAJÓ QUE COISA LINDA! O que é o Marajó? É uma coisa linda, é uma parada! A gente pode colecionar todos os termos que indicam maravilha, entusiasmo, encanto, admiração mais um pingo de mistério, depois misturaos num liquidificador para conseguir algo que não pode ser definido, simplesmente porque é fora de série. A peculiaridade do Marajó está mesmo neste fato de ser algo diferente, único. O raro turista que chega aqui, sempre repete isso: Nunca vi uma coisa dessas! Mas a descoberta dele é somente uma impressão, vaga, vaporosa, superficial, pouco mais de uma intuição, que nasce da instintiva coleta de fatos insignificantes, quase imperceptíveis, colhidos numa palavra, num gesto, respirando aquele ar fino, ouvindo, à noite, o canto do bacurau ou acompanhando, com o olhar, o carolo do peixe agulha. Só vivendo aqui, em contato com a realidade do dia-a-dia, é possível descobrir o que de fato aqui é novo e exclusivo. Não somente a natureza (bichos e flores se encontram em toda parte), é o relacionamento, uma dimensão nova, uma espécie de trama de conexões misteriosas que associam homens e coisas, formando um mundo à parte, fora dos padrões, das categorias gastas e habituais. O nosso tempo não é o tempo de São Paulo, nem de Belém. O nosso tempo é feito de espera. A gente já nasce fora do cronograma. Se Deus quiser, o bebê vai nascer no fim do mês. Será mesmo? Não é de estranhar se nasce antes, no barco da linha, no meio da baía alvoroçada. Pode ser que a mamãe, em Belém, vá ficar umas semanas, um mês, até que chegue a hora H. Viagem é sinônimo de espera. A gente espera a chegada do barco (dizem que ...), a saída dele (sai a meio dia, às duas horas, para as três, desde as três em diante, se Deus quiser). Até em Belém, chegando na alta madrugada, precisa esperar, antes de saltar do Vasconcelos. O pescador espera sempre. Espera a água arriar, que levante o tempo, que chegue a maré, espera o colega (não tem relógio, o rádio está no prego e faltam as pilhas). Espera que o peixe fique malhado na rede, espera a geleira para pesá-lo, para entregá-lo. 29


MARAJÓ - A DITADURA DA ÁGUA Depois espera o dinheiro: já vem, já vem, mas quando? Almoço não tem hora marcada, é quando chega a bóia: se não chegar, ninguém morre de fome, será para amanhã. Deus é grande! O planejamento é pura abstração. Por que fazer ensaio? Melhor entrar na marra, na última hora e vai dar certo: quem ensaia, já se sabe, à hora do show não aparece. Para o arremate do prédio só faltam uns pregos, uma vidraça, as telhas são de marca diferente e não dão com a bitola das ripas; chegaram os parafusos mas não entram nas dobradiças, o cano de Brasilit está rachado e a Fórmica estalou... Mas não tem problema. Vamos dar um jeito. Tem jeito para tudo. Se o barco não sai hoje, viaja amanhã. Se o motor enguiçar no rio é graça grande, se for no meio da baía, a gente faz promessa a Nossa Senhora: no dia do Círio, vamos gastar no balcão da barraca da Santa aquele dinheiro guardado com devoção. O nosso tempo é também feito de esperança que borbulha e pipoca naquela alegria descontraída, espontânea, instintiva, que faísca em todos os rostos, em todos os momentos da vida, sem afobação, sem recriminações, sem amargura. Um senso de otimismo embebe todas as coisas, não existe revolta amarga, nem é fatalismo. É outra filosofia da vida, é outra visão do mundo, uma outra Weltanschauung para falar difícil. A gente espera (no sentido de esperança) a água encanada, o correio, o telefone, a vacina, o dentista, a aposentadoria, a luz, a televisão, o esgoto, a merenda escolar e quantas outras coisas. Não vêm? Então dá tempo para juntar latas, saquinhos de plásticos, pedacinhos de barbante, tocos de pau, pregos velhos, peças quebradas: talvez possam servir. De fato, antes ou depois, servem. Servem na hora, para alimentar aquele senso de otimismo do qual a vida está impregnada. Aqui tudo dá certo, sempre. Falta óleo para o freio, qualquer óleo quebra o galho; em lugar do fusível dá para botar o papel prateado da carteira de cigarros, a água Nazaré é substituto admirável da água destilada. Homem não é bicho: será que deve trabalhar todo dia? A gente pode ficar se embalando na rede ou deitado no terraço, olhando para as cabas que estão fazendo ninho ou aquele vom-vom que, rosnando, vai atrás não sei de quê. Quantas coisas Deus nos deu para contemplar. O arco-íris aqui é rotina: pega lá, da 30


GIOVANNI GALLO Terra Vermelha, até à boca do lago. Os anus estão mariscando, o quiriru solta aquele gritinho insosso, abanando o rabo demasiado comprido, o bem-te-vi canta o seu eterno refrão, na torre da igreja. – Olha para o céu, que maravilha! O vôo planado dos urubus, os mergulhões que parecem soldados num desfile. O mururétem a sua beleza; só esbarrar no dorme-dorme (tem quem chame este capim de Maria vaivém) e aquelas folhas miúdas, quase uma renda que a gente pode colher sem pagar um tostão, se encolhem arrepiadas. O api só espera a noite para abrir a sua flor que passa o dia dormindo. Fora daqui todos estão correndo, como se tivessem o fogo nas costas, com aquele stress que aperta o coração, tira o sono. É por isso que filho de rico, filho de branco, sai vadiando pelo mundo, em busca da libertação da sociedade, das estruturas. Aqui já estamos livres, graças a Deus! Você já viu gente da coluna social que vai descalça, se senta no chão, anda maltrapilha, com roupa desbotada, remendada, com aquelas manchas, parecem de água sanitária? A gente aqui tem isso tudo, sem comprar na butique. O dólar está em crise, o petróleo condiciona o mundo inteiro, o mercado está saturado, as reservas de água estão escasseando, a população mundial está explodindo. Amin, carregado pelos ingleses, dá aquele show que a história preparou durante séculos de colonialismo: é a hora da némese. Chove em Bangladesh, o gelo arrasa a lavoura paulista, enquanto o petróleo borbulha no fundo do mar e os cientistas estão brincando com o DNA planejando monstros e supergênios. Nessa conjuntura, o Marajó vai de bubuia sobre as águas, enfrenta o caminho cheio de juquiri, a terruada, a areia movediça. Como todos os caboclos, o Marajó está esperando, paciente, a sua hora, quando chegará um barco da linha confortável e seguro, quando o avião poderá aterrissar sem esperar a seca, quando a gente aprenderá que o cartão postal é para mandar longe e não para grudar na esteira, ao lado da imagem de Nossa Senhora e da folhinha, cheia de mulheres peladas. Nós, no Marajó, estamos vivendo numa outra dimensão: espaço, tempo, com o seu passado e o seu futuro, experiência chata e ficção científica saem dos esquemas 31


MARAJÓ - A DITADURA DA ÁGUA consagrados, viram analogia. Cada descoberta, na hora que vê a luz, já fica velha, superada, já nasce frustrada. Aqui tudo é novo, recém-nascido ou prematuro. As águas continuam brincando com a gente. A lagoa de Jenipapo vira lama, terra rachada. Chegam os urubus, as garças para aproveitar as migalhas da safra. O pescador já saboreia, de olhos fechados, aquela cerveja gostosa, para apagar o gosto do limo que está grudado na boca. Essa não é propaganda da miséria nem distribuição gratuita de entorpecentes. Ninguém nega a presença da dor, da doença, da fome, do desamparo. Mas isso não é sinônimo de desespero, como a riqueza não coincide com a felicidade. Quem quiser pode dar uma volta pelo mundo afora, onde a renda é bem mais alta que aqui, onde não falta carro, geladeira e todas aquelas coisas inventadas para satisfazer às necessidades criadas pela propaganda comercial. Encontrará meninos gordos, velhos que nunca morrem, gente que se esgota para inventar uma diversão para o tempo livre que nunca acaba. Mas aquela alegria límpida, cristalina como aqui, lá está fora de cogitação. Já era, já foi fagocitada pelo progresso, esterilizada pelo bem-estar: é algo asséptico, puramente artificial. A criança que brinca com um robot ou com um sofisticado macacão de astronauta não sabe o que é alegria em Jenipapo, quando a lama seca, os cachorros pulam em disparada, os gatos saem da quarentena e os meninos preparam a casinha no meio do arraial, com pedaços de papelão, trapos velhos, para oferecer aos amigos uma batatinha num prato de barro, feito por eles mesmos. Então, o Marajó é o último recanto do Éden, um recanto esquecido onde a felicidade ficou incontaminada, junto com as lembranças das pré-históricas palafitas? O Marajó, felizmente ou não, eu não sei, está entrando numa nova fase. Nenhum homem é uma ilha e nenhuma ilha pode ficar isolada do resto do mundo. O equilíbrio dos seus valores não é mais estável; só um baquezinho e aquele castelo encantado, onde estava hospedado um outro homem, um outro tipo de vida pode desmoronar. Talvez tenha chegado a hora para perguntar: aonde vais, meu Marajó? *** 32


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MARAJÓ, AONDE VAIS?

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ilha, ancorada desde séculos na boca do grande rio, continua as suas mudanças. Não é mais o jogo das águas, o fluxo das marés que inventam novos igarapés, novos igapós, furos românticos, curvas sinuosas, barragens improvisadas. Não é mais a cobra grande que, lá em baixo, no fundo, está se mexendo, desabando a ribanceira. É o homem, que chamam de sapiente, mas que muitas vezes não passa de um moleque irreflexível, que inventa brincadeiras, sem pensar no que vem depois. O Marajó não é mais o mesmo, cada dia está perdendo um pouco de sua fisionomia primitiva, a verdadeira. A água está ficando poluída. Poucos sabem que o jacaré faz na água o que urubu faz na terra: ele era o lixeiro, o faxineiro contratado pela natureza para limpar tudo quanto era água, até lá nos igapós parados, naquela sombra misteriosa que dá medo. O índio nunca sujava a água, e nem podia, mas o homem moderno está fazendo uma porção de besteiras, como essa. Foi quebrado o equilíbrio da ecologia, a máquina enguiçou. Os rios estão ficando pobres. Cadê aquela fartura de pirarucu, tambaquis, aruanã, tucunaré-açu e tinga, aquela pescada que a geleira nem pesava, só comprava por centros? O peixe que não sumiu, ficou raquítico, tísico, subdesenvolvido. Dizem que está supertreinado na corrida: corre para cá e encontra uma rede, corre para lá, e já tem outra. Coitado, nunca pode descansar, por isso fica franzino. Não é só isso, não. É que falta a bóia: aquelas redes de arrastão vão tirando o plancton lá no fundo, e o peixe jito, quê vai comer? Há até criminosos por aí, que usam rede de camarão para pegar peixe, peixe recém-nascido. Até a família dos peixes foi por água abaixo: ninguém mais vai casar, faltam os noivos! Os índios não faziam assim não, nunca matavam para estragar, nunca assustavam bicho e quando tinham que pegar um, o companheiro dele que estava no mesmo galho nem reparava. O lago Arari não é mais o mesmo. Antigamente era uma bacia maravilhosa, com aquela água funda, os poções a água dobra com aquela substância, o peixe sai de carreira e vai cair na baía. Fizeram até canais para regulamentar as águas. Aqui é sempre o mesmo problema: a água ou falta ou sobra, na medida certa nunca está. O peixe cismou, se empurrou no pirisal ou vai na contra costa. O gado precisa de água no verão e os vaqueiros, cada ano, juntam toneladas de aterro, e a terra se espalha no fundo e entope tudo. 33


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MARAJÓ - A DITADURA DA ÁGUA Parece que o gado vai ter mais condições. Para quê? Para engordar? Para se multiplicar? E depois? Isso também é uma droga. O nosso gado vai para o matadouro e volta: está magro, está novo, já tem de sobra. Se quiser, pode deixar; dentro de um mês dê um pulo para ver se o dinheiro saiu, mas não garanto. Tem carne que vem do Sul: os caminhões frigoríficos não brincam, nunca falham, não têm que esperar a maré, De lá está chegando tudo, e tudo mais barato. Não chegam só os frangos congelados com a cabeça debaixo da asa e o fígado no saquinho de plástico. Chegam capitais: os paulistas entendem de negócio, ficam atrás dos bastidores; é o amigo que faz relações públicas. Estão pesquisando, comprando, botando bases industriais na nossa pecuária, baseada na alegre economia familiar. Os donos de boieiros ganhavam ainda uma beirinha levando as reses para Manaus, um mercado garantido. Um belo dia, belo para eles e ruim para nós, os marujos de lá descobriram o ovo de Colombo; levavam mercadorias e voltavam secos. Não seria melhor carregar boi de volta? E assim começaram baixando o frete e roubando toda a freguesia e a gente ficou olhando. Os criadores choram, mas os pescadores não riem. Aumentou a turma dos pescadores, diminuiu o peixe, diminuiu a expansão do mercado. Aqui a gente pesca como no tempo do Cabral, enquanto as grandes companhias passeiam nos barcos com radar e sonar e todas aquelas diabruras; trabalham no seco, não enfrentam mordida de piranha nem ferrada de arraia, não sabem o que é perneira ou macacão de trançado vaqueiro. Nem pesam o peixe, só botam lá no porão, nem compram gelo, eles mesmos inventaram o frio. Mas, graças a Deus, no Marajó chegou a técnica eletrônica. Aparelhagens velhas de duas gerações, que fazem porém aquele barulho que não conhece fronteiras. Mais uma poluição! O pessoal bate na porta do vigário pedindo pílula para dormir e o vigário sempre dá aquela resposta: Pílula certa é bala de espingarda bem no centro do projetor que invade a intimidade da casa, tirando o sono da gente. Quem é o culpado? Todos e ninguém: a gente tem que pagar o progresso. O sono é ralado. À noite, chegam os bois fugindo dos carapanãs e se agasalham debaixo da casa, se coçam nos esteios, quem tem vontade de se levantar para esquentar a água e jogá-la nas costas deles, para fazer a alvorada de outro aniversariante? Mas os bois são os donos do Marajó, desde sempre; vão pisando para preparar a terruada do verão. Chegam os padeiros, uma patota de moleques com amplificador embutido na garganta, começa a porfia: Papa-pa-deiroooo. Se alguém dá um berro de dentro da rede, eles chamam nome, chamam a mãe. É a lei do comércio, tudo isso é para chegar primeiro. Os padeiros saíam às seis, a concorrência antecipou para as cinco e meia. A resposta 36


GIOVANNI GALLO foi às cinco, a revanche às quatro, numa escalação típica da guerra de hoje, até às três da madrugada. Quando os sapos se perguntam intrigados: Que é isso? – os padeirinhos voltejam nas frágeis embarcações numa concorrência feroz, gritando: – Padaria de São Pedro achado; quem não come pão, morre entoxicado! O pessoal abre os olhos, se espreguiça, prepara o café e fica bocejando. Abre a janela, procura o sol que não sai, escuta o rádio, aquela musiquinha para aliviar os que não dormem. Aqui está chegando tudo, até a política. Não é mais a política dos índios, aquela sociedade bem organizada, com a dança cada noite, a iniciação dos guerreiros e das meninas que viram moças. Aqui a política não é ainda a política legítima, é uma palavra oca, uma forma de transação, um tipo de moderna marretagem, um troca-troca, um puxa-puxa. Tudo o que vem da cúpula para ajudar a gente, para nos ajudar a crescer, já chega filtrado pela interpretação capciosa, interesseira. Até as palavras do jornal (preto sobre branco, que há mais claro do que isso?) são vítimas de metamorfose violenta, que mata a verdade, para que possa grelar a fofoca, para jogar no chaveco quem está lutando para abrir os olhos a horizontes novos e sadios. Apesar de tudo, até a política tem o senso de humor, de vez em quando arruma uma brincadeira para a alegria do povo, como quando os eleitores nem encontram a caneta; será que riscam o voto com a língua ou a ponta do nariz, ou simplesmente porque voto em branco é para a legenda? Chega o Rondon, mas aquela turminha esforçada e alegre não consegue realizar a promoção que tinha sonhado, aliviar a dor, ver crianças em festa porque iam tirar um dente, como se fossem atrás de um bombom. Que foi? Por que não deu certo? É o mundo de fora que está invadindo o Marajó, outros interesses estão estragando aquela beleza e paz primordiais. A mulher renuncia à farinha para comprar a peruca barata, sem perceber que está estragando a sua beleza espontânea. Chega o dinheiro da aposentadoria, mas aquele bolão queima as mãos, tem que ser Iargado logo e o caboclo vai comprar uma casinha no lugar mais triste de Belém e faz a descoberta da compra a prestação com R$ 1,00 de entrada. A visão idílica do meu Marajó fica embaçada. O Marajó está no caminho das mudanças. Para sobreviver tem que entrar no nivelamento geral, mais uma vítima do mundo em evolução. Precisa comprar o Seiko, precisa mudar o ritmo do tempo, entrar numa corrida desesperada como todos. O tempo não é mais a espera nem esperança; é simplesmente agonia, afobação. Antes tinha sempre tempo para tudo e ainda sobrava uma folga, agora já não tem tempo mais para nada. O processo de transformação já começou. Não morreu o velho Marajó e o novo ainda está 37


MARAJÓ - A DITADURA DA ÁGUA em gestação, mas já começaram as dores do parto. Os últimos jacarés, ouvindo um penquepenque não têm mais a coragem de piscar, a onça fica covarde, o sucuriju renuncia à galinha gorda que está piando no jirau. Já começou aquele jogo mágico que consegue misturar, sem reações violentas, sem medo de rejeição, o velho e o novo, a palafita da pré-história, a medicina do mato temperada com a reza de São Cipriano, com as façanhas de Fittipaldi e as aventuras dos astronautas. O jeito que representava a mais alta manifestação da técnica sem recursos, o quebragalho universal, o milagre da gente pobre, reduziu-se agora a um puro vício, um insulto ao progresso: não tem mais sentido mas custa a morrer. O pescador ainda não compreendeu: o tempo, que cada dia oferecia o seu sustento, aquela boinha garantida, preparada pela natureza farta e generosa já não é mais senão lembrança e saudade. Hoje é salário, é instituto, é relógio marca-tempo, carimbo, protocolo. Infinitos fatos, invisíveis e onipresentes, criam um certo equilíbrio de situações, no meio do qual se encontra o homem novo, o caboclo que veste na moda e carrega na cabeça o modo de pensar antigo, quando não era preciso guardar para amanhã o que a gente ganha hoje. É a visão da realidade que mudou; a economia familiar é condicionada pelos planejamentos, o jogo da bolsa, as especulações das multinacionais. O caboclo corta o açaizeiro, oferece palmito e fica com um pedacinho de papel amarrotado que amanhã estará guardado no balcão da quitanda, enquanto ele sonha com um novo açaizal, que nunca mais verá. Talvez não esteja longe o dia em que a Alemanha vá exportar cerâmica marajoara e o Goeldi comprar bichos na Inglaterra; são as brincadeiras da história. Aonde vais, meu Marajó? Talvez aqui, um dia, encontrem o petróleo e descubram que o algodoeiro, a batatarana, têm valor comercial. Mas se o nosso povo não tiver crescido na cultura, a receiota descerá junto com os peixes para a baía, a capital, São Paulo, as Europas, e a gente fica na lama como sempre, desta vez porém , sem aquela alegria de outrora. Aqui se precisa de açudes, de fertilizantes... Mas isso não vai mudar nada; só dá para aumentar a crise e a frustração. Aqui se precisa de escola para o pescador, o vaqueiro; precisa-se de Mobral, Minerva, Ginásio. Precisa-se ajudar a gente crescer, para estar na linha com o mundo que corre para o futuro. Esta é a hora para enfrentar a campanha de promoção humana. E o povo está com fome disso.

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O CÍRIO DE SANTA CRUZ DO ARARI "Santa Cruz do Arari! Esta pequenina vila é a pérola do lago Arari e o orgulho de seus filhos. Está situada à margem direita deste majestoso lago, que nos belos dias de verão nos oferece espetáculos maravilhosos; as barcas agitadas pelas ondas parecem borboletas adiando o mar, o pescador segurando o leme e afrontando os perigos de sua profissão, volve o olhar para a Capelinha branca, confiando o seu destino à Virgem de Nazareth, padroeira do lugar". Assim reza o prefácio do mais antigo programa do Círio de Santa Cruz do Arari que encontrei. É do ano de 1937. Naturalmente não é o primeiro. Dona Vangica juntou este e mais outros, mas não teve tempo de revirar o seu arquivo pessoal em busca daqueles escritos à mão. Dona Zazá os tinha guardados todos, numa mala com as recordações da mamãe e da filhinha que morreu, mais o cupim entrou pelo canto e os cortou: São aquelas coisas que a gente guarda e não mexe. A primeira reação diante deste fracasso inicial da minha pesquisa foi o aborrecimento. Depois me conformei, até gostei desse contratempo que não me deixou realizar minha obra prima: A análise de um fenômeno histórico-religioso-social, apresentando um acervo de anotações, através do cronograma minucioso das etapas do seu desenvolvimento. Pelo contrário, os poucos programas que estão na minha mesa e que de vez em quando o vento de verão espalha pelo quarto, os depoimentos recolhidos à noitinha na Casa Concórdia, no comércio de Humberto, ou sentado na ponte com Dona Cila, me convidam a deixar-me levar na onda das lembranças desse povo de Santa Cruz, revivendo com eles a nostalgia do passado, a poesia e o encanto das coisas que se transformam e nunca morrem. – O Círio era uma coisinha de nada, uma coisa tão simples, que o senhor nem faz uma ideia. É Dona Zazá que fala. A voz baixinha vai cavando, aos poucos, as lembranças antigas da orquestra do finado Bento Amador, da flauta do pai de Dona Vangica, do violino de Zinho Monteiro. A ladainha dos nomes se desenrola aos poucos: – "O Pai do Hinton era homem bom, o finado Bernardo era homem bom, Dona Laurinda a esposa do seu Artú Lima se hospedava na casa do Gaioso e acompanhava toda festa, ajudava muito ..." 40


GIOVANNI GALLO Todos os pormenores ficam emoldurados como os programas naquelas decorações um pouco liberty que os embelezavam. "Ao romper da aurora do dia 14, ouvir-se-á o atroar dos foguetes, o repicar dos sinos e o som do jazz despertando a população que com fervoroso entusiasmo dirigir-se-á para a casa do Coronel Grondízio, de onde sairá o Círio da Mãe Santíssima." "Em todo o seu esplendor de glória, revestida do seu manto riquíssimo, a imagem da Mãe Amantíssima, estará rodeada de flores, a derramar sobre o povo a luz suave do seu meigo olhar, abençoando-o piedosamente". "E assim passará a Santa imagem em frente a cada lar desta localidade e todos os devotos impossibilitados de acompanhar o Círio lhe renderão, de joelhos em terra, as homenagens dos sentimentos puros de católicos verdadeiros, sublimes na sua fé sincera". Dona Zelita está com saudade dos anjos, enquanto me mostra uma foto desbotada com três deles diante do tríplice Arco: – Eram a Fé, a Esperança e a Caridade, esta aqui é Dona Gessy, a Senhora prefeita... Na Festividade de Nazaré havia muitos anjos, inclusive a maioria montados a cavalo com suas lindas mantas, anjos lindos não só na palavra mais na verdade... Agora não sei, não se vê mais. A Diretoria chegava junto à casa dos pais e pedia que preparassem para acompanhar o Círio, para ornamentação da berlinda. Quando meu falecido pai foi festeiro houve muitos anjos, a berlinda foi ornamentada toda com flores Sorriso de Maria todas flores naturais. Parece que o povo era mais chegado, hoje não sei porque ... Dona Jojó começa de mais longe: – O início foi com Brondísio Pamplona: O Círio chegava de Igarapé Fundo, rezavam numa casa e depois voltavam. No ano de 1929 foi pela primeira vez até a Igreja, depois o ano seguinte foi até à Fazendinha. A Jenipapo foi com a Diretoria de Antonio Lobato Tavares, o Nini. O ano não sei... A Igreja era a mesma de agora, mas bem pequenina, só depois acrescentaram a sacristia e a parte do altar... A história do Círio resume um pouco a história de Santa Cruz, sempre condicionada pelos caprichos da água. – Teve um ano que, em novembro, o barco veio a deixar os músicos em Santa Cruz, aqui no lago... Tinha muita água; muitos anos não chega nem a Jenipapo, fica na Jutairana, no Anajás. No 66 choveu muito, a Santa foi daqui na berlinda no late Ivaldo e o dia seguinte veio de lá com o pessoal atolado, a pé, na lama, pela praia. No 61, a Santa chegou a Igreja depois choveu muito, até às cinco da tarde... Não há dúvida: era uma autêntica romaria. O pessoal lembra ainda umas promessas: a filha de Miguel padeiro, que o acompanhou de mortalha; aquele pescador de Jenipapo que veio tremendo o corpo e pulando sem 41


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MARAJÓ - A DITADURA DA ÁGUA parar, com as fitas amarradas na cabeça, nos braços e no pescoço; ele teve um troço e fez promessa. Dona Jojó, com a Dirce no colo, foi até Jenipapo e voltou para cumprir a promessa pela doença da filha. – Armínio Gaioso, Alípio, Raimundo Menezes, Jovenal Barros naufragaram na baía com o barco Nova Aliança no horário da tarde. Largaram a canoa numa virga. Quando já estavam nadando, Armínio se lembrou da bandeira e voltou para salvá-la. Foi pena que a panela com a feijoada fosse pro fundo! Então fizeram promessa: se eles se salvassem, acompanhariam o Círio com a virga no ombro. Foram salvos às seis horas da manhã, por um Senhor de nome Mestre Nicolau, que morava na Santana, e levaram a virga no Círio mas, como pesava muito, pediram uns ajudantes. E tio Juca que conta. As lembranças alegres se misturam com as tristes, as brigas. Houve até dois mortos. Disso, porém ninguém gosta de falar e a conversa recai logo sobre os episódios engraçados como o da tia de Mestre Filó, como contava o finado Cantão. Por medo da briga, a mulher levou a rede com o filhinho correndo para a casa. Quando chegou: Ai, meu marido! Na pressa tinha carregado um cachorro. Até o gado deu a sua participação: uma vez uma malhada se espantou do pessoal e uma rês entrou no meio da procissão, querendo chifrar um e outro e todos se defendendo, até que a separaram. O Círio é praticamente desde muitos anos o acontecimento mais notável da vida desta comunidade. Os filhos, que se dispersaram pelo mundo a fora, aproveitam essa ocasião para voltar a reencontrar a sua querida terrinha, abençoar os afilhados, descobrir os sinais do desenvolvimento que está tomando pé. Os programas são o espelho da participação de toda a classe de pessoas, "A quarta novena, desta noite, é da população de Itaguary que dedicará todos os seus esforços e boa vontade para que as celebrações desta noite sejam um hino soberbo de louvor a N. S. de Nazaré e uma demonstração perfeita dos sentimentos de católicos fervorosos". Para compreender este trecho precisa lembrar que antigamente Santa Cruz pertencia ao Município de Ponta de Pedras. "A sétima novena é homenagem dos pescadores, destemidos patrícios que se arrojam em frágeis embarcações veleiras a lutar contra a fúria dos vendavais e a impetuosidade das vagas e de cuja mente não se afasta a Imagem da Virgem, sempre pronta a acudir ao primeiro grito de Valha-me minha Senhora de Nazaré". A lembrança dos antigos devotos, que cooperavam, está relatada na lista dos protetores, dos Juízes de devoção, dos mordomos e das mordomas. Umas vezes, a letra diminui em proporção do tamanho da contribuição. 44


GIOVANNI GALLO O Círio está se transformando, acompanha a marcha do tempo. Mestre Botelho não prepara mais os cavalinhos, os barquinhos, as cadeiras de embalo, o carrossel. Só os velhos – será que não se aborrecem a serem chamados assim? – se lembram da cabeça falante. – Um espetáculo! diz Dona Zelita. – O rapaz colocava a cabeça da moça num prato e a decepava, jorrava sangue e a cabeça falava... nós crianças tínhamos medo, mais ninguém resistia à tentação de apreciar aquele show fora de série. Não chegam mais as companhias para as representações; a gente daqui já sabe se virar sozinha. O Jazz é substituído pela banda da Polícia Militar, que dá um brilho bem maior, Dona Julieta dá um jeito com cantores de todo tamanho. – Naquela época os padres chegavam só para passar a festa: eram Padre Guilherme, Francisco, Tiago e Tiagão ... Dona Zelita se desabafa mais uma vez; – Agora tudo ficou mais moderno, muitas coisas vão desaparecendo, mas agora temos um padre que é um espetáculo... Nesse ponto, desligo o gravador e penso na cabeça falante: essa também era um espetáculo!

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BARCO É HOMEM LANCHA É MULHER – Se eu tivesse uma lancha, eu a chamaria... sei lá... caboclo. Pelé, o piloto da Micaremo, me olhou horrorizado: – Padre, não pode: barco é homem, lancha é mulherl Quase me saiu a espontânea pergunta por que, mas consegui por um triz, segurá-la entre os áentes. Uma intuição me iluminou, mas sinceramente não pensava que os símbolos freudianos tivessem também uma confirmação na frota marajoara. Acontece-me muitas vezes: uma simples observação, jogada lá à toa, me abre novos caminhos de pesquisa, para descobrir mais um aspecto desta multiforma realidade. Ainda não consegui desembrulhar-me no labirinto dos tipos de embarcações. São tantos: montaria, casco, casquinho, canoa, canoinha, bote, botinho, barco, barquinho, lancha, lanchinha, pescaria, voadeira, geleira, boeiro, batelão, motor de centro, motor de polpa, mais os nomes tipicamente locais, como penque-penque, dez-doze. Todos com características sempre bem definidas, que dependem duma porção de pormenores de construção onde entram na jogada cavernas, braços, dormentes, caminga, bailéu, friso e pavês. Nem sempre as informações concordam, por isso quero aguardar mais um pouco o resultado da pesquisa. Entretanto vou salvar-me no escanteio, analisando um aspecto exterior, porém extremam ente característico; os nomes das embarcações. Aqui existe uma filosofia toda especial. Há regras elásticas, impalpáveis, inclassificáveis e ao mesmo tempo rígidas e bem definidas, pelas quais o cabloco sempre pode dizer Este nome dá ou não dá. Comecei este estudo com interesse, mas logo me dei conta de que a pesquisa teria ficado manca, ou pelo menos teria demorado anos. Fui então bater no Grupo para pedir uma colaboração. Expliquei o que era pesquisa e a garotada, liderada pelas professoras Nazaré e Maria Rosa, me apresentaram um prato bem farto, uns trezentos nomes. Na dianteira vem, naturalmente, Nossa Senhora: N. S. Aparecida, da Conceição, de Guadalupe, de Fátima, das Graças, de Lourdes, dos Milagres, de Nazaré, das Mercês, do Perpétuo Socorro, da Paz, da Batalha, da Saúde, das Neves, da Medalha Milagrosa. Maria é Mãe Nossa, Maria é Mae de Jesus. Os Santos estão presentes numa ladainha sem fim: Benedito, Cristóvão, Francisco, 46


GIOVANNI GALLO Geraldo, João, Pedro, Roque, Sebastião, Tomé, Afonso, Elias, Margarida, Carlos, Marcos, Miguel, Assis, Helena, Rosa, Beto, Jerônimo, Bento, Cosme e Damião ... Deus naturalmente é presente, mas geralmente é representado com um atributo, uma invocação de socorro e proteção: Deus amigo, Deus comigo, Deus é justo, Deus é bom pai, Deus me proteja, Deus me defenda. Deus me encaminhe, Deus por nós, Deus por todos, Sempre com Deus, Deus é quem sabe, Mais que Deus ninguém, Tenho esperança em Deus, Deus que me livre, Vai com Deus, Vamos com Deus, Vim com Deus, Correio de Deus, Proteção de Deus, Benção de Deus. Um certo destaque têm as virtudes: Confiança em Deus, Boa vivência, Fé em Deus, Fé e confiança, Boa esperança. A este ponto o horizonte se abre oferecendo-nos caminhos bem variados. São os nomes dos donos dos barcos: Tavares Filho, Casemiro Beltrão, Vicente Miranda, Marquês Filho, Costa Filho, Carlos Corrêa, Carios Ribeiro, Luís Guilherme, Luís Otávio, Ivaldo. A geografia local ou simplesmente do Brasil, está bem representada: Rio Fábrica, Tocantins, Camotins, Itaguary, Ipiranga, Guajará, Paragominas, Transbrasil, Itamaraty, Brasília, Rio Anajás, Ananatuba, Maués, Pará, Brasil. Também a flora e a fauna merecem uma certa atenção: Beija-Flor, Vitória-Régia, Águia, Periquito, Acapuzinho, Garcinha, Mururé, Peixe Agulha, Andorinha. Os nomes de fantasia são aqueles onde melhor se manifesta a psicologia popular. Aqui uma classificação fica impossível mas vale a pena deixar-se levar, sem discutir, nesta terra encantada: Lua de prata, Trem das onze, Rumo feliz, Lux, Capricho, A mensagem do amor, Cisma, Paletó, Sorriso, Eu te amo, Cuidado, Foguete, Amigo, Silencioso, Princesa, Luxo, Inveja, Maravilha, Dois amigos, Dez irmãos, Boêmia, Reflex, Segredo, Presente, Paquerinha, Tremendão, Miss Regina, Misse Brasil, Arrebita, Principal, Pracinha, Bamba, Cerpa, Jóia, Mãe Velha, Cacho, Baía, Faquinha, Pirata, Raposa do deserto, Relógio, Segredinho, Suspiro, Tapaburaco, Veloz, Vence tudo, Rápido, Rapidez, Jato Dengoso, Menino da gata, Meaalha, Tea Boi (assim mesmo). Existem umas reminiscências de programas da TV, frases típicas: Sai da frente, Só eu que sei, Tá na cara. Aquele abraço, Cafona, Cinco letras. Já era, Calado venci, Não te importa, Quem foi que disse, Já foi, Eu vi, Só quem quiser, Agora eu tenho, Ela voltou, Pode falar. O esporte concentra a sua atenção nos times paraenses, Remo e Payssandu, Tuna, Leão e Papão, como também uma lembrança da Copo 70 e dos times do Sul, Flamengo e Fluminense. Quem não soube fazer uma escolha, botou simplesmente Fla-Flu. Aqui temos em verdade um caso patológico de dupla personalidade, mas não é único, – Qual é o nome desse casco? - pergunto a uma menina 47


MARAJÓ - A DITADURA DA ÁGUA – Tem dois: na proa é Waltinho, a popa é minha, é Ivanilda. Evidentemente essa relação poderia continuar um bocado, mas o que foi relatado já nos dá uma ideia bastante aprofundada. Os nomes são um espelho dessa realidade complexa onde fé e superstição encontram uma pacífica forma de simbiose. Santa fé, Santa Teresa e Santo Onofre não desdenham a companhia de João da Mata. As lembranças políticas (Alacid Nunes) e o Menino Jesus passeiam ao lado de Milagre, Lígia, Rosa de Fátima, Vitória do Brasil, encostam ao lado da vitória-régia, não têm medo do Vendaval porque têm a Paz do Senhor, o Rei da Glória. Também eu, tenho um casquinho: é o meu táxi pessoal, também para dar um passeio à noitinha, para encostar nas casas, bater um papo sobre a criança que estava doente, a aposentadoria do FUNRURAL, a água grande. O nome dele é Fé em Deus: uma homenagem à minha primeira experiência no Brasil, é o nome do meu Bairro em São Luís do Maranhão.

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QUANDO OS MORTOS FALAM Domingo de manhã, à hora da Missa. Estou no escritório, preparando a palestra. De vez em quando, dou um berro para assustar os moleques que brigam fora da porta: todo mundo quer vir pra banca comigo. A banca não é nada mais do que o altar; o termo não é exatamente litúrgico, mas eu, por princípio, respeito o glossário popular. De repente aparece Roberto Carlos com Tomasinho. A história é verdadeira, só os nomes são trocados para não magoar ninguém. Roberto Carlos, hoje tem uma cara meio alucinada: fala, fala, fala, uma conversa toda enrolada, parece português falando. Tomasinho geralmente fica quieto num canto, mas hoje abriu as comportas e também ele fala, fala, fala, de forma que sai uma confusão cerada. – Pelo amor de Deus, padre, nos acuda! Em nossa conversa bagunçada, toda hora ecoa este SOS desesperado, parece até um refrão. Depois de muitos esforços fracassados, sai finalmente a explicação de tudo. – São três dias que na fazenda Cocota ninguém come, ninguém dorme: só falta ficar todo mundo doido. Um prólogo desta marca é suficiente para despertar a minha curiosidade congênita de pesquisador e assim mando soltar a história. – Sexta-feira chegou Dona Fátima para organizar o Mobral, como a gente tinha decidido no último encontro da comunidade. Ela estava com medo de dormir sozinha na casa grande e assim fomos buscar a filha de seu Rodney, para que ficasse com ela. Estamos quase chegando em casa, quando a moça revira os olhos, dá um grito e se joga na água. Agente resgata ela, mas ninguém consegue segurá-la. É uma luta. Pegou santo. Numa fazenda as novidades são poucas e ninguém pode perder um show desse tipo. Todo mundo chega em casa como as moscas no mel. Mas o negócio está ficando meio esquisito. Um está com frio, outro começa a suar. Mundico, um vaqueiro que não tem medo nem de onça, de repente começa a andar pelo quarto, todo empertigado, com os olhos que estão olhando para uma coisa que não existe. Não conhece ninguém, parece um homem que caiu da lua. A atuação piora quando ele de repente, começa a repartir tapa em toda parte. A reação do povo é imediata: os colegas caem em cima dele e o apeiam. Aos poucos, ele se acalma, parece estar dormindo de olhos abertos. De vez em quando tem 49


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MARAJÓ - A DITADURA DA ÁGUA um brilho de vitalidade, agarra o que está ao alcance dele e faz uma porção de brincadeiras extravagantes: joga o objeto debaixo das pernas, ao redor do pescoço, passa-o de uma mão para outra, tantas besteiras que ninguém viu na vida. O conselho de guerra se reúne por convocação espontânea: – O que a gente faz? Embora buscar o pajé, só ele pode. Três vaqueiros num barquinho, fazendo porfia, vão remando sem parar. Voltam no dia seguinte e encontram o nosso amigo que continua fazendo o marciano, mais ou menos. O pajé dispara todos os seus foguetes, benze, faz defumações, sacode o camarada sem misericórdia, carregando-o na costa. Nada. O homem aguenta. – Aqui não tem jeito. Vocês levam o doente para a minha casa. Só lá eu posso fazer um bom trabalho. Palavras sagradas que ninguém ousa contradizer. Preparam um batelão com motor de centro e vão entregar o Mundico, agora em estado semicomatoso. São três, mais o doente. Tudo vai mais ou menos com o programa. Só que, na volta, um dos acompanhantes, o Venâncio, começa a descontrolar-se. Também agora o descontrole não é nada menos que repartição de bofetadas, sopapos, murros de toda marca. Os tripulantes não têm outra escolha, amarram-no e o levam para casa. E a turminha assustada que estava esperando o filho pródigo, pelo contrário, recebe outro abacaxi para descascar. Venâncio deixa de lado as brincadeiras artísticas do colega que ficou com o pajé e... vira visagem. Isso mesmo. Os outros quando reparam que ele está de olhos vidrados, olhando sem ver nada, procuram chamá-lo à realidade: – Venâncio, Venâncio! Responde uma voz cavernosa, parece chegar do fundo. – Eu não sou Venâncio, eu sou Maçal. Deus nos acuda, Maçal é um morto! Quem em vida chamava-se Maçal era um sujeito que vivia fazendo fretes. No batelão carregava madeira, pedras, todo tipo de bagulho. Era boa praça, só tinha uma certa queda para pinga. Um dia, voltando para casa, meio queimado, numa curva se desequilibrou e caiu na água. E naturalmente fez o que todo bêbedo faz, quando cai na água: morreu afogado. Os amigos, encontrando o casco vazio, pensaram que Maçal estivesse escondido em algum recanto, curtindo a birita, procuraram-no em toda parte. Foi o mesmo Venâncio quem pensou que valia a pena procurar mais perto. Mergulhou e levou o Maçal à tona: melhor, levou só uma parte dele, já que as piranhas o tinham comido quase todo. 52


GIOVANNI GALLO No Brasil todo mundo tem boa camaradagem com os mortos, porém não acontece todos os dias ver espichada numa mesa uma caveira inteirinha, como se fosse o bolo de aniversário. E agora só faltava isso. Venâncio está dizendo que ele é o Maçal, o morto; arremeda a voz dele, os gestos, tudo. – Pelo amor de Deus, Maçal, que você quer da gente? – Por que vocês não enterraram comigo os sapatos, o violão, a rede? – Quem sabe onde está a rede? – Tá lá, responde o revivido Maçal. Uma estafeta vai à exploração e encontra a rede, mesmo lá. E ninguém sabia de nada! É o fim do mundo, não dá mais para contar os que pegam santo. É nessa altura que Roberto Carlos e Tomasinho corajosamente batem em retirada e vão sequestrar Padre Giovanni, na esperança de que seja mais poderoso do que o pajé. Estou interessado na estória. Entro na Igreja e comunico solenemente aos (poucos) fiéis que vou fazer uma viagem extra: – Vocês façam uma Missa seca, eu voltarei quando Deus quiser. Chegando à fazenda encontro tudo em paz, Venâncio não precisa mais de minhas artes mágicas. Está mofino, mofino, parece um cachorro surrado. Não se lembra de nada. Uma conversa informal, para convencer os presentes que é bom enterrar só os mortos, sem ferramenta. Rezo uma Missa por todos os finados, sem fazer alguma alusão particular. Depois chamo Roberto Carlos e lhe dou o recado: – Entra em contato com o pajé e dá um jeito para que eu possa apreciar um trabalho dele. Eu vou com você e Mele, tá ?

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O PAJÉ Chegou o dia fatal. Roberto Carlos com a sua diplomacia inata, entrou em contato com o pajé e agora traz a resposta: – Seu Zé Maria está de acordo. Só põe uma condição: você deve ir sem Melé. – Tá bom, vou sozinho. Não é mais inverno, ainda não é verão. O rio está entupido de mururé mas com a ajuda de Deus, depois de quatro horas de peleja, chegamos perto da Fazenda. Aqui o penque fica no estacionamento, porque a água está rasa. Está me esperando um trenó, puxado pelos bois: meia hora de patinagem mais ou menos artística e eis-me em casa. Zé Maria, o pajé, está lá, à minha espera. Apresenta-se, com o jeito manso de um sacristão aposentado e quer se identificar: ele está em regra com a polícia, só trabalha para fazer o bem, desmanchar o mal, blá-blá-blá... Para não perder nenhuma das preciosas palavras, tiro da pasta um saco plástico, do saco o gravador. Infelizmente tenho que escondê-lo mais que depressa: o pajé não me deixa gravar. Dou um jeito com o caderno para escrever umas notas: nada feito, chega mais um veto, com a proibição explícita de tirar retratos. Não tenho outra escolha senão a rendição incondicional, sem renunciar a um bate-papo. Procuro analisar o homenzinho que está à minha frente e que garante ter o poder de entrar em contato com os bichos do céu, da terra e do fundo. – Até a noite, se Deus quiser! E ele vai-se embora, na vanguarda. Com os amigos tomo uma bóia, para estar em forma. Logo após já estou num daqueles casquinhos roliços que parecem feitos de propósito para emborcar. A água chega a um centímetro da beira e eu devo ficar durinho como se tivesse engolido uma vassoura. Naturalmente, como sempre nessas viagens, passo o tempo todo com o traseiro em banhomaria. Muitas vezes a gente tem que passar debaixo da cerca de vários retiros e fazendas: precisa equilibrar-se, espichando-se no casco. Eu acho que algum santo misericordioso tem piedade de mim e não deixa que a minha barriga fique engatada no arame farpado. Termina a água, começa a lama. Já se passaram duas horas e estamos ainda muito longe. Um grito na noite e de uma ilha saem dois vaqueiros montados em búfalos. Amarram os cabos na proa do casco e puxam. Mais uma hora e chegamos à casa de seu Manduquinha, no miritizal, o lugar marcado para o encontro. Estamos mesmo no fim do mundo. Um pouco mais para lá 55


MARAJÓ - A DITADURA DA ÁGUA está o mato, um ninhal de bichos, falam até de areia gulosa. A casa já está cheia de devotos. Encontro todos os que aparecem na minha missa. Quem puxa a reza lá puxa a toada aqui. Deus é grande. O pajé está mergulhado na preparação do trabalho. Acendeu um pampeiro de velas no altarzinho da casa, onde os santos estão folgados mais ou menos como sardinhas enlatadas. Está sacudindo violentamente uma garrafa. Um pouco acanhado, por medo de mais uma negativa, pergunto: – E isso aí, o que é? – Agua benta. – Eu pus alho, para que tenha mais força. Puxa vida, eu fico quase com vergonha, eu não sabia. Ninguém me falou disso no curso de teologia. É mesmo verdade que a gente sempre tem que aprender na vida. Começa o trabalho. Esqueceram o fumo e sequestram o meu. O pajé o mistura com pimenta e não sei qual outro ingrediente, de forma que, só para começar, todo mundo fica tossindo, os olhos parecem pegar fogo. O nosso pajé é pajé de chocalho e capacete; tem um maracá na mão e um enfeite na testa. Começa com a lavagem. Põe meia garrafa de cachaça numa cuia e toca fogo. Depois se lava. Na escuridão, aquelas chamas azuladas que correm pelos braços, pelo rosto, são uma beleza. Depois dois homens robustos amarram o peito do pajé com uma cinta, isto é, uma tira de tecido larga, de uns três dedos. Puxa prá cá, puxa prá lá, depois de tanta agonia chegam à conclusão de que não puxaram bastante e começam tudo de novo. Toda a mecânica do pajé está baseada neste princípio. Existem dois tipos de doenças. Umas devem ser tratadas pelo médico, outras só pelo pajé, porque não são causadas por micróbios ou vírus, simplesmente são feitiços. Bebendo cachaça e fumando flechas (os mortíferos cigarros com pimenta) o pajé fica atuado por um espírito, que nele canta, dança e fala. Os devotos acompanham, cantando e rezando: eu estou num cantinho apreciando. O doente fica no meio do quarto e o pajé, segundo as diversas inspirações, receita uma porção de remédios que podem ser um comprimido da Bayer ou uma droga medicinal como o chá de bucho de barata frita. O ponto alto da apresentação está no momento em que o pajé tira o feitiço, isto é, o chupa da parte doente: pode ser uma caturra, uma mecha de cabelo, um esporão de peixe, um objeto qualquer. Hoje, porém, não tenho sorte. O pajé lavou o rosto com o fogo, mas não dançou em cima das brasas ou dos cacos de vidro, nem chupou feitiço nenhum. 56


GIOVANNI GALLO Durante o trabalho ele aparece bem diferente do homenzinho encontrado horas atrás: um jeito de velhaco brilha nos olhos dele, uma certa agressividade, alguma coisa ambígua e misteriosa. De repente, sai com uma jogada ensaiada, eu acho. Interrompendo a dança, para diante de mim fitando-me nos olhos. Acredito em mau olhado mais ou menos como no bicho-papão, assim a cena me deixa completamente indiferente: fico à espera dos acontecimentos. Depois ele estica a mão para mim. Eu não sei o que fazer e fico olhando. O suspense demora e o povo me dá a dica: – Dá a mão para ele! Cavalheirescamente eu a dou. Ele agarra com força e puxa. Eu aguento sem piscar. Ele repete o gesto e depois crava os olhos em mim e pergunta: – Você está com medo? Ah, isso não. Tenho medo de cascavel, cachorro bravo mas não de pajé ou feitiço. Garanto. Já que estou com corpo fechado, o pajé tenta a sorte com uma mocinha, naturalmente com êxito bem diferente. Só pegar na mão dela e a pequena começa se torcer como uma cobra, fica mole... Mas hoje não deve acontecer mesmo nada. Acho que a minha presença incomoda bastante e o pessoal começa dizer ao pajé: – Larga ela, é nova. Deixa ela... Deve ser alguma forma de iniciação, mas tudo acaba aí. Depois de horas de cantigas, fumaça nos olhos e receitas sortidas, o pajé se senta num cantinho. Acredito que ele bebeu meio litro de cachaça. Disque ele nunca fica bêbedo, mas tenho a impressão de que ele esteja mesmo queimado. Silêncio, suspiros, barulhinhos misteriosos. De repente, em tom profético, mais ou menos como devia fazer a Sibila de Cuma, o pajé diz em voz alta: – O padre é virgem. Não tenho a certeza de ter entendido direito e pergunto a uma velhinha que está sentada ao meu lado. Ela confirma. Olhos assombrados me fitam como se eu fosse um monstro sagrado. Desde agora em diante eu estou confirmado na graça divina, não existe língua malvada que possa derrubar a minha boa reputação. Graças a Deus eu tive sorte. Se o pajé tivesse dito que eu sou um safado, ninguém, nem o Papa com uma encíclica, teria força bastante para reabilitar-me.

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MÉDICO X PAJÉ

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ocê acredita no pajé? Uma pergunta que ouço mil vezes. Tenho a resposta prontinha na ponta da língua, mas geralmente ela não sai, ou sai tão enrolada que não responde nada. Para ser honesto, eu deveria dizer que sim, com reserva evidentemente. Apesar da reserva, a resposta provocaria imenso júbilo no meu interlocutor e, ao mesmo tempo, me condenaria aos anátemas dos que já me consideram meio herético. O pajé no Marajó é uma realidade. Quem quiser negá-la é cego ou mentiroso. Pode ter uma desculpa quem conhece o Marajó só por alto, quer dizer, por tê-lo sobrevoado de avião ou visitado esporadicamente para comer o frito na varanda de alguma fazenda amiga. Dizer que acredito no pajé não significa que eu aprove o pajé, digamos, cem por cento. Acredito no sentido de que admito, que ele é um elemento característico da nossa terra, tem um valor determinante na vida do nosso povo do interior. Umas vezes pode até ser a única esperança, que não necessariamente decepciona. Custou-me bastante descobrir a presença do pajé; acho que se passou mais de um ano. De repente abri os olhos e o ouvido, e desde então, toda hora, em todo canto, topo com esta personagem misteriosa, fora do tempo, porém tão atuante. - Como foi que você começou? - Eu me senti gravado pelos caboclos e fui obrigado a seguir... - Que quer dizer gravado pelos caboclos? - Assim, um remorso, um corpo mole... quando não vivia doente... Depois que consegui, me endireitei, consegui até hoje, graças a Deus. Sentia dores na cabeça, moleza no corpo, mas depois que consegui fazer meu servicinho, agora não sinto mais nada... Analisando com um pouco de senso crítico este depoimento, é possível descobrir a fraqueza do conteúdo interior. Aquele agora não sinto mais nada não passa duma mentirinha, porque também este "homem definitivamente imunizado contra as doenças tem a ficha no nosso Posto Médico. Seja como for, a sua cultura primitiva, a sua fala enrolada são um excelente cartão de visita com todas as qualidades para ganhar a confiança do nosso povo. Na crença popular existe o resfriado, a dor de cólica, aquela dor fina... mas tudo isso é nada em comparação a outros perigos que estão de tocaia no beiral da casa, onde a gente mora. Tem o vento, um potencial maléfico de infinitos recursos que faz cada tropelia... De noite atuam as almas, as visagens. Toda hora tem quebranto, olho gordo, olho reimoso, mau olhado: incontáveis malefícios que estão fora do alcance do médico. - Já tem outros que vão botar olho grande no senhor, vão lhe botar em marcação. Aí o senhor, 59


MARAJÓ - A DITADURA DA ÁGUA sendo meu amigo, chega comigo e eu faço... desfaço o que faz outra pessoa que não gosta do senhor. E pronto e fica no mesmo que o senhor é. Encontro um amigo na rua. - O senhor tem ainda aquele remédio bom? (Nota-se este bom que vale um poema). O reumatismo está me maltratando. Uma vez o senhor me deu um remédio estrangeiro... Arranjo o remédio estrangeiro. Passa um tempinho, reencontro o amigo: aguardo os parabéns. Decepção. - O seu remédio desta vez pifou. Eu não acredito no pajé sabe, mas era o jeito, não aguentava mais. Fui Pater na casa dele. Ele fez um trabalho, achou na minha perna um feitiço, um negócio, sei lá... Nem vi. Ele queria me dar. Não quis, disse que devolvesse para quem botou para mim... Acredita? Fiquei bom. Um dia aparece no comércio do meu amigo Humberto uma senhora do centro (assim a gente chama o interior). O balcão não serve somente para trocar dinheiro com mercadorias, mas também para as fofocas, os desabafos, os palpites. Ela está preocupada com a filhinha, que está passando mal. O remédio das enfermeiras foi um fracasso, até o médico não deu conta do recado. - O que eu preciso é água benta... sei que o padre não dá para fazer remédio... Será que você tem? - Olha, eu não quero bronca com o padre... Puxa pra cá, puxa pra lá, Humberto baixa a voz: - Eu tenho mas você não diz pra ninguém, garante? O pacto está ferrado. Humberto vai para cozinha, abre a torneira, enche a garrafa e, com ar de pecador atormentado pelo remorso, entrega. A mulher some. Voltará mais tarde, para agradecer a água benta, que não era benta e que resolveu o negócio, de vez. Graças a Deus. Na dinâmica dessas curas é fácil descobrir os elementos ativos. O médico formado, apesar de conhecer bactérias, vírus e relativas estrepolias, está em posição de evidente inferioridade em comparação ao pajé, considerando-se, evidentemente, o contexto histórico analisado. A atuação do médico é de graça: consulta e remédio. É uma determinação da Secretaria de Saúde, considerando o baixo nível de renda do povinho. É uma solução providencial, até um certo ponto: o que é de graça ou muito barato, não presta. Na sabença popular é axioma irrefutável. Esta afirmação não é pavulagem nem desejo de sensacionalismo. Só olhar para a realidade. Em qualquer casa do interior você pode encontrar na prateleira ou na caixa dos bagulhos, uma porção de litrinhos de remédio intactos. Chegando o médico (pode ser do Posto, do Projeto Rondon ou da Marinha), o povo dá uma investida para açambarcar remédios, de todo tipo. É uma forma de projeção pessoal, uma promoção: também remédio é enfeite da casa, como as folhinhas de mulheres nuas, Nossa Senhora do Bom Remédio, o rótulo do Bolo Santista. - Giovanni, me dá aquele vidro de remédio? 60


GIOVANNI GALLO - Meu amigo, são mil comprimidos! - Não tem problema, eu depois devolvo o vidro. O finado Jorge nem pensava em matar a senhora sua mãe com uma sarrafiada de comprimidos: os levaria a casa para aguardar, assim... Desafio qualquer pesquisador a encontrar inutilizado um remédio de pajelança, uma defumação, um banho. Um doente que precisa de pajé não estranha, até gosta de receber a relação do material necessário para o trabalho: custa caro, mas com certeza o dinheiro sai, sempre. Olha só: 3 pacotes de velas brancas, 3 velas tomba tudo, 3 velas gira-mundo, 3 velas tranca-rua, 3 velas pomba-gira, 1 vela 7 encruzilhadas, 1 vela de afirmação, 5 velas vermelhas, 5 velas pretas, 5 velas verdes, 5 tauri, pólvora, marrafa (cachaça), vinho, 3 caixas de defumação desatrapalha, 1 pemba branca, 1 pemba azul, 1 amarela, 2 pacotes de sal virgem, 2 de breu branco, 2 de mirra, 2 de incenso, 2 de cipoí, alfazema, alecrim. Um comprimido, nos olhos do povo, é uma aPstração, não vale nada em comparação ao material do pajé que satisfaz olho, olfato. O médico mais esforçado e mais dotado não pode sair do trilho da sua profissão. A sociedade moderna é sobretudo desumanizante: o homem vira coisa, engrenagem anónima. Perseguido por mil tarefas, sempre correndo sem fôlego, numa visita, do interior, o médico fará necessariamente cem consultas num dia, em tempo recorde uma cada dois, três minutos, até menos. Nem tem escolha, o povo com ele é muito exigente, está sempre com pressa, quer atendimento imediato. Este mesmo povo, procurando o pajé para um trabalho espera uma noite inteira. Nem se queixa, acha normal. Precisa tempo para chamar os duendes, chupar o feitiço. Não é tempo perdido, porque o doente fica consciente de estar no centro do cosmo; bichos do fundo, caboclos, orixás rodam em volta dele, ele é o mais importante. A mulherzinha desprezada, o homem frustrado e panemoso, a mocinha cheia de sonhos, ali se sentem importantes, valorizados. O homem culto, o executivo que tem de aturar o aborrecimento da mulher, vai ao cinema para identificar-se com o Agente 007; o homem do campo se desabafa com o seu caboclo ou com Mariana. É nesse momento que entra em ação a medicina espiritual: o organismo faz milagres por conta própria. A fé, não no sentido de crença sobrenatural, mas a fé como convicção inabalável, confiança absoluta, se transforma em catalisador de todas as forças ocultas do corpo e da mente para organizar uma contra-ofensiva, para encarar o inimigo-doença. Uns anos atrás, quando ainda não tinha construído o Fbsto Médico de Jenipapo, eu mesmo dava jeito com os doentes. Procurei imitar o pajé, diria com êxito. Um caso. Um homem idoso não levantava da rede: arteriosclerose incipiente, mas ele tem muitos 61


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outros males, desáe insônia ao fastio, apesar de ser o que melhor come e dorme em toda a casa. Receitei-lhe um remédio: um complexo vitamínico inócuo. Dois tipos de pílulas, em tamanho e cor, com um complicadíssimo sistema de aplicação: em jejum ou com meio copo de água fria, horários alternados, blá, blá, blá. A família inteligentemente entra na jogada. O homem levanta; e até agora está andando, comendo e bebendo à vontade. A memória está enfraquecendo mas ele lembra, com carinho, aquele meu remédio que curou até dor de urina. Dizer que acredito no pajé não quer dizer que eu aprovo a pajelança. Simplesmente eu reconheço a função social que ele tem, com uma atuação, às vezes positiva, porque só ele, neste mundo vítima do stress, tem condições de ter um contato vital, pessoal, humano, com o doente. Tenho saudade do pajé dos índios, o curandeiro que era também o chefe moral, o conhecedor dos mistérios da natureza. O nosso pajé já é degenerado. Ao lado do pajé curandeiro que apresenta uma certa técnica numa moldura folclórica, tem o pajé-palhaço, que faz a coleção de todos os elementos estranhos que encontra na rua. Apesar dos recursos mais ou menos ortodoxos, ele sempre é o representante da medicina espiritual, aquela força misteriosa que desencadeia os recursos ocultos do nosso ser. Também a medicina moderna, às vezes, apela a esta fonte de energia. Na farmacopeia existe o placebo, o remédio que não é remédio mas só fantasma do remédio: tem toda a aparência sem a substância. Pode ser sonífero, laxante ou antipirético, só no rótulo, mas o doente toma com fé... e 62


GIOVANNI GALLO fica Pom. Ninguém fala de trocar o médico pelo pajé. Porém seria o caso de se aprender algum processo do pajé, trocando o tratamento técnico pelo psicológico, humanizando o relacionamento, transformando o cliente objeto (dos grandes hospitais) em doente-homem. Falo assim, mas sei que é utopia: a sociedade está se desenvolvendo num processo irreversível. O médico mais esforçado nunca terá possibilidade de passar uma noite tratando de um doente que está com dor de cabeça. Passar uma noite fazendo o quê? Jamais ganhará a concorrência áo pajé que bate pé, carrega o doente nas costas, faz defumação, pisa na brasa e cacos de vidro, conversa e canta como Jurema, Zé Raimundo, Custódio de Boa Vista. O pajé umas vezes cura, muitas vezes estraga, mas sempre leva a vantagem. O doente vai ao pajé. Piora? Bate no Posto Médico e volta ao pajé. Ficou bom? Foi mérito do pajé. Não deu certo? Culpado é o Posto. E todos pensam assim. O meu pajé confirma: - Bom católico pode participar da pajelança. Não faz mal, não. As religiões ficam sempre unidas, não podem brigar entre si. Quem é maior do que Deus? Ninguém! A pajelança, no Marajó, continua sendo um fenómeno social e também problema de saúde. Antigamente o pajé trabalhava escondido, longe dos povoados, eram poucos. Agora até mocinha vira pajéua e dá show no centro da cidade, com horário marcado, berrando alto até à madrugada. A polícia fica apreciando e gostando. Claro, está cobrando! De qualquer forma uma condenação indiscriminada não tem sentido: não resolve nada. É mais interessante continuar na nossa análise, porque o pajé é um mestre incontestável no conhecimento do nosso povo e que recebe do povo a resposta de uma gratificante admiração. Anos atrás, no intuito de poupar o meu esqueleto, fiz uma dieta poderosa. O resultado apareceu mais evidente, quando voltei de um curso em Recife. - Você foi a Recife para tirar a banha? - Não, não fiz operação nenhuma, nem tomei remédio. - Então você é pajé! Para manifestar a sua admiração o amigo não soube encontrar outra referência: o pajé é o máximo!

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ESTAVA COM SEDE NÃO ME DESTE DE BEBER Todo mundo sabe que existe o Marajó, muitos conhecem o lago Arari, poucos estão a par da presença de Jenipapo (está localizado na boca do lago), só os moradores experimentam o que significa morar naquela banda. Jenipapo parece uma visão tirada de um livro de fadas, fantástica, surrealista. O visitante apressado e despreocupado leva consigo a lembrança de um sonho, com uma nuança de pesadelo se teve a chance de encontrar as muriçocas. O contato com o povo alegre e sereno o deixa convencido de que aquela paisagem encantadora compensa, generosamente, as dificuldades que, por acaso, têm que ser enfrentadas. O fato mais importante, porém, fica despercebido. Quem manda aqui não é o Presidente da República, não é o Governador, não é o Prefeito. Aqui domina uma ditadura absoluta e incontestável, não baseada na Constituição ou nas Forças Armadas. É um dado de fato, quem manda é a água. É a água quem dá o sustento e cria as dificuldades, consola e leva ao desespero, condiciona a saúde, o trabalho, a vida da gente. Sem levantar a voz, sem violência, mas implacável e total. As estações do ano, aqui, têm um nome exclusivo: água, lama e seca. Em última análise é sempre a água que, com a sua presença ou ausência, denomina e caracteriza. No inverno o povoado, que parece flutuar nas palafitas, se apresenta como uma nova Veneza, onde as Gôndolas deixam o lugar a infinitos casquinhos, com toda uma poesia de nomes grandiosos e otimistas. Na boca do verão a água some aos poucos, matupiris famintos esperam as migalhas caindo das janelas, as piranhas não respeitam ninguém. Chega a lama, uma lama especial, uma mistura de cola e cimento que arranca as botas e desloca os tornozelos. O sol bate a pino, com os seus 35° e na lama seca nasce o juquiri, um capim maldito, vestido de espinhos que parecem alfinetes. É verão, é tempo de safra: o rio se anima, uma frota de geleiras se alterna na beira. A água do rio fica grossa, escura, exalando o típico cheiro de peixe. Os urubus, em paciente espera, ficam na fila para saciar-se de cabeças de traíras ou entranhas de piranhas que as retalhadoras vão jogar para lá. As garças não desdenham a companhia dos menos elegantes camaradas e escolhem o peixe miúdo, ainda boqueante, que o consignatário recusou. No povoado, os canais, o igarapé, as ruas se transformam numa terruada descontínua 65


MARAJÓ - A DITADURA DA ÁGUA e irregular. A terra pipoca, se abre em infinitas rachaduras que parecem malhas de uma imensa rede que prende homens e coisas, parecem bocas que choram. A terra está com sede, mesmo como a gente. Eu, que tenho recursos, arranjei uma calha comprida como uma cobra grande para abastecer a minha caixa d'água; quinhentos litros darão para aguentar o verão, pensava. Na minha ingenuidade não tinha calculado a presença deste sol que transforma a caixa numa enorme panela que ferve, evaporando, o dia todo; agora, no fundo, existe só uma camada de caturras, rabo-azedos, borboletas brancas, ciscos trazidos pelos ventos. Precisa-se de beber, precisa-se de tomar banho. Entra em cena a portadora de água, água lamacenta, com aquela camada de espuma esverdeada boiando na superfície. Fica limpa ou quase com um pingo de sulfato de alumínio, mas poucos têm sulfato de alumínio, ou pedra-ume, poucos têm filtro. A maioria tapa o nariz, fecha os olhos e mata a sede, curtindo saudades pela água de chuva limpinho e gostosa. Será que Jenipapo não tem direito de beber água limpa como todo mundo? O povo fica calado, o povo aguenta, Não é fatalista, é gente nobre, e gente nobre não chora, enfrenta as dificuldades de cabeça erguida, calado. Mas eu não fico calado, não, porque eu não suporto esta situação absurda. Faz tempo que a burocracia desempenhou brilhantemente o seu papel; a verba está prontinha no cofre, os Excelentíssimos já enfeitaram a papelada de assinaturas legalizadas: tem tudo para cavar, encanar a água, levá-la às casas. Infelizmente tudo fica parado, o inverno se aproxima, a água continua escravizando e matando. Não há dúvida, a nossa água mata, mas devagarinho, com aquele jeito mórbido, típico de quem não gosta de escândalo, não quer entrar na crônica policial. – Giovanni, tem remédio contra vermes? Para mim, essa garotinha, mais outra de cinco anos, mais outro de seis, mais outro, mais outra... Eu tiro de minha estante aquela garrafa plástica e a mostro com orgulho: – Essa droga é legal, chegou da Alemanha, olha que nome, uma garantia: Adro, Chemische Fabrik GmbH, in 325 Hameln/Weser. Cada comprimido tem 0,3 gr. de Piperazinadipat, acaba na hora com a bicharada. – É para chupar? – Infelizmente não, senão seria a alegria desse povo. Só um gole de água, o remédio desce e as minhocas já eram. Aquela mulher volta para casa, alegre como se tivesse ganho na Loteca, só eu fico envergonhado pra burro. Isso mesmo: eu tenho a impressão de ser aquele desgraçado de Smerdiakof, o empregado da Família Karamazof, que oferecia aos vira-latas bolinhas de pão 66


GIOVANNI GALLO contendo um alfinete. Não sou sádico. Deus me livre, mas no final das contas estou fazendo uma coisa parecida, estou proporcionando o remédio junto com a doença: a água que ajuda a engolir o comprimido trás consigo outros vermes, outros protozoários que, sem dúvida, ganharão a guerra depois de uma irrisória derrota. – O Senhor tem remédio para morróida? Meu esposo está passando muito mal, a criança jita também... Não é morroida, é ameba. Noventa por cento está com ameba com giárdia e outros parasitas homicidas; não me inteirei disso olhando na bola de cristal, foi um médico que me disse, um médico que fez uma pesquisa. É o destino de todos. O meu também. Mas eu sou rico, apesar de beber água lamacenta. No dia em que não aguentar mais, já sei, o Bispo me arranja uma vaga num jatão, um amigo me reserva na Suíça um quarto com um especialista à disposição desse herói que chega dos trópicos. Tenho certeza, vou ficar bom, novo em folha, com uma auréola como lembrança. Mas não é assim para o nosso povo, aquele povo nobre que aguenta e fica calado, se encolhe na rede, à espera da morte que chega devagar com passos de onça, enquanto a família arranja café e bolacha para os amigos, como a gente costuma fazer. Os cães ladram e a caravana passa. Numa repartição qualquer o processo da água de Jenipapo, com carimbos e assinaturas, continua bem guardado e o povo permanece se nutrindo de água contaminada, de esperança, de decepções e de vermes. Mas eu não me conformo. Não aceito uma situação dessa, eu, o Padre rico com entrada garantida na clínica especializada, na hora do apuro, que porém pretende ser gente da gente e vive na própria carne o sofrimento do povo com o qual mora. Já sei, a minha palavra é incômoda, atrevida talvez, mas deve sair, deve virar manchete, enquanto Jenipapo não conseguir a libertação da sede e o direito de beber água limpa. Ninguém se aborreça: esse é Evangelho que deve ser anunciado nos telhados e nas praças, sem reticência e sem medo. Não garanto raios e castigos, não sou um novo Savonarola. Simplesmente quero lembrar que, no dia do Juízo, Jesus não perguntará a ninguém se apreciou, se acompanhou o Círio bem pertinho da berlinda, se puxou a corda ou deixou uma vela no carro dos milagres. Naquele dia dirá somente com infinita tristeza: Eu estava com sede e não me deste de beber! Aqueles que têm ouvido, ouçam. Pelo amor de Deus e de Nossa Senhora de Nazaré. 67


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EU DEFENDO O POVO DE JENIPAPO! O assunto de hoje é meio quente. Alguém não vai gostar, pode até dar encrenca, mas isso não é razão suficiente para evitá-lo, é uma motivação a mais para enfrentá-lo. Nessas páginas do meu diário entra toda a minha vida, com os seus problemas, as pesquisas, as experiências do dia-a-dia; deve entrar também o problema básico, o bom nome de Jenipapo. Já sei, alguém de mansinho dará a volta das casas, sobretudo dos que não sabem ler, distorcendo as minhas palavras, vendendo conversa fiada. Não é a primeira vez. Já aconteceu quando toquei no assunto nos dias da enchente, da falada calamidade pública. Naquela ocasião, eu escrevi: Quantas vezes ouvi dizer: O povo de Jenipapo? São todos ladrões. Mas acrescentei: MENTIRA! E dei uma pista para acabar com essa praga; largar pau, sem misericórdia, no padrinho onipresente e todo poderoso que dá cobertura. Pois bem, alguém saiu à rua para acusar o Giovanni, por ter dito que no Jenipapo são todos ladrões. As mentiras porém, como diz o ditado, têm as pernas curtas, não vão muito longe; vale a pena enfrentar o perigo de uma calúnia, com a certeza de que a verdade, antes ou depois, virá à tona. Existe o roubo de gado na área de Jenipapo e Santa Cruz do Arari? Claro que sim! Esta afirmação, porém, não é uma acusação contra o povo, é a simples constatação de que existem uns que roubam e comem carne não pesada. Digo mais: esses poucos são vítimas dos que promovem, financiam, dão cobertura, ficando bem guardados atrás dos bastidores. O roubo organizado não é manifestação de pobreza, é uma típica forma de exploração da pobreza, realizada por quem pobre não é. A pesquisa desse fenômeno social para mim não é novidade. Nos anos 60, quando ainda morava na Itália, eu fiz as primeiras experiências de Padre na Ilha de Sardenha, na parte central, denominada Barbágia pelos Romanos, que não tinham conseguido dominar aqueles homens corajosos e valentes, que moravam nas montanhas. Eu era Missionário, isto é, eu dava a volta em todas as cidades e povoados, ficando um dia em cada lugar, só voltando à base, Nuoro, uma vez por mês. Aprendi bastante o dialeto Nuorese // piú schietto dei parlari neolatini, conseguindo entrar em contato direto com toda categoria de pessoas, também com os idosos analfabetos, que naquela época pouco falavam o italiano. Naquele recanto perdido, agora engolido pela transformação do turismo, comecei uma pesquisa, mais ou menos como estou fazendo agora no Marajó. A vida sem sossego não me deixou tempo para publicar nada. Só uns vinte cadernos de notas estão guardados em casa de minha mãe. No dia em que eu for inábil para o serviço, talvez vá desenterrar aquelas memórias cheias de santos, de bruxas, de gigantes, de visagens, que a 69


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MARAJÓ - A DITADURA DA ÁGUA nova geração nem conheceu. O problema social básico de Sardenha, naquele tempo, era o roubo de gado, o abigeato. Aquela pesquisa me ilumina no caminho que estou percorrendo agora no Marajó, onde existe o mesmo fenômeno: a moldura é diferente, mas o problema, na estrutura essencial, é bem parecido. Tinha a vantagem de chegar do continente, isto é, da Itália peninsular: um homem novo, sem preconceitos, não influenciado por pesquisas ou relatórios de qualquer tipo. As pistas seguidas foram três, todas conduzindo à mesma meta. Uma era representada pela Polícia, os Carabinieri, que eu encontrava naquelas casinholas perdidas nos lugares mais impenetráveis, onde eu fazia uma paradinha, para dar-lhes a possibilidade de bater um papo diferente. Puxando a conversa, com jeito, sempre conseguia juntar algum pormenor interessante. Outra eram, os ladrões, que eu encontrava nas visitas periódicas no Cárcere Giudiziário e na Colónia Penale. Ambiente duro, desconfiado, onde depois de quebrada a casca conseguia levar a minha mensagem, sobretudo nas conversas privadas, preso com eles na cela de segurança. Eles sabiam que eu conhecia os pais, os amigos deles e me deixavam recados, nada de ilegal, só saudações, lembranças, notícias. Eles mesmos me falavam do motivo porque estavam ali internados; com um certo malabarismo intelectual, eu conseguia interpretar palavras daquelas vítimas inocentes, à luz dos fatos recolhidos de antemão. A última era formada pelas vítimas autênticas. Viajando de carro, um velho Fiat 1400, sempre dava carona a quem encontrava pelo caminho, de dia e de noite. Reparando um sotaque diferente, eu entrava direto na conversa. A poucos quilômetros de distância já existem palavras e sons próprios e assim, por diversão, cada mês, eu podia acompanhar por exemplo a evolução de uma certa palavra como kirkare, krikare, irkare, em italiano cercare, em português buscar, baixo latino circare. – Ite sedzis kirkande? O que estão procurando? Naturalmente era um rebanho de ovelhas ou algum boi. Para entender a história precisa gastar umas palavras para explicar a técnica do roubo e da procura. Quando um vaqueiro ou um pastor, voltando ao pasto não encontrava as ovelhas ou um par de bois, procurava logo o rastro deles. Naturalmente o encontrava, porque ladrão e objeto do roubo não podiam sair voando. Impressionante a esperteza com que um pastor tem condições de distinguir a pisada de um boi entre cem. Assim ele acompanhava o rastro horas e horas, até que este se perdia na calçada de um povoado. Então ficava claro que o roubo estava ali: só precisava jeito para conseguir o contato. Só precisava de um pouco de paciência para passear à toa na rua principal. Com certeza logo aparecia um fulano: – O senhor quer beber uma cerveja comigo? 72


GIOVANNI GALLO Era o sinal! O ladrão oferecia um acordo, que praticamente era baseado na mesma forma de transação: As ovelhas são cem, você paga cinquenta e recebe todas. Geralmente a vítima aceitava, disposta a enfrentar a raiva dos Carabinieri; já sabia que se tivesse feito uma denúncia em regra não teria encontrado nem um rabo. Naturalmente este tipo de contato e acordo era condicionado por uma certa ética, que aqui seria demorado explicar. Desta forma eu conhecia os ladrões melhor do que a Polícia, sabia quantas reses tinham sido roubadas e por quem, enquanto a Justiça nem suspeitava da existência do acontecido. Aprendi a conhecer marca e sinal, quem podia ser que dava cobertura. Em todas as minhas andanças, graças às contínuas pesquisas, cheguei a uma conclusão: não existe um povoado de ladrões, somente existem ladrões que moram em certos povoados, de forma que seria injusto acusar e condenar a comunidade toda: naquelas áreas os malfadados eram Orune, Lodé e sobretudo, Orgósoio. Mais outro elemento essencial. O verdadeiro culpado geralmente não é o pobre: ele é o autor material do crime, é o último elo duma longa corrente, de fato ele acaba comendo só as migalhas que caem do prato farto dos mandantes. Na pesquisa de hoje, realizada através das conversas mais inocentes (estou sempre vivo para gravar tudo que me interessa) com canoeiros, pescadores, criadores, nas entrevistas demoradas com os soldados da Polícia Rural, cheguei às mesmas conclusões. É mentira que o povo de Jenipapo seja um povo de ladrões! Quem disse que eu acusei o povo de Jenipapo é um mentiroso, que procura limpar as mãos sujando a gente. É claro que em nosso Município de vez em quando é comida carne roubada; quem está com fome não joga para o barcedo aquele pedacinho que lhe é entregue à porta, a preço de bananas, talvez ainda agradeça a Deus, que mandou algo para encher o prato constantemente limpo. O coitado que enfrenta praga, barcedo e bala para roubar é a primeira vítima dos mandantes e dos receptadores: ele não faria isso se a situação fosse diferente. Existem também falhas, digamos, na organização, na estrutura que deveria garantir segurança aos criadores de gado. Isso também vou esclarecer. A experiência na terra dos meus pais foi um prefácio necessário para enquadrar o problema, demonstrando que o fato do abigeato é um fenômeno social ligado a um determinado tipo de cultura e de ambiente, para que ninguém pense que esta pesquisa seja movida pelo desejo de desvendar os aspectos sombrios desse Brasil no qual estou enraizado, É, em última análise, para desmanchar aquela tensão que existe entre o povo de Jenipapo e as fazendas que o rodeiam, que eu vou gritar bem alto, sem medo de ser desmentido: Eu defendo o povo de Jenipapo!

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O LADRÃO DE GADO O roubo de gado na Ilha de Marajó e no Município de Santa Cruz do Arari é um fato inegável, em todas as dimensões. Existe o ladrão amador e o profissional, em pequena e larga escala, coadjuvado por um perfeito serviço logístico de informação, venda e cobertura a todo nível. Um mecanismo bem arquitetado, difícil de desmanchar, que, porém, pode ter reduzidas as proporções. Vale a pena tentar a luta contra este crime que só dá prejuízo: a farinha do diabo vira farelo e nesse negócio todos acabam perdendo. Quais são as personagens que entram nessa jogada? Analisamos, para começar, a figura central (porém não a mais importante): o ladrão de gado, o autor material do crime. Pode ser alguém que foi atrás de uma capivara ou de um jacaré, o chamado barcedeiro, que encontrando uma boa oportunidade, aproveita. Este tipo porém é uma exceção: o casco do barcedeiro é pequeno, não dá para carregar muita mercadoria. O caminho de volta é demorado, precisa já ter sal e colaboração certa. Neste caso, só tira a carne, nem sempre toda, vende depois para os vizinhos e joga a ossada para urubus. Geralmente porém é uma turminha bem organizada. Já dá para compreender como a acusação contra o povo de Jenipapo em geral está sem fundamento. Não é o povo todo que furta, são uns poucos, explorados por outros poucos. Aquele problema tão geral fica delimitado a poucas pessoas de fácil individuação. Pergunto ao Sgto. Viana, Subdelegado da Rural de Jenipapo: – Fazendo uma vigilância, tem perigo de receber um balaço na cabeça? – Não há dúvida que a nossa missão é muito espinhosa. O ladrão de gado, quando está fora da prática do roubo, nos atende bem, é cem por cento. Mas quando está lá, o risco é evidente, porque eles estão armados e não no seu estado normal, de forma que a nossa vida é um pouco arriscada. Não estar no estado normal significa, umas vezes, simplesmente bêbedo, muitas vezes drogado. O organizador do roubo, quem financia e faz o papel de receptador, fornece canoa, espingarda, machado, sal, cachaça e maconha. Esse pormenor mereceria um estudo à parte. O ladrão, nessa altura, já fica um joguete nas mãos de quem manda. Esse coitado de diarista pode ser mesmo aperreado pela fome, o inverno é grande, a nota está cotó, como a gente diz, mas desde o começo já está sendo explorado por alguém que não vive em apuros e somente procura um lucro fácil. 75


MARAJÓ - A DITADURA DA ÁGUA Costumam ir quatro homens por canoa, também em três ou quatro canoas. Há um pacto implícito de que ninguém, em caso nenhum, pode falar. Contam que um dia, numa façanha dessas, um golpe andou errado, ferindo um da turma; o cara, não podendo gritar ... urrou! Em nossa região, os elementos que furtam o gado procuram cercá-lo num local onde fica pouco fora da água, porque a tendência nesta situação, quando está perseguido e cansado, é de enfrentar o perseguidor. É ali que recebe a machadada. – Geralmente eles já levam o sal, assim me explica o soldado Domingos Ramos, tiram o couro, jogam para o barcedo a buchada, o miúdo, essa coisa toda e levam a carne para um lugar mais seco para salgar. Um jirau de tabocas é feito na hora. Naturalmente esta operação não é uma simples aventura. Existe um planejamento, que é possível só graças aos informantes. – Há safados, continua Domingos Ramos, que procuram aproximar-se da fazenda, onde mora o vigia. Procuram tomar a base com pessoas da fazenda, vaqueiros, parentes. Acontece que aqui, no Marajó, todo mundo é irmão do outro, é parente. Então o parente lhe indica dia e hora da ronda que o vigia está fazendo, o dia no qual ele não sai, então sabe quando pode praticar o roubo. Para defender o povo de Jenipapo, basta deixar-se levar pela evidência, lembrando que aqui, no povoado, só fica uma parte insignificante do gado. Segundo cálculos bem fundamentados, porém abaixo do limite, para evitar cair no exagero, nesse Município, no ano retrasado, foram roubadas umas 600 reses. Sendo que a safra do gado se desenvolve só no inverno, calculamos seis meses, isto é, 186 dias, as 600 reses divididas por 186 dão três e pouco. Estou disposto a comer um cachorro vivo e atravessado, se, alguém conseguir demonstrar que aqui, no Jenipapo, são consumidas mais de três reses por dia durante o inverno! Então, para onde vão? Nessa altura, entra na jogada o receptador, que organizou o roubo sob encomenda. Simplesmente recebe a mercadoria e paga. Quanto? Não existe um preço fixo. Uma rês que vaie Cr$ 1.500 ou mais (às vezes é um garrote de raça e de estimação) pode dar ao ladrão Cr$ 500 ou simplesmente 200 ou 100, até só uma garrafa de cachaça. O preço corrente da carne limpa, charqueada, geralmente só a melhor, é de Cr$ 2,00 ou Cr$ 3,00 por quilo. Um fato corrente: na Fazenda de Arthur Lobato, nesse inverno mataram sete búfalos, sendo cinco vacas e dois bois. Destes animais abatidos, eles levaram cinco e mais uma banda, deixando para o urubu, um boi e uma banda. Perguntei-lhes o que fizeram com a carne. Foi trocada por duas sacas de farinha, foi só o que eles receberam. 76


GIOVANNI GALLO O cálculo é simples: só dividir Cr$ 160,00 (o valor de duas sacas de farinha) por sete (búfalos) e sai o preço de cada búfalo; neste caso, o preço é mesmo uma desculpa para não dar de graça. Sem esquecer que mais de uma vez o ladrão só recebe promessas, e fica olhando. Pergunto a um marreteiro: – Acontece muitas vezes que lhe ofereçam carne roubada? – Estou cansado de me oferecerem, responde; os que querem que eu compre pelo menos para a bóia. O preço é de Cr$ 3,00. Evidentemente trata-se do ladrão amador, com poucos quilos à disposição. – Sendo o preço tão baixo, repara logo que é carne roubada? – Não é difícil, pois o pescador não é criador. Então não tem porque eu chegar aqui e o pescador me oferecer carne. Tenho certeza de que não é fazendeiro nem criador, não tem a ordem e o couro para acompanhar, então é contrabando, – E a Polícia Rural, que faz? Interessantíssimo o depoimento do Sargento Viana, com profunda experiência no assunto: – Uma grande dificuldade é representada pela falta de recursos. Os fazendeiros nos estão fornecendo essa pouca assistência, tanto que a alimentação é fornecida por eles. Eles dão uma pequena gratificação para o destacamento, como para o subdelegado que não tem pelo Estado. A promessa de mais um motor é também de parte dos fazendeiros (só uns meses atrás a gente não tinha nem um remo e devia pedir carona para fazer as compras no comércio)). O Estado somente fornece a nomeação e os elementos da Polícia Rural para trabalharem. – Poderíamos pedir mais alguma coisa? O Sargento me responde: – Será um problema para um certo estudo. Se o Estado nos auxiliasse mais, apresentaríamos um serviço muito melhor, porque a vida aqui no Marajó, como o senhor sabe, não é fácil. Acredito mesmo que Sua Excelência o senhor Governador do Estado ou o Coronel .Comandante da Polícia Militar e as demais autoridades, como o Secretário de Segurança, desconhecem as dificuldades da região e essa entrevista acho que é bem interessante. Quem sabe não possamos através disso ser olhados com mais carinho e assim poderemos fazer muita coisa para sanar o furto de gado ou pelo menos prestar alguma assistência aos pescadores e caboclos da nossa região, que vivem em determinados lugares como o Tartaruga, Mocoões, Cururu, os quais, quando adoecem, morrem à míngua, sem ter condições de sair de casa para vir à vila, onde há mais recursos. – Mas cadê a fiscalização? pergunto a um canoeiro. – Os que levam a carne roubada se acostumam e já sabem fazer a ordem. Não é fácil decifrar uma marca de orelha de um papel para a orelha do animal. Pode acontecer embarcar um gado de contrabando, preparar as ordens muito bem até chegar ao posto da Rural, e ninguém 77


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MARAJÓ - A DITADURA DA ÁGUA desconfiar. Eles vão espiar a ordem e carimbam. Tem mais: marca e sinal podem até ser alterados. Assim se explica seu Itamar: – Adulteram, às vezes, a marca. Podem pegar um pedaço de pau com um arame pontudo, riscar a marca deles em cima da outra, borram aquela marca, que desaparece naquele momento que estão baixando. Eles podem desenhar muito bem, riscando. Engana qualquer um, arrepia o cabelo; sendo bem amassado, enche um pouquinho o couro e a marca sai perfeita, parece ferrada de velho. Tudo isso dá serviço e é bastante arriscado. Tem outro caminho muito mais fácil: o caminho da carne roubada não passa pelo Posto de Fiscalização da Rural! Aqui está o âmago da questão. A fiscalização é o ponto fraco: se as Autoridades não toma rem alguma providência específica, todo o serviço da Rural fica esvaziado de qualquer valor. Cheguei a essa conclusão na base dos depoimentos de todas as pessoas interessadas para que acabe a praga do roubo de gado em nossa região. – O Posto Fiscal é só no Jenipapo. Daqui para baixo não tem carimbo em parte nenhuma. Então podem dizer: Embarquei no Anajás, em Cachoeira, e é por isso que não tem carimbo, mas está aqui o despacho e a ordem, está tudo legal. E acabou-se. – Importante é que a Polícia Rural espera a chegada do roubo por aqui, mas acontece o contrário – refere o Soldado Domingos Ramos. O ladrão sai daqui, vai fazer marisco, mata carne e sai pelo Tartaruga, entrega às canoas. Quando eles voltam só tem pirarucu, jacaré, algum muçuã. A Polícia nem pode prender. O grosso já ficou atrás, passou pelo Tartaruga e caiu na baia. O Subdelegado Viana dá até alguma dica: – Na época do inverno, quando geralmente ocorre o furto de gado, nós deveríamos ter nesta região do Arari, para amenizar mais o furto, um fiscal no Tartaruga, um Posto Fiscal no rio Anajás e outro Posto mais abaixo de Cachoeira, Esses postos fixos, além de duas ou três, patrulhas marítimas. Mas nós não dispomos de nada disso. Claro que tudo isso custa dinheiro, mas fazendo um balancete é fácil chegar à conclusão de que seria mais barato do que ser vítima, todo ano, desta perpétua sangria. Os fazendeiros, gente de negócio, podem dar o jeito deles, eu só apresentei o diagnóstico. O Estado, no papel de tutor da ordem pública, fará o arremate. Nesta altura o Viana solta a bomba: – Apesar das falhas da fiscalização, algum peixinho fica malhado na rede, mas ... consegue escapulir. É aqui que entra em cena o pivô de toda a história. Vale a pena fazer uma conversinha à parte sobre o falado padrinho. 80


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O LADRÃO DE GADO E O PADRINHO DELE É o Sargento Viana, Subdelegado da Polícia Rural de Jenipapo quem faz esse depoimento: – A maior dificuldade que a Polícia Rural sente no Marajó e com especialidade no Município de Santa Cruz, é a cobertura de determinados elementos que dão incentivo ao roubo. Além de todas as dificuldades que temos em trabalhar, quando conseguimos prender algum infrator, sempre de uma forma ou de outra existe a cobertura de alguém. – Também quando o infrator é apanhado em flagrante? – Eu já instaurei vários inquéritos, com referência a furto de gado, inclusive flagrante e esses infratores cruzam diariamente nas barras da Polícia, como já tem acontecido. Acho que isso dá um estímulo muito grande para que o infrator continue a praticar o furto. Quando suspeitamos de alguém com diversas entradas na Polícia e nos dirigimos à perseguição do indivíduo, sempre há uma denúncia contra a Rural, dizendo que a Polícia Rural invade casas, para entravar mais o nosso serviço. Para averiguar essa afirmação, entrevisto o Soldado Domingos Ramos, conhecido como Domingão, 120 Kg. de alegria apesar do serviço tão difícil. – Então, Domingão, como foi aquela invasão? – No dia 27 de abril, com o Sargento Viana e o Cabo Edison chegamos a uma distância de uns dez metros da casa. Olhamos, havia uma mulher à porta. Esta mulher nos viu, pegou um caniço e tirou uma onda de que estava pescando. Chegamos lá, demos-lhe bom dia. Ela respondeu, então eu disse: – Senhora, aqui estamos eu, o sargento Viana e o Cabo Edison, e queremos permissão para revistar a sua casa, pois foi denunciado à Polícia Rural que aí no quarto há carne salgada. Ela me respondeu: – Seu Domingos, sou mulher pobre, vivo de pesca, aqui na minha casa não tem essas coisas. – Mas nós queremos revistar. Ela disse: – Sinto muito, não posso dar permissão para o senhor entrar, porque no momento tem uma mulher de parto. Eu perguntei: – A mulher está de parto? Ela disse: – Está com dor. Nesse momento o cabo Edison já estava à porta da rua com sua canoa encostada e lá, no degrau da escada, viu um pedacinho de carne e ficou atento. Eu disse à senhora: – Vá lá no quarto; vá cobrir a mulher que nós não vamos olhar para ela, só revistar a casa. Eia respondeu: – O Senhor aguarda aí um momento. 81


MARAJÓ - A DITADURA DA ÁGUA Ela foi ao quarto, lá ela conversou, com a mulher que ia cobrir com os panos, com a rede, que a Polícia ia revistar a casa. E eu fiquei na canoa, pensando que era uma mulher que lá estava e disse: – Minha senhora, fique aí quietinha, que ninguém vai lhe olhar, só queremos revistar a casa. Nesse momento ela disse: – Pode entrar, cabo Edison. O Cabo entrou, passou a revista nos cantos da casa, olhou e não viu nada, não viu a mulher que estava de parto, conforme ela disse. E viu que dona Fulana estava abaixada em cima de uma trouxa. Ela disse: – Cabo, eu não quero que reviste aqui, não tenho nada. Mas ele insistiu e ela levantou. O cabo revistou: tinha uma saca de carne. Então o sargento Viana deu voz de prisão e a trouxe até a delegacia. – Quais foram as consequências dessa ação da Policial Rural? – Um abaixo-assinado, que juntou não sei quantas assinaturas para solicitar o afastamento do Delegado e dos soldados da Polícia Rural, apontados como invasores de casas neste caso específico. Essa experiência, que está ainda quente, me oferece a oportunidade para fazer uma gostosíssima pesquisa, que só pode nos levar à mesma conclusão de que o povo de Jenipapo é vítima de quem explora essa situação e está altamente interessado para que tudo continue do mesmo jeito. Nessas assinaturas dá para encontrar o elenco dos que comem carne não pesada. Mas, repito, são poucos, são as vítimas de quem está com o prato cheio. A maioria, a grande maioria assina um documento sem saber o que é. Eles não estavam lá, como podem dizer que os soldados invadiram as casas? Só se baseiam no relatório oral dos promotores, que, naturalmente, dão uma versão distorcida do acontecimento. Um abaixo-assinado deveria ter um cabeçalho. Tinha, mas atrás dele estavam páginas brancas, antes das assinaturas; ótima oportunidade para acrescentar mais alguma coisinha, para carregar a dose. Mais uma ressalva: o pessoal que não quer assinar na frente, não quer aparecer, indica que faz isso forçado, não está livre de tomar uma decisão. Em outras palavras, um evidente caso de violência moral que o Brasil de hoje não pode aceitar. Essas coisas acontecem aqui no interior; as autoridades superiores não podem adivinhar, o povo não fala por medo de represálias. Eu que sou padre, não tenho mulher, não tenho filhos (nem por dentro nem por fora) não tenho medo de possíveis consequências, então falo alto, tomando a defesa do meu povo, o povo de Jenipapo, para que acabe de vez a velha história do papagaio que come milho e dos periquitos que levam fama. Mais um pormenor. Nem todo mundo sabe ler, uns sabem muito mal desenhar sua assinatura devagarinho e o fazem porque lhes disseram que aquele abaixo-assinado é para liberar a capivara, isto é, a caça da capivara. Quem não faria isso? Houve assinatura até demais. Correm boatos de que alguém assinou pelo marido, pelos filhinhos que, coitados, não podem assinar, para se defender dos assaltos dos policiais. Se o abaixo-assinado chegou lá onde devia chegar, fica fácil fazer uma pequena pesquisa. Está evidente que foram solicitadas também assinaturas de menores. Alguém recusou, teve coragem. Qual foi a resposta? A provocação, o insulto pesado. Isso eu garanto, é só me procurar e dou o nome, dia e hora, pois testemunhas não faltam. 82


GIOVANNI GALLO Sei que essa minha conversinha pode ser até perigosa para mim. Já fui ameaçado na minha casa. Nesta altura devo esperar uma resposta que não admite réplicas, numa gíria muito cristalina que deixa entrever que castigo pode ser esperado. Mas acredito na Justiça do Brasil, na consciência reta das autoridades e, confiante, sigo em frente. Esse é um caso, um dos muitos, não uma exceção. Vamos ver se a Polícia Rural me pode proporcionar algum outro pormenor interessante. – Quando nós chegamos a prender algum indivíduo no Jenipapo, é o Subdelegado Viana quem fala, logo começam os recados, os bilhetes e muitas vezes, antes de chegarmos a uma conclusão, recebemos até o Habeas Corpus para soltar os suspeitos. Isso aconteceu comigo. É de estranhar que alguns inquéritos vão para o Cartório e o elemento fica solto e o inquérito nunca vai à tona, como nós dissemos. Acredito que seja influência de alguém. Quem pode nos esclarecer é o Dr. Olavo Guimarães Ferreira, Pretor de Santa Cruz do Arari, numa nota publicada em O Liberal, poucas semanas atrás (tenho o recorte do jornal, infelizmente sem data). "Estou sabendo de tudo, mas não posso fazer o serviço da polícia. Minha função é outra e, se vierem a mim os autos, o Processo terá seu curso normal. O roubo está aí, na cara, mas a própria Polícia, tanto a Polícia Civil como a Rural pouco ou nada podem fazer por falta de condições materiais (...) Quando algum goiaba é surpreendido pela Polícia com a canoa cheia de carne de gado roubado (de oito ou mais reses) e dá a dica, os ladrões agrupam-se em torno dos padrinhos, que os conduzem para Belém, livrando-os do flagrante e da circunscrição da Polícia de Jenipapo e de Santa Cruz, levando-os para o pátio da Central. A seguir um Habeas Corpus os devolve livres para Jenipapo, para novos roubos e a Polícia do Arari nunca pode apresentar um inquérito sem falhas e com as provas cabais. O sargento Viana me explica como isso acontece: – De acordo com os recursos de que nós dispomos, fazemos o que é possível. O Senhor sabe, a lei exige que a coisa seja feita mesmo dentro do figurino, para que ela tenha seus efeitos legais. Mas acontece que na situação na qual estamos, desprevenidos de todos os recursos, quase sempre um inquérito policial vai com alguma falha, isto mesmo sem contar com a falta de elementos burocratas à altura, para nos auxiliar. Atualmente, na Polícia Rural, estou atuando sem escrivão de Polícia, sem sargento para comandar o destacamento, de forma que faço o serviço de comandante do destacamento, de escrivão, de subdelegado e respondo inteiramente pela Polícia Rural!". – Na sua experiência, os condenados são muitos ou poucos? – Esta resposta é muito fácil, porque até o momento não tenho lembranças se algum foi a julgamento. O depoimento do Subdelegado não é, certamente, fruto de fantasia. Pergunto ao Soldado Domingos Ramos sobre o mesmo assunto. – Quando o vigia consegue prender um safado desses, até com roubo na mão, entrega ao Delegado, e corre logo o boato na vila: é lá que ele tem protetor. Aos de Jenipapo que vão presos, quando chegam a Belém, aparece o advogado para soltar. Ele está defeso. "Não tem nenhum ladrão de gado preso no São José. Todos vão para a Central de Polícia; vão lá 83


MARAJÓ - A DITADURA DA ÁGUA e voitam. Ninguém chega a ser preso, logo é posto em liberdade." "Fique bem claro que eu não vou inculpar os advogados. Eles são para isso. Se não tivessem, no Tribunal, casos a defender, deveriam trocar de profissão. O papel deles está limpo cem por cento, fazem o serviço deles como o médico trata as doenças, mas ninguém vai acusar os médicos porque há doenças no mundo, A sujeira está aqui, que alguém faça uma profissão, um meio de sobrevivência dando cobertura à malandragem, "O pior é que, em última análise, essa profissão vira instrumento eleitoral: cobertura em troca de votos. De fato, na hora H, vai cobrar votos!" Acho que poucos conhecem esta realidade: é por isso que a proclamo aqui. Com políticos dessa marca não é possível pensar na renovação do Brasil, O Pretor de Santa Cruz, enfrentando esse problema do padrinho, vai mais adiante. Comentando meu artigo do dia 28 de março, acrescentou: A seguir (o padre) fala do padrinho onipotente. Eu diria, os padrinhos, de cá e de lá de Belém. A nossa realidade é terrivelmente complexa, sobretudo porque a comunicação é tão difícil, e os que estão fora daqui geralmente não estão a par da verdade. Ouso esperar que esse desabafo consiga esclarecer um pouco a nossa situação; só o amor que sinto pelo Brasil me levou a quebrar essa conjuração do silêncio. Permito-me repetir o que já escrevi no citado artigo do dia 28 de março. "Faço apelo às autoridades. Chegou a hora de abrir os olhos, de largar pau sem misericórdia. Não digo "sobre o pescador, ele é só um joguete, um explorado, uma vítima, ele só ganha as migalhas que transbordam do prato cheio do padrinho que dá cobertura. Esse padrinho onipotente e onipresente é fácil de encontrar: só pesquisar nos processos, só entrevistar os soldados da Polícia Civil e Rural, os Delegados que foram jogados fora, como bagaço imprestável, porque se recusavam entrar na jogada suja. Aqui no Jenipapo precisamos de Justiça. Os que representam a lei devem ser apoiados e não desmoralizados. Que sejam esclarecidos sobre a técnica do processo legal, para que o trabalho deles não seja uma frustração, como está acontecendo agora". As consequências dessa minha tomada de posição, mais uma vez, são indicadas por um representante da lei. É o soldado Domingos Ramos que fala: "Se tirassem a metade dos receptadores de roubo, se com calma descobrissem quem é o chefe, é fácil tirá-los do quadro, porque com certeza o caboclo vai porque é mandado. Pode estar em necessidade, mas se não achasse quem fornecesse tudo, ele não iria. Se não recebesse sal, farinha, arma de fogo até para enfrentar o vigia da fazenda, se não recebesse isso, não iria, com este medo de ser preso, não tendo uma pessoa de escora de lá. Ele sabe que vai ser preso agora, mas tem também a certeza que alguém bota ele fora." É por isso que eu tenho a coragem de gritar, mais uma vez: Eu defendo o povo de Jenipapo!

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UM CRUZEIRO DE CATECISMO – Padre, tem catecismos, dos jitos? – Tenho, sim senhor. – Quanto custa? – Um cruzeiro. – Então, me dá um cruzeiro de catecismo! E o garotinho bate a palma da mão na mesa, como um experimentado jogador de dominó, deixando cair uma bolinha de papel amarrotado, quer dizer o cruzeirinho em questão. Mais um fã da escola de catecismo, deste catecismo que é minha alegria e frustração. Frustração, porque ainda não acertei a fórmula. Uns anos atrás, era bastante fácil: só gravar uma porção de respostas e, coitado, aquele aluno que esquecia um miserável "e" perdia o prêmio. Um exemplo de virtude angélica, ou melhor ainda, a história de funestas desgraças, afastadas milagrosamente pela tempestiva intervenção celestial, era a sobremesa obrigatória de cada aula. Agora tudo isso não dá mais, graças a Deus, mas no Jenipapo e em Santa Cruz a situação fica ainda mais enrolada, pois estamos vivendo a fusão de uma mentalidade primitiva com uma mal assimilada problemática moderna. Um dia estava batendo papo com as Irmãs de Cachoeira, aproveitando a parada do barco que me levaria a Belém. – Esta é filha de Jenipapo, disse a Irmã Paz, indicando uma menina de uns três anos que estava brincando num canto da sala sem ligar com a minha presença, a mãe dela morreu de câncer. A criança levantou a cabeça: – Mentira, mamãe morreu de feitiço. E continuou descontraída a sua brincadeira. Balançando na rede, durante a viagem na baía, meditei demoradamente sobre a nossa derrota. Estamos chegando atrasados, a criança já está contaminada, ninguém conseguiria mais tirar da cabeça dela o feitiço! A primeira dificuldade que encontro no catecismo é juntar as crianças, por causa dos complicados horários do grupo. Lá eu não vou porque acho que uma intromissão violenta tira todo o sabor da mensagem evangélica. Já sei, alguém pode até não gostar da minha tomada de posição, tem mil argumentos para me contestar, mas eu escoro o pé: o menino de hoje tem a sua autodeterminação, tem o seu dinheirinho ganho vendendo chope, ele deve vir espontaneamente. Pelo mesmo motivo nunca transmito uma palestra através do alto-falante da torre da igreja; não quero entrar com violência na casa cios outros. Gosta da igreja? então 86


GIOVANNI GALLO ele vem, já sabe que o padre chegou, porque está tocando o sino. Os alunos de catecismo vêm, correndo. Só botar o pé em Santa Cruz, e toda criança que se encontra na rua, antes do "Bom dia" dirá': – Hoje tem catecismo? Disse que ainda não acertei a fórmula, porquê a minha maior preocupação é de aprender, descobrir o que está naquelas cabecinhas; só depois terei condição de transmitir uma mensagem, Todos juntos, em roda, contamos a história do nascimento de Jesus: "Chegou o funcionário do Governador e gritou no arraial: Alô, pessoal, todo mundo vai fazer assinatura no escritório do tabelião, onde nasceu. Nossa Senhora e São José se arrumam para viagem e juntam café, açúcar, farinha, Q-suco, feijão, abade... Cada um acrescenta. Simone sempre está de prontidão com o seu foguete: Sal e, se já tem sai, acrescenta mais um pouco. Cai o tempo, vem a chuva fina, grossa, o trovão faz buuum... – Nossa Senhora estava com medo? – Nossa Senhora estava com medo de visagem? – Não, não existe! – Você tem medo de visagem? – Tenho, sim senhor! Assim eu compreendo que minha mensagem não chegou no fundo, só molhou a casca. – Quem vale mais, o branco ou o preto? – Igual por igual: se o branco for vagabundo e o preto trabalhador, então vaie mais o preto, A cor não quer dizer nada... – Você gosta mesmo áe ser preto?… e a gente descobre que o pretinho não conseguiu superar os preconceitos do qual é vítima. – A igreja é do padre? – Não, senhor, é nossa! E todos conhecem a fundo a sua igreja: essa é veneziana baiana, aquele negócio é a clarabóia, a treliça, o esticador. . . Com a ideia de estar à vontade na sua própria casa, também a linguagem tem que ser espontânea, atual: o filho pródigo é o filho vagabundo que viajou para o Rio e passava o tempo todo nas boates fazendo safadeza. Quando ficou liso que nem muçum, foi para o centro (interior) e chupava caroço com os porcos... O aluno do catecismo fica boquiaberto, engolindo o que estou dizendo, mas dentro já tem os anticorpos para rejeitar a infiltração estranha. Precisa calma, tempo, muito tempo. Precisa derrubar aos poucos toda uma estrutura falsa para botar um alicerce firme. O caboclo tem a sua cosmologia, não conhece a palavra, porém segura com ciúme o 87


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MARAJÓ - A DITADURA DA ÁGUA conteúdo. A mosca é gerada do lixo, o jandiá vira sapo, o boto vira gente e o macaco já foi gente. Tem sua ideia do pudor, da moralidade. Todas as crianças sabem disso: é uma cultura herdada com a vida. Consequentemente, o catecismo das crianças para mim não pode ser uma escola no sentido tradicional: eu que fico palestrando. É uma troca de experiências entre o mestre e os alunos, somente que as duas partes trocam de função continuamente, para dar e receber. – O que é rezar? Falar com Deus, dizer bom dia, muito obrigado. – Deus é bom pai. Gosta também de foguete, de fita, de vela, do nosso Círio. Gosta, porque ele gosta da gente que vai com carinho e amizade. – Quem é mais inteligente: o padre ou você? – Depende! – Mas você não sabe isso e aquilo... – Por que eu sou jito... mas eu também... As nossas crianças são inteligentes, esforçadas: naquele eu também está compendiado um imenso desejo de crescer, de ser mais gente, para ser mais cristão. O fim do ano para mim é um pesadelo. Já sei, os melhores alunos, os que já pegam alguma coisa, depois das férias não voltarão. Se têm sorte vão para Belém, se não têm sorte (quer dizer dinheiro) vão para o interior, ficam largados à toa. Aqui, em nosso Município de Sta. Cruz do Arari, só temos a quarta série do Primário. Acho que não precisa comentário! Eu gostaria que esta página tivesse asas para voar ao Gabinete do Governador, do Ministro de Educação, do Presidente da República, criasse barulho, muita confusão. Negar aos filhos de Santa Cruz, no dia de hoje, a possibilidade de primeiro grau completo é um absurdo, um escândalo: quer dizer condená-los a enfrentar a vida em forma desvantajosa, não competitiva. Com certeza nem todos os meus alunos decoraram orações, nem todos vão à missa, mas sabem que Deus faz tudo sem ferramentas (não é como Mestre Cassiano ou Toco Preto), até preparam as lâminas do microscópio: – Aqui botei o bigode de bichinho do algodoeiro. Tá certo? – Agora não dizem mais: Esta menina não é índia, ela é gente porque sabem que todo índio é gente, que também se benze dizendo: Santa Curuçá Rangawa recê Ore pis iru Tupá, lane lara…

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UMA FERA CHAMADA PIRANHA

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elo mundo afora, falando do Brasil, a conversa cai necessariamente sobre Pelé e as piranhas. Como os brasileiros conhecem muito bem Pelé e as piranhas mais ou menos, acho que vale a pena gastar umas palavras para aculturar os menos esclarecidos. Aqui, no Arari, as piranhas são os moradores mais numerosos, só cedendo o passo às lombrigas, com a concorrência das pragas. No fichário da Faculdade de Zoologia, a piranha tem um nome meio esquisito: Serrasalmusrhombeus: Serrasalmus, porque as escamas ventrais formam uma serrilha com as pontas voltadas para trás, rhombeus, já que tem forma de um rombo. A aparência geral é até boa, com escamas pequeninas e com reflexos prateados, que se assemelham a pequenas estilhas de vidro. Os índios, que a conheciam intimamente, a batizaram Piraí, isto é corta-pele. Quando a civilização lhes apresentou a tesoura, eles acharam óbvio chamar a tesoura de piranha. Goeldi a considerava um animal de rapina, o mais perigoso da América Equatorial e, até mesmo, dos peixes; dizia também que Dante, se tivesse conhecido, ter-lhe-ia dado um lugar de honra no inferno, entre os instrumentos de suplício. A. D. St. Hilaire se aproximou à ideia, chamando-a de peixe-diabo. Apesar de a lenda ter ampliado um pouco as façanhas dela, fica claro que a piranha é mesmo uma fera: tigres do rio, definiu-as Miranda Ribeiro. "Uns selvagens do Mato Grosso receberam dos portugueses o nome de porrudos, por andar com uma bolsa de couro protegendo-Ihes as pudendas. Esses sacos de couro cru, eram usados pelos bugres constantemente para evitar os inúmeros casos de castração que sofriam nas caçadas em que necessitavam entrar n'água. Onde tem piranha, a gente toma banho de cuia e o macaco bebe com canutilho de taquari. As monografias eruditas podem dar informações preciosas, mas eu gosto de ir direto à fonte, batendo um papo com um especialista, que só pode ser filho de Jenipapo. É o Melício, apelidado Melo, uma figura característica. Sempre alegre, com um sorriso largo que chega até às orelhas; é inconfundível, tem até uma perna de pau. Ainda menino, uma quambóia o mordeu, ele íoi para o hospital, de onde voltou com uma perna só. Foi tomar um ventinho no quintal, pulando que nem Sacy, e outra quambóia mordeu a outra perna, mas ele já estava imunizado, só sentiu cócegas. O Melo é um profissional na pesca das piranhas. Vaie a pena ouvir a palestra dele. – Quantos tipos de piranhas temos aqui? 93


MARAJÓ - A DITADURA DA ÁGUA – A encarnada e a branca, a preta não aparece por aqui (é a "Pigocentrus Pirava Cay"). Existe também outro tipo, a piranha-mapará (Serrasalmus denticulatus), também aqui desconhecida. – E a mais perigosa? – A encarnada; a branca custa a morder. A piranha branca tem o queixo mais longo e provoca um corte mais fundo; na encarnada a mandíbula inferior, mais forte, é fornecida de uma farta carreira de dentes de gumes afiadíssimos, mais desenvolvida e saliente, que dá um aspecto de bull-dog. Couto Magalhães Jr., que dá essa explicação, acrescenta que na cavidade palatina há seis pequenos dentes de cada lado, formando uma dupla série. Apesar do meu inato espírito de curiosidade, nunca consegui encontrar esses dentes. Fiz, porém, outra descoberta: a mandíbula inferior é partida no meio e ligada por uma dobradiça. Deste jeito a piranha, além de cortar de vez, porque os dentes encaixam perfeitamente com os inferiores, não deixando nenhum interstício, tem uma maldade a mais: aperta também no sentido horizontal, movimentando para o centro as duas partes do queixo. – Seu Melo, dizem que aqui quem não tem ferrada de arraia ou mordida de piranha não pode ser eleitor. O senhor, quantas mordidas tem? – Grandes, quatro. Miúdas? Quem conta? A cabeça dos dedos estão todas com o papo tirado. Mas ele acrescenta logo que não se deixa assustar, nem poupa piranha, e assim me confia os segredos da sua técnica de pesca. – A gente enfia a isca (geralmente poraquê ou pongó) em dois arames, que depois enrola numa vara. Bota a vara na água e quando o peixe está comendo (quase tira a vara da mão da gente), mete um paneiro de arame por baixo. A piranha sente o perigo, se desprende da isca e cai no paneiro. Uma paneirada dá até 100 piranhas; numa hora a gente pega mais de 300 quilos. Não podemos pensar que a piranha seja tão tola e não procure vingar-se; tem caráter extremamente irascível e não respeita ninguém. – Quando elas se juntam para comer um ituí, fazem um alvoroço danado e acabam se comendo uma às outras, até deixando a preta. Atacam todas juntas, são muitas como um ninho de cabas, cortam logo as barbatanas e o peixe já era. Come os peixes pequenos; só ela aparecer e todos fogem, mas ela procura o lugar onde eles desovam e devora tudo... na falta deles, devora também os seus próprios fiihos. Tendo oportunidade, ataca também a gente, além de fazer um estrago nas redes, não receando engolir anzóis, como se fossem isca saborosa. Os pescadores se defendem com um macacão de trançado vaqueiro, pintado com muruci e calçando umas perneiras feitas com câmara de ar de pneu de carro. Enquanto os colegas fazem a batição, fechando a rede, juntando calão com calão, o pescador 94


GIOVANNI GALLO vestido com o macacão pisa no chumbo da rede, isto é, amassa o entralho para o peixe não fugir. Se a piranha morder', não tira o pedaço. Rato que mergulhar na água não bóia mais e todo ano acontece que alguém seja vítima de piranha, criança ou bêbado que cai na água. Uns anos atrás, um empregado de fazenda caiu na água, sumiu e foi encontrado na volta de "Porto Alegre": as piranhas o tinham comido todo. Ficou só uma perna inteira, a perna boiou, foi assim, que o encontraram. Ficou mesmo o esqueleto do livro. A barriga grande, cheia de piranhas que pulavam para fora. O único jeito para afugentá-las é bater moponga, ou dar golpes na água com o varão. – Todos os peixes têm medo dela? Até arraia? – Elas comem também arraia na beira da roda, onde o ferrão não chega. Nunca as vi atacar pirarucu, se ele der uma rabanada, manda-as para terra; só, às vezes, tem o rabo roído, serão mesmo as piranhas? Elas têm também medo de poraquê; uns dias atrás, porém, aconteceu que um, que estava preso no cacuri, desapareceu num triz: coitado, ficou com as baterias descarregadas. – Não tem outros inimigos? – Quando larga os filhotes, então a traíra os comem. – Não tem mesmo mais nada? Eu estudei os parasitas no Museu e já sei que ela também os tem. O Melício faz uma careta. – Tem vermes... eu não sei falar português, na bunda delas dá aquele montei – Será que não tem alguma qualidade boa, esse bicho desgraçado? – Tem, é boa de comer. Nos anos passados, ninguém comia, agora as procuram para salgar, até geleira compra, mas só as grandes. É até boa de espinha, que é pouca. – É verdade que o cachorro late, antes de entrar na água, para juntar os cardumes e depois passar por outro ponto? – Isso não sei. Sei somente que a minha cadela não sabia disso. Lena, vem cá! A cadela se aproxima, o Meio lhe abre a boca e mostra a língua dela, onde falta uma fatia redonda, uma lua de três quartos. Foi beber na escada de casa e piranha bateu nela. – Tem algum ditado sobre piranhas? Melo fica pensando, depois dá uma gargalhada. – A gente diz de quem come muito: Puxo, parece piranha, que nunca enche. Piranha é também a moça que nas festas namora com muitos, quanto mais puder!

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MAMÃE, EU NAO QUERIA NASCER PRETA!

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arlene, oito anos, ao despertar, diz à Dona Jojó, que a está criando: – Mamãe, por que eu nasci preta? – Porque Deus quis, minha filha. – Mamãe, eu não queria nascer preta! A voz da inocência falou. A porta de entrada do Brasil foi, para mim Bahia de Todos os Santos. Estranhei em ver tanta gente de cor. Já sabia que eles existiam por aqui, mas não tinha realizado a fusão; os pretos e o Brasil ficavam dois elementos reais, apesar de desligados. Foi surpresa, porém positiva. Aquela alegria brincalhona, aquele jeito de amizade para com todo mundo, só olhar para um moleque e a resposta é com certeza um sorriso. Talvez tenha ajudado o encanto da capoeira, o samba de faca, o maculelé, sem falar vatapá e acarajé... Perguntei a um amigo: – Existe o problema racial no Brasil? A resposta foi confortadora: um não, que não deixava margens a dúvidas. Gostei. Depois de uns dias, me mudei do Colégio para as palafitas dos a alagados: o destino me preparava para a palafita de Jenipapo, a minha casinha no Arari. Foi neste momento que o meu aculturador me preveniu de nunca pronunciar aquela palavra: – A gente tem que dizer escuro, preto ofende. Estranhei mais uma vez e comecei a abrir os olhos. Nas primeiras atrapalhadas conversações um professor em miniatura desabafa comigo: – Quando ganho na dama, minha prima sempre me insulta. – Que é que ela diz? Uma pausa meio pesada, depois: – Chama nome, me chama de preto, eu sou o mais escuro a família. Diante da minha janela, uns garotinhos estão brincando. Começa uma discussão, ouço a palavra preto e sai briga. Dou-me conta, mais tarde, de que essa forma de comportamento é padrão comum: se duas amigas têm diferenças, bem dificilmente a branca não tira o problema da cor. Até a criança de primário, diante da repreensão da diretora, reage do alto da fortaleza da sua presumida superioridade: 99


MARAJÓ - A DITADURA DA ÁGUA – Essa nega só quer ser! – Na sua terra tem gente dessa cor? O meu interlocutor aponta com o dedo o seu braço, até receia de citar a palavra. Lembrome de uma experiência em Fontilles, o maior leprosário de Espanha, onde fiz um estágio. Existia um pacto implícito, ninguém dizia a palavra lepra só enfermidade ou doença, essa doença. A palavra lepra queimava os lábios, exatamente como preto. Na calçada da Igreja da Floresta, em São Luís do Maranhão, tomando um gole de Jurubeba Indiana para matar o salgado da jabiraca, um dia, meu grande amigo Apolônio me chamou meu preto. Foi um fato instintivo, o seu rosto se contraiu numa careta dolorosa, pelo medo de ter-me ofendido. Mas não houve problema; desde aquele dia, eu fui preto e Dona Susana, a esposa dele, preta que nem Carvão, foi para mim Dona Branca. No esforço de ser gente da gente, morando num bairro pobre onde a gente de cor é maioria, sobretudo estudando a linguagem que é espelho da alma de um povo, procurei aprofundar essa questão, que me interessa como homem e como padre. A linguagem de todos os dias revela um certo estado de ânimo, mais ou menos explícito, mais ou menos consciente da superioridade do branco e desprezo para a cor. Onde tem feijão tem gorgulho, onde tem preto tem barulho. É uma constatação, porém fundamentada: o preto é mais expansivo e comunicativo e, no Brasil, barulho é forma básica de comunicação. O preto é bem brasileiro! Mais acentuada e pesada é a comparação em que a cor preta é considerada sinônimo de elemento negativo, como nessas duas perspectivas antagônicas. Falando de pessoa boa: De preto tem só a cor. Pelo contrário, se o cara não presta: De branco tem só os dentes. Onde tem preto tem confusão: não é mais o barulho (característica aqui bem aceita), é uma avaliação puramente negativa. A fantasia popular tem uma vasta área de expansão, seguindo sempre o mesmo trilho: Além de preto é pavulagem! Além de preta é anarquista! Foi a delicada observação de um professor da Escola Normal para uma aluna que chegou atrasada na sala de aula. Basta ser preto! Não nega ser preto! Preto representa a súmula dos elementos ruins. Se por acaso alguma coisa fica encrencada, é normal o desabafo Negócio de preto, às vezes sob forma de revolta: Eu não sou preto, não! A presença do preto, por outra parte, tem que ser aceita como uma necessidade, mais ou menos como a gripe ou a catapora: Onde tem branco, sempre tem preto no meio, ainda mais que Caso de preto nunca acaba! 100


GIOVANNI GALLO Analisando este problema sob o outro ângulo, é inegável no preto um sutil jogo de complexos, de inferioridade por um lado e de desprezo ou vingança por outro, como aparece no uso do termo branco e branquinho em tom de escárnio e de respeito, Doença de branco, uma bagatela que só pode assustar um branco sem caráter. Branco se identifica com rico: casa de branco. Cabelo de branco não sossega, é rebelde. Maria de Jesus, no seu diário, manifesta a mesma ideia por outro ângulo: o cabelo do preto, onde põe fica, é obediente. Prevalece a resignação à própria condição de sujeição e inferioridade. Apesar de o cabelo do preto ser obediente, ninguém o quer assim. Nos bairros existe uma indústria empírica: Alisa-se cabelo, agora substituída pelas perucas baratas: cabelo preto sim, mas liso, não africano! Que pena ver umas pretinhas lindas, com o rosto borrifado de um produto qualquer, para disfarçar a cor. E uma mulata com a peruca loura: Deus do Céu, que castigo! A análise da linguagem nos ajuda a entrar na realidade, que as palavras representam. A experiência confirma essa intuição. Em São Luís do Maranhão, só um ano atrás, uma moça preta não podia ser balconista numa loja do centro, apesar de que os rapazes já fossem aceitos: o machismo é mais forte do que o preconceito racial. Quantas vezes, respondendo ao convite de um anúncio comercial, a escurinha não encontra emprego. Baixa a cabeça e vai-se embora: já sabe que o funcionário é teleguiado para dizer Não tem mais vagas, mas só para aquela cor. Ninguém pode negar que o problema existe. Uma pesquisa de O Jornal do Brasil de 31 de agosto de 1970, apresentou a pergunta: O Senhor acha que existe ou não discriminação ou preconceito racial no Brasil? A resposta foi: 63% existe, 29% não, 8% não sabem ou não respondem. Evidentemente o nosso racismo é um produto tipicamente nacional, só pensar nos termos que representam outras tantas formas de mistura: mulato, crioulo, mestiço, moreno, cafuzo, mameluco, zambo, curiboca, cabra, caboré, caboclo... Falando em racismo, todavia, o objeto direto é sempre o preto. Mas também nesse ponto o espírito brasileiro, como em todas as coisas, graças à sua inesgotável elasticidade mental, dá um jeito para minimizar as consequências. "No Brasil há preconceito racial habilmente disfarçado: existem mil formas sub-reptícias de discriminação. Quanto mais sutis, tanto mais difíceis de extirpar. A cordialidade complacente é a suprema fama de humilhação". (Newton Freire-Maia). Palavras certas, a serem enfocadas no contexto local. Como a palavra preto pode ser ofensa mortal e manifestação de carinho, assim o racismo, 101


MARAJÓ - A DITADURA DA ÁGUA digamos melhor, o preconceito racial pode ser deformação mental ou simples forma de gozação. Entre nós é impensável um racismo de origem, isto é, baseado na pesquisa para apurar se nos ancestrais existe um preto legítimo (e quem poderia lançar a primeira pedra?), menos ainda os excessos do racismo Nazista ou marca EUA: a discriminação agressiva e a perseguição por motivos étnicos. O alvo da discriminação atinge de preferência o negro definido puro, ou vulgarmente o negro africano mesmo. Mas aqui também a inflexibilidade teutônica não entra na jogada; será bem possível que um clube feche a porta ao preto enquanto a abre ao craque que na realidade se identificam: uma das tantas formas de malabarismo, ou melhor, do jeitinho para suavizar as situações incómodas. Nas classes pobres, a amizade e a camaradagem ignora - até um certo ponto a diferença da cor: Nas favelas e nos cortiços o liquidificador tritura as raças" (L. O. Lima). "Na classe alta o problema é mais vivo, sem porém, atingir níveis agudos, isto porque os negros têm um nível sócio-econômico tão baixo e se encontram distantes dos setores onde poderiam vir a sofrer as mais sérias manifestações discriminativas. O desnível é tão grande que basta para fazê-los reconhecer o seu lugar, sem que os brancos sejam obrigados a avivar-lhes continuamente a memória, tal como em outros países". (N. Freire Maia). Seja como for, fica claro que alguma coisa não está certa, aqui mais, ali menos; é tarefa de todos dar um jeito, para que os valores sejam colocados no seu lugar: as raças podem ser classificadas em maiores e menores, por tamanho e não por valor. É problema de tempo: no Brasil, poderoso laboratório racial um dia não haverá mais negros, mas também não haverá mais brancos. (N. Freire Maia). Antes que chegue aquele dia, muitas marés têm que se revezar no Marajó, muitas barreiras têm que ser superadas. Que o branco não diga: Preto só presta para samba, bola e namoro. Que o preto não tenha que consolar-se nas ilusões: Antes ser preto que branco. E o mulato que quer ser mais do que branco renuncie a ser 31 de fevereiro. Não vale a pena, somos um pouco diferentes, mas saímos todos das mãos de Deus, manifestando em diversas formas a inesgotável maravilha da criação. Somos irmãos e acabou-se!

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SÃO PEDRO SAFADINHO Aqui está uma página inédita de um evangelho apócrifo desconhecido. O nome poderia ser O evangelho segundo o caboclo. O estilo é tipicamente popular: falta de perspectiva histórica (a espingarda), com frequentes repetições: há até uma interpolação (a pedra onde sentou o leproso: particular avulso que facilmente pertence a outra narração). São Pedro representa a pessoa que não chegou ainda à perfeita conversão, um tipo bem definido, consagrado pela tradição popular. Encontrei outras variantes dessa narração (o frango em lugar do fígado), mas essa pareceme mais interessante, também porque reflete uma certa moral elástica a respeito do direito de propriedade. Vale a pena frisar como os dois pregadores recebem dinheiro: outra faceta da mentalidade popular, que não consegue separar um ato de valor (neste caso, religioso) da recompensa venal. Existe uma certa contestação contra os estipêndios das Missas e dos sacramentos; acho que é uma exigência da camada social mais evoluída, como a estudantil e a urbana. Não é de estranhar, diante do caso do caboclo que manda batizar a criança mais uma vez em outro lugar, porque acha que o primeiro batismo não prestou: o padre não cobrou nada! Este pormenor pode oferecer um ponto de meditação aos agentes da pastoral: não é evidentemente um problema de princípio, mas psicológico, de amadurecimento do receptor. Deixo a palavra ao narrador, Domingos Ramos, o simpático Domingão, "Vou contar-lhe uma história: São Pedro safadinho. Jesus Cristo andava pelo mundo com São Pedro; passava muito tempo viajando. São Pedro, quando saiu de casa, a senhora dele estava grávida. Então, depois de muito tempo de viagem (eles viajando), terminou o rancho que levavam e São Pedro sentiu fome. Nesse momento era cinco da tarde, iam passando por uma fazenda. Pedro disse: – Senhor, eu estou com fome, eu estou sem coragem devido à fome. Vamos parar um momento, vamos deixar anoitecer que quero ir no curral dos animais desta fazenda, para ver se eu roubo uma criação para nós comermos, senão eu não posso mais viajar. Nosso Senhor respondeu-lhe: – Pedro, não é bom a gente roubar. Pedro, você quer roubar? Não faça isso! Ele disse: – Senhor, eu não posso viajar mais, estou com fome! Então o Senhor concordou que Pedro ficasse ali. 104


GIOVANNI GALLO À noite, São Pedro foi ao curral das ovelhas, chegou lá e escolheu um carneiro grande e bonito e o trouxe. – Vamos matar esta ovelha, para nossa comida, para o nosso almoço. Nosso Senhor disse: – Pedro, você trouxe a ovelha, fique com ela aí. Amanhã vamos ouvir o que o dono da ovelha vai dizer. São Pedro, um pouco aborrecido, disse: – Senhor, eu estou com fome agora, ainda esperar até amanhã? Não dá certo! Ele disse: – Tenha calma Pedro, vamos deixar o homem chegar, amanhã ele vai olhar o chiqueiro, conforme o que ele disser, dou ordem para você matar a ovelha. No outro dia, cedo, o dono das ovelhas mandou o garoto olhar; então faltou uma ovelha. Ele chamou muitos nomes, rogou pragas para a pessoa que havia roubado a ovelha. O Senhor disse a Pedro: – Olhe, Pedro você está ouvindo o que o dono das ovelhas está dizendo? Chamando nomes, rogando pragas Solte a ovelha! São Pedro, muito aborrecido, soltou e continuaram a viagem. Pela tarde, encontraram um chiqueiro, em outra fazenda. São Pedro disse: – Não posso mais viajar, estou com fome, não tenho mais coragem. Vamos pernoitar aqui, eu vou roubar qualquer criação dessa fazenda para nós almoçarmos. O Senhor disse: – Pedro, você ouviu o que aconteceu ali atrás, quer continuar ainda fazer o mesmo papel? E Pedro: – Assim não dá certo, não posso mais viajar. À noite Pedro foi lá ao chiqueiro e roubou um bode preto. – Vamos matar o bode! O Senhor disse: – Não , amanhã vamos ver o que o dono do bode diz. No outro dia, o filho do dono foi lá ao chiqueiro e disse: Papai, falta o bode! Papai, falta o bode! O pai disse: – Era o melhor bode que eu tinha, bode de raça, de cor preta, mas quem roubou com certeza o fez porque estava com fome. Mais adiante, Deus me vai dar o poder de ter outro. Deixa roubar! De manhã, então, o Senhor disse: – Agora sim, Pedro, pode matar o bode. São Pedro, tomado pela fome, matou o bode, 105


MARAJÓ - A DITADURA DA ÁGUA fez uma coivara e nesse momento o Senhor saiu e foi ficar debaixo de umas árvores, São Pedro sacou do lado do bode o fígado e lá na coivara o assou e comeu, não oferecendo a Nosso Senhor. Quando a comida estava pronta, Pedro chamou Nosso Senhor: – Vamos almoçar! E o Senhor disse: – Pedro, eu não quero almoçar do bode, só quero o fígado. São Pedro responde a Jesus: – Senhor, que conversa! Já viu bode preto ter fígado? Bode preto não tem fígado! Não tem! – Está certo. Disse Jesus: da comida então, não quero E seguiram a viagem. Quando já estava chegando o dia de eles se afastarem, Nosso Senhor o aconselhou: – Olha, Fedro, nós vamos nos afastar. Nesse mundo há muitas coisas impossíveis, há que ver três vezes para crer, nunca deixes a estrada para o rodeio que não dá certo. E vamos dividir ó dinheiro que nós levamos. Nesse momento, Pedro foi sentar-se numa pedra que tinha ao lado e Nosso Senhor disse: – Pedro, levanta-te de cima desta pedra, que faz doze anos que aí sentou um leproso; além do mais, há cobras nesta pedra. São Pedro ficou lá de lado e Nosso Senhor começou a dividir o dinheiro, fazendo três montes, – São Pedro, aborrecido, dizia: – Mas, Senhor, nós somos só dois, porque você faz três montes de dinheiro? O Senhor quer me enganar?. E Jesus: – Pedro, tenha calma ! E quando terminou de dividir o dinheiro, Nosso Senhor disse: – Pedro, esse aqui é teu, esse é meu, e esse para quem comeu o fígado do bode. São Pedro então disse: Fui eu que comi Nosso Senhor disse: – Mas Pedro, você não disse que bode preto não tem fígado? E Pedro: – Eu disse, Senhor, mas eu estava com fome, comi e não lhe dei. E Jesus disse: – Está bem, agora vá embora. E Pedro levou o dinheiro e Jesus seguiu com o dinheiro dele. São Pedro já ia pensando coisas impossíveis e não se lembrava das coisas que o Senhor lhe tinha dito, não pensar coisas impossíveis e ver três vezes para crer. Pedro pensou o seguinte: Será que a minha mulher ainda me está esperando? Será que não tem outro homem com ela? Mas se eu chegar em casa e encontrar outro homem, eu lhe dou um tiro com esta arma que levo. 106


GIOVANNI GALLO E prosseguiu. No meio do caminho, Pedro, deixando a estrada, foi entrando no rodeio. Antes de chegar ao meio do rodeio, ouviu uma voz, entrou no mato e se escondeu. Eram três cargueiros que vinham e no meio daquelas voltas os ladrões estavam esperando: atiraram no pessoal que vinha de cavalo, mataram e roubaram. Pedro se lembrou o que Jesus havia dito; voltou, encontrou a estrada e prosseguiu. Quando chegou próximo à casa dele, já era noite e de longe avistou uma luz acesa na casa e disse: A minha mulher tem outro homem, porque tem luz acesa em casa e prosseguiu com a maldade de que se fosse outro homem amante da senhora dele, atirava com a arma que levava. Quando chegou lá próximo, se escondeu e viu um homem sentado à mesa, a mulher dele atendendo, servindo comida. Aqui e acolá ela vinha botando a mão no ombro daquele cidadão e o beijava. Pedro apontava com a arma e quando ia apertando no gatilho da arma para o tiro, ele lembrava as palavras que Jesus lhe havia dito. Quando contou três vezes, o rapaz levantou da mesa, fez bem o sinal e tomou a bênção da mãe: "A bênção, minha mãe!" Pedro reconheceu que aquele homem era o filho dele. Chegou a senhora dele, recebeu-o alegremente, apresentou-o ao filho que tinha ficado no ventre dela quando ele saiu de viagem. Aquele rapaz já era um seminarista e veio dar um passeio com a mãe dele, e justamente deu certo com a chegada do pai. E ali se encontraram, foi aquela alegria, aqueles abraços e terminou tudo em risada. Era essa a história que lhes tinha para contar.

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UM PESCADOR QUE PESCAVA NA LAMA

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stou cansado de teoria; sempre livros, gravações, pesquisas, entrevistas. Quero enfrentar outro caminho, quero experimentar direta e pessoalmente tudo o que a minha gente faz. Com Rosildo vou lanternar pássaros. Com quatro especialistas enfrento mondongo, sucuriju, jacaré, bichinhos anônimos, aningais, sede e estrepadas. Vou lancear no lago. A gente cai na água às quatro da madrugada para voltar à tarde. Lucro garantido a bico de pena: dez (10) cruzeiros. Na malhadeira ficaram dez (10) piranhas e quatrocentos e oitenta (480) buracos. Uma experiência dessa, de vez em quando pode ser até uma diversão, um esporte. Agora vou ficar fora de casa uma semana neste fim de safra, para salgar peixe, o tipo de pesca mais ingrato. Vale a pena experimentar. Segunda-feira, madrugada. Perto do trapiche do Sabá, agente embarca sal, rede e todos os outros cacarecos. Depois, o pem-pem-pem de Seu Barão nos leva até a tapagem do Anajás-Mirim. Baldeação da mercadoria para o nosso casco que vinha a reboque. O Ciba já preparou a bóia: peixe assado e água do rio. E a viagem continua. O nosso barquinho avança preguiçosamente; Quinzinho está na vela. Branco governa o remo de faia. Os demais vão a pé. Assim o dia todo. Um pouco mais depressa, um pouco mais devagar, depende do nível da água e da força do vento. Quando precisa, todo mundo entra na água para empurrar, nas passagens mais difíceis a gente puxa na espia. Duas vezes paramos em casa de vaqueiros. Sempre a mesma reação: – É o Padre! Ninguém podia reconhecer esse brancão que vinha puxando o casco. Um cafezinho e manda brasa. O sol vai deitar-se e nós chegamos à Fazenda "Santa Rosa". Armamos a rede no mato. No rio quase não tem água; eu tomo banho simbolicamente, somente para não abdicar dos meus princípios higiênicos. 109


MARAJÓ - A DITADURA DA ÁGUA O feitor me reconheceu de longe e vem até nós para oferecer-me a possibilidade de passar a noite na casa dele. – Pelo amor de Deus, não vou trair os meus colegas! Não consigo pegar no sono, estou todo doído sem saber por que, deve ser aquela famosa espia. Terça-feira. O cozinheiro prepara o chocolate. Dantes o pescador costumava tomar café, mas agora, com esse preço, não dá. O chocolate, neste tipo de vida, é a bebida ideal, até com água suja se apresenta bem; o café não, é uma pena. A gente vai embora; melhor tentar inutilmente sair daquele buraco. O vento parou, a água minguou, estamos encaixados na lama. Sacolejando o casco, atolados até a coxa, puxamos nas espias. Lá no céu passa um jato, com certeza ninguém olha para a gente. Não somos interessantes; a nossa velocidade de marcha não alcança um quilômetro por hora. De vez em quando a minha espia arrebenta, está podre. Estou com Trindade; ele continua puxando e eu atrás, sem apoio, caio espichado na lama. Alegria geral. Não é todo dia que o povo de Deus consegue maltratar um vigário desta forma. Encontramos alguma rês atolada e conseguimos salvá-la. – Uma vez, conta Joaquinzinho, quis salvar uma vaca atolada. Veio o fazendeiro para brigar comigo. Ele dizia que eu estava roubando. Será que eu sou tão besta, que vou roubar um bicho seco? O comentário é unânime: – Fazendeiro não gosta de pescador. É verdade, tem pescador que não presta, mas os dedos da mão não são todos iguais. É a vida: papagaio come milho periquito leva a fama! Fazenda São Luís. Paramos com as baterias completamente descarregadas. Aqui não há nem lama, só ferroada rachada, dura como o concreto. – A gente vai dar uma espiadinha, pra frente, vai ver como está o caminho. Giovanni fica aqui na Fazenda. Quem sabe, vendo o Padre, o pessoal possa nos dar até um copo de leite. Mucura chega com uma lata de água, grossa que nem mingau. Pretende me lavar, para que eu possa deixar uma boa impressão na Fazenda. Temos sorte. Fátima nos prepara um almoço jóia. Luís Octávio nos leva com o trator até a feitoria, em frente à Fazenda Paraíso. Neste momento, até o nome parece uma gozação: uma visão desanimadora, só poeira, só lama. A gente arranja uma bóia, pegando o peixe com a mão, já em agonia. Depois, arma a rede no galho do pau. Trindade e Mucura não trouxeram a rede e dormem dentro do reto; os 110


GIOVANNI GALLO outros ficam olhando as estrelas, esperando o banho de chuva. Nasce o dia, canta o galo, todos de prontidão para começar a guerra. A coragem já pifou. – Como faz a gente sem água? Nem temos casco para lavar o peixe. A gente despesca, depois, todos sentados na lama para retalhar. – Cuidado, a traíra morde! Mariano, meu emérito professor, está dando aula. Pego uma traíra bem devagarinho, atrás das guelras; seguro bem, para evitar brincadeiras, mas a colega dela, que parecia mortinha, dá um pulo e me crava os dentes na unha. Um a zero; o começo não podia ser melhor. O professor não me explicou direito, não me disse que as traíras tem jogo de equipe. E assim, entre peixes retalhados e mordidas sortidas, o trabalho vai para frente um par de horas. Não estou acostumado a ficar sentado no chão; a costa dói, parece arrebentar. Aproveito uma chance para trocar de especialização. Trindade fez um buraco na beira do rio para juntar a água e assim lavar o peixe. Apoio-me na orla do buraco, na lama macia. Depois acho melhor sentar-me no fundo, com a água até o pescoço. Pareço estar numa poltrona estofada. Gargalhadas. Levamos o peixe para a feitoria, para salgar. Comentário de Mariano: – Nunca vi na minha vida uma salga tão imunda! Na janta o cardápio de sempre: peixe e água de rio. Cai a cortina, acaba o primeiro dia de salga, Treze horas de serviço: – oh vida boa do pescador! Antes de deitar lavo a cara, com a mesma água suja que a gente bebe. Quero fazer uma experiência: vou lavar uma camisa atolada. As previsões darão certo; secando a camisa fica engomada, dura como uma tábua. Do branco mais branco, nem se fala. Quinzinho e Mucura vão lanternar. Acompanho-os mas desisto logo; não enxergo nada de nada e eles vão correndo que nem ratos. Os caçadores chegam com três aves, um taquiri, um jaburu e não sei mais o quê. Mariano berra: – Não usem a água, senão amanhã como a gente faz? Compromisso histórico: meio jaburu na brasa e meio na panela (uma lata das de tinta, de um galão). Merendinha fora de série. Com o passarinho até a água perdeu aquele gosto de lama. Segundo dia e os outros dias, todos iguais. É uma estória monótona, chata, feita de lama, água suja e salobra, de sede e quentura de dia, de frio e de pragas à noite. O que nunca falta é a alegria. Trindade preparou a goga (um frito de ovas e fígado de peixe). Não deu conta do recado, queimou tudo e ninguém quer comer. Na manhã seguinte ficamos sem água e todo mundo 111


MARAJÓ - A DITADURA DA ÁGUA acha a goga uma jóia. O chocolate, desde agora em diante sempre terá aquele gostinho de goga: culpada é a única panela, marca Ypiranga. Uma vez, voltando à feitoria fora de horário, encontro Mucura que está roubando farinha para fazer um chibe. – Sabe? me explica, todo mundo faz assim. Você quer? E assim me tapa a boca. Só agora posso revelar o segredo. Um grito selvagem ressoa de improviso. É o Branco que mexendo no saquinho de Mariano encontrou um bombom. Prevalece a lei do mato: seis partes iguais, até eu, que não gosto de bombom, acho a minha parte formidável. A noite, com o corpo todo tuíra, com a pele que arde, contemplamos as estrelas. Trindade faz a sua profissão de fé, em voz alta para que chegue até lá, nas fazendas. – Nós não somos ladrões, não. Conosco temos até um vigário! – Giovanni, conta uma estória, lá do mundo afora. Não engana a gente: será mesmo verdade que o homem chegou na lua?.. Fica sem resposta a palavra de Quinzinho: Chegou um navio cheio de... Sábado. Trindade fica na feitoria. Nós voltamos a Jenipapo. Eu para ser vigário, os demais para fazer algum recado, depois voltarão. Branco que se estrepou num pé e eu, vamos montados; quatro horas e meia de passeio. Acho que a sela é um bocado dura. Ficando sempre sentado na lama, fiquei um pouco viciado.

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É VERDADE QUE BOTO VIRA GENTE?

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m nosso Museu temos um boto, quer dizer um golfinho. Visto de longe, é até bonito: parece um foguete, um submarino do futuro, uma obra prima da dinâmica aplicada. Sem dúvida não é nossa peça melhor: chegou já esfolado, sem crânio, o queixo quebrado, a boca rasgada. Evidentemente o pescador quis aproveitar os olhos e outros acessórios para fazer mocó, quem sabe para onde foi o fígado, veneno misterioso que nem urubu come. Mas era o jeito aceitá-lo. Fazia tempo que eu andava atrás dele. O boto não podia faltar no Museu. É um típico representante daquele mundo misterioso que está desaparecendo. De fato é uma atração. Posso dizer que o pessoal daqui, uns noventa por cento, até mais, nunca o tinha visto de perto: só o lombo, quando bóia no rio. Alguma pergunta discreta: – É macho? Cadê o olho? Tão pequenininho? (e pensam: tão poderoso!) Tem mesmo o buraco na cabeça? O boto é chamado também cabeça-furada, mas ele não gosta. – Eu estava pescando pongó (traíra) perto do barranco, na boca do lago. Estava gestante e, sabe, ele não gosta de mulher barriguda. Ele vinha tão perto de mim, boiava, pulava. Eu dizia para ele: Vai embora, cabeça-furada, para chateá-lo. O remédio certo para afastá-lo é jogar um pouco de farinha: ele tem medo, de entrar no buraco da cabeça... O povo é um pouco ciumento das suas tradições, das suas crenças, não se desabafa fácil, porém eu reparei que, diante da pergunta, É verdade que o boto vira gente, a resposta é pronta, redonda, quase um desafio à minha ignorância desconfiada. Luis da Câmara Cascudo, com a sua reconhecida competência, nos afirma que a lenda do boto que vira gente não é de origem ameríndia, é um fato completamente desconhecido na literatura colonial: As lendas e proezas que lhe são atestadas seriam de origem branca e mestiça, com projeção nas malocas indígenas ribeirinhas e não nascidas destas. Dá até para encontrar uma confirmação nos contos tradicionais: além de sempre ficar com o chapéu (para esconder o buraco da cabeça), o boto quando vira gente é sempre um rapaz bonito, branco. 115


MARAJÓ - A DITADURA DA ÁGUA Consegui recolher uns contos que relato, na característica dela, linguagem popular de Vangica e Benvindo. Umas vezes é só a presença do boto saliente, atrevido, que deixa o povo meio assustado. "Um dia que viemos de Belém e saltamos na Copa, que era aí na boca do rio, não sei se ainda existe. Então veio conosco uma senhora que teve nené e ficamos naquela casa, até passar outro barco, para a gente apanhar. O marido da senhora passou a noite inteirinha abrindo a porta e correndo atrás dos botos que vinham em cardumes acima da ponte, batiam na porta, davam rabanadas, pulavam, assobiavam e faziam uma gatimonha levada da breca. Quando ele abria a porta e corria atrás deles, se jogavam todos na água. Quando o homem chegava lá em casa, eles subiam de novo. Neste caso, só encontramos um cetáceo brincalhão. O relacionamento boto-mulher está subtendido, porém sem exagero. Neste outro conto porém já encontramos uma alusão velada sobre o falado Don Juan fluvial, namorador secreto das cunhantãs. – O Senhor conhece aquele senhor que chamam de Otávio? Ele morava aqui, pela banda da boca do rio. Então quando era boca da noite, chegava lá um rapaz bem vestido e queria namorar com uma moça de lá. Um dia, não sei como foi, desconfiaram que não era gente assim natural mesmo e se puseram lá espiar ele. Correram atrás. Ele correu à beira e pulou n'água e dentro de poucos minutos começou a boiar o boto e dizem que o rapaz era mesmo o boto que queria namorar a moça. Aqui a tradição já está inteirinha. – Esse fato foi realizado na Ilha Caviana, no rio Mungubã. Lá residia um senhor que tinha três ou quatro filhas. Uma chamava-se Ambrósia: era uma rapariga saudável, alegre mesmo. De um certo tempo começou a aparecer assim triste e quase não aparecia às pessoas que iam à casa onde ela morava, e o pessoal começou a dizer que estava namorando com o boto. Nós morávamos abaixo da casa do pai dessa mulher. Ela começou a se transformar, ficando pálida mesmo, com o rosto meio inchado, uma coisa assim. Notei que todas as tardes passava um boto no rio, em frente a nossa casa, e muitas vezes à maré estava seca, muito baixa de vazante e ele passava para cima, o que o boto nunca faz. Então era de desconfiar de alguma coisa com o referido boto. Contavam que de noite havia muito barulho de botos que pulavam na água. Eu nunca vi, mas posso afirmar que ele passava todas as tardes, da casa para cima, e quando era de manhã cedo ele passava no rumo da foz do rio. Um dia eu estava limpando a espingarda no parapeito da casa; era uma manhã. Ele passou e eu meti uma bala na espingarda e corri, beirando o rio, e fui esperá-lo mais em baixo; na ocasião em que ele boiou eu dei um tiro e tive a felicidade de acertá-lo. Saiu pulando, pondo muito sangue, 116


GIOVANNI GALLO morreu na praia. E desde aquele dia o boto nunca mais passou, nem de manhã nem à tarde, e todos notaram que a mulher ia se endireitando, mudando de cor, botando aquela cor rosada que ela tinha. Não posso afirmar que de fato era o boto que namorava com ela ou não, eu matei o boto e ele de fato nunca mais passou. Mas a moca disse um dia que chegava no quarto dela um homem e que ela ficava numa certa forma que não podia repelir e ele passava a noite com ela. Quando era dia, ele desaparecia e ela não sabia qual era o rumo que ele levava." Se alguém duvidar, aqui, além do depoimento da interessada temos uma outra prova cabal! "Havia um seringueiro que cortava seringa nas Ilhas; a casa dele ficava perto de um igarapé que secava na vazante. Acima daquele lugar onde passava o igarapé, morava uma mulher um pouco idosa. Há muitos anos ela morava sozinha. Um dia, o seringueiro passou quando a maré estava seca, olhou para o igarapé e viu um peixe, que vinha descendo na vazante, ele conheceu que era um boto. Desceu com o machadinho que ele utilizava para cortar seringueira, matou o boto e aí, com o intuito à banha, partiu a barriga do mesmo. Qual não foi o assombro do seringueiro: saiu de dentro do boto, das tripas dele, mingau de jerimum. Ele viu bem que era mingau de jerimum. Ele foi à mulher que ficava sozinha e contou o fato. Ela disse: – De vez em quando aparece aqui um homem, eu até já me acostumei com ele, mas cedinho ele desaparece. À noitinha ele torna a aparecer. Então esta noite eu não tinha o quer dar a ele, fiz um mingau de jerimum e dei. Ele tomou". Então ficou a crença de que era o boto que se transformava em homem; tomou o mingau, o seringueiro o matou e ele estava com a barriga cheia de mingau. Aqui temos mais uma testemunha, talvez dá para encontrá-la, se alguém ainda quiser. "Eu conheci uma senhora, era muito amiga minha, minha parenta mesmo. Um dia a enxergamos vindo pelo meio do campo, pelo serrado; o inverno era grande. Fomos direto à casa e ela contou o que se passava com ela. Há mais de um mês, ela começou a sentir-se mal. Quando o marido não estava em casa, aparecia um rapaz muito bacana, todo de branco, se aproximava dela e ela não podia fazer coisa nenhuma, ficava toda amortecida e tinha que recebê-lo de qualquer maneira. Quando era pela banda da madrugada, ele desaparecia. Ela começou se sentindo mal, ficava pálida, sem mais vontade de comer, sem mais vontade para nada. Então se queixou ao marido o que tinha acontecido com ela. Quando ele ficava em casa, nunca o rapaz aparecia. Um dia, ela cismou que fosse boto e então, tinha que se mudar do lugar em que morava. Vieram pelo meio do campo, longe do igarapé, do rio, muito longe ainda da nossa casa, pelo campo mesmo. 117


MARAJÓ - A DITADURA DA ÁGUA No segundo dia, encontraram um boto que ia subindo pelo igarapé, em seco, onde havia uma passagem que era seca e ele não conseguia mais. Um vaqueiro viu aquele bicho enorme, era o boto e o matou. De fato, era macho e cismou que o boto perseguia a mulher e fosse atrás dela. E a mulher começou a melhorar, voltou para o lugar ficou boa e ainda é viva até hoje". Também esta crença do boto já está enfraquecendo. São as lembranças e as heranças do passado, que podem aguentar mais uma geração no máximo. Já dá para encontrar os sintomas dessa nova mentalidade. Nas ilhas, a gente faz tapagem de redes nos igarapés; tapa-se para apanhar o peixe. Quando dá certo o boto cair na rede, na tapagem, se não houver uma pessoa que venha e o espante e ele venha com força e meta a cabeça na rede e vare, ele amanhece dentro da tapagem, escolhe um lugarzinho mais fundo e ali fica. Se ele vira gente e entra nas casas para namorar as moça por que não sobe para rodear e descer mais adiante? Acho supérfluo e inoportuno até tentar uma análise crítica desses depoimentos. É evidente demais um certo padrão literário, no qual se encaixam todos os contos. Sobressaem sempre os mesmos elementos: moça sozinha com um certo interesse para ocultar o responsável por uma gravidez inesperada, ou somente o desejo de se afirmar apesar da idade, não mais muito nova; rapaz bonito, branco, bom dançador e bebedor; aquela força misteriosa e hipnotizante que depois do encontro deixa a protagonista mofina, mofina. Acrescente-se ainda um pingo de auto sugestão num ambiente primitivo e nascem maravilhas: só conferir com a crença amazônica (desconhecida na nossa área) do poder encantador do acauã. É sempre o mesmo mingau, na tradição oral como nas páginas das antologias folclóricas. Uma tradição popular, porém, para grelar, precisa de alguma justificativa, de algum fato objetivo que depois, distorcido e alterado pela ingenuidade, atinge proporções mais amplas. Osvaldo Orico, no "Vocabulário das Crendices Amazônicas" aceita a "explicação lógica fornecida por Nunes Pereira, grande conhecedor das coisas amazônicas, sobre a fama que rodeia as aventuras do boto". O conhecido mamífero notabiliza-se, em verdade, pelas suas esquisitas manifestações quando sente o odor de femina. Sentindo o cheiro do corpo feminino, logo se aproxima. E fica excitado, se descobre o fluxo menstrual. Conta-se, no interior, que quando as cunhãs se arriscam a viajar incomodadas, o boto logo descobre o rastro, e agitado, chega e vira as canoas. E isso parece ser mesmo verdade. Por outra parte, para constatar um fenômeno análogo é suficiente analisar com espírito crítico o comportamento de Chico, o salientíssimo macaco-prego. 118


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GLÓRIA A DEUS NAS ALTURAS E ÁGUA ENCANADA AO POVO DE JENIPAPO Caro menino Jesus: Quando eu era criança, costumava mandar-lhe uma carta no Natal. Uma carta bastante interesseira, porque, como você sabe, toda criança espera de você, nesta circunstância, um brinquedo, que lhe alegre a vida. Enquanto estava chupando a caneta, à procura de uma escolha que não atrapalhasse o seu orçamento e cumprisse os meus desejos, chegava fatalmente minha mãe e, com jeito, mas com aquela firmeza que os pais usavam àquela época, me aconselhava a pedir um par de sapatos: sapatinhos lindos, de verniz, como os chamavam, bem forradinhos, bla. bla, bla. Eu teria gostado de alguma outra coisinha, sei lá, um par de patins de rodas, um meccano, isto é aquela caixinha misteriosa, cheia de negocinhos esburacados e rolos de porcas, parafusos e molas, para construir aviões e castelos encantados... mas era o jeito! Os sapatos, porém, não eram nada mal; no inverno o frio mordia os dedos que nem piranhas e eu também não queria passar vergonha voltando ao Grupo, depois das férias, calçando os velhos, todos remendados. Passaram-se muitos anos. Estou ficando velho; o barulho já me incomoda, sinto a chuva, a quentura me pesa demais. De vez em quando, tendo que pular de um barco para outro, reparo que as dobradiças do meu esqueleto já estão com ferrugem. Eu me defendo jogando a culpa no clima tropical, mas com você digo mesmo a verdade, é a velhice que está tomando pé. Mas não me queixo, não. Apesar dos anos, eu me sinto sempre o mesmo; você pode encontrar a mesma alma de criança, debaixo dessa camada de banha, que modificou um pouco a minha silhueta. É por isso que me atrevo a mandar-lhe esta carta. Já escrevi à minha mãe, aos irmãos, aos amigos de longe e de perto. Mas você sabe como é, a gente não pode sempre se desabafar. Uma carta demora demais e, chegando ao destinatário, já cheira a mofo e as novidades estão meio rançosas. Além disso, quem é que pode compreender a minha vida daqui, perdido no meio do Marajó? 120


GIOVANNI GALLO Há meses que estava curtindo a ilusão deste Natal. Desculpe, não é que o Natal seja uma decepção, mas eu imaginava um Natal diferente, aqui no Jenipapo, um Natal único na história. Mas não deu certo, alguma coisinha encrencou e vai ficar um Natal como os outros, só com o enfeite da Festa do Glorioso São Pedro, o que não muda muita coisa. Quando chegou o Governador, na abertura da pesca, aproveitei, claro, aquela chance para pedir para nós água e uma estrada. A estrada já sabia que não podia sair logo; negócio complicado aquele e com este verão, misturado com o inverno, nem dava para trazer a piçarra. Mas a água não, eu tinha certeza. Foi o Governador mesmo quem me animou: ele disse que eu o tinha posto em sinuca e você sabe que o Governador, no seu Estado, é um pequeno Pai do Céu. Seja como for, ele atolou, não sei onde, e a água não saiu. Soltei outro foguete, mandando um artigo para o O Liberal. Um artigo bastante salgado, mas com jeito, para não ofender ninguém, só para pedir, porque precisamos mesmo dessa água. Nada feito. Agora estou com receio. Continuar a cantiga no jornal pode até enjoar; que interessa aos outros a história do Jenipapo? É tempo de Natal, a gente gosta de ficar alegre, botar atrás das costas as mágoas, nem quer saber nada duma vila que está sem água. Mas com você posso falar. Já sei que você gosta de que a gente peça ajuda, depois de ter gasto todos os nossos recursos, Não se aborreça, mas eu acho que se esqueceu demais dessa gente. É uma tristeza ver até crianças carregando latas de água na cabeça, todo dia, pisando no juquiri, tropeçando na terruada, no meio de tantos cacos de vidro e latas ferrugentas. E que água, Deus do Céu! A da rampa é mais ou menos, mas se o verão é forte também a rampa do Gama seca e racha que é uma pena. Só para não morrer, a gente tem que buscar a água do rio, grossa, catingosa, um castigo! Um dia, numa casa me ofereceram um copo de água; o calor me derrete que só. Claro que não recusei, até estranhei senão aquele copo de refresco. Engraçado, não era refresco, só água lamacenta. Eu uso sulfato de alumínio e pensava estar fora do perigo, mas nada! Um dia estou com diarreia, outro dia com prisão de ventre. Não sei que remédio tomar, os remédios pelejam entre si; curando uma coisa puxo outra e o negócio nunca acaba. Um médico que passou por aqui, me explicou que o sulfato tira a poluição mas não a contaminação; precisa acrescentar hipoclorito de sódio. Que problema complicado, só para beber um copo de água! Uma coisa é certa; esta água é um perigo. 121


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GIOVANNI GALLO Dê um jeito. Seja legal conosco. Você já sabe. O Governador prometeu, mas, coitado, não pode fazer milagres. O meu Bispo, está chateando todo mundo, faz telefonemas, manda mensagens. É um cara, que quando morde não solta, pior do que jumento. Ele também pifou. Eu, que vou fazer? Sou joão-ninguém, quem me conhece? Só você! Não digo como, você já sabe tudo. Se pudesse dar uma dica, porque não mandar um sonho, melhor, um pesadelo, um susto, aos que estão interessados no negócio, por exemplo, uma cólica não perigosa, para que experimentem, se despertem, façam alguma coisa, mas não papelada, um buraco no chão, finalmente? Na noite de Natal, eu rezarei a Missa no Jenipapo, na Igreja toda renovada, com os abajures feitos de paneiros de farinha, com a Via Sacra enfeitada de caroços de açaí e escamas de pirarucu, semente de pipoca. Durante a palestra, eu farei uma pausa, de propósito e naquele silêncio espero mesmo ouvir o canto dos anjos. Não pretendo o acompanhamento das trombetas, senão há perigo de que todo mundo entre direito no carimbó. O que me interessa é mesmo a letra do canto, tenho certeza de que será Glória a Deus nas alturas e água encanada ao povo de Jenipapo.

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VOCÊ FALA TUPI?

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uando cheguei ao Brasil, estranhei logo a presença de termos que não cheiravam a português. Perguntei em toda parte, com o entusiasmo do novato: – Que quer dizer Marajó, maniçoba, capixaba, maracanã? Onde procurava luz, só encontrei breu. Fui buscar nas livrarias textos de tupi: as balconistas me olharam desconfiadas, como se eu estivesse procurando um panfleto subversivo ou uma revista pornográfica de contrabando. Não esmoreci. Nas estantes mais poeirentas da biblioteca de casa, no mercado do livro de segunda mão, no famoso Sebo, encontrei alguma coisinha; amigos misericordiosos deram um jeito e assim consegui o indispensável para satisfazer minha curiosidade, nas noites solitárias de Jenipapo, quando a praga ataca à vontade e a lama e a água me prendem em casa. Penso que o objeto da minha curiosidade não é tão esquisito, até pode interessar os amigos que gostam do Brasil e do Marajó e procuram descobrir todas as belezas, também as escondidas nas palavras de cada dia. Então vamos pelo caminho mais fácil, beliscando palavras e grupos de palavras, para descascá-las e encontrar nelas o sentido originário tupi. Deixamos para os eruditos as investigações sobre a família tupi-guarani e como esses termos se infiltraram na área aruaque. No papel de amadores curiosos, vamos responder a umas perguntas que estão esperando desde sempre uma resposta. A tarefa não é fácil. Lendo os especialistas como Teodoro Sampaio, Edelweiss, Lemos Barbosa, José Veríssimo, Tastevin, Couto Magalhães, Vasconcelos e Montoya, a gente repara que a etimologia é um quebra-cabeça, ótima oportunidade para pegar frangos monumentais. Eu não pretendo inventar nada; somente vou pôr na mesa o resultado da minha escolha, agradecendo a quem tiver condições de esclarecer-me mais um pouco, Vamos começar com o meu endereço: moro em Jenipapo no Arari, Marajó, Pará. Jenipapo é uma palavra que vale um poema (yandi-ipab); yandi exprime suco, óleo, ipab é contrato de ipapab, fruto das pontas. O sentido é: o fruto das extremidades que dá suco, alusão a que os frutos do jenipapeiro são tantos quantas as extremidades de seus galhos. Arari (arara-y) é o rio das araras, assim como Uruguay (uruá-y) é o rio dos uruás ou caracóis, Paraguai (paragua-y) rio dos papagaios e Piauí (piau-y) rio dos piaus. Que quer dizer Marajó? (mbará-yó) é o tirado do mar e também o tapa mar. Mbará pode 124


GIOVANNI GALLO variar em mará e pará. E assim temos Pará o mar. Batista Caetano vai mais longe e nos diz que pará deriva de y-pá-rá: as águas colhe, o colecionador das águas. Paraná (Paraná) será semelhante ao mar, denominação dada aos grandes rios Paranaíba (paranã-ayba) é a grande caudal impraticável. Pernambuco (paranã-mbuca) o furo da entrada do mar e Maranhão (mbará-nhã) o mar corrente. Outra componente nos nomes geográficos é ita de y-tá, o que é duro, a pedra, que dá origem a Itaparica (ita-parí) a tapagem de pedras, Itapuã (itá-poá) a pedra erguida, Itaqui (itã-ki) a pedra de amolar, Itamaraty (ita-marã-ty) a corrente por entre pedras soltas ou de itá-moroti as pedras alvíssimas, Itapemirim (a lage pequena). Mirim todo mundo conhece, é pequeno (Escoteiros mirins de Tio Patinhas), em oposição a açu, uçu, quaçu (grande), Boiaçu (boy-uçu) a cobra grande. O termo tinga ficou no uso corrente. Conhecemos o jacaré-tinga (y-echá-caré: o que olha de banda) que não é o jacaré pequeno, como o povo diz, mas sim branco; de fato dizemos açaí tinga (a-çaí: a fruta ácida) titinga, o pano branco, uma forma de micose da pele; tabatinga (tauá-tinga), o barro branco. Os nomes de árvores e animais terminam de vez em quando por rana, que significa parecido, falso: moçum (m-cym: o que faz que deslize) e moçurana, a cobra preta parecida ao moçum, jacaré e jacarerana, bata e batatarana, pipuiá (pi-puyá: casca suja) e piquiarana. O café fraco, em lugar de chafé poderia ser chamado caferana! Sem querer, acompanhando o som das palavras afastamo-nos bastante do Marajó. Precisamos voltar. O Marajó é um dédalo de igarapés (igará-apé: caminho da canoa). Canoa é y-g-yara, dona da água, superior à água. Igapó (yg-apó) a água que invade. A Iara é a mãe d'água (y água, ara senhora). A lenda da Iara é bem ligada à do boto, pirayauara (pirá peixe, y água, ara senhor). Outros dizem Pirajaguara, peixe cachorro, o conquistador amoroso que corre atrás das cunhãs amazônicas. Entrando no mundo dos peixes (pirá), encontramos o pirarucu (pirá-rucú) o peixe vermelhaço, piraquara (pirá-puara), o buraco, o ninho do peixe. No Maranhão é conhecida uma árvore, com a cortiça toda esburacada, a quari-quara. O tamuatá (tambá-atá) faz tropel ao andar, de fato anda pelo mato aos estremeções, especialmente o cambéua, chamado também de cabeça chata, tradução literal. Toda a fauna local praticamente tem no seu nome uma característica descrição segundo a mentalidade tupi. Capivara é comedor de capim (capí-uara) e capim é composto caá (mato) e i (fino). 125


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MARAJÓ - A DITADURA DA ÁGUA Cutia, o indivíduo que come em pé (a-cutí), então, cutimboia é a cobra (mboia) que fica em pé, de fato achata a cabeça para dar lambadas. Não vamos esquecer caboclo (caá-boc), tirado do mato. A paca deriva seu nome do verbo pag (despertar, estar vigilante): a aue está sempre atenta. Jabuti (ya-u-tí), o que não bebe; maruim (merú-í), a mosca miúáa, mucuim (mocoó-í), o que rói miudinho; muriçoca (merú-soca), a mosca que dá ferroada. Urubu (Urú-bú) é a galinha preta, anum (a-n-um) o vulto negro e guariba (guar-ayba), o indivíduo feio. O sapo cururu é o roncador, perereca de pereg, saltitar, andar às tontas. Acho que chega. A tentação é grande mas o êxito é pouco: impossível desvendar todos os mistérios dessas palavras. Além disso, estou receoso, tenho impressão de estar passeando sobre a areia gulosa. Os especialistas criticam constantemente as interpretações dos predecessores e, de vez em quando, a gente tem mesmo a impressão de que a margem deixada para a fantasia é bastante abundante. O tupi não é brincadeira de crianças, basta ver o uso dos pronomes (cinco formas. Deus nos acuda!) a linguagem dos homens e das mulheres, a conjugação dos substantivos (isso mesmo), sempre numa atmosfera de inocente poesia: a lua (ia-cy é a mãe da fruta), as estrelas são jacy-tatá, os foguinhos da lua, o ladrão (cunumi-popindã) é o menino de mão anzol, a viúva (cunhã-menê), a mulher do marido morto. Se eu também tenho pegado o meu franguinho, não acertamos a última interpretação, vocês vão desculpando. Pessoalmente, depois desta vivissecção ou autópsia da língua tupi, me consolo lembrando as infinitas discussões na interpretação do nome Iracema: doce como o mel, melíflua? De fato foi comprovado, historicamente, que José de Alencar não recebeu dos índios este nome: simplesmente quis fazer uma brincadeira, anagramando a palavra América! Nem um supercérebro eletrônico pode oferecer maior garantias, quando se trata de traduções ou brincadeiras afins. No dia do teste oficial, engoliu alegremente a fita com a frase fatal: O espírito está pronto, mas a carne é fraca. Foi um piscar de lâmpadas, um borbulho misterioso e abafado, estremeceu tudo, dizem que até saiu fumaça. Só uma fração de segundo, depois cuspiu a resposta que, em bom português, correspondia às palavras o whisky é legal, mas o bife não presta. A tradução será discutível, porém ninguém pode negar a boa vontade do nosso supercérebro.

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EU VOU PRA BANCA

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a hora da Missa, em Santa Cruz, quase sempre há aquele corre-corre de crianças que se empurram: Eu vouprabanca! A banca na linguagem deles é o altar. Ir pra banca quer dizer estar ao lado do padre, ajudando-o. Um segura o cálice, outro derrama o vinho. O Nené me ensinou uma técnica nova: para desenrascar, ele segura a tampa e destorce o litrinho. Quando a turma é grande fica até difícil dar uma tarefa para todos, mas com jeito a gente consegue. Na procissão ofertorial e voltando à sacristia cada um carrega uma coisinha. De vez em quando alguém, que ficou fora dos eleitos, entra na marra, como o Sinei, que dispara do lado da mamãe, passa correndo por baixo do altar sem perigo de esbarrar e vem puxar a batina para me assustar. A velha Susy quando estava com vida, gostava também de participar da missa deitada debaixo do altar. A Susy era a minha gata. Aceitava com uma certa benevolência a presença dos cachorros, na condição de que reconhecessem seu lugar, isto é, que ficassem lá, nos fundos perto da porta. Se por acaso um se atrevia mais um pouco, ela avançava, sem ligar com o tamanho do adversário e o expulsava sem misericórdia. Não gosto de cachorros na Igreja. Na língua italiana há o ditado Fortunado come um cane In chiesa, ele tem sorte que nem cachorro na igreja. Quer dizer não tem nenhuma, porque, por tradição antiga, Padre está com raiva de cachorro na Igreja. Para impedir a invasão deles, fiz as meias portas, que geralmente ficam abertas para meu grande desapontamento. Mas tem cachorro como, o Filé do Evilásio que já costuma pular por cima. Toda esta conversa, que vai solta sobre pormenores banais, não é feita à toa. Ajuda-nos a entrar no mundo religioso popular, outrora furiosamente hostilizado, agora em fase de recuperação. Vamos começar pela terminologia. Os meninos dizem banca: será que eu devo corrigir, forçar a entrada no vocabulário deles da palavra altar? Eu acho que não. Banca para eles é aquele negócio ao redor do qual a gente senta para comer: o altar no sentido legítimo quer dizer a mesa eucarística, a renovação da última ceia. Banca, para eles, é um termo muito mais próprio, mais acessível; altar é uma abstração, um termo importado de outra cultura que não faz parte da bagagem cultural do povo. Passando o tempo, pode-se afinar a terminologia mas não é este o problema mais urgente. Para escolher bata e estola, as crianças costumam entrar diretamente no armário da sacristia: cores sortidas, sem compromisso. Um dia, Gessilene, uma pretinha simpática especializada 131


MARAJÓ - A DITADURA DA ÁGUA em fazer caretas ao vigário, querendo ganhar a concorrência me apresentou a estola dizendo: – Se gosta de mim, tem que pegar esta. Claro que aceitei: não ia magoar uma menina, dizendo que a cor não era própria para a festividade. Também para evitar que ela, inteligente como é, me perguntasse por que a cor roxa não se dá com a reza de Nossa Senhora. Um simbolismo que num determinado contexto tinha um certo valor, em outra cultura fica desvirtuado O preto é a cor do luto, mas os japoneses usam o branco. Os Kamikase, no vôo fatal, estavam fardados de branco, homenagem à sua própria morte. Na idade média, também na Europa, o luto era branco: Shakespeare veste de branco a sua Ofélia. Quem entra numa igreja suíça tem a sensação de entrar num ambiente esterilizado. Silêncio absoluto, ordem perfeita: num tabuleiro, ao lado do altar, já estão marcadas as páginas dos cantos (os emigrados pensavam que fossem os números da loteria), os velhinhos e os surdos têm os bancos reservados com um amplificador auricular. Tudo vai como ... um relógio suíço. As crianças poderiam incomodar, então no salão paroquial está organizado um serviço especial: Escoteiras, Blau-Ring ou organização parecida toma conta delas. Eu me lembro da reação dos meus patrícios enfurecidos, diante do convite de deixar as crianças no depósito. Para eles uma mãe que vai a Missa sem filho é quase um ser aleijado, incompleto. Evidentemente, eles contemplavam a realidade de outro ângulo. Não digo que a posição do italiano seja melhor, nem o contrário. Simplesmente é diferente, porque os dois encaram a realidade de forma diferente, porque eles mesmos são diferentes. Não se pode pretender que o comportamento na igreja seja o mesmo em toda parte. Você já entrou em casa de amigos na hora da novela? Por acaso eles desligaram a TV? Deus me livre! Todo mundo ficou olhando para lá, é só na hora daquele comercial enjoado, mil vezes repetido, que dão atenção à visita. E se uma criança entra na sala batendo numa lata, ensaiando o próximo desfile, ninguém dirá que vá bagunçar um pouco mais para lá. Nas Europas as reações seriam diferentes. Mas aqui estamos no Brasil, seja na hora da novela como na hora da missa. Expulso com pouco êxito os cachorros da igreja, mas acho que seria normal deixá-los à vontade. Eles fazem parte da sociedade local: na hora das refeições, das compras, do enterro, do aniversário, eles estão junto com o dono. O cachorro de Tia Mara nunca se conformou de ficar fora da porta. Ainda me aborreço quando alguém não quer entrar na igreja e fica lá fora, entulhando a entrada. Mas eu estou errado, porque, depois de tantos anos, devia compreender que não existe uma única forma de participação. Numa festa dançante, com entrada franca, muitos não entram, ficam espiando entre as juntas das tábuas. Poderiam entrar, não custa nada, são 132


GIOVANNI GALLO convidados, têm lugar: eles preferem aquela forma meio misteriosa, que talvez tenha um sabor especial. Aconteceu uns anos atrás no Maranhão. Cansado de ver crianças entrando e saindo da Missa, dei uma ordem draconiana: – Quem vai vai, quem fica fica e aguenta até o fim! – Em nome do Pai... concentrado na reza não deixo de ver um molecote que, disfarçadamente procura escapulir. Um olhar feroz acompanhado por um berro horrível e ele não tem outra escolha senão ficar. E o negócio piorou, O coitado estava com problemas internos e faltou pouco que o povo de Deus não morresse asfixiado. Tivemos que suspender a celebração, lavar o chão. O mais envergonhado fui eu. E não só naquele momento. Agora ainda mais, porque refletindo e comparando me dou conta de que entrar e sair pode ser também uma forma de participação. Nas intermináveis celebrações do Rito Bizantino-Eslavo o povo vai e não vai, entra e sai como bem quer e ninguém estranha. E o rito prossegue entre defumações e outras cerimônias agradáveis. Lembro-me da Festa da Preobrajenie, a Transfiguração. O Diácono, depois de ter defumado a assembleia, oferece um chazinho que ele tomou primeiro, botando de molho na taça com suprema dignidade um bigode enorme; depois vem o pão bento. Entretanto o povo toma chá, come o pão, entra e sai, canta e conversa. Se para eles dá certo, por que não para a gente, aqui no Brasil? Pelo amor de Deus, não vamos forçar a natureza criando um tipo estandardizado. Uma procissão na Suíça é também uma obra de precisão. Falo da Suíça que não é minha terra, mas lá passei oito anos, fazendo um aprendizado interessante para a minha atual experiência marajoara: conferindo os extremos, é mais fácil perceber a natureza da realidade. Pois bem, lá na Suíça a procissão é na base do cronômetro: até o sacristão vai com o WaikTalk, o transmissor portátil. Todos na fila, de cara fechada, respondendo à reza, acompanhando o canto ensaiado, levantando o pé, todos sincronizados. A nossa procissão é outra coisa, pode-se compreender analisando até o desfile do dia 7. Há dignidade, sim, porém alegre e descontraída, com o jeito tipicamente local... A procissão não é do padre, é do povo: é tradição antiga, a história da religiosidade popular é bem explícita neste ponto. E para o povo, participar da procissão, não é só ficar na fila. Pode apreciar do jirau de casa, ou da varanda. A devoção à santa não se manifesta só rezando o terço e cantando salmos, mas também soltando foguetes, comprando fitas, passando uma água na frente da casa para matar a poeira, fazendo uma limpeza da fachada. 133


MARAJÓ - A DITADURA DA ÁGUA A procissão anda meio torta, não tem simetria, as crianças correm atrás de rabo de foguete. Será que é mau isso? Em todas as partes do mundo, os padres no passado fizeram questão de impor o que eles tinham aprendido na sua terra. Também na África quiseram alinhar os indígenas para a procissão, mas eles naquela fila não podiam pensar em Deus, só tinham lembranças feias e tristes. Acostumados a andar soltos na savana, no próprio arquivo racial, não encontravam nada de parecido à procissão a não ser a marcha dos escravos em direção ao mercado: para eles devoção sincera seria pular como o javali e a gazeia. Acostumei o povo a conversar à vontade, antes da Missa: eu também vou naquela. A igreja é nossa, é a nossa casa. Não é melhor assim que acostumar o povo a falar baixinho, com a boca torta, escondendo o beiço atrás do catecismo? Fiz observações interessantes participando da Ladainha antiga e do trabalho do pajé. Aí também o povo fala alto e alegre até a hora H, que, na Ladainha é o Deus in adiutorium meum intende, e na pajelança, quando fecham as portas... Ninguém solicita ninguém: a passagem entre os dois momentos é automática e chocante. A gente sente que o comportamento é espontâneo. Durante a ladainha ninguém fica distraído: é uma devoção que transpira e se manifesta nos rostos contritos e concentrados. Tenho a impressão de que neste momento o povo se identifica com alguma coisa congenial: a nossa liturgia fica uma coisa postiça. Falo de nossa Liturgia enquanto o povo do interior, até uma geração atrás, só encontrava o padre no dia da desobriga, na Festa do Padroeiro, quando ele chegava contratado pela Diretoria, junto com jazz e o coral. A Missa tomava o lugar da Ladainha ou simplesmente arranjava uma decente convivência. Os padres, respondendo a uma íntima necessidade (europeia) de dar espontaneidade e simplicidade ao culto, tiraram todos os enfeites do altar e do celebrante. E o povo juntou tudo e o colocou nos ombros do pajé, do babalaô, do amo do Boi-Bumbá. Todas essas reflexões me deixam bastante questionado. Na procura ansiosa de compreender melhor, eu deixo prá lá o altar e, junto com as crianças, vou pra banca.

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NASCEU EMPELICADO

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ncontrei pela primeira vez esta expressão no Vocabulário de Crendices, de Osvaldo Orico: As crianças que ao nascerem surgem com a placenta, são fadadas a grandes coisas. Conseguem facilmente tudo o que desejam. Esta crendice está generalizada em todo o Brasil. E daí adveio até uma expressão típica: nascer empelicado. Para mim era mais do que uma informação, era uma pista. Se, este fato dá origem a uma crendice no Brasil, pode ser uma herança europeia ou ameríndia ou mais verossivelmente um broto espontâneo do espírito humano: o nascimento é mesmo a experiência mais universal. O mais interessante foi descobrir o sentido autêntico de uma expressão que conhecia desde criança. Na língua italiana, o homem que nasceu com a camisa é o homem que tem sorte. O ditado foi monopolizado por uma grande firma que o transformou em cavalo de batalha num famoso comercial da TV: Você nasceu com a camisa! Nasci com a camisa de Popelin Capri! Eu sempre pensei que nascer com a camisa indicasse nascer já com a roupa no corpo, de certa forma, privilegiado. Não é bem assim. A frase originária é Nato con la camicia delia Madonna, Nasceu com a camisa de Nossa Senhora, com a placenta! Nalguma parte da Sardenha, a placenta dita orba deu origem ao termo orboso, afortunado. Em outra região da Itália, no Véneto, a Camiseta, bem seca, guardada num saquinho era colocada no pescoço da criança como um amuleto. Na Alemanha, a placenta neste caso, era chamada Glückshaube, gorro da felicidade. O caminho está aberto: em todas as direções, nos quatro pontos cardeais, a placenta aparece como uma mina inesgotável para tirar proveito em toda necessidade. Na Roma antiga as parteiras vendiam-na aos causídicos que a consideravam poderoso talismã, favorável à eloquência. Na Espanha o pessoal tomava todo cuidado para evitar que algum animal (porco, cachorro) a comesse, para que a criança não herdasse as más qualidades do mesmo. No Marajó é usada também outra variante, um pouco menos poética, nasceu ensacado ou insacado. O presságio de sorte, porém tem, às vezes, uma certa conotação de esquisitice: quem nasce ensacado é aquele que nunca conclui as coisas, sempre as deixa pela metade, seja viagem, serviço. Mas tem sorte: sempre encontra uma saída. O nosso caboclo descobriu também outros sinais de felicidade no corpo do recém-nascido, como uma marca roxa, um sinal branco debaixo das unhas, uma rebolada de cabelos brancos ou um misterioso sinal no peito, quase um peitinho perto do outro. Acontece porém que, umas vezes, a placenta não sai: então é um caso sério. Os nossos antigos, que não tinham nem avião, nem fonia, procuravam um quebra-galho. 137


MARAJÓ - A DITADURA DA ÁGUA Uma receita que encontrei era de mandar a mãe soprar num litro até a placenta sair. Encontrando resistência a parturiente fazia a mesma física, porém sentada num urinol. Nos casos extremos os santos ajudavam. Em problemas de partos os especialistas são muitos: N.S. do Bom Parto, N.S. das Dores, N.S. do Desterro, N.S. do Monte Serrat, São Bartolomeu, São Jorge, São Raimundo Nonato. Em problema de placenta, mais indicada é Santa Margarida: aconselha-se colocar a criança em cima da barriga da mãe, que diz: Minha Santa Margarida não estou prenha nem parida tira esta carne podre da minha barriga (três vezes) Se a placenta é objeto de interesse, não pode deixar de sê-lo também o umbigo. O folclore do ciclo do homem em toda parte do mundo presta muita atenção para destruí-lo (jogando-o no fundo do mar para que a criança seja salva das desgraças) ou o conserva com todo carinho como talismã ou puçanga. Na Toscana as mães guardavam um pedacinho debaixo do fogão para que a criança crescesse obediente; na Alemanha o coitado tinha que comê-lo disfarçado numa omeleta. Na Rússia Oriental o carregava no pescoço como um brevê, para ter mais proveito na escola. No meu Marajó, por enquanto, só encontrei uma certa preocupação, digamos estética, para o umbigo grande, o umbigo pulado: o proprietário chama-se de umbigudo. Daí uma vasta escolha de remédios para eliminá-lo. Há remédio químico: coloca-se no umbigo da criança a casca ralada de taperebazinho, mais um pedaço de esteira de piri queimada e bem moída. Tem remédio simpático: a mãe tem que pegar uma pimenta de cheiro com o cabo. Torce-a três vezes no umbigo para pendurá-lo depois em cima do fogão. Assim como a pimenta vai secando, assim o umbigo vai desaparecendo até ficar fundo. Outra receita: tirar a medida do umbigo com cipó tirado do chapéu, em forma de anel. Colocá-lo na casa do cupim do mato, bem dobrado e amarrado com linha. Outra medida, colocar no braço da criança. A mágica oferece seus recursos: passa-se três milhos no umbigo. Mais garantido ainda este sistema: roda-se o dedo mínimo no umbigo da criança, às 6 horas da tarde e mostra-se para o sol, dizendo: – Leva, ó sol, este umbigo grande! Nessa altura reparo que a história do empelicado me levou adiante demais, esquecendo outros elementos interessantíssimos, relativos ao nascimento. A pesquisa do folclore, já se sabe, é como um labirinto encantado: a gente avança e, em cada esquina, encontra um horizonte novo, novos atalhos misteriosos, convidativas clareiras no meio do mato fechado. Precisa se controlar, para não dispersar o interesse. Está descontado: cada passo vai ser uma nova revelação, sem nunca esgotar o assunto. É normal que durante a gravidez se manifeste uma certa curiosidade para o sexo do nascituro. O método pode ser baseado na observação fisiológica da gestante, apesar de que possa levar a conclusões contrárias nas diferentes regiões, como às vezes acontece nas crenças populares. Mãe gorda, ou barriga grande: é mulher 138


GIOVANNI GALLO Barriga normal, mulher abatida: é homem Barriga redonda: mulher Barriga comprida: é homem. O comportamento da gestante pode ser indicativo. Gestante senta cruzando os braços, é homem. Se arrear, é mulher. Se sentada fica de perna aberta, é mulher; se fechar, é homem. Também um encontro ocasional pode nos iluminar. Se menino gosta duma gestante nascerá mulher; se ele está com raiva, será homem. Se chegar um homem quando a mãe está fazendo a primeira camisinha, será mulher se chegar mulher, será homem. As previsões podem ser baseadas em conceitos mágicos, por analogia. A influência europeia é evidentíssima, o ambiente oferece oportunidade de escolha dos elementos utilizados. Pega-se o coração de qualquer ave, parte-se a ponta do tamanho de meia polegada e põe-se para cozinhar: se depois de cozido ficar aberto é mulher, se fechar é homem. Põe-se o bofe do peixe no fogo: se estourar é homem, se engelhar é mulher. Engraçado é o sistema da põe-a-mesa ou louva Deus (Mántides Religiosa). Pega-se uma põe-a-mesa com o dedo indicador e polegar na costa dela e vira-se de barriga para cima. Cospe-se na cara dela e pergunta o que é o filho de Fulana. Se a bichinha abre o braço é homem, se fecha é mulher. Durante a gravidez a mulher passa por um período bastante delicado marcado por uma evidente bivalência; ela é portadora de poderes especiais e ao mesmo tempo está sujeita à influência das forças sobrenaturais e maléficas. Esta atitude universal, na região amazônica, reveste um matiz novo em relação aos bichos. O boto está com raiva de mulher gestante, pula para alagar o casco. – Eu, para me defender, jogava farinha, gritando "Vai embora, cabeça furada! ele tá com medo que um bago entre no buraco da cabeça". A mulher gestante atrai onça. – Às vezes o caçador está esperando a onça na embiara dela: ela é astuciosa e não vem. Leva-se então uma mulher gestante e a manda passar três vezes em cima da embiara. O cuidado deve ser máximo, porque a onça chega na hora e se dirige à gestante. As coisas que a gestante não pode fazer quase não se contam, para não prejudicar o feto, a si mesma ou os outros. Não pode visitar pessoa mordida de cobra ou ferruada de arraia: dói demais, pode até matar. Se pega ou simplesmente passa em cima dos apetrechos de pesca, o dono fica panemoso. Só tomando banho de sorte para pescador... Não pode sentar no pilão, parar ou sentar à porta: criança custa a nascer. Não voltar do meio do caminho: criança pode morrer na barriga. Não deixar panela secar no fogo: a placenta seca. Não passar por cima da corda: criança nasce com a volta do umbigo no pescoço. Não comer língua de 139


MARAJÓ - A DITADURA DA ÁGUA porco e cabeça de jacaré (criança nasce com língua pegada, muda) nem cabeça de muçuã (fica chorão), não matar cobra (criança nasce toda mole), não se aproximar dum macaco (menino nasce mexilhão, com jeito de macaco). Não pode olhar para eclipse de lua: a criança nasce com eclipse no rosto, quer dizer uma mancha. Para o parto encontramos uma autêntica enciclopédia: tudo está contemplado, desde o pré-natal até ao remédio para a dor torta. Para a criança não entortar na barriga da mãe, ela quando toma banho enche a boca de água, fica de pé e solta a água certo de comprido na barriga. Existe também a receita para o parto sem dor: tirar o saco onde a mucura tem os filhos, queimar bem, depois socar e coar, misturando com a banha da mesma, friccionando a barriga toda noite no último mês, acrescentando na hora do parto um chá da raiz de chicória. A dor pode ser aliviada com uma fomentação de erva doce misturada com azeite doce e alho. Quando a criança custa a nascer o remédio pode ser uma beberagem (uma xícara de chá bem forte com uma colher de manteiga), às vezes complicadíssima (chá de sene, salva de Marajó, artemija, alfazema, cominho, cordão de São Francisco, marcelão... ou uma fricção com banha de boto, jibóia e mucura, chegando a medidas drásticas como esta: coloca-se a gestante de cabeça para baixo, puxa na perna direita e depois na esquerda, coloca-se novamente na cama, manda respirar bem fundo três vezes, dando em seguida, meio copo de vinho batido com duas gemas de ovo. O efeito do remédio é na hora! Para curar a dor torta, aquela dor que as parturientes sentem assim que o bebé nasce, coloca-se para ferver meio copo de vinho, quatro colheres de mel de abelha, uma mão cheia de sene, uma xícara das de café de losna, uma xícara de tilho, um prego velho, um Anador. Outra fórmula: coloca-se num prato três colheres de manteiga, uma colher de alfazema, uma colher de vinho e uma Cibalena. Batem-se todos esses ingredientes até ficar igual a uma pasta. Coloca-se tudo no algodão e aplica-se em volta da barriga. Como sempre, aumentando as complicações, aumentam os ingredientes. O efeito psicológico é provocado por uma progressiva escalação. Toma-se uma purga com estas misturas: 3 colheres de mamona, 3 pingos de raluar, 3 pingos de óleo elétrico, uma colher de maçã de gado queimado, chifre de veado galheiro, um pedaço de pinto de jacaré-açu queimado, 3 pingos de banha de jacaré -açu, uma gema de ovo, uma colher de copaíba. Bate-se tudo e toma-se só de uma vez, em jejum. Colocar na cabeça água ardente alemã. Resguardo: 3 dias. Coletar estes dados não foi moleza. O povo tem muita fé, sempre está pronto para alegar provas, porém fica desconfiado. Não entende por que estou interessado, até pensa que eu queira achar graça das crenças deles. Ao mesmo tempo a fé está já meio abalada pelos comerciais do Rádio: daqui a tentação de contaminar o antigo com o novo. O resultado, em geral, é decepcionante. Esta apresentação para mim representa só o primeiro passo da pesquisa, a fim de chegar a descobrir os valores terapêuticos (psicológicos ou não) que estão disfarçados na exuberante farmacopeia caipira. 140


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NO GALHO DO PAU

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safra do Anajás Grande, até para a maioria dos moradores de Jenipapom não passa de uma palavra nebulosa e cheia de mistério. O que se sabe é que umas turmas de pescadores, no começo do verão, vão se arrumando, enquanto as tecedeiras de redes procuram acabar as encomendas à luz da lamparina. Quando as redes estão de molho na tinta de muruci, é sinal de que chegou a hora H. Uns estafetas se empurram até lá, além da fronteira da vida de todos os dias, e voltam para informar o patrão do nível da água. Um belo dia, a turma se movimenta e vai-se embora. Voltará depois de um mês, alegre decepcionada, depende. Sempre tinha ouvido falar do Anajás Grande, assim como do Cururu. Mocõoes, Jurupucu, desta safra diferente, limitando-me a fazer umas perguntas, procurando captar todas as vozes que podiam atentar-me. Compreendi que, ficando longe, jamais conseguiria uma ideia objetiva da realidade. Quis ver de perto, sentir na minha carne esta experiência que todo ano fica marcada pela frustração, pela incerteza. Sei que nem todo pescador é flor que se cheire, porém, nem todo soldado ou fazendeiro merece ser carregado no andor, com fitas e e velas. Sei também que os rios são de todos os brasileiros e expulsar o e pescador é ato de pura violência. Uma salga de oito dias já foi uma experiência chocante para mim, um mês passado à beira do rio, vai deixar um sinal para sempre. E assim, nesses dois últimos anos, arranjei um patrão Xandico, o grande; arrumei um para fazer o meu congá, tirei da gaveta o prato de esmalte com a colher marcada, uma roupinha, um mosquiteiro, a faca bem amolada e… larguei a paróquia. Aqui sem querer, já boiou a primeira dificuldade. Sei que mais de uma pessoa, de todos os níveis, olha desconfiada esta minha aventura digamos assim. Um fazendeiro facilmente identificável me definiu diante de dois fiscais da SUDEPE, testemunhas acima de qualquer suspeita, como Padre safado e corrupto, que em lugar de ficar na igreja rezando para que baixe o preço da farinha, só ensina aos pescadores a roubarem e invadirem as fazendas. No ano passado me intimou a sair do lugar no prazo de 24 horas, senão me mandava prender. Naturalmente eu aguentei e ele sumiu da circulação. Neste ano a ameaça engrossou: – Não quero ele aqui. Se vier aqui, a SUDEPE vai responder pela vida dele. 143


MARAJÓ - A DITADURA DA ÁGUA Era só bafo, evidentemente, porém a gente tinha que se precaver. Sobretudo eu tinha medo de que os pescadores se revoltassem, se alguém mexesse comigo. Antes da viagem fizemos uma reunião no Centro Comunitário: – Não aceitem a provocação. Aconteça o que acontecer, eu sou maior de idade, não tenho mulher nem filhos (nem por dentro nem por fora), fiquem parados que eu cuido de mim mesmo. Em caso de perigo, mandem alguém passar uma fonia para a SUDEPE. Só. Não aconteceu nada. O camarada ficou longe. Um dia, me encontrou nadando no meio do rio e olhou para o lado, secando o casco. O famoso soldado jamais encostou na minha feitoria e o pessoal me batizou espanta soldado. Eu gostaria de encontrar-me com esta gente, para dizer-lhes que sou homem de paz, que sempre procurei a amizade com todos, sobretudo entre pescador e fazendeiro. Talvez seja mais torcedor dos pobres, mas é só porque eu conheço as necessidades que eles estão passando. É difícil discutir com um surdo, sobretudo quando o homem está com a cabeça cheia de fantasias: Esse aí não é padre, é um espião da Cuba! um dia vai voltar aqui com os aviões... Para buscar o que? Eu não sei – só para apanhar pitomba ou bacuripari! Há outros, também, gente boa, devota, amante da igreja, que olha para mim decepcionado: Por que deixa a paróquia? Que vai fazer no mato? Pergunto-me mais de uma vez: o que é a minha paróquia? São as casinhas ou a gente? Como é que eu posso compreender a paixão deste povo, se eu moro numa casa onde não cai um respingo de chuva? A experiência do Anajás supera os limites da imaginação: está fora do contexto histórico, é um anacronismo paradoxal, é um absurdo. A gente sai de madrugada. Na frente o motor de centro do patrão e, a reboque, os casquinhos. Rio Arari ou Anajás-Mirim, São José ou Tauá-Mirim até a água acabar. Daí em diante puxando o casco na espia, como os homens de um passado tenebroso, como bichos. No sol quente, enterrados na lama, pisando nos espinhos de marajá, até lá na Fazenda São Marcos ou no Lavrado. Depois o rio Camotim ou a cabeceira do Anajás, para ganhar o ponto de pesca. A água está muito grande ainda, mas é melhor ficar aqui, esperando e comendo farinha. Demorando mais um pouco no Jenipapo, a gente não teria chegado até aqui, não teria conseguido vencer o caminho torrado, sem esbandalhar os cascos. A nossa casa é um jirau. Também morei lá, no galho do pau, pendurado em cima da água. Tomando notas, batendo retratos, sobretudo escutando e aprendendo. Também caía na água, batendo mopunga, limpando a rede (e a gente nunca sabe se vai 144


GIOVANNI GALLO botar a mão num graveto ou numa piranha embravecida. – Giovanni pega na cortiça, no seio, puxa o chumbo... caí fora. Eles estavam com medo de que eu me estrepasse. Quatro horas da madrugada, Pedro está preparando o café e com o Bom dia! me oferece o habitual copo de água suja para tirar o limo da boca. A noite foi ruim. A chuva batia sem misericórdia, a rede ficou ensopada apesar de eu ter um reto de napa bem grande. A água escorre no punho e chega até a gente. O que valeu foi ter levado uma manta que parece baeta, esquenta, pelo menos dá a ilusão, mesmo quando está molhada. Baixa a água, a turma se muda para outra feitoria, não mora mais em cima do jirau, simplesmente vive atolada na lama. Sou o médico da turma, não para repartir remédios, mas para sentir o pulso desta gente que atrás de um porte atlético esconde o desgaste desta vida subhumana. De vez em quanto um curativo. Chega Guri, ferrado de arraia. Eu sei, deveria colocar uma mecha, mas fico atrapalhado. Nunca vou apreciar os curativos, não gosto, não aguento. Antes da saída, as enfermeiras me deram uma palestra de emergência. Para o rapaz a safra já acabou. Vou dar um jeito e depois ele volta a Jenipapo e vai para o nosso Posto. Neste ano, Seu Miguel, fiscal da SUDEPE, caiu do céu, como um santo que faz milagres. Até que enfim consegui levar a voz do Governo que diz: Aqui o pescador tem direito de pescar. E, de fato, assim foi, graças a Deus, a Seu Miguel e à SUDEPE. Eu mesmo assumi um compromisso com a SUDEPE, para fiscalizar, mentalizar o pescador, para não matar o peixe miúdo, para não jogar o peixe morto no rio, poluindo a água, para não pescar em forma predatória, deixando a rede atravessada de beira à beira. Esta foi a minha vida de padre safado e corrupto, espião, mercenário. Fizemos batizados também, lá na capela de S. Benedito na casa de João Pio e na Boa Esperança, com Seu Orlando correndo atrás de canetas para dar conta do negócio. Mais de uma vez falei de amizade entre vaqueiro e pescador, entre gente grande e pequena, todos somos filhos de Deus e o Brasil é de todos. Naqueles dias o mundo inteiro estava esperando a volta do Skylab; os noticiários, para mim, tinham o sabor da gozação, frisando violentamente o contraste, o absurdo da minha experiência. Muitas vezes, falando e discutindo com uns fazendeiros sobre o Projeto Marajó, fico frustrado; reparo o abismo que separa as duas situações, sobretudo o jeito de pensar. – Por que os pescadores vão até lá, no Anajás?... Como se fosse por brincadeira. Irmão, 145


MARAJÓ - A DITADURA DA ÁGUA é o desespero! – Que eles pretendem? Ter o rio na porta da casa? Mas quem fala tem o carro na porta de casa, tem a caderneta de poupança, tem a tranquilidade, estudo garantido para os filhos... E o pescador, o que tem? Já disse em mais de uma ocasião; eu acredito no Projeto Marajó e não sou tolo de querer embargar um serviço de saneamento. O que me preocupa é a situação destes pescadores, com uma vida precária e o futuro ameaçado. Se o Projeto Marajó não considerar suficientemente a realidade humana, isto é, os moradores pobres da bacia do Arari, vai estourar um gravíssimo problema social, muito difícil de controlar. Alguém está curtindo a ilusão de tirar do mapa o povoado de Jenipapo com os seus indesejáveis moradores. Tenho certeza, me acreditem, o povo não vai embora de lá, não vai engrossar a fila dos marginalizados. Vai ficar ainda mais agarrado à sua terrinha e o fenômeno do roubo de gado que, a meu ver, nunca foi manifestação de pobreza (o pobre rouba para comer), pois bem, uma forma de exploração da pobreza (o rico manda o pobre roubar para explorá-lo), iria se transformar em necessidade física de sobrevivência. O Brasil é grande, o Marajó é rico, a bacia do Arari tem, potencialmente, recursos para sustentar rico e pobre, sem que a distância que afasta os dois aumente paradoxalmente, fique explosiva. Depois de uma fase de incerteza e trepidação já estamos vislumbrando os sinais de um futuro melhor, para todos. Esta foi a minha experiência no Anajás Grande. Não podia ficar para mim. Descobrir o Marajó não é somente conhecer a embiara da onça, o siriringo do pirarucu, o sulapo da cobra grande. Marajó – gente – é a experiência de hoje, que eu quis enfrentar para comunicar a vocês, sobretudo para os que olham, com receio e desgosto, este padre maluco que larga a Igreja para morar na beira do rio, no galho do pau.

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Al, CÉU! Al, CÉU! Aqui está uma história popular. Apresento-a como a recebi do meu amigo Domingão, Domingo Ramos: só me permiti umas correções insignificantes, para explicar melhor, sem alterar e deturpar a exposição. Parece um conto fora do tempo, uma página inédita do Decameron, onde ingenuidade e malícia se alternam numa narração tipicamente popular, com as suas repetições, as descrições pormenorizadas, com a esquisita visão do além, segundo os cânones consagrados pela tradição. Era uma fazendeira que tinha um esposo belo, de nome Pedro Raimundo. Pedro Raimundo sofreu uma enfermidade e morreu, Esta senhora chorou muito a morte de Pedro Raimundo. Chorou muito, mas depois de um ano, ano e meio ela casou com outro cidadão. Mas sempre ela dizia: – Olha rapaz, eu gosto de você, eu lhe quero bem, mas nunca me vou esquecer do meu primeiro marido, Pedro Raimundo. Eu dediquei o meu amor a ele e ele morreu. Agora estou casada com você, mas eu tenho amor no meu primeiro marido. No subúrbio daquela fazenda, onde ela morava, tinha uma vilazinha. Ali vivia um malandro que não queria nada com serviço, tinha até raiva da pessoa que inventou o serviço. Ele vivia pela rua, dormia na calçada, não tinha roupa, se sentia jogado fora. Ele pensou consigo e disse: "Meu filho, como é que eu faço para ganhar um dinheiro, ganhar uma roupa, ganhar uma rede? Ah, vou descobrir um meio para ganhar dinheiro, roupa. Sabe o que vou fazer? Vou sair daqui, vou chegar à casa da fazendeira. Chego lá fico sentado na porta dela e lá eu pego gritar: Ai céu! Ai céu! Com certeza a fazendeira sabe que o marido que morreu está no céu e vem perguntar por ele, e se ela me perguntar eu vou contar para ela a situação lá no céu. Eu vou fazer isto. Quando deu quatro e meia da madrugada, ele se aproximou da casa da fazendeira e lá começou dizer, bem na porta: – Ai, céu! Ai, céu! Então a fazendeira ouviu aquelas palavras e chamou a empregada de nome Terezinha: – Vai, minha filha, vai na porta da rua e vai ver quem veio do céu. Então Terezinha, que era uma moça de dezesseis anos, uma moça muito malcriada, chegou lá na porta, onde estava aquele homem arriado lá, com aquelas palavras Ai céu! Ai céu! E ela perguntou: 148


GIOVANNI GALLO – Que é isso que tu quer dizer, homem velho? O que é que tu quer? Mas o malandro não respondeu para a empregada. Ele não queria falar com a empregada, ele queria falar com a patroa, a fazendeira, para fazer o relatório da vida dele, da vida do marido dela, que está no céu. Então a menina voltou e disse: – Minha madrinha, o homem não fala, eu pergunto e ele só diz céu. Eu não vou mais lá, madrinha. Então a patroa disse: – Terezinha, você não sabe atender as pessoas, eu vou lá. Chegou lá e disse: – Moço, de onde você vem? Ele disse: – Eu vim do céu. Era justamente o que ele queria, ele queria falar com a fazendeira mesmo. – O Senhor de onde vem ? – Eu venho do céuuu! Então a fazendeira perguntou e disse: – Me diga uma coisa: lá no céu, o Senhor não conhece um cidadão de nome Pedro Raimundo? Aí o malandro respondeu e disse: – Ah, minha senhora, eu conheço ele demais, ele é muito meu amigo. E ela disse: – Pelo amor de Deus, não diga isso! O senhor conhece ele, Pedro Raimundo? O malandro tornou a responder: – Conheço, ele é meu amigo. – Como ele vai? O malandro respondeu: – Ah, não queira saber a situação dele, lá? Ela disse: – Não me diga! Ele era meu marido, ele era meu primeiro marido, ele morreu, eu ainda tenho muito amor nele. Eu sofro muito. Pelo amor de Deus, qual é o sofrimento dele lá? Aí o malandro respondeu: – Ah, madame, seu primeiro marido, Pedro Raimundo, sofre muito lá no céu, ele vive deitado pela calçada, vive descalço, fazendo viagem a pé, não tem animal para ele fazer viagens, não tem roupa para vestir, não tem rede para dormir, não tem dinheiro, ele lamenta a situação dele. Era ele e eu, nós era o mais sofredor. Eu, graças a Deus, procurei vir à terra, e continuo sofrendo, mas breve eu tenho que voltar para o céu. Mas sei que vou sofrer lá 149


MARAJÓ - A DITADURA DA ÁGUA também que não encontrei nada aqui na terra de melhora. Somos dois sofredores lá no céu, eu e Pedro Raimundo. Aí a mulher começou a chorar, lamentando a situação do primeiro marido dela, que tinha morrido e estava no céu. E disse: – Moço, você pode entrar. Terezinha botou uma cadeira à mesa: ela mandou botar café com pão e manteiga e o malandro baixou a tomar café com pão e manteiga e a fazendeira começou a chorar. Nesse momento, ela disse: – Moço, o senhor pode me fazer um grande favor? Ele disse: – Eu faço, madame. O que a senhora mandar, eu farei. – Eu vou mandar chamar o meu feitor, vou mandar matar uma vaca, mandar salgar a carne para o senhor fazer o favor de levar ao meu marido, lá no céu. Eu lhe pago. Era isso que o malandro queria, era isso que ele queria. Então a fazendeira mandou chamar o feitor dela, matou uma vaca bonita, gorda, salgou a carne toda, botou numa carga de mala que eles fazem do couro duma rês, preparou roupa, rede, dinheiro, mandou buscar um cavalo no campo, mandou selar, cavalo muito bonito, preparou tudo, botou aquela carga toda na costa duma burra linda que ela tinha, bastante dinheiro, sapato, tudo para o marido dela lá no céu. E entregou tudo ao malandro e gratificou o malandro bem e mandou que ele seguisse e deixasse para o marido lá no céu. O malandro, cheio de felicidade, quando montou no cavalo, tocando a burra na frente, disse: – Até um dia, fazendeira, atrás disso eu andava! E expediu a viagem dele. Nesse momento, uns quarenta minutos que ele tinha saído, chegou o segundo marido dela que estava fazendo uma viagem. E quando chegou achou a mulher chorando e ele perguntou: – Mulher, o que é que tens? Por quê estás chorando? Ela disse: – Estou chorando, porque chegou um rapaz do céu e contou a situação do meu primeiro marido, como está passando lá no céu. Eu mesma não me posso mais controlar, por isso estou chorando. Mas já mandei muitas coisas lá para ele, mandei carne, roupa, rede, sapato um cavalo para ele andar lá no céu, que lá não tem para ele. Entreguei para um rapaz que veio lá do céu. Foi ele que trouxe toda notícia para mim. Por ele eu mandei essas coisas para o meu marido. Aí o segundo marido respondeu: – Mas, mulher, você é tão assim tola? Sabe qual é a pessoa que tem o poder de vir do céu aqui na terra? Cadê este sujeito? 150


GIOVANNI GALLO Ela respondeu: – Ele seguiu ali, faz uns quarenta minutos. Aí o marido montou no cavalo e seguiu atrás do malandro. Mas o cúmulo do azar deste segundo marido é que na estrada onde o malandro saiu tinha um abismo, um buraco muito fundo. Então ele prevendo que vinha gente atrás dele, fez o seguinte. Chegou próximo daquele abismo, puxou o cavalo um pouco, a burra também. Saiu do outro lado do abismo, passou a mão e fechou os buracos, o rasto do animal na subida do abismo e ficou bem na beira do abismo, de coca. Escondeu o cavalo e a burra com a carga no mato e ficou bem na beira do abismo, olhando para dentro daquele abismo que era muito fundo. Quando o segundo marido foi chegando ali, perto dele, perguntou para ele: – Me diz uma coisa, rapaz. Não viste um sujeito passar montado num cavalo, tocando uma burra na frente? Ele disse: – Agora mesmo estou escutando que ele entrou neste buraco, ouvi a zoada dele, do animal dele. Quer ver? Desça do cavalo e venha escutar aqui perto. Aí o segundo marido saltou do cavalo e se pôs bem na beira do abismo, a uns passos do malandro. O malandro saiu atrás dele e deu um empurrão nele e ele caiu dentro do abismo e morreu. Má sorte foi da fazendeira: perdeu o primeiro marido e o segundo o malandro matou. O malandro conseguiu livrar-se disso tudo, montou a cavalo e seguiu: – Adeus, fazendeira, até um dia, até pra nós dois.

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O JACARÉ JÁ ERA

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jacaré, talvez, já foi o morador mais numeroso do Arari. Não muito tempo atrás, só uns trinta anos, mais ou menos; agora é só lembranças. Acontece de ver algum ovo, algum filhote para as crianças brincarem, e sempre do

tinga. Tinga não significa pequeno, como o povo crê, em oposição a açu que é grande. Tinga, palavra tupi, quer dizer branco e se encontra em outros termos usuais como tabatinga (tauátinga, barro branco) e titinga (pano branco). O açu, o grande, já é raridade. Sobreviveram uns exemplares nos lagos do centro, exemplo no Arçapão tem um de tamanho desconforme, que até virou lenda. Chamam ele de loja ou loja de ferragem porque, dizem, está cheio de arpões, mais que uma prateleira de loja. A gente arpoa ele, mas com aquela força estúpida que tem, arrebenta o náilon e vai se embora com mais um troféu nas costas. Além do jacaré coroa, porque tem uma certa marca na cabeça, na fantasia popular criou mais um tipo, não classificado nos manuais de zoologia, o tiri-tiri. A especialidade dele é ter dois rabos. O Sr. Moreira, do Museu Goeldi, me deu outra explicação: quando um jacaré tem dois rabos (no nosso Museu temos um camaleão com dois e outro com três rabos) o povo chama ele de tiri-tiri: claro que todos os tiri-tiri têm dois rabos, mas não representam uma raça especial. Para falar do tempo dos jacarés, sem cair no fantástico, é bom entrevistar algum velhinho com vontade de conversar. Seu Vicente Silva não precisa de solicitação. Enrolando o seu Abade, entra direto no assunto. – Quando o senhor era novo, tinha muito jacaré por aqui? – Muito tinha, do tamanho dessa sala. A gente ia pescar pirarucu mas, sabe, gente nova não tinha paciência, enxergava um jacaré dentro do capim e ia para lá com ele. Era bom de arpoar que só, não dava nunca errado com jacaré: o movimento dele no capim é bonito e arpoava cada um que tinha cabeça enorme. A gente tinha desses varões que a gente usa na pescaria, ia para cabeça dele de varão e quando via que ele estava fracassado (piscavam ainda estava vivo!) tirava o arpão, esfaqueava ele e logo chegava a piranha, estava grosso delas, e devoravam o jacaré e nós ia de novo a pescar. – E vocês matavam assim os jacarés? 153


MARAJÓ - A DITADURA DA ÁGUA – Só para matar, gente nova. O couro não dava nada, a carne também não. Depois que apareceram os que andavam comprando couro de jacaré, a gente matava no igarapé do Severino, nesse rio que tem o nome feio para a gente dizer... (é o Jenipapucu!) e aqui no Apií. A gente ia no verão a bater água, empurrar com a vara para cá e para acolá e eles vinham para o seco. A gente os laçava com a corda de laçar boi. Tinha cada jacaré enorme, que duas ou três pessoas não podiam, que era grande. E com o machado, mas só da frente, batiam com o olho do machado até virar, tinha quinhentos, seiscentos, tinha desconforme jacaré – Não entendo, só para matar ? – Só para extinguir: era fera, comia a gente. Aqui por esse lugar da Santa Teresa tinha um homem, não tinha perna de um lado. Ele foi viajando assim, a cavalo, num igarapezinho e o jacaré estava lá. Quando o cavalo esbarrou no jacaré, ele bateu na perna dele com a pá do cavalo. Esse se desvendou da boca do jacaré e foi embora para o seco. Quando os vaqueiros viram a demora dele, que era perto: foram lá e acharam ele no campo mas o jacaré já ia caminhando pelo sangue e se demoravam mais um pouco, o jacaré comia ele, ele já estava ferido, não podia mais e se ele gritasse não o ouviam. Zé Américo, pescador de pirarucu, confirma: – Já cacei muitos anos atrás, mas a gente tinha que viver no meio de muitas feras e eu não gostei. – Quantos jacarés matavam num dia? – Quantos quisessem. A gente matava jacaré até no terreiro das casas, até centenas. Meu pai tirava dias para matar jacarés, só para diminuir, que não podiam quase dormir nas canoas. Não aproveitavam nada, nem couro que não tinha valor. A gente matava porque ele agredia a gente na canoa mesmo, viviam boiados por aqui. Agora é difícil. – Tem uma fazenda aqui no Marajó de nome Nazaré. Então lá tem um poção, perto de casa, e aí as senhoras dos vaqueiros estavam lavando roupa. Tinha também os meninos, filhos delas, que estavam tomando banho. Elas diziam: – Saiam daí, seus meninos, tem jacaré! Eles facilitaram das mães deles e o jacaré não demorou, pegou um dos meninos e deu lá um remanso, uma maresia e foi lá pro fundo. Os maridos delas estavam todos no campo. Quando chegaram, elas contaram o caso: não podiam fazer nada, era no poção. Quando foi outro dia, de manhã, eles saíram à procura do jacaré, ele tinha ido comer o menino no campo. Viram o sinal, o capim assim aberto. Mexeram lá, era o jacaré que estava lá. Engoliu o menino, atorou a cabeça e engoliu o resto. Arpoaram o jacaré, o puxaram para o seco e o mataram. Foram partir a barriga dele e 154


GIOVANNI GALLO encontraram o menino. O jacaré o engoliu inteirinho, só tirou a cabeça: era monstro! Anda sepultaram a criança. Precisa dizer que agora matar jacaré não é tão fácil, como naquele tempo, quando faziam matança de centenas num dia: montes de jacarés, um em cima do outro, numa confusão danada. Ouvi falar de um certo sistema, meio esquisito, para pegá-lo: só botar os dedos nos olhos dele. Parece-me aquela estória que contavam quando eu era criança: fácil pegar passarinho, só botar um pingo de sal no rabo dele, mas quando? Seu Vicente responde, na base da experiência. – Eu não sei, sei somente que aqui morava um tal, de Jesuino, chamavam ele de Juca. Ele estava perseguindo um camaleão que caiu na água e também o camaleão deixa um sinal na água, um siriringo, como chamam. O rapaz foi direto onde estava siriringando e esbarrou num jacaré tinga que mordeu ele no braço; por sinal, ele tinha a marca da dentada do jacaré no braço. Zé Américo explica assim: – A gente coloca a vara na cabeça dele, para que não bata, depois coloca os dedos nos olhos dele, Tem gente que faz isso, vai apalpando no fundo mas é arriscado. Ainda mais o jacaré tinga que é difícil ele errar uma pancada. Tibúrcio Silva é mais explícito: – Lanternando o jacaré, a gente puxa ele e quando ele está já arpoado, mas ainda vivo e valente, a gente coloca a mão nos olhos dele e pronto: fecha e amarra a boca e faz o que quer. Naturalmente para essa brincadeira toda é preciso jeito e o Tibúrcio nos explica em que consiste: – O tinga é mais manso, mas é mais perigoso do que o açu. O tinga morde mais no fundo que fora, o açu sempre tem que boiar para morder. Diz-se que o açu é mais feroz porque come tudo, o tinga é mais manso, porque não come a gente. Precisa jeito para aperrear o tinga, não arpoar de qualquer jeito. A gente tem que ir na frente dele, porque ele só morde de banda. Vale a pena lembrar que o perigo do jacaré está também na rabanada, dá uma pancada que pode até quebrar a perna de uma rês. Na vida do jacaré encontra-se outro fato interessante. Já a literatura colonial fala do complexo de inferioridade que o jacaré tem com a onça. Ele tem força bastante no focinho e no rabo para se defender e para atacar. Quando a onça quer atravessar um rio, urra para afugentá-lo, cismando a presença dele. Aquele urro paralisa o jacaré, fica mortinho, 155


MARAJÓ - A DITADURA DA ÁGUA mortinho; a onça chega, morde-o, revira-o como quer, começa a comer pelo rabo e deixando a embiara vai-se embora. E o jacaré fica esperando que ela volte. Se por acaso aparecer outro bicho ou uma pessoa, ele fica bravo e valente, mas.na presença da onça nem se mexe. Nas minhas pesquisas, na fazenda de Santo Elias, perguntei ao caçador Isaias: – É verdade que a onça come o jacaré vivo? – Eu não vi, mas dizem que é verdade: come o rabo dele e ele fica só piscando... Um dos rapazes, que estão apreciando a gravação, entra na conversa. – Eu já vi, só o corpo estava vivo, estava mesmo parado, piscando. – Você não esperou? – Não, eu era moleque nesse tempo, não dava para esperar, eu estava com muito medo. O jacaré no Arari praticamente desapareceu: os últimos sobreviventes dessa raça de predadores, ouvindo o baque de um remo, nem têm mais a coragem de piscar. O açu é mesmo raridade: eu só vi um tinga vivo, um filhote tomando sol na beira do canal dos Mocoões. O jacaré raras vezes chega vivo no povoado, com a boca amarrada; naturalmente é tinga, que tem uma bolinha na ponta do nariz que segura a corda. O açu tem o focinho mais chato e a corda desliza. Sendo ele também valente, ninguém se atreve a carregá-lo vivo. Fica imóvel, parece insensível, só pisca. Talvez tenha compreendido que o homem é mais perigoso que a onça. Stradelli nos relata a velha lenda do jacaré que sustenta o mundo: quando está cansado da posição em que está, procura outra e se mexe, fazendo tremer o mundo. Por isso o chamavam Jacaré tyry- tyry manha, a mãe do terremoto. Tudo isso já era: só ficou como lembrança a crença do tiritiri, o aleijadinho de dois rabos.

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NO FIM DO MUNDO O rio Francês está no fim do mundo, de Jenipapo para lá oito horas de motor de popa, um Johnson 25 HR. Na visita àquelas comunidades, a gente tem que planejar direitinho, para aproveitar a viagem. O preço da gasolina não dá para brincar. Só fiz duas viagens este ano, com etapas na ida e volta em Santa Rita, Santo Elias, Mocoões, Desterro e Mascote; pena não ter parado no Ucuuba. Lá, na cabeceira do Francês, encontrei uma comunidade um pouco fora de série. São todos crentes, menos a família de Zé Alves, que mora lá dentro do mato (aqui precisaria dar aquela inflexão da voz como usa o caboclo sobre aquele lá, para indicar aquela distância estúpida). A comunidade está bem entrosada, como acontece sempre nas pequenas comunidades de crentes, mas apesar disso, a meu ver, ele representa um estágio intermediário entre a vida primitiva e o normal desenvolvimento de um povoado marajoara nos dias de hoje, com a desvantagem de ter perdido os recursos antigos, sem ter a possibilidade de explorar os novos. Não falo do pessoal, que já morou também em outras partes e se apresenta como qualquer caboclo. O ambiente pode ser definido o típico de uma aldeia de índios: mata virgem, caça de todo tipo em grande fartura, sobretudo com a presença daquelas espécies que, em outras partes, só ficam na lembrança. Isolamento quase total durante o verão e durante o inverno enormes dificuldades. O índio não tem precisão de roupa, tem a seu dispor toda uma farmacopeia de primeira categoria, não conhece as necessidades criadas pela sociedade de consumo. O homem do Marajó, pelo contrário, sente a falta de tudo isso que pode ser proporcionado só mediante o dinheiro, que lá quase não existe. Somente agora começam a aparecer os marnoteiros que trocam açaí com uma roupinha, algum bibelô e outras coisas inúteis. Nas visitas do centro, como aqui chamam o interior, a gente procura enfrentar, junto com a comunidade, todos os problemas numa visão global: os batizados são um estímulo para que o homem possa crescer também no sentido social, no desenvolvimento geral. Nesse caso porém, respeitando a crença deles, o meu papel e dos meus colaboradores foi só no sentido da promoção humana: não uma esmola, mas uma ajuda a crescer. Levei uns remédios e, sobretudo as ferramentas para fazer uma roça de mandioca: a farinha, lá, custa uma barbaridade. Terçados, foices, enxadas e um grande forno para torrar. O Abraão, um homem que tem a liderança no sangue, reuniu toda a comunidade e assim, à beira do rio, lavramos o nosso contrato. Entreguei toda aquela graça de Deus, exigindo em troca duas coisas. Primeiro: ajeitar as casas. 159


MARAJÓ - A DITADURA DA ÁGUA São todas descampadas, só um piso de taboca e um teto de palha; nenhuma parede ou recanto amparado. Falei português claro: – Os índios têm casa boa, até passarinho tem. De que adianta remédio se vocês pegam vento, chuva, sereno o ano todo? Tirei um retrato e para o ano, se Deus quiser, volto para apreciar, mas eu sei que já começaram. – O senhor sabe como é, a gente nunca tinha pensado nisso! Estou convencido de que a esmola mata o progresso e qualquer forma de autopromoção. Não podendo exigir o pagamento das ferramentas, já que lhes falta o dinheiro líquido, disse-lhes: – Vocês juntam um pouco de bichos para o nosso museu de Santa Cruz do Arari. Entreguei umas latas com álcool, dei umas explicações e o resultado já apareceu: chegou um surucucu verdadeiro que não assusta mais ninguém. O tempo nos dirá se o nosso contrato vai dar certo, mas eu sou otimista. Claro que, naquele ambiente, eu não podia perder a oportunidade de entrevistar algum caçador de gabarito. A sorte me ajudou, encontrei seu Isaías, que foi também o prático no último trecho da viagem. Gostei muito dele. Fala com simplicidade, sem acanhamento e sem pretender dar uma resposta sobre aventuras ou experiências que não teve; sempre com extraordinária competência. Vale a pena pegar a conversa, assim como saiu, no terraço da Fazenda Santo Elias, enquanto Dona Teófila preparava o último cafezinho. – No ano passado, a onça veio aqui em casa e matou oito porcos. Só deixou passar tempo e ela voltou. Nós calculamos que seja a mesma pelo tamanho do rastro; e agora ela matou quatorze. Tenho ainda uns oito no mato, não sei se eles já chegaram. Passei quatro dias lá, caçando ela. Um dia foi que o cachorro correu ela, mas eram quatro horas da tarde e não pude fazer nada, ela correu pela margem do rio e destorceu pro centro, de forma que eu não sei se ela foi embora ou está ainda por lá, perambulando. – Será que a onça comeu todos aqueles porcos? – Ela só mata por matar, porque comeu a papada de um capado grande e comeu um leitão. Só para matar, matou os porcos, só para estragar – Como é que ela mata? Onde é que ela morde? – Morde pela nuca, pela cabeça. Ela pegou uma porca grande desse meu filho, o João, e torceu a cabeça que ela ficou olhando para baixo e para cima. – E como ataca uma rês? – Eu ainda não vi, com porco eu sei que ela pula em riba, para morder na nuca. – O senhor se lembra de alguma matança de onça que foi mais perigosa? – Não, porque o ano atrasado uma apareceu atrás de casa e eu matei ela na beira do igarapezinho, 160


GIOVANNI GALLO matou um barrasco e pulou numa porca e quando pulou na porca eu matei ela, atirei dentro do vidro. – O senhor estava sem cachorro? – Não, o cachorro estava comigo. – Caçar a onça sem cachorro é perigoso? – Não, eu tenho já morto assim de caçada; nunca enfrentei ela que viesse para mim, para me enfrentar. Efetivamente a caça é perigosa quando a gente anda descuidado, porque não pode matar sem sair atrás. – A onça, quando repara a sua presença, ataca ou foge, o que ela faz? – Não tem mais agora dessas corajosas. Antigamente tinha, é verdade, mas agora não tem mais. Efetivo, quando ela enxerga a gente não corre, mas quando a vista de gente dá em cima dela, ela pula e corre. Não enfrenta mais o homem, não sei em outro lugar, mas aqui não. – O cachorro dá medo à onça ? – Ele se joga mesmo para correr e ela trepa ou se acua. O cachorro sendo bom, ela não tem escape. Ele põe ela pra subir ou então ele faz ela se acuar pelos tocos dos paus e fora de toco de pau, onde dê na sorte. E o bicho cansa de tanto correr. – E quando os cachorros são dois, qual é o jeito deles? – Um engana pela frente e outro por detrás. Quando ela se joga para a frente, o detrás aproveita e morde ela e quando ela dobra para aquele que mordeu ela, este aqui que estava na frente ataca de novo. – Como é que se prepara o cachorro? – Ele trás esse dom, porque a gente não prepara; ainda não vi preparar. Ele já vem com esse dom. – Tem cachorro que não presta para isso? – Tem. Tem cachorro, por exemplo, que quando sente o piche da onça só falta tombar a gente e vem embora para casa. Quando o cachorro é bom, logo que presencia a onça, ele dá uma gatanhada assim por trás, ele pega a batida e vai mesmo. – Nessa área existe tamanduá bandeira? – Existe, sim, senhor. – É verdade que dá medo à onça e até mata ela? – Mata, sim, senhor! Já encontrei o tamanduá com a onça, o tamanduá ainda estava vivo e a onça estava morta. Prende ela com aquelas unhas grandes, efetivamente, parece em cima do purmão dela e ela morre mesmo, pois não suporta a força dele. Ele mete a cabeça assim por debaixo do pescoço dela, ela trabalha para morder e não pode. Ele está dormindo de peito para arriba, ela vai e pula enriba e ele só faz... ela está segura e ele esconde a cabeça. Quando a onça está morta, o tamanduá vai embora? – Esse, que eu encontrei, estava engatado com a outra. A onça já estava podre, mas ele não conseguia se desatar, estava ferido, seguro com a 161


MARAJÓ - A DITADURA DA ÁGUA outra. Agora a onça estraga o tamanduá para a banda das pernas dele, com a unha do pé. A onça não consegue morder ele, que esconde logo a cabeça. – Onça ataca sucuriju? – Ainda não vi. – Ataca búfalo? Também não vi. O gado comum ela mata de dois, três, só para estragar. As vezes come a língua, quando não come nada, larga e mata outra: ela é preversa. – Como é a embiara? – Embiara é quando a onça costuma visitar o resto do bicho que caçou, sempre deixa coberta, deixa o sinal para o caçador, ela procura cobrir com as folhas. Pode esperar, botar armadilha que ela vem. Embiara é fácil de descobrir, a gente vê: então bota armadilha ou fica esperando ela. – Qual é armadilha que vocês usam para matar a onça? – A gente corta dois toros, parte assim pelo meio, afinca a espingarda, põe o pinto e põe a linha. A onça vem, esbarra na linha e dispara, porque a gente põe o caniço para disparar. Aqui não dá outro tipo (fazer um buraco), só no Nordeste. – Que tipo de onça tem aqui? – Tem a preta, a vermelha e a pintada: diversas marcas. – Qual é a onça mais perigosa? – A preta, o tigre. – Também essa preta não ataca mais? – Não! – O senhor, quantos anos tem? – Cinquenta. – Desde quando caça? – Sou cearense, estou aqui de trinta e poucos anos, – O senhor já matou muitas onças? – Matei muitas. Eu não sou caçador, tenho morto muitas onças, já andei muito pelo mato, não sou caçador que se diga, mas já fui, agora não, devido a minha vista. De primeiro quando eu pulava na batida de um veado e a onça pulava na minha frente, era muito difícil que não fosse buscar ela para a gente comer, mas agora não enxergo mais o rasto dela, minha vista não coopera mais para me ajudar, não é a pontaria, que eu atiro bem, graças a Deus. Só por não enxergar, sobretudo quando o dia está assim turvo: quando o dia está quente eu ainda ajeito alguma para comer. Chega o café, um implícito convite para armar a rede e descansar. Amanhã nos esperam muitas horas de viagem e muita chuva.

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O PADRE E AS PIRANHAS

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m dia chegou aqui, em Santa Cruz do Arari, um jornalista inglês que quis me entrevistar por conta do Los Angeles Times e uma cadeia de jornais. Consequência: apesar do endereço aproximado, recebi dezenas de cartas, da Califórnia, do Connecticut, da Minnesota e até de New-Jersey e Ilhas Haways. A culpa era da manchete meio invocada: O Padre e as piranhas. De fato a gente vive aqui no meio das piranhas, os famosos peixinhos canibais, os mais badalados da história. Seria mentira dizer que estamos em perpétuo perigo de vida: as piranhas são ruins, é verdade, mas a fama é ainda pior. Também com as piranhas a gente aqui dá um jeito, sem exagerar na brincadeira, já, que elas têm um péssimo caráter e sempre estão com fome. Um mês atrás, no Conselho do Jardim de Infância de Jenipapo, saiu a conversa de como inventar alguma promoção comunitária: temos o famoso Casulo e precisa mesmo mostrar que somos esforçados. Dona Mita lançou uma ideia: a porfia de natação, com cortiça e sem cortiça, no arraial da Igreja. Todo mundo sabe que a gente mora nas palafitas: quanto mais cedo a criança aprende a nadar, tanto melhor para a mãe, que acaba com aquele susto, no inverno. Dificuldade: já é quase verão, as piranhas estão arriando. Vamos dar um jeito: a gente bate água! O dia que eu mostrar na Europa o Filme Super 8, com aquela patota de moleques batendo mopunga, vai ser muito engraçado o comentário:... estão assustando as piranhas, para que não comam os atletas mirins. Mas meu encontro com a piranha não é de hoje. Vou contar a vocês. Acho que vale a pena, porque considero esta experiência como uma das mais chocantes da minha vida, mas não no sentido mais óbvio. Quando cheguei aqui no Marajó encontrei em pauta mais de um projeto de artesanato. Considerando o negócio de cabeça fria me dei conta de que não podia dar certo: faltava a preparação psicológica, uma tradição, o material, ou, simplesmente, seria demasiado difícil vender o produto para faturar. Fiquei farejando, à procura de uma pista. Um dia em Belém vi por acaso, numa loja de artesanato, umas piranhas embalsamadas: horríveis, pintadas com ferrolack, com dois botões no lugar dos olhos. Por dez cruzeiros comprei uma amostra, mais uma garrafa de Formol na farmácia. 165


MARAJÓ - A DITADURA DA ÁGUA Uma noite, sozinho na minha palafita, perdida na lagoa de Jenipapo, tirei a camisa, me concentrei para criar a minha obra de arte: só eu e Deus. Abri a bichinha e vi que estava ainda com as tripas; dei-me conta logo de que o trabalho não devia ser muito difícil. Com calma e todo cuidado, estava injetando o líquido na piranha que tinha pescado da janela, quando senti uma certa resistência, a agulha era muito fina. Carreguei a mão, na marra. Foi neste momento que aconteceu o desastre: quiçá a seringa estourou ou talvez a agulha escapuliu. Só me lembro que o meu rosto, de repente, pegou fogo, estava lavado de Formol: o que é pior, naquele dia estava usando uma solução muito concentrada, de 30%. De repente fiquei cego, com a cabeça que estourava. Tive vontade de gritar por socorro, mas compreendi que não adiantava nada. Isolado na minha palafita, não podia ser ouvido por ninguém; de qualquer lugar que me ouvissem, chegariam tarde demais para me ajudar. Superando o instinto que me empurrava a correr, fiquei cravado na mesma posição, para não perder o controle. Só uma ideia bem clara na cabeça: água, devo chegar à água! Larguei o que tinha na mão e tratei de imaginar o percurso da salvação: Eu estou agora no escritório. Em frente está a parede do mapa, devo dobrar à esquerda e fazer dois passos para chegar à porta. Depois torcer mais uma vez à esquerda e quatro ou cinco passos no corredor. Lá está a porta. Se errar, estou perdido. Devagarinho, cheguei ao banheiro e mergulhei a cabeça no tambor cheio de água. O ardor do rosto se acalmou na hora, só sentia a pele repuxando. Mas os olhos... nada. Não somente não enxergava nada, nem conseguia abri-los! Com o terror que me apertava a garganta, me lavei, me lavei. Passou um pouco a dor, o que aumentou foi o medo. Joguei-me na rede. – Giôanin (assim me chama minha mãe) você está perdido, disse a mim mesmo. Naquele momento me lembrei de um conto que tinha lido no primário: um pedreiro que ficou cego por um respingo de cal. Evidentemente não era de grande ajuda, mas acontece muitas vezes que, de repente, bóiam na minha consciência antigas lembranças, com a necessidade de fazer comparações com pessoas e fatos esquecidos. Talvez seja o instinto que me leva a procurar uma ligação com o passado, para tirar-me do isolamento no qual estou. Já tinha a impressão de ser cego e resmungão: eu não tenho jeito para fazer o papel do doente. Se o Formol é mesmo como o cal ou algum ácido, então acabou-se. Até logo piranhas! Até logo Jenipapo. Agora é tarde demais: o culpado sou eu, fui besta. Assim passei a noite toda. Cochilava um pouquinho num mar de pesadelos; me despertava, naquela escuridão nem conseguia compreender se estava pior ou melhor. De madrugada, 166


GIOVANNI GALLO esgotado pela tensão nervosa, dormi algumas horas. Abrindo os olhos, dei-me conta de que estava enxergando de novo: os olhos estavam ardendo bastante, mas dava para aguentar. O perigo já estava superado. Aprendi a lição e tirei proveito. Procurei em toda parte óculos de motoqueiro, mas sem êxito. Comprei luvas de plástico, agulhas de injeção para gado, uma caixa de garrafas de Formol. No salão paroquial coloquei uma dúzia de mesas em semicírculo, afastadas uma da outra. As mulheres que tinham de trabalhar, às ordens de Dona Nazaré, receberam as instruções mais severas. Cada mesa devia ter uma bacia de água limpa, sempre. Ninguém podia passar na frente das mesas, para não ser prejudicado caso alguma seringa esguichasse. Em caso de emergência, largar logo o serviço e acudir o acidentado I Tudo deu certo. Resultado: doze mil piranhas embalsamadas e vendidas em toda Europa. Com o dinheiro torturado, tirando as despesas e a gratificação às colaboradoras, fizemos uma pista para avião (800 metros, toda cercada), mais o cemitério com aterro (os mortos não gostam de ser enterrados na água ou na lama), tudo isso em Santa Cruz. Em Jenipapo, a beleza de trezentos e cinquenta metros de pontes com esteios de acapu e frechais de maçaranduba, com o trapiche comunitário. Sobrou mais um trocadinho para sustentar O Nosso Museu de Santa Cruz do Arari, a oitava maravilha do mundo com o seu bezerro de duas cabeças. Agora, depois de várias experiências mais ou menos fracassadas, conseguimos preparar as piranhas em blocos de acrílico: uma parada. Já estão chegando encomendas de todas as partes do globo. Tudo certo, porém, a primeira piranha continua atravessada na minha garganta!

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OS CAVALOS ESTÃO BRIGANDO

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o Brasil, como em toda parte, existe a língua clássica, oficial, correta e castiça, que obedece às leis da Academia. Atrás dela que procede compassada, elegante e soberba, vem o linguajar popular, fantasiado e festivo, requebrando e fazendo piruetas como os foliões de uma escola de samba. O traje é todo emendado, parece um Arlequim, muitas vezes é só um monte de farrapos, digno de um bloco de sujo. Aí está a beleza, a criatividade, a originalidade. É um mundo encantado que não abre as portas ao recém-chegado. Apesar do meu interesse neste campo de pesquisa, quantas vezes depois de anos de convivência topo de repente numa expressão engraçada, num dizer arguto. Desde aquele momento o encontro toda hora e, antes, desfilava despercebido diante de mim! Também o pescador do Arari tem a sua gíria, às vezes herdada da classe à qual pertence, às vezes brotada espontânea do meio onde está morando. Ele não é consciente da riqueza de que é dono e ao mesmo tempo artífice. Não querendo vender bagaço, se tranca; daí a dificuldade que eu encontro neste estudo. Precisa pegar no ar a expressão original, a palavra espontânea, sem contar com o gravador, porque o mais brilhante dos conversadores, como o Nango, diante de um microfone se apaga. Esta pesquisa foi realizada durante a última safra do Anajás Grande, onde passei quase um mês à beira do rio, com os pescadores de Jenipapo. Batendo água, puxando a rede, nas conversas da noite debaixo do mosquiteiro ou na hora do café, às quatro da madrugada, sempre fiquei de espreita para descobrir e decorar as palavras interessantes. O arremate foi feito no Jenipapo, em casa do meu patrão, Seu Xandico e de Tio Muca. Aqui está o resultado, pelo menos uma parte, porque a nossa conversa sobre este assunto não termina hoje. Só umas vezes acrescentarei também a explicação da palavra, indicando a origem. Sempre não foi possível porque não a encontrei ou simplesmente porque não existe. Aquela palavra vingou, só graças a uma certa harmonia agradável, quase um apelido dado às coisas. Não deixei de consultar os especialistas como Teodoro Sampaio, Beuarepaire-Rohan, Bernardino José de Souza, Vicente Chermont de Miranda e outros, penetrando nas veredas da geografia, da história, das línguas e sobretudo, evidentemente, do tupi. Tratando-se aqui duma página de divulgação e não de uma dissertação científica, pouparei ao amigo leitor o peso das citações. Na safra do lago Arari, o pescador pode voltar para casa todo dia. No Anajás Grande e Anajás Mirim, no Cururu, nos Mocoões, nos igarapés, ele tem que improvisar uma morada à beira do rio. Nasce assim a feitoria, chamada também barraca, barracão, casa, casa de reto; feita mesmo como um 169


MARAJÓ - A DITADURA DA ÁGUA chalé, com uma vara em cima de duas forquilhas, coberta com uma lona de trançado, ótima para apreciar os respingos de chuva. Quem tem mais tutu usa o reto de napa. Para o profano o reto é o mesmo que vela para embarcação, mas não é assim para o pescador. A vela é triangular e o reto é retangular. Só conhecendo isso, pode-se explicar uma conversa desse tipo: - Agora, no Arari, o pescador usa embarcação a vela? - Não, senhor. - E isso não é vela? - Não senhor, é reto. A lembrança do boi-bumbá, do homem dançando debaixo do couro enfeitado, emprestou seu nome à feitoria que se chama assim de boi, boi-de-reto. O tupi deixou o termo tapiri, que se apresenta também nas variantes taperi, itaperi, paperi, papiri. A pajelança cedeu a palavra conga. O conga, na definição de um pajé meu amigo, é o lugar onde se está realizando o preceito do santo. Na linguagem vulgar significa aquele cantinho, às vezes um quarto, onde o pajé tem o seu altarzinho, com um armário para guardar velas, santos, defumações, cuia, todos os apetrechos da profissão. É também altar ou peji. Concluindo o trabalho, o pajé canta: Conga, você fica aqui Se precisares, manda-me chamar. Oxalá me trouxe, Oxalá me leva. A rede de dormir é praticamente indispensável, porque muitas vezes a safra começa quando o terreno ainda está alagado e sempre fica mais ou menos atolado. A rede, no caso, é a capivara, a piolheira, a chocadeira, a fazedeira de manha (quando a gente não quer levantar de madrugada), a maqueira sem que seja necessariamente de tucum ou muriti. O dia começa com o café (moca, preto velho), preparado na chocolateira, passado no saco (coador). Se custa chegar, é café do Cururu (é tradição de que naquele rio o café demora muito), se sai rápido é o morno, se é ralo é barrento. Se ralo demais, é lavagem de espingarda. A cuia para beber é a preta, pitinga, o caco. A chamada para o café é feita em código, que já não é mais segredo: Os cavalos estão brigando! Chega a hora de sair para lancear. O motor de centro (máquina, penque-penque, pem-pem-pem, tenque-tenque, o barulhento, fubica, fumacento, lata velha, treme-treme, zoadeira) puxa a reboque uns cascos governados por meio do remo (pá, palheta, meu motor). Bem arrumadinhas estão as redes (aparelho de pescar, rapadeira, cacuri). Cacuri na Amazónia geralmente indica o curral de madeira para a pesca no rio, ou é sinónimo de matapi. No Jenipapo é uma rede de malha pequena para ir ao encontro da rede esfaqueada, a rede de espera. O cacuri merece uma atenção especial pela riqueza de termos que o indicam; é também rapadeira, pagacontas, pavulagem. Isso mesmo, porque tem pescador que abusa da rede pequena; só para 170


GIOVANNI GALLO aparecer, para fazer pinta, para chegar à beira da geleira de casco cheio, não importa se depois tem que jogar quase tudo fora, Neste caso o pescador é pavulagem, olho gordo, assassino de peixe. Na fazenda ele tem um irmão, é o assassino de cavalo, o vaqueiro que para fazer pinta, quer montar sempre o mesmo cavalo, o mais bonito, até matá-lo. Depois diz: – O meu cavalo morreu; e não era dele. É muito comum o termo operar, operação no sentido de trabalhar, pescar: Embora operar! O chapéu não falta nunca. Muitos conservam o chapéu de timbó, outros o trocaram pelos horríveis chapéus de napa e os capacetes de plástico. Um dia encontrei um tarrafiador que ostentava um pomposo elmo romano. Seja qual for a marca do chapéu, o nome dele será chila, quepi, boné, o balaio dela. A título de informação, o balaio é um cesto de palha e de talas com tampa ou não; indica tamPém o conteúdo, no sentido das provisões de boca que um leva consigo na viagem. O pescador geralmente trabalha com a camisa no corpo, que èle chama alegremente de paletó gandola, quando é tipo blusa, de roupa mais grossa. No sul, gandola é a peça que substitui o capote usada por militares. Ele usa camisa para não ficar tuíra: essa palavra aqui não é usada no sentido original tupi de pardo cinzento, mas porque deixa uma borra d'água no corpo. Com camisa ou sem camisa, tuíra ou não, o pescador sempre vai ser pitiú e nisso já está conformado: do tupi pitiug, recendente, fétido, agora aqui só usado no sentido de cheiro peculiar do peixe. Depois do lanço, chega a hora da bóia, que tem uma grande riqueza de expressões, apesar de que, na prática, fica reduzida ao cardápio único de peixe assado, cozido e queimado: comida, rango, chepa, boião, pirão, comer, mamar, quebra-jejum, Paco-Paco, assando e comendo, sarro. Umas poucas vezes se encontra o tempo para fazer a mojica (do tupi um/fazer e agiac/duro, consistente), aqui usado não no sentido de engrossar um caldo com uma fécula qualquer, mas de cozinhar até que o peixe se desfaça em uma papa, aproveitando peixe moqueado e esfarelado (desfiado de tamuatá). A mussua aproveita o tamuatá com gordura e tudo. A goga é feita só com ovas e fígado de peixe. A mesa não existe, não falta porém o prato de esmalte e a colher: raquete, dama, mulher, pá, rapadeira, remo. Quem está com muita fome faz a repitota, é o segundo pirão para fazer intera. Se todas as coisas, além do nome têm apelido, é normal que também o pescador esteja sujeito a esta lei. Aí vem uma amostragem tirada do recenseamento dos meus colegas: Onda velhaca, arraia, pato, jandiá, dourada, Maria vermelha, paca, neco-neco, fumaça, Bolonha, tamburão, surubi, gavião martelado, manga, nango, doutor, macaco, seremengo, fino, preto velho, coelho, becão, picota, cebolada, bodengo, Maria do amparo, gatão, curiboca, tetéu. Eu, umas poucas vezes, era vigário, padre, padre-mestre. Geralmente galo, galinho, galo da campina, galinho de ouro, galo da floresta, garnizé. Mais comum ainda Giovanni com todas as variantes 171


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ISMAILE, ALIÁS, O BARRIGUDINHO – Aqui tá um recado da Professora Rosa Maria para o senhor. – Rosa Maria ? Não conheço. – Como? O senhor não conhece Dona Saruca? – Conheço sim, não sabia que fosse também Rosa Maria... Mais ou menos conheço todo mundo, apesar de não ter conseguido gravar os nomes de todos, o que vai ser fisicamente impossível, considerada também, a natureza dos nomes escolhidos segundo pessoalíssimas regras familiares: Angela, Angelina, Angenira, Angel... Esses nomes porém, muitas vezes ficam guardados no cartório, na vida de todos os dias o que vale é o apelido. O povo interiorano gosta, é uma fama literária tipicamente local. Com a insubstituível colaboração dos alunos do Grupo de Jenipapo e Santa Cruz, fiz uma pesquisa, naturalmente apressada e incompleta, já que aPrange somente seiscentos apelidos. Se tivesse mais tempo à disposição, teria gostado de analisar a origem de cada um, no esforço de descoPrir as características peculiares dele. Naturalmente não deu, apesar de ter conseguido encontrar umas pistas genéricas, que esclarecem um pouco o mecanismo da escolha. Às vezes, trata-se de herança. Zé Duro é filho de Domingo Duro, este porém herdou o duro do sogro, veio com o enxoval da esposa. Seu Vicente é mais conhecido como Bilro velho. O sobrinho dele passou a ser Bilrinho. Os dois são moradores de Jenipapo como é então que se encontra o mesmo apelido em Santa Cruz? O Bilro Velho, anos atrás, tinha um comerciozinho em Santa Cruz: sendo um tipo popular e muito benquisto, deixou espontaneamente o mesmo apelido a quem lhe era parecido. Um defeito ou uma característica física podem dar origem aos apelidos Boca de Sapo esporte, porque não tem dentes, Boca de Alçapão, tem boca larga. Colhereira tem boca chata; Corujão tem cara feia. Moca pálida, será garcinha ou galinha previdente. Pato cego, tem um olho só; Papagaio, fala pela metade; Quiriru, está com cabelo que não senta; Acari-cachimbo é fino para Paixo; Caranguejo, queProu um braço que ficou torto; o Sapo, não tem sobrancelhas; o Tralhoto, tem olho grande, Cachorro de padre, pelo feitio da boca; boi turino, porque todo pintado; 173


MARAJÓ - A DITADURA DA ÁGUA Couro seco, é magerrimo; pé de leque, por ter seis dedos, pé de pato, o que tem os dedos emendados. Pode ser também algum fato distintivo da vida do indivíduo. Barbudo, chamado assim por um fato que contou. Um coitado, que sofria de diarreia ficou caga ralo, a vida toda; mui facilmente tem a mesma origem mijão e mijona, Pundinha, cabeça de johnson e de jipe. Algum privilegiado tem vários: nesse caso geralmente tem apelido de carinho (guri-guri) e de provocação (cara larga). Muitíssimas vezes, o apelido nasce por acaso. Saiu e ninguém sabe porque e ficou grudado a vida toda. Às vezes nem tem sentido. Para os nomes dos barcos existem regras subtendidas: esse nome não dá, ninguém sabe porque, mas todo mundo concorda. Aqui tudo presta. Tem mais: quanto mais esquisito o apelido tanto mais tem chance de soPreviver. Os bichos emprestam a maior variedade: no Jenipapo prevalecem os nomes de peixe, em Santa Cruz os Pichos do mato são maioria. Tem pássaros e aves: bacurau, bem-te-vi, canário, carará, curió, coruja, caiçaca, saracura, japií, jaburu', marreca, mergulhão, piaçoca, gavião, pinto, peru, pombo, tem-tem, socó, sunária, urubu, arara. Tem peixes de toda marca: arraia, aramaçã, piranha, pongó (o nome local de traíra), cambéua (cabeça chata), bacalhau, boto malhado, surubim, acari-boi, jandiá. Os bichos podem ser daqui ou importados: jacaré, muçum, bode, caranguejo, coelho, capivara, porco-espinho, lontra, búfalo, cavalinho, burrinho, tatu bola, guariba, vampira, pinguim. Outras vezes os nomes de animais têm ainda uma especificação: galinha na choca, rocha, empacotada; pato cego, peru tonto, pinto duro, burra preta, Pode Pranco, cachorra vadia, macaco dos prazeres, porca velha, camaleão mole, sapo cururu, americano, baiano, da bananeira; cavalo arisco, macaca barriguda, gato louro, cobra criada. As partes do corpo são conotadas por algum animal característico ou simplesmente por algum particular chocante: boca de vaca, de tuíra, de mandubé, de arapapá; beiço de gaçaba, de cavalo, de beira de alguidar. Cara larga, mofina, de lua cheia, de lua nova, de bicho, de cavalo, de búfalo; cabeça de boto, de arpão, de martelo, cabeça de jerumum, cupu-açu. Nariz de boi, de barraca, de fornalha, de garça, de papagaio, de tomada, de tamanco, nariz teu. Nuca encolhida, inteira, de jibóia. Orelha de abano, de porco, de coelho. Perna de aranha, de macaco, perna bamba. Pescoço de garrafa; queixo de Jacó, de onça; rabo fino. A este ponto a fantasia não tem mais limites; tudo presta. 174


GIOVANNI GALLO Pode ser um nome qualquer: Cirico, Camilo, Garrincha, Judeu, João Menino, Maria Peché, Maria Paulada, Zé Muruja, Rufino, Paulo bicho, Carlota, Carolina, Cabral. Ou simplesmente: foguete, flecha, galhudo, lamparina, massa fina, farol, máquina velha, Paú, terçado, surra, tabaco seco e tabaco podre, toco preto, pistola, pluma, tam-tam, morte lenta, morto lavado, meio metro, meio quilo, cinquenta gramas, mochinga, mofento, peça de caminhão, peteca, china, chilota, cipó, confusão, cocota, cera branca, buzina de Chacrinha, boneca de pano, capim gordura, pipoca, pudim, pitomba, pão borracha, cumicha, coceira. Tempo feio, cheiro, beijo de moça, torrador, castra bode, tio cabeça, gogó de faboca, campeão, dá-na-vó, valente, enrola pinto, mata pato, cuíca, remoinhpjalo. Claro que é impossível apresentar uma relação completa; precisaria passar em resenha toáos os moradores; todos têm apelidos, muitos têm mais que um. Como a gente vê, a fantasia popular não tem limites. Temos aqui toda uma série, com infinitos matizes, desde a definição engraçada, até a descrição impiedosa e, às vezes, cruel. Todos os sentimentos estão representados. Mas não é necessariamente a malícia que vai escolhendo os apelidos mais atrevidos, muitas vezes é somente a harmonia da palavra, a reação brusca que determina o fixar-se definitivo daquela expressão que Protou espontânea naquele momento. Os apelidos são, sem dúvida, o espelho fiel de um aspecto característico da mentalidade popular. O valor íntimo, porém, não pode ser buscado na análise filosófica, no sentido intrínseco do termo. Em muitíssimos casos é problema de jeito. Como já disse outra vez, analisando as expressões que se referem à cor, aqui acontece o mesmo que pela palavra preto: pode ser delicado carinho ou ofensa mortal. Depende do jeito, só.

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EM SANTA CRUZ QUEM NÃO TEM CACHORRO CAÇA COM GATO

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nos atrás, quando entrou na onda a literatura de ficção científica, na base de robots, deflagrações atómicas e viagens interplanetárias, fiquei chocado pelo pessimismo congénito na apresentação do futuro. Nunca vou esquecer aquela página, que descreve a deslumbrante alegria do homem que descobre novamente o encanto das tabuadas: não é mais máquina ou computador, volta a ser gente. Querendo ou não, ninguém pode negar um pingo de verdade nesses contos. O progresso fatal, do qual somos autores e vítimas, é como uma socadeira que avança inexoravelmente, machucando, amassando, nivelando tudo. O gênio fica perdido, a inteligência superior tem que marcar passo junto com as máquinas que a condicionam. O pesquisador só pode chegar à sua descoberta graças aos computadores, às equipes técnicas, aos auxiliares, aos financiamentos de governos ou de fundações poderosas. Não sei porque, nesses dias, esse sentimento voltou à tona. Para libertar-me olhei ao redor de mim: nesse meu Marajó, nessa Santa Cruz, onde ainda cantam os passarinhos e a natureza ostenta a sua supremacia, onde o progresso custa a chegar com suas... atrapalhações, existe ainda uma chance para o homem de talento, que desafia a técnica, os instrumentos sofisticados, o mestre que inventa a cada momento um jeito novo para resolver os problemas que deveriam estar sem saída. A inspiração me veio no dia em que fui procurar o ferreiro: o único exemplar da sua espécie que atende aos pedidos de todo mundo, desde Anajás Grande, Arapixi, Chaves e banda de Soure. Eu tinha que ajeitar o badalo do sino e precisava de dois parafusos, daquela forma e tamanho. Para entrar na oficina dele, me aventurei, malajeitadamente, como sempre quando devo enfrentar uma prova de equilibrismo, numa tábua cambaleante sobre a lama. Na porta, o último passo é marcado pela presença de uma grossa engrenagem castigada pelo tempo e pelas intempéries: a insígnia da profissão. 177


MARAJÓ - A DITADURA DA ÁGUA Ao primeiro olhar, reparei que estava diante de alguma coisa que merecia ser vista. Numa alegre confusão, podia contemplar, como num caleidoscópio, as infinitas facetas da mecanização do interior. Dá-me bom dia o mestre - acho que bem merece o título - Walmira Pmplona dos Santos, filho de Santa Cruz. Para que fique a vontade, me convida a sentar. Mais do que sentar, eu gosto de apreciar aquele mostruário de coisas inúteis, que ainda prestam para fazer pequenos milagres. – Eu precisaria isto e aquilo, e mostro o meu desenho das peças. Será que o senhor pode? Sem falar, ele bota os óculos, dá uma espiadinha: - Posso, quarta-feira à tarde pode buscar. - O que faz o senhor aqui? Pergunto para focalizar melhor as nuanças da profissão. - Faço tudo! Em outro lugar, na boca de outra pessoa, essa resposta seria generosa quixotice; aqui, pelo contrário, é uma singela manifestação de disponibilidade: Sabe como é, eu sou um quebra-galho. E a conversa se desenrola espontânea, diante da torcida improvisada que nos está rodeando. Dora Helena, a filha mais velha, está acompanhando a conversa com interesse, debruçada na janela; Luís Ernesto, sentado no chão, está raspando uma peça velha para transformá-la em nova, graças aos segredos da alquimia familiar; um par de garotinhos louros fica olhando e sorrindo. - Aqui a gente mora longe da cidade, tem que fazer tudo... Nem precisa explicar a extensão da palavra: só olhar ao redor. Tem mesmo tudo: espingardas, rifles, ferros de engomar, máquinas de costurar, uma cadeira de ferro, peças de motor de popa, máscaras de carnaval, caixas áe relógios, fechaduras, facas... mas não quero esgotar a reserva de palavras de dicionário. - Ajeita também máquinas de costurar? - Ajeito quando precisa consertar, fazer peças; sei lá, quando quebra a agulha, não lança a linha, não puxa a costura... Faço tudo com o ferro, aprendi com meu pai. Estive em Belém uma temporada, mas não gostava daquela quentura, daquela zoada... Nesta confissão parece-me descobrir o artista medieval, com um culto para o trabalho, quase uma coisa sacra, que precisa de concentração, para amadurecer a obra prima, que está tomando forma na mente. O assunto é interessante e puxo a conversa para diante, na descoberta deste mundo arcano e desconhecido. 178


GIOVANNI GALLO - Faço as minhas ferramentas. Olhe este martelo, feito a jato: não dobra a cabeça, não dobra a unha. Mexe numa caixa no chão e me bota diante dos olhos toda uma série de artefatos: chaves de fenda, talhadeiras, goivas, trados. - Faço até machos, cónicos e paralelos. Nem precisa que ele continue na enumeração, eu estou descobrindo sempre mais alguma coisa: máquina para fazer macarrão, batedeiras, argolas para laçar gado, arpões, trincos, chaves, torneiras. - Eu sou também funileiro, marceneiro, mecânico: todo mundo, quando precisa duma peça, aparece por aqui e eu dou um jeito. Evidentemente toda essa conversa tem que ser emoldurada na sua dimensão autêntica: também em Belém, em São Paulo mais ainda, fazem todas essas coisinhas, mas não como aqui, com o milagre da inventiva e da fantasia. - Veja só essa marca para gado. Se eu tivesse um maçarico, seria uma besteira. Eu corto a barra, faço a letra, furo o cravo... tudo manual. Aqui está um eixo intermediário de motor de popa: quebrou a cabeça, levo ao fogo e cravo. Aqui está uma hélice, está com a cama do pino estragada. Eu cavo mais, sempre à mão, faço o sextavado com meia polegada de fundura, com a cama preparada. Faço a bucha com a mesma espessura, coloco e cravo. Precisa um dia inteiro: em Belém fazem numa hora. A conversa continua nessa base, às vezes com palavras incertas ("Eu não sei qual é o nome ... aprendi assim, na marra"). Fico admirado e encantado: aqui tem matéria Pastante para uma filosofia da vida e de trabalho, para uma meditação assustadora sobre o progresso. Mas o amigo Walmiral não é raro como leite de onça. Só abrir os olhos e dá para descobrir campeões dessa raça marajoara, que sem nada fazem tudo, sem barulho, com uma vontade louca de não se render diante das dificuldades. Ao lado da minha casa mora outro artista da mesma marca, seu Benvindo, ou exatamente Benvindo Calandrine de Azevedo, filho de Muaná, 63 anos, 43 em Santa Cruz do Arari. Tipo totalmente diferente; comprido, magrinho, uma fala sossegaáa, quase pesando cada palavra. A ordem personificada: só entrar na casa dele, na casinha que ele fez, requintada com as malícias de um camarote de navio. Aí cabe tudo, cada coisinha no seu lugar certo. Mora com a esposa, Dona Vangica. É também carpinteiro, funjleiro, fotógrafo, está preparando um Potezinho nas horas vagas que a pesca e caça lhe deixam. Já foi seringueiro, trabalhou em roças, também faz tudo, mas no estilo da miniatura. Relógios, máquinas de costurar e as outras artimanhas não têm segredos para ele. Conserta armas. 179


MARAJÓ - A DITADURA DA ÁGUA - O Governador Aurélio Corrêa do Carmo mandou para eu ajeitar a coronha da pistola com chifre de búfalo. Corto o vidro, mas sem instrumento, até para despertador e lanterna. Faço uma argola soP medida, aqueço, coloco em cima da chapa e ela parte logo; se demorar, tiro a argola, passo um pano molhado. Sei que meses atrás estava consertando um despertador, vou bulir na história e sai um poema que é um brinco. - Fulano tinha este despertador alemão que não presta mais, até a caixa estava quebrada. Eu então dei um jeito. A peça quebrada era o eixo da âncora. Fez outro com arame de aço de uma espiral de Palanca doméstica. Não tinha lima e a fez com aço tirado de um pedaço de cabo submarino, encontrado na ferramenta de seu pai: destemperou, bateu para achatar, os arames saíram graças a um pedaço de navalha. - Consegui segurar a peça, amarrando-a a um alicate pequeno. A lente de mão estava fixaáa a um arame, na distância certa. Para tomar a medida, coloquei a lâmina dum canivete na ponta que estava inteira, encostei a peça de reposição e risquei com a navalha: só faltou o trabalho de um dia. O despertador, como vê, funciona certinho. Acho que experiências dessa marca não precisam de comentário. Diante da peça microscópica feita tão empiricamente, também o canivete tirado de um velho facão quebrado parece obra de rotina. O que fica na história é a lembrança de dois heróis desconhecidos, que representam outros infinitos craques em arranjar uma bóia todo dia, numa situação impossível, com meios que não existem. Walmiral continua sonhando com um maçarico que lhe abra novos horizontes, Benvindo reserva uma parte da janta de hoje (uns peixinhos pescados com tamanho esforço) para preparar as iscas para as arraias de amanhã.

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PIRARUCU, O PEIXE VERMELHO COMO URUCU - A gente usa uma vara meio grossa, uns trinta palmos de comprimento. Na ponta tem um pau de maçaranduba que chamam bocal com um arpão em ponto bem pequenino, que é a fisga. A gente coloca fisga na ponta da vara e corre à vela. A gente diz dobra e diz o nome do lugar. Bordeja pra cá, bordeja para láéo proeiro que manda: Direto na Boa Vista, no Pacoval na Flor da Vista, na Fazendinha... - Quando o proeiro mandava assim, enxergava o peixe? - Não, eles iam bordejando com a vara na água, bordejando à mercê... Pirarucu tinha muito, não demorava fisgar, dava lá no peixe, na ponta da vara grande. Isso servia só para se guiar: a linha fina se soltava, o pescador ia atrás dela, sabia quando o peixe estava perto por meio de uma marca e então arpoava. Depois cacetava na beira da canoa e puxava para dentro.... e depois de novo. A descrição é de Vicente Silva, um velhinho simpático, sempre Pem humorado; já foi pescador e caçador, foi ele que inventou o sistema de tarrafear marreca. Estamos no Caminho do Céu, no interior de Santa Cruz do Arari. Na visita à comunidade, falamos de batizados, do eterno problema da água, da rampa, dos poços e sobrou um tempinho para conversar de caça e pesca. Seu Vicente fala da pesca de fisga como se fosse experiência de hoje, mas 1udo isso a gente nova nem conhece. A fartura do Arari devia ser mesmo extraordinária. José Veríssimo, falando da pesca do pirarucu, na fisga, não relata essa técnica com uma só embarcação: a pesca gapuiando, que ele descreve, é feita com muitas canoas que praticamente bloqueiam toda a largura do igarapé, fazendo uma frente única, em diagonal. A pesca do pirarucu me interessa, porque já representou uma grande fonte de riqueza para essa área. A pesca descontrolada praticamente acabou com a espécie, só uns poucos especialistas se dedicam agora, porque o peixe ficou raro e arisco. O pirarucu (Sudis gigas, Vadis gigas), definido como o peixe mais bonito da Amazónia, traz o nome do tupi e significa peixe vermelho como o urucu: pira é peixe, urucu é o fruto da Bixa orellana. No nosso Museu temos um exemplar de dois metros e trinta, uns oitenta quilos de peso bruto: dizem que antigamente tinha ainda maiores. Juntando a experiência de Seu Tibúrcio, o filho de Vicente Silva, que já pescou quando era mais novo, com a de Zé Américo Bandeira Beltrão, um especialista por tradição de família, espero dar uma ideia fiel deste capítulo de 183


MARAJÓ - A DITADURA DA ÁGUA vida amazonida. - Zé Américo, qual é o tipo de pesca que você pratica? - Todo tipo, por exemplo, a pesca parada. A gente põe a rede, esperando o peixe. Se ele tentar passar, mete a cabeça e fica mesmo. O náilon é bom, eu uso bitola de um palmo e pouco, menor não uso. A medida do fio de náilon é 108; agora tem também outro tipo que chamam de tijolinho, é ainda melhor, mas eu não tenho esse tipo de fio. Eu deixo a rede e vou embora. Quando fica malhado uma hora ou duas morre, ele não resiste com o náilon mesmo. A razão é outra. O pirarucu sempre despertou a maravilha^ dos observadores, porque de vez em quando vem à tona, para respirar. É um peixe aerófago (comedor de ar), ele precisa do ar livre atmosférico por causa do fenómeno da hematose. - Eu pego também com pesca de arrastão: o camarada põe a rede no peito e vai levando, quando está meio seco, vai dando em peixe que quer passar e ele malha. - Dá para aguentar o peixe ou ele derruba a gente? - Tem vez que faz mesmo recuar! - E a pesca de anzol? - A gente corta a aninga, amarra linha bem no centro, de bubuia e a isca vai jogando. Quando não tem balsedo, coloca na terra. Ele fareja muito, sabe. O anzol é número 0, é grande, ele fica fisgado no bucho mesmo; quando engole é difícil que se solte. Pesco também de espinhei, com jiju, sardinha. Se a gente o mata logo é mais fácil, ele está cansado. Mas se esperar outro dia, ele é muito valente faz uma força violenta, respeita a forca que ele tem! Existem porém tipos de pesca exclusivos para o pirarucu. Zé Américo é um homem essencialmente prático, procura uma explicação, mas ela vem com dificuldade, para ele tudo já está claro. - A uma certa fundura, vamos dizer a uma meia braça de água, ele sente a gente, se espanta e sai, igual à marezia. A gente conhece, lá vai, carolo. Mas eu não estou satisfeito, quero saber mais. É seu Tiburcio a colaborar, numa linguagem altamente expressiva. - O peixe de risco, explica ele, é o seguinte. Nem vento forte, nem vento calmo. Tem que ter uma aragenzinha finíssima, que aqui no Marajó chamam de piririca (vem do tupi piriric: volteante, ligeiro). A explicação é de Teodoro Sampaio), que dá aquele reflexinho de vento: é quando a gente enxerga o peixe de risco. Mas tinha muitos peixes grandes, arraia, pirarucu, também jacaré, então a gente ia ver o que era. Arraia dava carolo curto, o jacaré espalhava a água, o pirarucu dava carolo ligeiro, carolo fino. Carolo é mesmo quando o peixe vai dentro da água com força e vai deixando aquele 184


GIOVANNI GALLO banzeiro. Ele vinha macio e quando a gente joga a vara nele, para conhecer, ele se espanta. Risco é uma nota, um sinalzinho que o peixe deixa na água, é só o pescador profissional que conhece mesmo o risco. Siriringo é quando o peixe borbulha na água, deixando aqueles... siriringos. O peixe, como dissemos, é aerófago: nesse caso ele expele o excesso de ar aspirado que soPe d flor d'água como um rosário de bolhas. Então a gente vai dando o desconto, se ele vem para cá ou vai para lá. Ele se espanta e vai à terra, onde a terra também é mole e aí vai botando aquelas borbulhinhas... Peixe de buio é manso e tem aquele camapu, como eles chamam. Ele aPre a Poça e solta o vento, pela guelra. Boia e abre a boca e sai toda uma bula, uma, duas, três vezes, primeira segunda e terceira: o pescador já sabe onde ele vai e, com a prática que tem, arpoa. Nessa altura, a explicação de Zé Américo pode nos ajudar mais um pouco. - 0 pirarucu boia manso, bravo e dobrado: a gente calcula quantos quilos tem. Boja manso quando ele não sente o movimento. Muitas vezes o companheiro, que não tem muita experiência, nem percebe. Ele pode boiar na proa da canoa mesmo, isto tem acontecido muitas vezes comigo. Eu estou quietinho quietinho, ele vem espiar a canoa e quando vem já dá com as costas nela, e ali se espanta... Boia dobrado quer dizer que ele boia e da boca dele oeh e vai empinando, assim fica de cabeça para o chão e lá, na terra, endireita de novo. Bóia bravo, ele bóia beh e joga a água em cima, que todo mundo enxerga; já ouviu o movimento da canoa. José Veríssimo chama a este tipo de salto precipitado e medroso na água, de balacubau ou boiocobó, palavras porém aqui desconhecidas. - Qual é a técnica para arpoar, segundo as várias maneiras com as quais o peixe se apresenta?, pergunto. - De carolo, diz Zé Américo, é mais fácil: ele está a flor dágua. De siriringo vai na terra, numa fundura alta, e vai a uma distância de duas ou três braças. Cada pescador tem a posição melhor para acertar; eu, por exemplo, me dou melhor arpoar de travesso, neste caso é difícil dar uma arpoada errada. - O peixe não forceja para ir embora, quando arpoado ? - Então a gente segunda, a gente arpoa com outro arpão. O peixe fica com dois arpões nas costas e a gente cansa ele para valer, puxa para cacetar e para matar, temos um cacete próprio, de ferro. Depois de morto o peixe à cacetadas, eu o boto dentro da canoa e o trabalho aí mesmo ou o levo para casa. Às vezes eu faço um jirau (trabalho com licença), tiro a carne, salgo logo. - Onde é mais fácil encontrar o peixe? - No lago, onde eu pesco, eles estão nos poções, eles não tem condições de ir para lugar 185


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MARAJÓ - A DITADURA DA ÁGUA nenhum, para Palsedo. - Conte-me algo sobre a vida do pirarucu, dos seus filhinhos... - Onde é que bota os ovos? - Ele faz cova, cava num tamanho dessa sala, cava até chega à terra dura mesmo, tira toda aquela terra mole para poder botar. Couto de Magalhães fala de prato, uma poça circular de 20 centímetros de profundidade por 50 de diâmetro, que a fêmea prepara com o focinho e a boca: nesse trabalho ela toma todas às posições que facilitem a perfeita execução do ninho e não raro fica com as nadadeiras posteriores meio fora d'água e meneantes para lhe permitir o equilíbrio. No período do conúbio ouvem-se distintamente, de quando em quando, sons abafados, semelhantes à voz humana. - A fêmea não é amorosa, o peixe macho é mais amoroso. A fêmea larga logo o macho e os filhos. O macho dentro de dez ou quinze minutos vem logo procurar! A gente pode estar com certeza que ele está em baixo com os filhos, a mãe fica boiando uma certa distância. - Quando os filhos são pequeninos, como é que os defende? - Dizem que os põem na boca, mas eu nunca vi. Eu sei que ele os escondem mesmo, botamnos dentro da boca para mudar de casa, a gente não os enxerga mais. O mesmo faz com os ovos; eu acho isso, porque o peixe não ia comer a ova dele, não ia comer! - E como é com as piranhas? - Ele se defende, Pate o rabo quando está com os filhos, bate o rabo na água, pah! Às vezes a piranha roe toda a Padana dele. Enquanto os pais estiverem juntos com os filhinhos a piranha não ataca, mas estando espalhados ataca. - Quando matam pai e mãe, os filhos são comidos pela piranha? - Quando são pequenos geralmente sim, mas eu nunca vi. A fêmea foge, e é difícil mas eu nunca tentei, senão se acaba com o peixe. Eu aprendi com meu pai, que nunca fazia isso, mas tem gente que mata e acaba. - Pirarucu tem outro inimigo? - Jacaré come pirarucu, espera que fique preso na rede ou no anzol e come, já comeu meu peixe. Nunca vi pegar peixe solto. - E a comida do pirarucu? - Cachorro do padre, tamuatá, caranguejo, peixe pequeno, gosta muito de jeju. Eu pesco de anzol com jeju. - O pirarucu maior que você viu? -Meu pai, no Tartaruga, uma vez matou um que pesava 105 quilos, só carne. Agora desse tamanho não se encontram mais, talvez só no Guajará, é o lago mais famoso de peixe grande. A pesca do pirarucu é uma pesca animada, eu gosto mesmo. 188


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EXPERIMENTE: É BATATA!

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Brasil não é somente o país do futebol, é também o país dos remédios. Não é piada, garanto. Quem nasceu aqui e nunca foi correr o mundo, acha normal que, em cada esquina, exista uma farmácia, que cada quitanda, até a mais modesta, venda remédios de toda marca, junto com a farinha e café. Mas é mesmo um comércio bem brasileiro. E nesse comércio de remédios acontecem coisas... Meu amigo Mané, o Baiano, me contou esta. Num recanto do Marajó, num dia em que ele estava batendo um papo numa mercearia, chegou um freguês: - Tem remédio bom para olho? O olho pode ter problemas de todo tipo, mas na mentalidade popular existe algum remédio que os soluciona todos, de forma global. Evidentemente o comerciante sabe disso, se levanta vagarosamente e vai mexer naquela caixa onde estão antibióticos, vermífugos, banhos, defumações, água inglesa e pílula da vida. - Está aqui. Experimente: é batata! e entrega o litrinho indicando sumariamente a dose ótima a ser usada. Mané, o baiano, que atrás de uma máscara risonha esconde uma certa tendência à desconfiança, espicha a mão: - Dá licença? Agarra o remédio. Lê com atenção e depois, com aquele jeito de filósofo: - Mas esse remédio é contra a diarreia! O farmacêutico curioso nem pisca: - É isso mesmo, só trocar! De fato troca com a máxima naturalidade e universal satisfação. Em nosso país todos são especialistas em remédios. Só aparecer em público com qualquer moléstia e logo estará um amigo disposto a fornecer informações sobre o caso. Mais comum ainda, a possibilidade de receber até de graça o remédio, já testado na família e na vizinhança. O remédio de farmácia não é aceito pelo povo com passiva submissão. A sabedoria popular sempre dá um jeito para valorizá-lo, multiplicar a eficácia, aumentar o raio de ação. Um comprimido pode ser esmigalhado e colocado na parte doente, ou misturado com azeite de andiroba e transformado em pomada e, geralmente, complementado com as drogas mais inverossímeis. Para suprir a falta crónica de numerário, o povo apela à medicina da 191


MARAJÓ - A DITADURA DA ÁGUA terra, chamada também medicina caseira ou do mato. Último recurso é a pajelança. Um dia amanheci com o pescoço doído. Outros tipos de mal-estar podem ficar ocultos, mas o nervo torcido não. Tive que sair à rua com a cabeça meio travessada, com o pescoço feito um toco de pau. - Foi mau jeito. Você dorme na rede, não é?... É isso mesmo. Os remédios começaram a chover de toda parte. Gravei o mais engraçado: Passar a cabeça debaixo da renda da saia de três Marias virgens. Quem sabe, o remédio pode até ser salutar, porém, por várias considerações de diversa natureza, achei oportuno não experimentá-lo. Existem de fato remédios que só têm um valor abstraio: a gente os conhece, os revela (não a todos), porém não os usa, ficando todavia com a secreta convicção de que o remédio é válido. O Nosso Museu em Santa Cruz do Arari é muito útil para este tipo de descoberta. Reparo que uma pessoa olha com demasiado interesse para uma cobrinha num vidro, então pergunto: - Conhece ? - Conheço, sim senhor... sacai... bicho danado... picada horrível... único remédio é miolo de criança pagã... eu não faria isso, não... mas quem sabe, o remédio pode até ser bom. Coletar dados nesse tipo de pesquisa é uma luta. Precisa constância, sobretudo paciência sem limites. Até os melhores colaboradores falham. Já me aconteceu: - Eu tinha anotado isso no caderno, mas depois pensei que não era bom dizer ao padre. E assim a censura popular me priva talvez da parte mais interessante da pesquisa. Sinto que a minha origem estrangeira bloqueia os canais de informação: para que quer saber isso? Existe até o perigo de que as informações sejam adaptadas e reformadas, para corrigir a ignorância do povo, fazendo um peneiramento prévio por razões éticas. Uma vez chegou um jornalista a Jenipapo para fazer uma pesquisa. Apresentei a ele um pescador que respondeu com grande espontaneidade a todas as perguntas. Quando ficamos só, o amigo deu uma gargalhada: - Será que o cara pretende saber mesmo toda a verdade? Não reparou? Ele já sabia tudo! A minha fonte de informação é geralmente a palavra apanhada no ar numa conversa informal ou escutando algum caso. A pesquisa direta é sempre feita em forma... indireta, isto é, por meio de intermediários que estão mais chegados e têm mais acesso ao informante, sempre com os riscos acima mencionados. Contra mim está mais uma desvantagem pesada: dez anos atrás nem sabia da existência do Marajó. Na pesquisa de hoje não tenho referência de coisas ouvidas na minha meninice: só 192


GIOVANNI GALLO vou atrás do faro, da analogia, das suposições e ilações. A gente vive num lugar condicionado pelas marés, todo mundo sabe que as marés dependem da lua: é lógico que vá pesquisar sobre a lua, que, com certeza, incide na vida e no folclore daqui. Mas é um caminho tortuoso e complicado. Ao mesmo tempo, é mais interessante: não é pura coincidência que um estrangeiro tenha a vontade de pesquisar o que a gente do lugar deixa num canto, com desleixo. Já fui tentado a organizar uma apresentação sistemática da matéria, mas quando encontrei trabalhos deste tipo feitos por especialistas, me dei conta de que a pesquisa se transformava numa relação monótona e abstrata, um elenco que poderia interessar unicamente ao estudioso e não ao público em geral. Acho bom, então, que vamos juntos passear pelas veredas da sabedoria popular, tirando assim, à toa, umas fichas da minha gaveta, como se fossem uns casos da vida, onde tudo vai misturado, a intuição genial e a burrice obtusa, o remédio oportuno e a ameaça à saúde pública. A farmacopeia popular é um verdadeiro caleidoscópio. Todas as combinações que um computador poderia programar já tem a consagração da prática. As doenças mais perigosas têm, aqui o remédio certo, às vezes simples, às vezes complicado na preparação ou na aplicação. Remédio contra tumores: linhaça em grão bem cozida, com copaíba, azeite doce e sebo de carneiro. Outro mais poderoso: faz-se uma papa de farinha, coloca uma baba de quiabo, põe-se um pouco de basilicão, um pouco de antiflorestina, um pedacinho de sabão, um pouco de tabaco, sebo de carneiro, fel de gado, banha de poraquê. Bate-se tudo junto, coloca-se em cima do tumor, aos poucos, num pedacinho de pano preto. E para o tumor furar: amor crescido com sebo de Holanda e tabaco. Outro mais complicado: socar sebo de Holanda com amor crescido, um pouco de café torrado em casa (essencial!), um pedaço de sola ou baeta queimada; socar tudo junto e colocar num vidro e passar todo os dias no tumor. Para tirar espinhos profundos: pega-se o sapo cururu, corta-se a pele do papo, tira-se um pedacinho e coloca-se em cima onde o espinho vai sair. Para estancar hemorragia de golpe: cabelo cortado bem miúdo e sola queimada. Na safra do Anajás Grandes, tive que fazer um curativo em Bené, devido a uma ferrada de arraia na costa do pé... Encontrei-me diante de uma veia cortada, só com a boa vontade como recurso. Resolvi colocar borra de café: e foi batata mesmo. Para a barriga inchada: socar sarro de cachimbo com alho, sebo de Holanda, azeite de 193


MARAJÓ - A DITADURA DA ÁGUA andiroba e fazer uma boa fricção. Contra dor de ouvido é bom leite do seio. Faltando a doadora de leite, colocar azeite doce... com barata! Porém urina de tatu é o máximo, só três pingos; para que possa surtir efeito mais rápido e mais seguro, é bom beliscar o fundo do ouvido com o rabo do mesmo bicho. Outras receitas para a mesma doença: três pingos de cachaça com arcânfora, três pingos de trevo roxo, três pingos de óleo de cicuta. O número três é uma constante. No caso do álcool só precisa um: tem muita substância! Para dormir não precisa usar remédios que podem provocar síndromes perigosas: pegar uma traça que roeu roupa e esfregá-la viva no olho da pessoa que está sofrendo ensonha. Para caxumba ou papeira: barro do ninho de caba, misturado com azeite de andiroba: puxar de baixo para cima. Urina solta: o chá da folha de cana fístula com folha de graviola e raiz de mucajá. Ferver. Tomar sete litros durante o dia no prazo de setenta e cinco dias. Deus nos acuda! Frieira: urina de homem com cinza de fogão quente e um pouco de tabaco, colocar numa bacia e por os pés, por cinco minutos. Remédio mais comum: óleo queimado de motor. Com certeza, alguém lendo estas notas, está procurando o remédio para o seu reumatismo. Aqui está, bastante complicado mas vale a pena tentar: pegar um poraquê vivo e encostar na parte afetada para receber três cheques. Solta-se o poraquê vivo. Fazer isso com três luas novas, de preferência quando estiver a dor; depois, colocar para a fricção a seguinte mistura: banha de poraquê vermelho, linimento de sloan (nove pingos), um pedaço de casca de marapuama, gasolina (nove pingos), um pedaço de raiz de gengibre, meia garrafa de cachaça. Coloca-se tudo dentro da cachaça, deixar em infusão três dias e depois toda noite friccionar na parte ao lugar afetado. E o receituário continua, entre amenidades e intuições geniais. Seria interessante descobrir neste acervo de fórmulas aquele remédio bom de verdade que os nossos velhos conheciam e usavam, e que agora, infelizmente desapareceu, para deixar a vaga às especulações das grandes indústrias farmacêuticas (multinacionais).

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O PADRE É BARÃO Alguém bate à porta. Vou abrir e encontro um moço simpático, acompanhado por uma patota de moleques. - Sou um fiscal do Projeto AMA. O Senhor é o Padre Giovanni? Resisto à tentação de pedir a bênção a este ilustre hóspede que caiu do céu: de fato chegou de avião e está com pressa. - Estou aqui para controlar o seu caminhão e falar com o motorista. Com muita pena, tenho que decepcioná-lo. - O caminhão está perdido, já faz dois dias. A gente está esperando um sinal de vida, para organizar o resgate. O motorista deveria estar nas proximidades do caminhão, se não foi comido por algum bicho. Minhas palavras encontram boa aceitação e o nosso amigo se salva em escanteio, disparando algumas perguntas do formulário. - As estradas são ótimas, boas ou mais ou menos? Mais uma decepção: - Pergunta não pertinente. Aqui simplesmente não temos estradas. - O Senhor poderia dar algum palpite, para que o projeto AMA seja mais eficiente? - Posso sim senhor, porém a aplicação é meio ralada: mudar o regime das águas, o ciclo das estações, a configuração vertical e horizontal do Marajó. Por enquanto a vida vai ser difícil para os carros, como para a gente. O êxito da pesquisa é satisfatório, dá para justificar a viagem. Na falta de caminhões, o ilustre visitante tira o retrato da nova Matriz e continua sua aventurosa missão. Só uma palavrinha para tirar o suspense desta história. O Exército Suíço tinha um estoque de caminhões em perfeito estado de conservação, porém tecnicamente antiquados, e achou bom fazer uma generosa doação aos países em desenvolvimento, no meio da organização. Ajuda à Igreja necessitada. O projeto AMA, localizado em Belém na Escola Salesiana do Trabalho, coordena a entrega e a manutenção, preparando ao mesmo tempo os motoristas. Ganhei, para a Paróquia de Santa Cruz do Arari, um caminhão Jerna de Ton. 3,5. São quatro anos que está galopando nesta terra ingrata, só no verão; Foi uma verdadeira providência, para o povo naturalmente. Para o coitado do vigário, só uma crônica dor de cabeça. 197


MARAJÓ - A DITADURA DA ÁGUA E disque... eu sou um padre rico, dono até de um caminhão. Mas olha lá, apareceu Jorge, o motorista. - O caminhão está atolado perto de Santa Luzia. - Não temos escolha. Amanhã vamos dar um jeitinho com o jipe. Saída às seis horas. Tanque cheio de gasolina, água no radiador. Mais um bujão de água e uma lata de gasolina de reserva. Fé em Deus e pé na tábua: a gente mergulha na imensidão dos campos. Somos três. Conosco vem também Ciriri, um pretão quebragalho universal. Os primeiros quilómetros são uma verdadeira alegria: seguimos uma pista mais ou menos decente. A alegria acaba logo ao enfrentar a ferroada e a gente tem a impressão de estar pulando numa escada. Parada obrigatória. De repente nos encontramos no meio de uma neblina impenetrável. A gente fica esperando. No Marajó quem está com pressa morre. Aos poucos ao sol se abre um caminho, até aparecer com toda a sua prepotência. E a gente toca pra frente. Depois de um massacrante pula-pula, chegamos ao caminhão; está atolado numa baixa, dentro do balcedo podre. Com a ajuda do macaco levantamos as rodas, colocamos embaixo tábuas e galhos. Depois eu boto o jipe para quebrar. Único resultado: um mau cheiro de queimado, pneus, embreagem, capim. E o caminhão aguenta. - Vamos embora, até a Fazenda São Miguel, talvez o Gaioso nos tire daqui com o trator.. Saudações aos náufragos e vamos embora. A viagem acaba logo. Depois de poucos quilómetros, o jipe pifa: está complemente esgotado, e ninguém consegue vencê-lo. E nós, coitados, desparafusa cá, limpa lá, passa a lixa (a caixa de fósforos), renovando sem cessar a nossa fé nos milagres do céu. Depois de mais uma tentativa, Jorge limpa as mãos, satisfeito: - Agora vai, se Deus quiser. - E se Deus não quiser? Pergunto eu. - Então ninguém o manda, Ciriri falou. Hoje Deus não quer mesmo: o que é que a gente faz? - Eu fico esperando, vocês vão à procura de socorro, digo eu. - E a água? Se fica com você, a gente não aguenta no caminho. Se a gente a leva consigo, você o que faz? Tem mais uma coisa: temos uma faca só. - Faca para quê? - Com esta estiagem, até a onça pode passar por aqui, procurando água. 198


GIOVANNI GALLO Honestamente, não consigo imaginar o que poderia fazer com uma faca, se encontrasse uma onça, aqui de noite. Só poderia oferecer-lhe com carinho o bujão de água, pedindo-lhe que fosse bebê-la o mais longe possível. Não tendo outra escolha, todos três começamos a marcha da salvação. - E você dá conta? Os colegas olham para mim, desconfiados. Eu penso na minha última excursão, feita uns vinte anos atrás, a contragosto. - Se Deus quiser, dou conta. Ciriri vai à frente e corre que nem diabo; ele carrega a água e a gente não pode largá-lo de jeito nenhum. Uma hora da tarde, temperatura mais ou menos 35/40°. Tiro as sandálias; não consigo andar, o piri trança os dedos e me faz tropeçar. Não estou treinado em ir descalço, a terra está quente, em toda parte há espinhos, mas, com a ajuda de Deus, com sandálias ou não, puxando a barriga, tufando o peito, aguento. Depois de duas horas a primeira parada. A água acaba, nenhum comentário. Mais duas horas de marcha e chegamos a um poção. Parece um sonho. Diante dos nossos olhos o espetáculo de milhares de aves, que chegaram para beber: maguaris, cauauás, garças, maçaricos. Uma vaca está atolada e nem se mexe mais, já está conformada, nem liga para os urubus que estão pulando ao redor. Jorge testa a água, fazendo concha com a mão: - Está podre. Não é de estranhar, há um bocado de peixes mortos boiando. Ciriri experimenta uns metros mais para lá: - Aqui está boa. Custa-me bastante acreditar no milagre, mas vale a pena. Nunca pensara que um dia teria achado a água suja e quente mais gostosa áo que a cerveja. Última etapa. As pernas estão ficando de pau. Perto de Igarapé Fundo e São José, os cachorros querem avançar, mas todos três ficamos juntos, atrás do Ciriri, que não esqueceu o cacete. Oito e meia da noite. Chegamos a Santa Cruz do Arari, depois de uma caminhada de uns trinta quilómetros, naturalmente sem comer o dia todo. Hoje não rezei Missa, não fiz palestra nenhuma, porém aprendi a conhecer um pouco mais a minha gente. Se alguém me disser que o padre é barão, porque é dono de um caminhão, vou até achar graça. É o jeito.

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ERA UMA VEZ COMADRE ONÇA Dantes as comadres onças eram muitas, na realidade e na fantasia do povo. Na zona mineira do rio São Francisco, a Onça Borges já foi, na conversa de todos, a mais afoita e violenta, apesar de não estar registrada nos tratados de zoologia. Foi o vaqueiro Ventura que virou onça e onça-danada; se não voltou a ser homem, os culpados são os seus camaradas que não tiveram a coragem de colocar-lhe na boca um molho de folhas verdes. Matá-la foi negócio feio, mas disque... de vez em quando ela reaparece para fazer tropelias. A onça cabocla é pior do que visagem; de fato, é um monstro encantado. Transforma-se em velha tapuia e come gente. A onça maneta entrou também na crónica policial. Faltava-lhe uma pata dianteira mas corria que nem diabo, tinha força desconforme, atacando rebanhos e onceiros. A onça-boi mora no Acre. É pintada, porém tem pé de boi, os cascos duros, redondos, deixa o rasto duma rês, enganando até vaqueiro velho. Gosta da vida familiar que só. O casal só trabalha em sociedade: estão de tocaia, fazem assaltos... e quando um caboclo perseguido por elas trepa numa árvore, uma onça fica de sentinela, lá em Paixo, enquanto a companheira resolve os problemas de casa com toda tranquilidade, come, bebe e dorme, para estar em forma na hora de render a outra. Até que enfim o caboclo cai que nem manga podre e num triz já era. Matando a onça-boi macho, a mulher desata a rede. O contrário é desaconselhado, assim pelo menos nos conta Luís da Câmara Cascudo, que neste, seu tipo de pesquisa não tem quem lhe faça sombra. Nós aqui no Marajó também temos onça. De outra marca, claro, mas não é xerimbabo para enfeitar quintal. Não se encontra mais em todo canto, como o urubu. Agora já está no desterro, já nas poucas ilhas do mato, no centro. Tem também homem valente que vai mexer com ela. Aqui estão uns depoimentos, assim como saíram naquelas conversas descontraídas em que eu sempre procurei esconder o gravador, para não estragar a pitoresca e encantadora espontaneidade do linguajar popular. - É uma fera perigosa, conta seu Tibúrcio. No limpo corre, mas se der um serradinho ela fica brava. Quando ela mata vai encobrir, cobre de folha e a gente só trata de embiara de onça. Isso é conhecido, ela deixa logo o sinal. 201


MARAJÓ - A DITADURA DA ÁGUA Só a pessoa vendo. Ela põe no ombro e arrasta, vai puxando no nariz, põe na costa e vai embora. Numa certa parte, ela para, se põe em pé e olha. Quando ela pula numa rês, atraca na frente, debaixo do braço da rês e nas pernas debaixo dos quartos e afora a nuca. Quando mata a rês, ela tira a língua, a maçã, abre para tirar o coração. Quando está com muita fome, come uma parte da rabada da rês. Ela escolhe sempre vaca média e, se tem filho, prefere o filho. Ela marca uma rês e acaba comendo. Aquela rês vai onde quer; fica visada por ela; podem passar mil reses, ela não quer senão aquela. É um bicho inteligente. Só tem medo de búfalos, Ela só come búfalos quando a vaca pariu e deixa o bezerro. Mas quando ela está, rodeia. Quando tem búfalo, ela é muito arisca, não se cruzando com búfalo, porque eles a matam mesmo: fazem um círculo e a vêm cercando em lote. Na Fazenda Santo Elias havia um rapaz. O apelido dele era Mata-Onça. Então a onça fez uma matalotagem, como se diz, fez embiara. Faltava uma bácula e o rapaz com os companheiros foram à procura e deram na embiara. Um ficou numa ponta, outro na outra e outro foi fazer a batição como eles chamam. Botou o cachorro pelo mato para ela vir. Quando ele viu, vinha uma onçazinha pequenina pela estrada. Ficou olhando para a onça e não queria atirar, quando a onça grande vinha pela outra parte. Quando ele foi levar a espingarda no rumo da zinha, viu a grande que queria pular nele. Levou um susto tão grande que a espingarda caiu da mão dele e fincou na terra. Ela estava trepada. Uma coisa tão grande com um andar tão leve nas folhas. Ele olhando para à onçazinha não notava o movimento, nada. Se ele não levantasse a vista, ela o acabava comendo. - Para acabar com o susto, você conhece a estaria do Gato. Meu pai contava que a onça queria comer o gato. A onça pulou no gato mas ele sabe pular para trás e a onça ficou sobrando. - Compadre, você não me ensinou essa. - O mestre nunca ensina tudo. E assim a onça ficou devendo para o gato. Caçador falado é Seu Manduquinha. - O senhor é bom caçador? - Sempre fui. - Desde quando? - Ah, isso que não estou lembrado. Desde quando me entendi, sempre gostei de caçar. - Que está caçando? - Marreca... marreca... O que eu caço? Marreca, jacaré, capivara, algum maracajá, alguma onça. - Lembra-se de alguma caça perigosa ? 202


GIOVANNI GALLO - Perigo comigo não, mas assisti a uma coisa muito engraçada. Estava na caçada da onça, quando os homens metem os cachorros na ilha. O cachorro dá com a onça, né, o cachorro vem acuando e a onça vem andando atrás do cachorro, só olhando assim, acima do ombro e rosnando. Um senhor velhusco que estava na caçada, tinha um garotote assim junto dele. Dois rapazes vinham acompanhando o cachorro e, numa ocasião dessas, o cachorro vai em cima da onça e a morde. A onça enraba com o cachorro e o deixa assim, fora do campo. Então grito para o rapaz: - Atira na onça! O velho estava assim na minha ilharga, com o gravinote e o garoto no lado dele. E quando eu disse Aí vem a onça, Tio Sérgio, eu pensava que ele fosse prevalecer-se da arma, né. Mas ele joga a arma no chão e se empurra num açaizeiro seco, que tinha aí. E o garoto se empurra na macaca dele e o açaizeiro cambou. Foi embora. O velho deu um alto grito, feio, meu amigo. E aqui foi aquele trovejo de risada. Aí o velho, que era interessado da caçada, ficou aborrecido conosco. Estava vendo o homem em perigo e eu não ia acudir, estava achando graça. Mas não havia perigo nesse ponto, porque ele caiu lá fora e a onça distorceu para o mato. Não havia oportunidade. Depois outro rapaz, que estava com o rifle, foi atirar e matou a onça. Depois que puxamos a onça para fora, foi aquele lamento de risada e de caçoada. Então eu fui peáir áesculpa ao velho: - Me desculpe, não foi que eu tivesse fazendo caçoada, foi que eu achei engraçado o senhor não se prevalecer da sua arma, jogando-a no chão e se empurrando numa árvore seca, e o garoto se empurrando na sua macaca e o senhor gritando, feito fosse a onça que tinha lhe pegado nas cadeiras e a árvore virou. Aí não prestou mais! - É difícil caçar a onça? - Só fazer uma embiara para a onça e esperar. - Quantos cachorros precisam? - Depende do cachorro, se o cachorro é bom de caçada de onça, só com um cachorro o senhor mata a onça. - Como é o cachorro bom de caçada de onça? - É um cachorro que é profissional naquela caçada. O animal que tem aquela potência de coragem. Se acontecer de o senhor recuar ou querer correr ou cair, e ela vier para querer mordê-lo, o cachorro o defende; bota o dente nela e ela tem que distorcer para o cachorro. É o tempo que o senhor levanta. - O cachorro tem mesmo a coragem de enfrentar a onça? Tem que ser grande? - Coragem tem, seja jito, seja grande. Há muitos grandes, que não prestam, só de ver o 203


MARAJÓ - A DITADURA DA ÁGUA cheiro e olhar, correm para o mato e vão-se embora. E se tiver um jito desse tamanho e for bom caçador e corajoso, enfrenta a onça e faz o mesmo efeito do grande. - O cachorro tem que ser treinado ou nasce caçador? - O dono o ensina, tem que lhe dar aquela inteligência para caçar, para ficar habituado na caçada. - Aqui estamos perto dum ninhal. Amanhã vamos caçar onça? - Sem ter certeza por onde ela está, é uma casualidade encontrá-la, uma aventura. Se a gente souber que aqui tem uma onça, então a gente já vai naquela certeza de o cachorro pegar a batida dela, o rasto dela, e vai bater com ela. - Quando a onça repara a presença do caçador, ela foge ou ataca? - Se ele for um pouco medroso, ela enfrenta ele. E se for corajoso ela corre e só espera se o cachorro a acuar. - Mas ela tem raiva do homem ou só ataca se for atacada? - Ela ataca de diversos modos. Se o camarada topar com ela e ela estiver parida, se o homem e a arma não for Poa ela vem comer ele. Só não pode comer, se ele tiver o cachorro no lado dele. Mas que ferir ele, ela fere. Quando ela está fenda, fica muito brava. Nas bandas do lago Guajará, o Martinho me contou outra estória de onça, também engraçada. Garantiu que é verdade: - Chamava-se o nome dele Pai Miguel. Tinha muito medo de onça, mas muito mesmo. Ele gostava de beber. Um dia ele foi no comércio, bebeu muito, demais. Chegou em viagem, ele caiu e não se lembrou de onça, se havia onça ou não. Quando acordou, meia noite mais ou menos, viu aquele vulto. Ele dormia com uma perna espichada e a outra encolhida, mas não se lembrava. Quando ele se acordou, foi abrindo os olhos devagar, já estava melhor e disse: Aqui é a onça agora assim pai Miguel vai ser comido pela onça hoje. Ele andava com terçado. Ali com jeito, devagar, se aproximou do terçado, foi levando devagar para banda da cabeça dele. Aí, que quando abriu os olhos carregou o terçado no rumo do vulto; abriu os olhos, acompanhou o terçado que abriu o joelho dele. Disse: Agora sim, Pai Miguel vai deixar de beber, que essa bebida só deu para prejuízo.

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GIOVANNI GALLO

NOSSA SENHORA ME PERDOE

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ns anos atrás, contam, apareceu a Devoção de Nossa Senhora das Graças. Foi uma explosão de fé, que se espalhou em todo o interior, entrando em todos os lares, monopolizando promessas. Quando a devoção estava dando evidentes sinais de cansaço, depois de ter atingido o apogeu, entrou em órbita Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, para ocupar as posições ameaçadas. Mas fatalmente, passado um certo tempo, começou a decadência. Entre um estrondo assustador de foguetes chegou o inesperado reforço de Nossa Senhora do Bom Remédio. De vez em quando, de avião ou de barco, Nossa Senhora faz investidas fulgurantes no interior, movimentando e deslocando o povo de todos os recantos. Chegou também a Jenipapo, repetindo o costumeiro milagre de magnetizar as multidões. Eu não estava lá, infelizmente. Sinto muito não ter apreciado esta forma de devoção popular: pelo menos uma vez na vida teria saboreado a consolação de ver a minha igreja cheia de povo. - O Senhor devia estar aqui... às seis horas o povo já estava esperando, para acompanhar a pé a Santa até Santa Cruz. Unha gente, gente, a igreja não aguentou. E as notas amarradas nas fitas, só da graúda, de cinquenta, de cem, de quinhentos... Falam de trinta, quarenta mil cruzeiros e mais... Nossa Senhora raspou a nuca a São Pedro... Eu não fico com ciúme, não. Eu sei que o dinheiro no trabalho de um padre é a última coisa. Na novena de São Pedro, uns dias, a salva não deu nada, outra vez deu 7 (sete) cruzeiros. Deus é grande e a gente vai tropeçando, quebrando o galho na hora crítica, deixando que o pessoal continue colaborando graças à boa vontade e não ao salário avultado. Eu acho que o dinheiro caiu em boas mãos e sará bem aproveitado. De qualquer forma quando o povo dá, dá à Santa, assim cumpre a sua promessa. Se depois o pato, em lugar de se transformar em Igreja cai no tucupi para alegrar o almoço de algum devoto intermediário, ao povo não interessa. O dinheiro é o elemento marginal da história. Conheci Nossa Senhora do Bom Remédio uns anos atrás, na casa de Mestre Mário: - Pode rezar uma Missa a Nossa Senhora do Bom Remédio? Depois começou a foguetaria do sábado: impressionante. 205


MARAJÓ - A DITADURA DA ÁGUA Que a Santa vinha nos fazer uma visita eu soube da boca de um bêbado, no meio da rua. Não gosto de conversa de bêbado, tenho casa e não trato negócio no descampado, nem tomei a coisa a sério. Diziam que estavam correndo umas cartas por aí, fiquei esperando mas não recebi nenhuma. Quando estava de viagem a Belém, para participar de uma reunião com o Bispo e os meus colegas, reunião marcada desde o mês de janeiro, soube que já corria o boato que estava fugindo para não encontrar a Santa e que tinha dado a ordem de trancar a porta da igreja. Teria gostado imensamente de estar presente, sem compromissos e sem preocupações, só para espiar, para procurar compreender esta manifestação de fé: no final das contas, N.S. de Nazaré e N. S. do Bom Remédio são a mesma Santa, com farda diferente, que sempre se deu Pem com o glorioso São Pedro. Queria ver nara compreender porque, nesta aparição de N. Senhora, o povo caiu na igreja como uma avalanche, porque se juntou sem que ninguém organizasse nada (os boatos contraditórios que circulavam não eram certamente a forma mais apurada de organização), porque se cantou, rezou sem parar, quando nas minhas procissões tudo fica mortinho e ninguém quer puxar o canto e a reza? Porque aquelas pessoas que em seis anos nunca entraram na igreja, nem pela curiosidade de ver como é igreja nova, desta vez entraram, cantaram, rezaram, avançaram aos empurrões para amarrar na fita uma nota de cem ou de quinhentos? Imagino os foguetes. Aos sábados, as seis horas, parece estar-se em guerra. Todos os sáoados, o ano todo. Aquele dia superou a medida. Os comerciantes acabaram os estoques, só faltou capital e fantasia para prever uma liquidação tão gigantesca. Talvez a minha presença não tivesse resolvido nada, talvez a dúvida ficasse mais funda e mais encabulante. Eu estou convencido de ser um padre bastante liberal, no sentido de que vou procurar os meus caminhos, sem ligar demasiado com a letra dos decretos e das leis. Procuro driblar as dificuldades com epiquéias, restrições mentais, licenças presumidas e truques parecidos, só para buscar o ponto de encontro com o meu povo. A minha situação é delicada, porque estou jogando dentro de um time, e uma conduta independente demais pode prejudicar o placar. Acho que a nossa Missa deveria ser diferente: é parada, tem música, mas lhe falta aquele jeito brasileiro. Nós exigimos um silêncio que ninguém observa, nem na assembleia. Exigimos aquela ordem que é importada e fica uma nota desafinada, como uma peruca loura na cabeça de uma mulata. Marcamos um horário rígido cronograma pormenorizado, quando tudo aqui é improvisação, até a prestação de contas e nos projetos federais. Não sei cantar, Deus me castigou, mas me viro com o toca-discos e o gravador e as cantoras 206


GIOVANNI GALLO dão um show com os seus gorjeios: música da fina, último grito, o máximo da modernidade. Mas eu reparo que quando o povo pode cantar uma ladainha, demonstra estar no seu elemento... como numa pajelança. Eu sei que os Chefões não querem que a Santa vá esmolar. Mas eu já fui até a Jutairana, com Bilro Velho e Dona Margarida, preocupados para que o santo, embrulhado, numa toalha de banho, não apanhasse chuva. E o santo, a meu ver, era o único que não podia pegar gripe. Fechei um olho, deixando que São Pedro e Nossa Senhora de Nazaré passassem de porta em porta. Só pedi que anotassem a reação do povo, o que ele fez, o que ele diz, o que ele pede a Santa. Para compreender ou procurar compreender se aquela esmola é sinal de amor ou fruto de medo, receio do castigo do Santo que entrou e saiu sem ganhar nada. Eu gostaria de ressuscitar os foliões (dos Santos e não do Carnaval) e juntar-me a eles para visitar as nossas casas. Com Cassiano, Evilázio, Dona Ocirema, Negrão, já fui apreciar esta folia, a alvorada, a boa noite, a despedida, as orações; me contaram como era e como não era, a folia só reza e a folia casada com a festa dançante, a devoção e a vigarice. Já passei semanas com os pescadores na beira do rio e no mondongo, debaixo de uma lona ou no casco. Eu gostaria de acompanhar uma folia com Nossa Senhora de Nazaré, passando meses no centro, trocando cavalo de vez em quando, ficando a noite sentado na beira do curral, escutando estarias antigas e de visagens, participando daquelas devoções que os livros de teologia não ensinam. Acho que para mim seria mais duro do que levantar às quatro horas para bater água no meio das piranhas e das arraias. Mas seria também mais proveitoso. Teria a chance na minha vida de vigário, de entrar em todas as casas, conhecer todos de perto, sentir a falta de água, de caminhos de escola, de remédios. São sete anos que estou andando por este Marajó: quando a água me deixa eu vou até lá no Francês ou na Marinada, mas vou correndo. Sempre com aquela típica afobação europeia, poupando tempo, óleo, aproveitando as paradas para fazer duas coisas numa. Marcha forçada: Jenipapo, Santa Rita, Desterro, Santo Elias, Francês, na volta Mocoões e depois Ucuuba, Mascote... O pessoal chega, escuta, aguenta ou procura participar, de vez em quanto não se dá conta que está na Missa, porque não está acostumado. Às vezes me pergunto: o que posso fazer para esta gente? Encontro-os uma vez por ano. Vou correndo. Eu não posso dar, eles não podem receber. Se eu pudesse acompanhar os foliões com violão, o reco-reco, o surdo, sentir mil vezes aquelas toadas sempre igual cantadas com um som nasal e de cabeça... talvez compreender melhor esta realidade e poderia dar alguma coisinha da nossa fé além do programa da Festividade e a Certidão de 207


MARAJÓ - A DITADURA DA ÁGUA Batismo. Mas se eu fizesse isto, na minha batida, todos os donos de santo e santinhos poderiam se juntar numa desenfreada concorrência misturando ladainha e marretagem, ladainha e farra. Mas é norma qualquer projeto sempre tem embutida uma dose de risco. Não existe outra escolha: só esperar que os tempos amadureçam, sem choque e sem pulos. Só de uma coisa tenho medo, dessas graças, desses milagre São demais! Estava com dor de garganta, procurava um emprego, o pintinho não saía do ovo... aquela planta não grelava.. Me peguei com Nossa Senhora: passou a dor de garganta, aqui cinquenta cruzeiros; chega o emprego, aqui estão cem; saiu o pintinho e os cruzeirinhos está aqui... Os foguetes são uma forma expressiva para manifestar amizade mas será que Nossa Senhora gosta que todo sábado haja aquele disparos sem fim, também por parte daquele que não mandará se filho ao Grupo porque não pode comprar a folha de papel almaç para a prova? Quando minha mãe completou 80 anos, por intermédio dum amigo, mandei-lhe umas rosas vermelhas. Gostou imensamente deste presente do filho que mora mais longe. Mas se eu todo me mandasse uma rosa, com certeza ela me diria: - Giovanni, chega, já sei. Guarda o dinheiro para as crianças e teu jardim. Vai chegar o dia em que o nosso povo começará a analisar história do pintinho, da dor de garganta, do emprego, da pimenteira dar-se-á conta que não era mesmo milagre, eram só uns lances e vida, feita de imprevistos, de surpresas, coisas alegres e chatas. Aquela relação graça-dinheiro, graça grande - dinheiro grande aparecerá como uma exploração, um engano. E o povo que s acostumou a brincar com o fogo, o fogo das pistolas e dos foguete a um certo ponto orientará o seu interesse para outros tipos de foguete e os disparará com o mesmo entusiasmo; faltando foguete, usar simplesmente garrafas com uma mistura que não é propriamenl batida. E se revoltará contra a igreja que lhe vendeu milagres que não eram milagres, somente para que ficasse quieto e comportado. Mas se naquele dia encontrar esta página, já velha e desbotada compreenderá que não foi a igreja dos padres que o enganou, porque muitos padres como eu têm medo de certos tipos de milagres. Que Nossa Senhora me perdoe!

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Puxando o casco na espia, como os homens de um passado tenebroso, como bichos

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UMA SAFRA “MUITO PÉSSIMA”

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stou à boca do lago Arari, na saída de Jenipapo. Uma lanchinha de marreteiro, um casco abandonado, meia dúzia de varas fincadas na beira. Um jirau para pesar peixe, vazio. Mais adiante a tapagem de terra, larga como uma estrada. No outro lado uma palhoça. Dona Rufa arrumou como sempre o seu comerciozinho; o que faltam são os fregueses. Seu Sátiro está esperando a condução para ir ao Tartaruga. Não precisa ser um técnico de pesca para descobrir o fracasso. Aqui não encontro ninguém para entrevistar, volto de bicicleta e encosto nas casas. - Como vai a safra? As respostas são um leque de nuanças: - É Deus que sabe, mais ou menos, um pouco mole, meio ruim. Ouço até boa, graças a Deus, mas é só para achar graça e debochar. Tirando a casca da forma literária, se reduzem a esta, do Sargento Barata, consignatário de pesca, filho daqui, profundo conhecedor da profissão. - São dezoito anos que acompanho a safra do lago Arari; esta é a pior! Nesta época, na boca do lago, sempre havia umas trinta feitorias, de trinta para cima, agora são três. A maioria dos pescadores desistiu, não valia a pena continuar, não se pegava nada. - Estou pescando aqui há trinta e poucos anos. Esta safra é a pior de todas, em outros anos a safra fica ruim do fim de novembro para frente, agora já pifou no mês de outubro. - Alguém acha que a água está grande, porque fecharam o lago cedo... - Não é, não. Mesmo quando a água está maior, aqui no começo, quando está até pelo campo, a gente pega peixe. Agora não pega porque não tem. - Qual é a altura da água? - Tá baixa, tem mais ou menos um metro. Se tivesse peixe como alguém está dizendo, estava-se pegando... e tem lugar só de meio metro, um metro só nas partes mais fundas. No ano passado, para dar prosseguimento d dragagem do Projeto Marajó, o DNOS tapou a boca do lago no mês de setembro. Houve um levante de protestos e de desespero, por medo que esta medida matasse a safra do lago antes de começar. Eu mesmo entrei em 211


MARAJÓ - A DITADURA DA ÁGUA contato com o Dr. Pantoja, Diretor do DNOS, apresentando a situação. Voltei a Jenipapo com o Dr. Bertino para discutir o problema com os pescadores e foi encontrada uma fórmula de compromisso; foi decidida a tapagem no fim de outubro, como, de fato, foi feito. A safra começou, muito escassa. Um dia a tapagem amanheceu arrombada. Alguém aproveitou a chance inesperada para levantar a bandeira de corajoso, defensor do povo faminto, assumindo gratuitamente a paternidade da façanha. Quem de fato arrombou ficou caladinho, espalhando o boato que tinha sido a força d'água. Minha experiência à beira do rio, passando semanas e semanas no galho do pau, não tem como objetivo exclusivamente a pesquisa sobre a pesca, a técnica, o meio ambiente. Estou interessado sobretudo em conhecer o pescador, descontraído, à vontade, aceitando a minha presença como um fato normal, para que se manifeste na sua identidade. Muitas vezes lá no Anajás Grande ou no mondongo, eu não estava lendo ou dormindo, simplesmente escutando, analisando os seus assuntos de interesse, o seu modo de raciocinar, de avaliar a realidade. O pescador pode ficar até meia noite com o rádio ligado para acompanhar o jogo Paissandu x Abaetetuba, mas na hora do nosso raquítico e peneirado noticiário, desliga. O que acontece além do nosso chato horizonte não somente não interessa, não existe. Por isso ele ignora que em muitas partes do país os pescadores artesanais estão desaparecendo junto com os peixes dizimados pela predação e poluição. Não encontrando a fartura de outrora, ele não analisa, simplesmente quer forçar a natureza a dar o que não pode mais dar. O peixe está escasso? Aceita supinamente a ordem de arrombar (quem manda arrombar não é um malvado, simplesmente um homem pouco esclarecido), fica satisfeito com a alegria ilusória de um par de dias; mais tarde (e nem todos) começa a abrir os olhos. - No ano passado alguém arrombou a tapagem; isto ajudou a pesca? - O arrombamento prejudicou muito a safra deste ano, porque o peixe miúdo baixou, ficou muito pouca água e o pouco que baixou para o rio foi capturado. Então ficou sem condições de produzir este ano de 79. Eu não estou de acordo não, de arrombar agora. No lago agora só tem do miúdo. Vão pegar aqueles uns, a água baixa, o lago seca e o peixe morre. Eu não estou nesta conversa, não estou de acordo com este pedido de arrombar a tapagem ta, ta, ta... - Baixando muito a água, será que não prejudica também de outra forma? - Prejudica, sim! Baixando a água, o peixe cai para o centro do lago onde está o cardume das piranhas, então ninguém tem condições de botar a rede no meio das piranhas, porque ela a destrói só numa pescaria. - Mas a piranha não come o peixe? 212


GIOVANNI GALLO - Na água baixa ela está meio tonta, devido à água grossa fica sem comer. Tem mais uma coisa, na água baixa o peixe, sobretudo o apaiari, se enterra e ninguém mais pega ele. Mas a novela do lago Arari não acaba aqui. Arrombaram a tapagem e todo mundo ficou quieto espiando o que acontecia. E não aconteceu nada. Só mais tarde chegou outra vez o trator da CODRASA que tapou o lago, com bênção de todo mundo, mas em lugar de fazer uma pequena barragem, como sempre, amontoou um volume enorme de terra, uma coisa desconforme. Alguém disse que foi pesquisa, outros pensaram que fosse vingança; na realidade, a motivação não mudou nada. Chegou o inverno, como sempre. As chuvas caem nos campos, baixam nos regos, nos igarapés, correm para o rio Anajás Mirim, que começa a sua corrida para o mar. Encontrando o Arari, ele tem uma vacilada, quebra para cima, tomando o rumo do lago. Está acostumado a derrubar a barragem para abrir as portas à piracema, quer dizer ao peixe que chega para desovar. Mas este ano encontrou uma barragem estúpida (no sentido marajoara de proporção, não de inteligência). Levantei a minha voz para denunciar o fato de que a barragem não deixou passar a piracema. Alguém me apelidou de mentiroso e de profeta de desgraça mal informado. O que aconteceu na realidade? Vamos ver. - A piracema não entrou por causa da barragem. O peixe está acostumado. Nos primeiros repiquetes de chuva que dá, ele quer subir para produzir, vai entrar no lago. Este peixe está acostumado a subir e baixar, depois, quando a água começa a baixar, ele volta para o rio. Este ano não aconteceu, isto é, quando o peixe chegou no lago, deu na barragem. Aqui precisa acrescentar mais um pormenor que não é pormenor. Quando o pescador se deu conta de que a piracema não podia entrar e teria voltado definitivamente, se descontrolou; jogou-se em cima do peixe atordoado e pegou quanto mais pôde, naturalmente carregando geleiras que não estavam autorizadas a receber este peixe. Foi uma ilusão que deixou a boca amarga. - Este inverno foi ruim, muito ruim. Só deu para a bóia da família, mas não deu para vender um peixinho e comprar alguma outra coisa, para comer, não. - Qual foi a causa disso? - Foi a tapagem. O pescador não colaborou neste fracasso. Veio com a malhadeira, mas se tivessem deixado aberto a tapagem, talvez, o pescador não tivesse colocado a malhadeira... Este inverno deu muito pouco, uma parte fracassou, porque fecharam a boca do lago e depois mataram muito peixe na piracema... Fracassou no inverno, fracassou no verão; não tem mais para nós comermos no Igarapé Fundo. Tem que levar de Jenipapo para lá. O povo mesmo de Santa Cruz sentiu, que vinha buscar comida lá no Igarapé Fundo e agora não vai 213


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MARAJÓ - A DITADURA DA ÁGUA mais porque não tem. Aos poucos, o quadro vai se revelando em todos os pormenores; infelizmente as tintas são cada vez mais sombrias. O espectro da fome está tomando formas concretas. Neste inverno, o pescador de Jenipapo comprou peixe salgado dos marreteiros, agora no ponto alto da safra, compra no comércio sardinha em conserva. Não pode ser indicado como bode expiatório somente o DNOS por ter tapado o lago, impedindo a piracema, dificultando fora de medida o tráfego para Santa Cruz. O pescador entrou no peito e na marra para arrematar o desastre, só confiando na sua própria miopia. - O que prejudica a pesca são as malhadeiras no rio, na subida do peixe. A malhadeira encontra o peixe, além disso o peixe chega à tapagem e o pescador pega o peixe aqui com a rede. O que sobrou voltou, pois não havia administração certa aqui e fizeram o que queriam... Na piracema o pessoal daqui, o próprio pescador, bota as malhadeiras, criva o rio de malhadeiras, impedindo que o peixe possa passar para o lago. Tem mais. A pesca do Arari, apesar da primeira impressão, está se modernizando, mas só para correr mais depressa em direção do suicídio. Ao redor do lago, do canal do Tartaruga, existe uma grande quantidade de poções, onde o peixe no verão fica preso. For meio de caminhões começou a exploração dos viveiros; apenas poucos palmos de água, só encher o paneiro e carregar na costa até ao caminhão. Há uns poções onde o peixe é condenado à morte, porque secam; tirar o peixe, todo o peixe, é Pom, já está condenado. Mas tem outros que não secam... mas escutem a voz da verdade. - A pesca nos poções prejudica, porque eles vão pegar o peixe miúdo, matam e o graúdo levam. O que é pior, o peixe que fica nos poções é justamente o peixe que no inverno vai reproduzir; uma parte volta para o lago, outra fica no poço mesmo e produz para desovar. Então, capturando estes peixes dos poções, fica-se sem peixe para produzir; a piracema não chega, no lago não há, nos poções não tem, de onde é que o peixe vem? Deveria ter fiscalização para impedir que matassem o peixe miúdo. O peixe miúdo deste ano, para o ano já é peixe graúdo, é peixe para a exportação. Mas querem pegar o peixe graúdo e trazem o miúdo também. - Você conhece algum caso? Eu sei, se você não contar, conto eu. - Eu conto, sim. Foi quinta-feira. Vi um pescador chegar aqui na beira da tapagem, com uma média de 400 kgs de peixe. Escolheu, escolheu, deu 40 kgs de peixe. Foi para a geleira e voltou com mais 20 kg. Matou 400 kg para passa 20 kg na geleira. Isso é um crime... - É verdade que o peixe nunca acaba? - Diminui, até acabar. Muitas espécies a gente quase não encontra mais: surubi, 216


GIOVANNI GALLO piranambu, o próprio tucunaré está caríssimo aqui, a pescada só tem das pequeninas agora, o tambaqui, o pirarucu estão desaparecendo do lago. - Como foi a safra no Canal do Tartaruga? - No ano passado foi ótima. Este ano talvez só deu dez por cento do ano passado (quem diz isto é dono de geleira que entende de balança). Mas em todas as partes é assim. Acho que a pesca está reduzida a 10 por cento do que era trinta anos atrás... se não houver providências para proteger o peixe, vai até extinguir. A coisa mais urgente é agora a seguinte. No mês de janeiro precisa arrombar a tapagem com as primeiras chuvas a fim de que o peixe possa subir para o lago. Se não abrir, o peixe desce para rio e não volta mais. Uma safra péssima no inverno e no verão. Sardinha em conserva e peixe salgado importado. O pescador, já parado em novembro, fica de férias até o fim de junho. A situação que, há uns meses, defini obsoleta, está ficando absurda, calamidade pública. A receita que pode salvar Jenipapo e a pesca do Arari está aqui: abrir a tapagem na hora oportuna, fiscalizar o malheiro das redes, proibir as malhadeiras que crivam o rio, assim como a captura da piracema, controlar a despesca dos poções e o tempo da safra, impedir a matança do peixe miúdo. Mas vocês querem saber o que vai acontecer agora? Esta é a grande hora dos políticos semiaposentados, que, armados de mentiras e falsas promessas, procuram a promoção fácil e barata, explorando a boa fé e a ignorância. Os políticos já vão chegando, com a máscara de defensores dos pescadores oprimidos. E quando a Colónia prender uma rede predatória, quando a SUDEPE multar um pescada assassino de peixe ou fixar um limite da safra para garantir um futuro, os políticos estarão lá, fazendo a roda como urubu, para neutralizar toda medida, para que o pescada fique mais manso, morto de fome, pronto a ser instrumentalizado. É isso mesmo. Quando no inferia há um Delegado de polícia que consegue moralizar o ambiente, chega o político e o tira do time. Que tristeza! Desculpem, que vergonha!

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DEU À LUZ UM ROBUSTO MENINO

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anúncio alaga o Marajó. É a hora das mensagens, quando todo mundo larga o serviço para entrar em contato com os seus conterrâneos. Nomes familiares de pessoas nunca encontradas, nomes mil vezes repetidos, junto com as comunicações mais variadas: ligar a geladeira, pagar a dívida, balizar a pista, preparar embarque, procurar o documento na mala preta da cozinha... É a vida de todos os dias, com suas alegrias e tristezas, entremeada de imprevistos, briguinhas, saudades e votos pelo feliz aniversário. Fulana deu à luz um robusto menino! Quase sempre aconteceu em Belém; umas poucas vezes a notícia foi transmitida à Emissora, porque o caminho de Belém revelou-se mais barato do que o recado levado de casquinho nos igarapés sinuosos ou na mata a dentro. Se o robusto menino nasceu com parto cesariano, muitas vezes não foi por exigência médica, mas pela decisão de não ter mais filhos. Para ligar as trompas da mãe a criança tem que nascer de barriga aberta. Assim o povo diz e vai sair mais barato. Pesquisando o folclore do ciclo da vida, não posso evitar de fazer uma divagação no mundo dos índios. Confesso que nunca tive a sorte de encontrar-me com eles: só os conheço através de estudo e depoimentos de pessoas qualificadas. Nos primeiros dias de Brasil, encontrei um par deles debruçado na janela da Sede da FUNAI: na minha crassa ignorância, vendo aqueles traços orientais, os olhos rasgados, até pensei que fossem japoneses! Tenho uma grande admiração pelos índios. Primeiramente pelos índios que me procederam no Marajó (os Ananatuba, Mangueira, os Formiga, os Marajoara, os Aruã), porque tenho mil oportunidades de contemplar, diria saborear, no nosso Museu, as maravilhosas cerâmicas que nos deixaram como lembrança. E também pelos índios todos, os assim chamados selvagens, os que vivem ainda no tempo da pedra lascada. Superando os preconceitos da falsa cultura tradicional, a gente descobre neles valores humanos que a sociedade moderna já destruiu fatalmente e sem apelo. Darcy Ribeiro, uma testemunha acima de qualquer suspeita, relata-nos: "Ao tempo da pacificação, a mulher tinha seus filhos ao descampado, junto à aguada ou num abrigo especialmente armado para isto, se estivesse acampada perto dum grupo numeroso. Ajoelhava-se, sentada sobre os calcanhares e fazia força; quando sentia que a criança começava 219


MARAJÓ - A DITADURA DA ÁGUA a nascer, suspendia os joelhos e tomava o nascituro nas mãos. Criança e placenta eram expelidas sem interrupção, podendo a mãe ou a ajudante, quando havia, cortar o umbigo já fora do corpo. Usava-se para isto a lâmina de uma flecha comum do marido e depois dava-se um nó na porção do umbigo presa à criança". "Após o parto, a mãe ia ao córrego lavar-se e a criança, voltando à casa ou ao rancho especial quando existia. Nos dias seguintes era recomendável que comesse carne de bugio, tanto a parturiente quanto o pai que os devia caçar. Mas nem sempre isto era possível. Não havendo outra mulher que lhe trouxesse a lenha e água necessária à casa, ela própria ia buscá-la e não interrompia seu mesteres de cozinheira". Parece um conto de fadas, uma página inédita do Paraíso Perdido. Perdido de verdade, porque para os índios pacificados "até o parto que se constituía um ato fisiológico normal, ocupando apenas o casal interessado ou alguns parentes que cuidavam do nascituro, enquanto a mãe se lavava, tornou-se um acontecimento dramático". . Darcy Ribeiro continua seu estudo apresentando-nos a cena final que considero tristemente decepcionante para a nossa civilização. "Os Kokleng de hoje nascem na cama entre gritos lancinantes: a parturiente é rodeada pela família e pelas amigas, todos certos de que ela vai viver momentos de terrível sofrimento." A profunda transformação é baseada em dois fenómenos: um cultural, que consiste na mudança de atitude da mulher frente ao parto, e outro fisiológico, causado pelas complicações que agora sobrevêm constantemente como a febre puerperal e o tétano, que fatalmente não apareciam, se tratados com os antigos processos. Dizendo Paraíso perdido quero chamar a atenção também sobre a alteração do equilíbrio biológico do ciclo vital: "Enquanto viviam em bando, nómades pela mata, as mulheres só voltavam a engravidar quando a última cria já tinha três ou quatro anos. Hoje o intervalo se abreviou para dois e até para um ano apenas". A civilização chegou e estragou tudo, sem dar em troca nada que preste. Aqui, vale a pena citar as palavras que o líder da tribo Umotina disse ao pacificador que trazia ajuda às vítimas do sarampo: "De que serve tanta farinha e roupa se morremos das molestais que vocês nos passaram?" Depois desta excursão em nossa história não muito remota, vamos dar uma espiadinha na palhoça do nosso caboclo de ontem e de hoje, para descobrir o que acontece no nascimento de um menino. O sinal marcante da mudança duma época está no fato de que a criança, muitas vezes, não é mais sinal de prosperidade e bênção de Deus. As dificuldades da vida, as exigências novas, as ideias importadas da cidade, obrigam a mudar a visão da família, chegando até a operação: a 220


GIOVANNI GALLO operação, por excelência, é a esterilização da mulher, procurada e praticada em vastíssima escala. Se em todo o Brasil está sendo realizada como no Marajó, o problema da explosão demográfica já está resolvido definitivamente. E para a mulher liberada do medo duma nova gravidez, fica o medo das consequências da operação, uma quantidade assombrosa de insignificâncias que ela nunca mais poderá fazer a vida toda. Foi operada: quase um resguardo sem fim. Existem também receitas caipiras para não ter filhos, nem um! Um ritual mágico, pesando a moça com o correspondente em sal, a ser praticado quando ela é regrada pela primeira vez. Evidentemente não cabe aqui citar os detalhes, também porque o fato meio esquisito merece de minha parte um estudo mais apurado. Encontrei outra fórmula para ter um filho só. Pode ser mesmo um método esterilizante, porque deve ser aplicado depois do primeiro parto. Seria interessante analisar aquele determinado chá a tomar-se com aquela pílula: o resto, a placenta colocada num balde verde, amarrado entre duas telhas enterradas na biqueira da casa, é só coreografia. A mulher parida é a chocante antítese da índia na mesma situação. O resguardo é um pesadelo, com infinitos tentáculos, incontáveis exigências: a necessária continuação dos tabus da gravidez. Antigamente (digo assim porque este módulo de vida está em fase de rápida transformação) a parturiente ficava em baixo do mosquiteiro com janelas fechadas, durante quarenta dias, para não apanhar vento e chuva. O vento era uma obsessão, daí a necessidade de forrar o chão e o teto, amarrar a cabeça, vestir meias. Mas o fenómeno vento é um capítulo que não se esgota no parto; se Deus quiser, vou lhe dedicar uma atenção particular numa próxima oportunidade. A escolha da comida merece um severo cuidado. Durante oito dias, só galinha (e depois queimar os ossos), pirão escaldado e chá. Alimentação (mas não só essa) tem uma estrita relação com a amamentação do filhinho. Não comer comida seca ou reimosa, é claro: isso não deixa encher o peito. Sobretudo, nunca deixar pingar o leite no chão: se formiga beber, acabouse o leite para sempre! A mãe bem informada sabe como encher o peito. Além duma sábia alimentação (muito caldo, mingau com farinha, sopa abundante, açaí) pode passar no peito o pente fino, ou manteiga ou o suor da tampa da panela. Beber só água ferrada ( colocar um ferro quente na água e logo tirar). É bom beber vinho. É interessante descobrir que o vinho é elemento dominante no cicio ritual do nascimento (a mãe e os visitantes). O Marajó não tem produção de vinho; evidentemente é um hábito importado da Europa e lançado por algum comerciante espertinho. As normas mágico-higiênicas assumem a liderança. Não tomar banho senão depois do sétimo dia e, desde aquela data, só nos dias pares (8°, 10º... ) até o quadragésimo. Atenção para não usar talco (dá dor de cabeça) nem perfume... e não catar piolho. E por quê? Em toda parte o piolho é considerado símbolo e sinal de prosperidade: é bom não afastá-lo. 221


MARAJÓ - A DITADURA DA ÁGUA A clausura rígida imposta à puérpera não pode ser considerada unicamente como defesa física contra os agentes que ameaçam a saúde corporal. A maloca dos primitivos, toda fechada para impedir a entrada dos espíritos maus, encontra aqui um eco evidente. De fato, não é elemento exclusivo do caboclo marajoara. Na Grécia, as parturientes não podiam olhar as estrelas para não receberem influxos maléficos. Na Irlanda era imperioso fechar armários e portas para evitar que as fadas viessem trocar o recém-nascido. Digo fechar, porque na hora do parto tudo tinha que ficar aberto, para facilitar o nascimento, pelo princípio da magia simpática que encontramos em todo folclore. Se a mãe está protegida pelo seu isolamento, a criança não enfrenta a vida sem o necessário apoio. Enquanto as comadres preparam uma porção de breves, que afastam os males e os perigos de qualquer tipo, o banho da sorte dá sorte mesmo: só colocar na banheira ouro e jóias, anel ou gargantilha. Até agora só tenho encontrado esta particularidade do primeiro banho, mas estou cismado que na tradição popular se escondem outros pormenores interessantes: o Panho, sobretudo o primeiro banho, tem lugar de destaque no folclore universal. Se na Suécia o primeiro banho era feito com jóias, (para que ficasse rico), mais um ovo fresco (para criar pele fina), na Inglaterra e na Alemanha também ferravam a água, mergulhando um carvão aceso ou uma agulha quente. A água do primeiro banho é considerada como algo que emana diretamente da criança. Precisa um cuidado especial para jogá-la fora, evitando que alguém possa utilizá-la para fins maléficos. O nosso caboclo costumava jogar esta água onde o sol senta: desta forma a criança crescerá mansa e obediente. Fulana deu à luz um robusto menino. A alegria da casa se expande no povoado pelo mais estrondoso meio de comunicação, o foguete, que agora está sendo substituído pela pistola (mais prática, comprada feita, sem precisão de amarrar o rabo). Quase em toda parte a regra é fixa: para homern três, para mulheres dois. Se a família quer fazer pinta, porque é rica ou tem obrigação de pagar promessa, então dá os tiros rituais e depois de uma pausa toca para frente até aguentar. Faltando foguete e pistola, também espingarda serve. No número dos tiros é fácil descoPrir o caráter machista da nossa sociedade: o nascimento do homem é saudado por uma evidente alegria, o da mulher com uma certa decepção. Chegam os vizinhos, os amigos, os parentes, respondendo ao implícito convite das pistolas. Já está pronta cerveja, birita, vinho e refresco... desculpem, estava distraído, nesta ocasião todas estas bebidas têm outro nome, chamam-se simplesmente a urina ou mijo da criança.

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O GEBRISTA

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m dia, batendo um papo na Secretaria de Agricultura, saiu por acaso a palavra gebrista. Um senhor aristocrático, com distinta barbicha, explicou: - Eu sei, quer dizer ladrão de gado. E acrescentou uma erudita palestra para provar a sua afirmação. Meio constrangido atrevi-me abrir a boca: - Desculpe, já fui gebrista, mas nunca ladrão de gado! Talvez o nosso amigo tenha tirado a informação do Glossário de Miranda Neto em Marajó, desafio da Amazônia. De fato ali se define gebre por vegetação dos alagadiços e gebrista por ladrão de gado. Outros especialistas como Vicente Chermont de Miranda, José Veríssimo, BeaurepaireRohan, Bernardino José de Souza, desconhecem simplesmente o termo gebrista. Gebre pode ser metátese de brejo e se identifica com mondongo, definido por Vicente Chermont como extenso balcedo, entremeado de aningais, de solo afofado e atolento, de vegetação pujante e cerrada, difícil de romper-se, coberto durante o inverno por quatro a oito palmos de água e que só seca e endurece nas últimas semanas do verão. O povo de Santa Cruz usa tambPém a variante barcedo, barcedeiro, que praticamente se identificam com gebre e gebrista. O gebrista é uma figura típica dos campos do Marajó, uma raça em via de extinção. Um ser indefinido, em todos os sentidos. Meio caçador e meio pescador; pode até ser ladrão, intencionalmente ou por desespero, mas geralmente fica em equilíbrio nos limites da legalidade. O gebrista dirá: Deus me livre, nunca me sujei! Quer dizer que ele não rouba porco, nem pato, nem passa eletricidade no gado. Só vai atrás do que é de todos: capivara, sucuriju, pirarucu, jacaré, muçuã. E a consciência dele fica em paz. Eu não justifico nem condeno, estou simplesmente relatando. Entrando na Fazenda, pede licença. Saindo, passa pelo feitor para mostrar a carga. Tem gebrista viciado que só entra e sai escondido com o casco chapado; mas esse é ladrão de gado disfarçado de gebrista. Mas também o honesto entra onde não dão licença; neste caso se considera injustiçado e fica com aquele medo. Já fui um gebrista, porém legalizado cem por cento; fui nas Matinadas de Seu Gutinho, acompanhando Zé Américo, pescador oficial da Fazenda. Quando correu o boato que o Padre ia pro gebre a comoção foi geral. 225


MARAJÓ - A DITADURA DA ÁGUA Até para os moradores de Jenipapo e Santa Cruz, foi um acontecimento; nem todos os pescadores fizeram o que eu fiz. Digo isso agora, com um certo orgulho, porque tudo deu certo, graças a Deus. Mas passei um bom susto. Vou contar. A escolha do patrão era importante: eu precisava de legalidade. O único pescador oficial de fazenda, conhecido era Zé Américo Bandeira Beltrão, aliás um especialista por tradição de família e velho amigo meu. Podia dar certo. O ajudante dele, Antonico Leal, o conhecido Antonicão; dois metros de canelas, do qual teremos que falar mais adiante. Eu sabia, como de fato aconteceu, que alguém que não gosta de Padre teria ido bater nalguma porta para acusá-lo de invasão; não foi a primeira vez nem será a última. Mas é Pom que saibam que padre não é tolo e não faz asneira desta espécie. A viagem que geralmente o pem-pem-pem faz em poucas horas demorou um dia. Fiquei apreciando. Não quis pegar na vara para não atrapalhar e para não forçar a barra. Queria testar a minha resistência. O sol estava embaçado e eu me descuidei um pouco, subestimando o poder de queimação do mormaço; mais tarde senti as consequências. Foi um étimo treinamento para entrar num esquema de vida diferente, num novo ritmo, fora do tempo e do espaço comum. Não levei rádio, nem relógio, nem nada. Deixei que Zé Américo fizesse tudo como sempre. Encostamos na Fazenda. Grande animação; era dia de apartação. Todo mundo atarefado e ninguém ligou para a gente. Passamos a noite na casa do Mestre Santana, camarada legal, gentileza fora de série. Não podendo falar com o dono, fizemos uma visita à casa grande. Recebemos o sal, um pedacinho de carne de Dona Nini, um leitezinho na panela e fomos embora para o lago Açacu. Aconteceu o primeiro incidente. De repente me deu uma dor de estômago medonha; era o jenipapo que estava brigando com o leite. Fiz como costumavam fazer os romanos antigos nos jantares luculianos e resolvi tudo na hora. Uma quentura horrível no meio do arumanzal. Meus colegas estão cortando aninga para fazer bóias. Vejo aquela água escura, limpa, aliciante e penso em voz alta: - Vou tomar banho! - Você tá maluco? - me investe Antonicão - tem piranhas, poraquês, mais outros bichos... Fico olhando aquela imensidão, saboreando aquele silêncio. O tempo passa, o silêncio parece mais pesado, a solidão mais oprimente. Estou preparado psicologicamente a tudo; antes da viagem já antecipei mentalmente tudo o que podia acontecer para não ficar desprevenido. Mas como no delito perfeito, esqueci um pormenor; foi aqui que caí. Eram mais ou menos cinco e meia da tarde, quando meus colegas acabaram de arrumar a casa de reto: duas forquilhas com uma vara para sustentar a lona do teto, em cima do casco. 226


GIOVANNI GALLO Zé Américo deu a ordem: - E agora vamos nos agasalhar, antes que chegue o carapanã. Foi como uma pancada na cabeça. Característica do gebrista é que ele vive o tempo todo no casco, quer dizer no seu barquinho. A popa é cozinha e sanitário. Na parte central um jirau de tábuas, em baixo a caça, em cima o sal, os apetrechos. Na hora de dormir, se empurra o bagulho para lá e os homens deitam. Geralmente são dois: um dorme de pé e outro de cabeça. Sou intruso e tenho a honra de escolher. Prefiro ficar de cabeça para a proa, com Zé Américo. Antonicão coloca as suas intermináveis canelas entre os nossos rostos. No desenvolvimento da experiência, Antonicão demonstrou com evidência que não gosta de dormir espichado; encolhe as pernas para encostá-las no meu peito. Com a delicadeza digna de um vigário, levanto-as mas ele continua imperturbável no exercício, até que eu aprendo um truque: puxo para cima o joelho dele e depois solto de vez, a perna cai do lado e Antonicão leva um susto... e tem termo. Aquela primeira noite não me foi fácil, estou acostumaáo a dormir sozinho no quarto e faz muitos anos, sozinho numa casa. Sempre tive um sono agoniado, mas este problema resolvo elegantemente: quando não consigo dormir, levanto, passeio, batoa máquina, faço o que não consegui fazer de dia. Aquele momento compreendi que devia ficar imóvel, deitado em cima de umas tábuas áurante treze horas, sem me, mexer para não atrapalhar a vida dos meus companheiros; era um compromisso que havia assumido comigo. Nunca vou deitar antes das onze, mas naquela altura era o jeito se conformar; os carapanãs não brincam. De fato adormeci. Quantas horas dormi não sei; acho poucas, talvez uma ou duas. Despertei tomado de pânico. Podia ser a febre pela assadura do sol, mas não só isso. Naquele momento, percebi estar perdido no mondongo sem fim. Nestes anos de Marajó, viajei muito, conheço esta área melhor do que a maioria dos moradores. Mas a gente, geralmente viaja no rio, nos igarapés encontram-se casas, embarcações. Na safra do Anajás Grande a gente vive numa feitoria, que é sempre muito animada, não dá para sentir a solidão. No gebre, de repente, me senti só, se acontecer alguma coisa, só uruPu vai encontrar a gente. SoPretudo senti medo. Um medo descontrolado, irracional, uma força estranha me apertava a garganta, uma vontade louca de gritar, de fugir. E os meus colegas roncavam beatamente. Não queria despertá-los, não queria admitir que estava com medo, com um medo que nunca senti na minha vida. Quando era criança, durante a guerra, nos ataques aéreos todo mundo fugia para o refúgio, o porão reforçado das casas. Acontecia umas vezes que uma pessoa de repente ficasse doida de medo, querendo fugir, sair daquela ratoeira, ir ao encontro da morte que estava de tocaia na rua. O mesmo pavor descontrolado pega o 227


MARAJÓ - A DITADURA DA ÁGUA branco que se aventura no mato e perde o autocontrole. Não tenho vergonha de confessar que passei por um túnel tenebroso, feito ãe medo, de raiva, de vergonha, de arrependimento; uma chicotada ao meu atrevimento, minha imprudência. Devagarinho, para não maltratar demais as costas doídas, sentei-me. Esforceime a imaginar que estava em casa, na igreja; respirando fundo, raciocinando comigo mesmo feito criança. Com um objetivo só: aguentar até ao raiar do sol, depois teria pedido que me acompanhassem à fazenda, onde teria pago um diarista que me levasse a casa. As piadas não me teriam poupado, mas não podia prejudicar os meus companheiros. Passei muitas horas assim, depois caí no sono. Quando abri os olhos, o medo tinha sumido, mais ou menos como naquela noite em que deixei cair no rosto Formol, embalsamando piranhas. Compreendi que podia dar conta do recado, não disse nada ao meu patrão e fiquei até o fim, treze dias perdidos no mondongo. O que sobrou foi beleza incomparável. Quando Zé Américo estava esperando o boiar do pirarucu, podia contemplar as maravilhas que o homem em quase toda parte já destruiu, as florzinhas humildes como o panamá, o apê, a nossa vitória régia de segunda escolha. - Por que o dormitório dos pássaros fica sempre tão longe? A pergunta é do Antonicão. E se sente no ar aquele flu, flu, parece o suspiro de um gigante: são os mergulhões. As marrecas parecem comadres, tagarelando sem sossego. O guará, inquieto, sempre muda de posição no Pando, formando todo tipo de letra, como explica Zé Américo. A coroca pula de galho em galho e faz cro-cro: está preparando o café para o vigário. Quando Zé Américo abre a manta para salgar o pirarucu é aquele showl Nem sempre a vida foi fácil. O café, é do bom, nunca faltava. Antonicão preparava os seus gravetos no fogareiro feito com a lata de querosene. O almoço era garantido, o jantar nem sempre; o cafezinho da manhã, só para enganar a fome. Neste ponto se manifestava a minha falta de preparo físico. Estou acostumado a comer no horário marcado, não sou exigente, mas nunca sentira falta. O pescador come quando tem bóia, não está amarrado a horários. Ele leva também outra vantagem, tem uma capacidade de armazenamento espantosa. Eu tomo uma besteirinha e fico satisfeito, mas depois de umas quantas horas o estômago reclama. O pescador parece um saco sem túndo; tem gente que engole sem piscar vinte, trinta tamuatás. Graças a este regime, ele evidentemente tem maior autonomia. Num dia de crise de comida, encontramos umas canoas não sei em que lago. Existe uma solidariedade mútua entre os gebristas. Olhei para aquela Póia que estavam preparando; 228


GIOVANNI GALLO não era jacaré, não era pirarucu. Parecia porco. Isso mesmo era porco, pensei. Então rezei mais ou menos assim: - Acuda-me, Nossa Senhora dó Bom Remédio. Há 24 horas não como. Se os amigos me oferecem porco roubado, que faço eu? Recuso? Quem vai me perdoar esta desfeita? Aceito?... vão dizer que o padre mata porco na fazenda. Fazia muito calor naquela hora, mas eu estava suando frio. De repente veio a ajuda do céu; o meu olhar caiu em cima do couro da... capivara. Estava salvo. Fossavam os dias, passavam as noites; a cada noite as tábuas pareciam mais duras e as noites mais longas. Era bom quando a gente saía a lanternar; era um castigo de praga, mas a agonia do sono ficava reduzida. Botando malhadeira, salgando peixe, chamando com o chapéu o cauauá a fim de que se aproximasse mais um pouco, para receber a bala. Um dia atirei em um mergulhão. A fome era grande e o bicho ficou pouco na panela, a impressão foi de coma sola. Depois daquele dia só chamamos os mergulhões de altinho sajico. No lago Três Irmãos há um lugar visagento: a casa da velha Maria. Quis ficar lá de noite sozinho com o meu rifle. A espera de visitas assombrosas. Meu patrão não deu licença. Nas horas de espera aprendi fazer nó; nó de pescador, de mulher, de garrafa, de caco, de guia, mais outros. Mas sempre esqueço. Acostumei-me a distinguir a comédia e o rasto da capivara, a batida do jacaré. - Não assim, mais compassado. - Zé Américo me está ensinando a chamar o jacaré, estalando os lábios. Na noite funda, quando os colegas estão dormindo, faço o teste, faço a minha chamada e lá no aningal a preto velha responde solene. Anos atrás teria vindo para me levar para a embiara. Agora não, ela sabe que está condenada a desaparecer, como o mondongo, como o gebrista, como o vigário que faz experiências deste tipo.

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Teremos o famoso “Casulo” e precisa mesmo mostrar que somos esforçados

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O BORNAL As histórias populares, que eu encontrei em nosso meio, são poucas, pouquíssimas. Já apresentei duas, todas do mesmo narrador. Domingo Ramos, o simpático Domingão. As hipóteses dessa escassez, a meu parecer podem ser duas. Talvez esse repertório seja mesmo muito fraco. Por outra parte, nem posso garantir que esses contos sejam de extração marajoara. Só uma pesquisa comparativa poderia garantir a autenticidade da origem. Até o boto, que poderia ser apresentado como uma típica presença na literatura amazonense, depende da tradição cultural grego-latina da sereia e da lenda nórdica de Lorelei, como frisei falando desse assunto. O Domingão é maranhense e esses contos, ligados às lembranças da mocidade, mui facilmente têm origens naquela terra que tem palmeiras onde canta o sabiá. Nem seria arriscado dizer que pertencem àquele patrimônio genérico da cultura ocidental que se infiltrou no Brasil, através dos infinitos canais da colonização e da imigração sucessiva. Nesses dias, comentando com Padre Nicolau Musich, o simpático Vigário de Muaná, a história de São Pedro safadinho, tive a surpresa de descobrir que também na tradição popular da lugoslávia existe um conto semelhante. São Pedro que comeu o fígado, desta vez na última ceia, o fígado do cordeiro pascal. Outra hipótese é que o povo não gosta de contar suas histórias sob encomenda. É possível só na hora certa, à noite. Sabem por que? Contando de dia... cria rabo. Seja como for, aqui está mais uma história. As características são genéricas, adaptam-se a qualquer cultura, não faltando porém uma nota local na figura do fazendeiro, no pormenor do rancho, o que, porém, pode ter sido inventada na hora pelo narrador, para ter mais aceitação. E uma história leve, de ritmo bastante veloz, de conteúdo agradável. Vale a pena ouvi-la pela boca do nosso simpático Domingão. Precisa relembrar que Domingão é soldado da polícia militar, daqui a preocupação dele no uso do glossário de quartel. *** João, filho da pobre Antonila, chegou aos dezoito anos, alistou-se para servir. Foi um bom 231


MARAJÓ - A DITADURA DA ÁGUA elemento, nunca foi preso, nunca seus superiores lhe chamaram atenção. Todos os serviços que ia fazer, cumpria direitinho. Chegou o tempo em que já estava antigo no quartel; pediu a baixa dele. O Comandante disse: - João, eu vou dar a baixa e vou fazer também um elogio no boletim, para toda tropa ouvir. Quando temos um soldado bom no quartel, então o comandante lhe dá um elogio: vou elogiar-te para todos os praças verem. Vais ser um espelho para todo o quartel. Houve a formatura e a leitura do boletim. De presente, o comandante deu a ele uma farda, um bornal (que o soldado carrega de lado para botar a bala), um cinto, um quepe e um par de botas. Foi ver os vencimentos dele e tirou três vinténs de saldo. Ele se foi embora dizendo: - Com esses três vinténs, eu vou até encontrar a felicidade. E seguiu. No meio da viagem encontrou dois velhos, todos vestidos de camisão preto, cabelos compridos. Conta a história que eram São Pedro e Nosso Senhor Jesus Cristo. O Senhor sabia que era um bom elemento e disse: - Ó filho, dá uma esmola, que até essa data não temos comido nada. Prontamente João tirou um vintém do bolso e deu, dizendo: - Até logo, meus senhores. Eles responderam: - Até logo, vai com Deus e a Virgem Maria. Seguiu. Chegou à frente e viu dois velhos parecidos com aqueles que ele encontrou. Eles vieram e disseram: - Ó filho, dá uma esmola pelo amor de Deus, que até essa hora não almoçamos. Prontamente tirou outro vintém e seguiu a viagem. E disse: - Tenho só um vintém, mas com a graça de Deus, onde eu encontrar a bóia eu compro. Mas antes de chegar a uma cidade, encontra novamente os dois velhos (mas ele não sabia) e tornaram a pedir: - Dai uma esmola pelo amor de Deus. Ele prontamente deu o último vintém. Quando entregou, um falou que era Nosso Senhor e disse: - Olha, João, (chamou ele logo pelo nome), você sabe quem somos nós? - Não, senhor. Ele disse: -Eu sou Jesus e esse aqui é São Pedro. Nós somos aqueles mesmos velhinhos que saíram pela primeira, segunda e terceira vez. Vimos confirmar para ver se você é um filho. Foi mesmo: deu até o último vintém que tinha, não foi? - Agora que quer que eu faça por você? Ele disse: 232


GIOVANNI GALLO - Divino Mestre, eu quero que me dê um poder que tudo o que eu quiser, venha cair aqui nesse bornal. E Nosso Senhor disse: - É só o que você quer? - Só, se me der isso, para mim é uma satisfação, aceito. - Pode seguir a sua viagem. Tudo está feito. Ele seguiu e disse: - Agora eu vou com fé, falei com o Divino Mestre e tudo o que eu quiser vai cair no bornal. Chegou numa cidade, foi passando bem junto de um hotel, já de tardezinha. Olhou a mesa, onde havia um prato com uma rés assada. Então disse: - Ah, aquele lombo no meu bornal. Vou fazer uma janta. Rapidamente aquele pedaço de carne bonita veio cair no bornal dele: comeu um pedacinho e seguiu. No dia seguinte, de vez em quando comia um pouco e quando deu cinco e meia da tarde chegou a uma fazenda. Foi falar com os vaqueiros, mas eles disseram que o patrão não dava rancho (rancho pra lá, é pedir agasalho para ficar). Pois bem ele ficou, foi à casa do dono da fazenda e falou com ele: - Meu senhor, eu sou viajante, venho de muito longe, estou cansado, queria que o senhor me desse agasalho aqui numa dessas casas, O fazendeiro respondeu dizendo: - Aqui no meu terreno não dou agasalho a pessoa que anda assim, aqui eu não dou, nem na minha casa nem na dos vaqueiros, não consinto. Eu tenho acolá uma casa abandonada, assombrada, se o senhor se atrever a passar a noite lá, vá. Lá aparece muita visagem. Quando alguém pede agasalho eu mando para lá. Vem a noite e ele corre, porque tem muita visagem. Ele falou e disse: - Senhor, eu vou dormir lá na casa. Se eu correr, eu não venho aqui com o senhor, procuro outro rumo. E João foi. Encontrou a casa, toda feia, escura. Passou a mão nuns gravetos, fez um fogo. Estava fazendo fogo e começam assobiar por aí, davam pssiu, não ligou para aquilo. Estava fazendo o fogo para esquentar um pedaço de bife que tinha levado, quando um braço humano caiu do teto da casa. Ele olhou e não se importou. Demorou um pouco e caiu uma perna; aí não se importou. Depois caiu um pé, ele foi e respondeu: - Olha, já caiu um pé, um braço e uma perna, agora cai cabeça e tudo! Rapidamente caiu tudinho: cabeça, tronco, resto da perna, caiu tudo. Então ele falou: - Aí, meu bornal, dá-me o poder para emendar esse corpo humano! Ele foi lá e emendou: 233


MARAJÓ - A DITADURA DA ÁGUA era um homem. O homem falou: - Nunca dei nada a ninguém, eu morri e fui para o inferno. Estou no inferno. Para me salvar tinha que encontrar uma pessoa que me desencantasse. Eu tenho três malas cheias de dinheiro; essas malas eu enterrei. O que me fazia estar na perdição eram essas três malas. Será que você tem a coragem de arrancar essas três malas? Aí João disse: - Tenho. Então vou lhe ensinar. Foi lá com ele num canto, mostrou onde estava o lugar, deu para ele ferramenta, pé de cabra, cavador, lhe deu tudo aquilo para arrancar as três malas. Dessas três malas de dinheiro, uma era para ele, uma para mandar rezar Missas, e outra para dar esmola para toda a pobreza da cidade. A alma ainda disse para ele: - Olhe, quando fizer o serviço, tem muito problema. Mas se você tiver medo e não arrancar eu fico no inferno. E João disse: - Deixa comigo! João foi lá, arranjou a ferramenta e cavou até meia noite. Arrancou as três malas e quando era de manhã o homem estava em cima da riqueza. Foi ao fazendeiro, mandou chamar tudo quanto era pobreza na vila, mandou rezar missas por aquela alma. E João foi-se embora, casou-se, teve muitos filhos e viveu feliz.

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PINGUE-PONGUE TAMBÉM PEIXE

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Os cavalos estão brigando! Para o pescador do Arari é uma chamada em código, para avisar que o café está pronto. Já fizemos juntos uma viagem no mundo fantástico da gíria, sem a pretensão de esgotar o assunto. Vamos agora dar um passo mais para frente, sempre com a mesma reserva; nada de definitivo e completo, porque este tipo de pesquisa jamais acaba. Hoje vamos descobrir os apelidos dos peixes, apelidos sortidos, engraçados, que nascem dentro e fora da lógica; termos onomatopéicos, trocadilhos, referências óbvias e esquisitas. Umas vezes não precisam de explicação, outras a explicação não existe ou não me foi possível encontrar. Sempre são interessantes e vale a pena entrar de supetão numa feitoria de pescadores para aprender uma língua nova, original e simpática. Tamuatá. É o típico peixe do mato. Em tupi, segundo Couto de Magalhães, quer dizer o peixe que anda pelo mato. Ele gosta mesmo de cerrado e só arreia, quando a água baixa. No Arari temos três tipos: o Tamuatá morocl, é o mais franco na mesa; quase não tem carne, é dura e sem graça. É também o mais besta, fica sempre atrasado e quando no verão os outros peixes se empurram à procura da salvação, ele fica bobeando, até se enterrar na lama. Tem uma resistência fora de série, mas afinal de contas é peixe e quando a lama vira terruada, ele fica lá cravado, no desespero da morte. Chamam-no também de moronga, soldado velho (é um pouco amarelado), madalena (é também pintadinho, cheio de sardas que o pescador chama de sarna). Tamuatá cambeua é o cabeça chata, tradução literal do tupi. Porém a variedade que representa a característica iguaria da cozinha paraense é o branco, conhecido também como casca-velha, cuí-cuí, (para indicar o barulhinho que faz na rede), comatá, armôgeno, bureto, borneter, sargento (a escama dele é divisa), cabureto, caborge, coimbrã, zolhudinho, olho jitó. Dão-lhe também o nome de vingança, porque chega o tempo em que ninguém o quer, pois cria um bicho debaixo da escama, mas faltando peixe, ele vai se vingar e tem que ser aceito. Sempre serve, em qualquer tempo quebra o nosso galho. Traíra é peixe muito comum, bom de gosto, de tamanho e para salga. Antigamente não valia 237


MARAJÓ - A DITADURA DA ÁGUA nada, agora é bastante apreciado. Tem dente perigoso: morde e segura; tirando-se uma traíra do casco, vêm duas ou três atrás, uma mordendo a outra. Tem um bocado de nomes: Sulamba: quem sabe como chegou de Sergipe este termo que lá indica, junto com a variante samango, o indivíduo preguiçoso ou que anda mal trajado? Comuníssimo é pongó, ou ponga-Maria. Nas províncias do Norte, ponga é o típico jogo infantil de tabuleiro (desconhecido aqui) para colocar três tentos em linha reta. Lá vai a série quase completa, cherenga, merência, pau de nego, lamboca, tia-pongue e até que enfim pingue-pongue. Apaiari peixe gostosíssimo. Para o meu paladar o melhor da praça. Inspirando-se à forma chata chamam-nc de folha e tábua. É também preto velho, nome igualmente dividido com outros animais como jacaré-açú, grandão, zolhudo, olho grande, olho de bala (fica olhando para a isca). Brasileiro (é pintadinho): onde há um pingo de verde ou de amarelo, o povo já encontra uma referência ao Brasil, à farda, à bandeira. Acari pouco valorizado entre nós. A geleira não o recebe, porque tem muito volume e pouca substância. Mas é gostoso, especialmente o acari-boi, o maior de tamanho e o mais aproveitável. É boi, búfalo, chutelra. É também coralina: os dois ferrões laterais com serrilha, dão a ideia de um avião. O acari cachimbo (ou chimbo) pela sua forma característica é rabo-fíno, boca-chata, ou simplesmente, bodó, espuma. Ueva é outro exemplar, que não é ruim, porém não aceito no mercado. Bico fino e dente bem em frente, dá a inspiração a: dente fino, dentudo [e como mordei), bicuda, agulha, enxuta (por causa da carne que é assim), lúdica, égua. Aracu é o famoso piau: Piauí em tupi quer dizer rio dos piaus. É cabeça gorda (de nome e de fato), alumino (pelos reflexos prateados das escamas). Se é grande, é vovó. É também plote, não sei porque. É dente podre (tem dentes feios e pretos, cheios de cárie, parecem mais uma serrinha: quem tem os dentes feios pode ganhar o apelido de aracu). Oiho podre: quando está meio moído, a gente o reconhece logo, porque o olho dele está meio saltado, tufado, saliente. Pescada. Aqui temos só da branca (a amarela praticamente é desconhecida). Antigamente era daquele tamanho e era vendida por centro. Agora minguou, merecendo o apelido de pescadinha. A cor inspirou o nome de branquinha e algodão. Os otolitos, que se encontram nela, lhe mereceram o título de cabeça de pedra. É também galo, mas ninguém me soube explicar a origem. Arraia. Temos várias espécies. Os apelidos, umas vezes, são genéricos, porque se referem 238


GIOVANNI GALLO a características comuns como a técnica de ataque, ferra-gente, pela forma (relógio, prato, redonda) ou por alguma peculiaridade (raPuda, pintada, estrelada). Pirarucu. Normalmente é plrosca. Se novo é budeco. Matopiri. O peixinho que todos atacam e que só tem uma chance de sobrevivência: a produção desconforme de filhos. É o matupás ou espinha-fina. É ótimo frito com espinha e tudo. Jandiá. É rabudo e também bandeira, por ser meio amarelaço. Na crença popular, o jandiá vira sapo (e o chamam mesmo assim); muitos têm nojo dele e não o comem. A origem desta crença esta na semelhança entre o filho de jandiá e a larva do sapo juí, que tem uma metamorfose completamente diferente: a larva cresce até o tamanho do adulto, só então começa encolher o rabo, botar as pernas e modificar a cabeça. Jeju. Segundo Couto de Magalhães é uma variedade de traíra. Talvez seja por isso que o pescador o chama também pau de negro. É carne doce, pelo sabor da carne, sete fôlegos, porque é o último peixe a morrer no verão, por falta d'água. Rabeca. Peixinho onipresente, dá um trabalho enorme ao pescador porque engata em toda rede. Até morto incomoda; só perguntar a quem experimentou ferrada de rabeca seca. Apesar de gostoso é rejeitado pelos geleiros. É chamado esporão duro, venenosa, serrenta. Pacu. Pra boca, redondo, moeda. Jipioca. Mocinha. Mandubé. Soca chata, bocudo. Cachorro do padre. É leiteiro, porque no tempo da reprodução tem na barriga uma substância leitosa parecida a leite. É cachorro porque ronca. Tucunaré. Pitonga, amarelão. Mapará. É o Cametaense (é filho de lá), azulão e penicilina. Engraçada a derivação: a penicilina tira a inflamação do corpo e o mapará faz o mesmo... A gente tem alguma coisa no sangue? Só comer mapará e isso tudo sai, basta experimentar. Piranha. É justo terminar a série com o representante mais típico da nossa fauna. O nome vem do tupi e quer dizer corto pele. Os índios, vendo pela primeira vez a tesoura, acharam normal chamá-la de piranha. Temos aqui três tipos de piranha. Uma branca, rara, que não cresce mais que um matopiri. A branca comum é a maior de todas: queixo mais saliente e mordida mais funda. O flagelo é representado pela piranha encarnada, que segundo a época, fica escura e quase preta. Os pescadores, com referência à sua fisionomia, que determina também a sua capacidade predatória, a chamam de caruda, bocuda, dentuda, dente de navalha, come gente, assassina. Por um trocadilho é aranha e saranha. 239


MARAJÓ - A DITADURA DA ÁGUA É também acabadeira de peixes. Em uma experiência de pesca que fiz, no lago com tio Rosildo, pegamos também dez piranhas que deixaram como lembrança na malhadeira 480 (quatrocentos e oitenta) buracos: e a gente despescava na hora! Se o pescador chora, o peixe ri, graças à piranha que pelo esfrago que faz das redes é chamada advogada dos peixes. Mas o riso acaba logo, porque as piranhas sempre estão com fome e com raiva, viajam de boca aberta e na hora do almoço dão demonstração de uma solidariedade colegial fora do comum. Atacam em bando o peixe maior, cortam-lhe as barbatanas. Uma avança, morde, recua e engole enquanto a outra avança, morde, recua, engole e assim até o fim. Piranha é também a namoradeira. A moça que namora muito é piranha, Em troca, a piranha virou namoradeira.

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A VIAGEM DA LOUCURA

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o programa devia ser uma viagem de rotina, quieta, confortável, com a garantia de uma rede armada, no lugar certo. Mas aconteceu que, no trapiche da Rural, em Jenipapo, estava me esperando o Delegado de Polícia. - O Senhor nunca vai à SEGUP? - Não, graças a Deus, mas precisando... - Será que pode entregar este ofício? - Pois não, deixe comigo. Está entregue. E o Delegado me soltou a história. Já tinha ouvido algum boato mas não havia ligado. O povo conta tanta mentira, sobretudo estarias de horrores e de milagres. Era mesmo verdade. No Anajás Mirim uma mulher tinha enlouquecido, matando a sua criança, um menino de nove meses. O ofício era para informar a Central de Polícia. A viagem de barco, no interior, é como uma festa de família, descontraída e informal, uma festa de verdade. Naquele vaivém, Mariano me diz que uma embarcação quebrou a ponte da Paróquia, Cassiano quer saber mais uma coisinha sobre o serviço do Museu. Um bom dia à Tio Loda, à Maria Ozita. É nesse momento de euforia que reaparece o Delegado. -Padre, sabe, eu deveria mandar aquela mulher à Delegacia de Cachoeira, mas não tenho ninguém... Me dá esta colaboração?... Tinha comprado um pão doce de Seu Roxinho, um pão cheiroso, macio. Devia ser meu almoço. Sem me dar conta, enguli-o de vez, quase fico engasgado. Parece que o meu corpo, de repente está ficando oco, uma sensação do vazio se apodera de mim. Não se pode recusar a ajuda a uma doente, mas sinto que estão me pedindo uma coisa que não posso fazer; uma mulher louca, num barco superlotado, pode criar problemas. O delegado aproveita minha incerteza, lê no meu pensamento: - A mulher está calma. Antes falava, falava, falou dois dias, mas agora não reage mais. Não tem problema, e... se tiver problema você apeia ela. Aqui estão umas tiras, não deixam marca... Se eu tivesse reagido como devia, teria feito muitas coisas, menos aceitar aquela 243


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encomenda. Eu sei, a delegacia não tem motor, não tem dinheiro, mas eu teria, alugado um penque e, com a nossa enfermeira do Posto, teria enfrentado a viagem sem susto. Mas foi mesmo a calma, a lucidez que me faltou. Os meus olhos se encontram com Dona Corita. - A senhora vem comigo? Me ajuda? Dona Corita é feita para essas coisas, nunca recusa, só agora! - O Senhor me desculpa, estou esperando um parto, cada momento é bom. É o jeito conformar-me. A mulher sobe ao barco: uma mulher jovem, morena, demonstra uns trinta anos, até menos. Movimenta-se como um autómato ou melhor, se deixa deslocar como se fosse uma coisa. O olhar fixo, embaçado, apagado. Armamos a rede dela perto da minha. Dou-me conta de que o vácuo não está somente dentro de mim, está se formando ao redor de mim. Em toda cultura primitiva as anormalidades psíquicas são consideradas elementos supernaturais ou preternaturais, uma mistura de êxtase e possessão. Dona Bê se aproxima para falar comigo. Alguma coisa estala dentro da louca, que de repente dá um grito. - É ela... e se joga para agarrá-la. Consigo segurá-la, Pedro Gama me ajuda. Até que enfim senta na rede. O Delegado já desapareceu. Sinto-me sozinho no meu desespero. - O nome dela? Quem sabe como se chama? Até me esqueci de perguntar uma coisa tão óbvia. Vem em meu socorro Dona Sinhá. - É Rosilda. Eu chamo ela de Rosa. Já foi empregada de casa. - Rosa, me conhece? Eu sou o padre. Me conhece? É como se falasse uma língua estrangeira. Rosa continua tensa, rígida, as mãos fechadas num espasmo, sem paz. Dá a impressão de que não escuta, não vê. Está vivendo em um mundo estranho, povoada de fantasmas e de visagens. Passa um tempinho, depois, conservando aquela fixidez estatuária, mexe os lábios: as palavras saem quase borbulhando. - Padre Jovano. Conhece-me! Sinto-me aliviado, está estabelecido um contato, o primeiro. Para mim será uma luzinha de esperança que me acompanhará durante as oito horas de viagem, a viagem da loucura, uma daquelas experiências que deixam marca na vida. O barco demora a sair. Chega açaí, mais açaí, nunca acaba, veio com Mimi Bravo, gente do Anajás, dos Mocoões, do Francês. Faltava só o rebocador da CODRASA, com os tambores vazios. Eles batem no convés, mas batem sobretudo no espírito de Rosa, que de novo pula como uma mola, querendo jogar-se na água. 244


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- O barco está fragado! está fragado! Nem todos os presentes sabem o que está acontecendo. A curiosidade aumenta, um bando de pessoas se amassa para ver de perto. E isto a paciente não pode suportar. - Esta caçoada. .. E quer se jogar no rio. E eu lá, apelando a todas as minhas forças, numa luta absurda. Uns homens estão um pouco afastados, de prontidão para me ajudar. Entretanto, na mente da esquizofrénico vem à tona um mundo, melhor, um submundo. Rosa chora, ri, canta, fala. Sobretudo fala, fala de tudo: as palavras são como um riacho que transborda descontrolado. Não dá para entender, de fato não há um nexo: Nossa Senhora do Bom Remédio... o quadro... o filhinho... a CODRASA... me querem mal... o barco está fragado, as tábuas estão despregando... Depois de novo um choro, o canto Nossa Senhora do Bom Remédio... Levada pelas palavras, de repente se desencadeia alguma outra .reação. Pula em pé, quase para armazenar forças, tomar fôlego, balbucia: - Me jogo na água, acabo de vez!... E se empurra. Estamos agarrados, lá no meio do convés. O pessoal procura se afastar, somos como dois lutando no meio de um ringue, a torcida muda, lívida, esperando o desfecho. Dona Sinhá tem pena de mim. - Rosa, fique calma, sente ai. Rosa, me escuta... A resposta estala, improvisa, imprevista, intrigante.. - Ah, você... ontem estava lá no cemitério... no caixão... Dona Sinhá fica pálida e recua devagarinho, se encolhe, quer desaparecer. Agora Rosa tem encontrado, finalmente, a trilha certa, as palavras saem aos montes, uma linguagem absurda, arrepiante, só diabos e fantasmas, palavrões e maldições. Os dedos se cravam como garras na minha carne, a camisa está rasgada. Sinto contra o meu peito o peito dela, ofegante, convulso... Ajudamme. Jogamo-la dentro da rede. - Fica quieta, senão te... amarro. Mas eu sei que não vou amarrá-la, não quero ter o remorso de agravar a devastação daquele pobre espírito atormentado. Ela balbucia: - Amarram os cachorros... os cachorros amarram, não, não! - Mana, não te amarro, você não é cachorro, não. As minhas palavras parecem ter encontrado uma porta de •entrada naquele mundo revolvido: 245


MARAJÓ - A DITADURA DA ÁGUA - Abre a mão!. . . Ela obedece. As mãos fechadas em punho, numa contração dolorida, se soltam, mãos pequenas que obedecem ao meu toque. -Fecha os olhos. Passo os dois dedos como se faz com os mortos e os olhos se fecham. Fica bastante tempo assim, chorando baixinho. De vez em quando dá para entender alguma palavra, sempre as mesmas, que marcam aquela viagem da loucura: criança, está fedendo, caçoada, querem me prejudicar... - Você quer beber? Vislumbro uma certa reação que interpreto como positiva. Uma senhora me oferece uma lata das de Skoll. Entrego-lhe a lata, não se mexe. Eu mesmo lhe aproximo à boca, mas a boca fica fechada. Desisto. Dona Dudu me oferece um refrigerante. Pego na garrafa e coloco um pouco na lata. - Mana, quer beber? É guaraná. - Quero... e descola a boca. Dou-lhe de beber como se fosse uma criança. Dividimos a bebida em duas partes iguais: somos irmãos, é justo que as partes sejam iguais. Animo-me mais um pouco pelo progresso realizado. Rosa, quer comer? - Quero... Levanto o olhar e encontro mais uma vez Dona Dudu. - Me arranja uma Paia? - Vou já. Ela vai e volta com um prato contendo arroz, carne e farinha. Rosa recusa o prato, mas aceita que eu lhe ponha a comida à boca. Mas custa. Uma colherada fica na boca minutos e minutos. Abro-lhe a boca para ver se já engoliu, fecho-a de novo como se fosse uma gaveta e aguardo. E assim o tempo passa. Passa, mas sem progresso. Ela ainda abre a boca, mas não engole mais, tudo fica lá dentro com as bochechas tufadas, numa imobilidade engraçada. - Graças a Deus a situação melhorou! Nem acabo de falar e Rosa se levanta de repente, dá um grito, cospe tudo. Começa outra crise, a mais violenta. Agarra a camisa para tirá-la. Ela a puxa para cima e nós para baixo. Quando parece não ter mais jeito para acalmá-la, invoco o último recurso, falando, mas com remorso, como se dissesse uma coisa ruim. - Não tira a roupa, não vamos passar vergonha... Eu te amarro! A crise, aos poucos abranda e tudo acaba num choro delicado, cheio de dignidade. Passa por aí Ademar. Já bebeu um pouquinho, não é mais cem por cento, mas quer me ajudar. - Dá licença? Eu vou fazer uma reza, vou dar um jeito. Senta-se na rede, passa um braço no ombro dela: 246


GIOVANNI GALLO - O Brasil é dos brasileiros... Palavras que podem não dizer nada, mas eu sei, as conheço, as conheço pelo tom. Uma reação quase imperceptível pisca no fundo dos olhos da mulher. Para mim é um sinal de alarme, de perigo, de grande perigo. Estamos à beira de uma tragédia fatal. O Delegado não sabe disso, não tinha imaginado, senão, pela bênção de Deus, nunca me teria pedido esta colaboração! Os limites entre uma reza e uma pajelança são fracos, quase não existem. Quer dizer que se eu for esperar mais um pouquinho, aquela mulher, que já está apertando o estômago numa convulsão nervosa, dentro em pouco vai pegar santo, vai atuar-se, vai entrar em transe! Naquela atmosfera incandescente, naquela tensão que está se alastrando horas a fio, será como uma faísca que propagará o fogo. Uma, duas, três, muitas destas mulheres vão ficar atuadas, vão se rolar no chão, numa fúria descontrolada. E naquela confusão de dezenas de redes trançadas, de crianças, de velhos, o pânico se transformará em tragédia. A primeira coisa que uma mulher atuada faro vai ser jogar-se na água. E outros se jogarão atrás dela para salvá-la, e mais outros, sem saber porque. Amanhã Santa Cruz chorará pela calamidade pública! - Ademar, vai embora. Deixa. Obrigado. Eu me viro, ela foi entregue a mim, Vai embora! - Como você quer... Ademar, cambaleando, docilmente vai embora. E eu fico lá com o pavor que me aperta a garganta. Agora me dou conta do erro que fiz. Já vivi uma experiência dessa numa fazenda uns anos atrás. Que Nossa Senhora nos acuda, que não aconteça nadai Aproximo a minha cabeça ao rosto de Rosa, falo Paixinho, falo, falo, falo sem dizer nada, procurando confirmar tudo o que ela está dizendo, palavras soltas, sem destino. Tenho medo, muito medo que de repente me dê uma mordida, me desfigure o rosto... Com a ajuda de Deus chegamos a Cachoeira. No trapiche, um soldado está nos esperando. Faz o gesto de segurar-lhe o braço, mas Rosa reage com raiva. - Deixa comigo, eu dou conta. O desfile começa no trapiche, continua na primeira rua. Um desfile grotesco: nós na frente, eu com a minha pretinha de braços dados, e ao redor um bolo de gente que engrossa, a cada passo, criança e gente grande, tumultuando. Todo mundo quer apreciar aquele desfile, metade enterro, metade carnaval. Rosa se deixa levar, parece boiar no ar, só aperta forte o meu braço, até me machucar, na 247


MARAJÓ - A DITADURA DA ÁGUA busca inconsciente de defesa, de ajuda, de calor humano. Chegamos à delegacia: último ato do drama. O Delegado lê o ofício, depois desabafa: - Sinto muito, aqui não temos vagas. Tudo ocupado. Acho que ela deveria ir ao hospital. Alguém corre a chamar o médico. Chega Dr. Edir, chega Dr. Cláudio. - No hospital não posso, não tenho condições, é perigosa. Alguém passou por aqui espalhando besteiras, todos os doentes já estão apavorados. Vislumbra-se a possibilidade de que deva levar a doente até Belém. Mas não é isso que me preocupa. Dói-me porque não há lugar para a doente. E ela permanece imóvel, como uma estátua. Tenho a impressão de que acompanha a nossa conversa, conformada, consciente do próprio destino. - Quer beber? - Quero! Uma resposta límpida. Pela primeira vez segura o copo ela mesma. A solução, a única solução viável parece ser esta: o médico vai aplicar uma injeção de calmante e ela ficará numa cela. Dormirá e amanhã... a gente vê. Trazem um colchão de espuma e o colocam na última cela. E nós estamos sentados num Panquinho, os dois, unidos numa única sorte, numa única e grande desgraça. De repente, Rosa encosta a cabeça no meu ombro e desaba nos braços, adormecida. - Não levem o lençol, pode se enforcar. Avisa o delegado. Seguro Rosa pelas axilas. É difícil entrar na cela, a grade se abre para fora, o corredor é estreito. Deitamos a doente, que permanece lá imóvel, entregue aos carapanãs. Por um momento tenho a impressão ou melhor, o meão de que esteja morta. Dr. Edir se aproxima, controla as reações, reflete um pouco e se levanta aliviado. - A reação foi boa. Acho que podemos levá-la ao hospital. Carregamo-la outra vez ao corredor, colocamo-la na maca. Ajeito a camisa que se suspendeu, colocando à mostra os seios tufados de leite: esperam a criança que volte a mamar. Mas a criança, nem sei o nome dela, não voltará mais. Aquela criança não tem mais a boca para chupar o leite, não tem mais nem o rosto para sorrir. A mãe dela, a pobre Rosa, esmagou-lhe a cabeça com uma pedra, lá no jirau de casa, na choupana fincada na beira do rio. Numa fúria absurda, incompreensível. E depois a pobre mulher ficou lá, gritando, apertando a criança ensanguentada, querendo lhe dar o peito, num último desesperado ímpeto de amor materno. . 248


GIOVANNI GALLO Volto sozinho ao barco que me está esperando. Todos me perguntam como foi, repito mil vezes a mesma história. Peço a Antônio uma lata de Skoll, a garganta me arde, a cabeça lateja, doem-me as batatas das pernas, parecem mordidas de cachorro. Ponho o lençol em cima do rosto. Quero dormir, mas continuo vagando numa viagem absurda, na viagem da loucura. Sinto-a rir, chorar, invocar Nossa Senhora, falar com o diabo e com os mortos do cemitério. Pego no sono, desperto-me em pânico: Cadê Rosa? Rosa, sumiu! Em mais de vinte anos de padre passei pa experiências incríveis, mas todas as vezes que a loucura passa rente a mim, os valores da vida, o sentido da morte, o passado e o futuro, tudo adquire uma conotação diferente. Não é fruto de raciocínio nem pura emoção: é um catalizador misterioso que provoca reações imprevisíveis, desvenda uma realidade que sempre está lá, perto da gente, sem que a gente a possa perceber. Um leproso, um canceroso, um condenado a trinta anos de prisão não são nada em comparação a um louco! Nestes três dias que estou em Belém, nos lugares mais diversos, na gráfica, na SUDEPE, em casa, de repente, sem me aperceber, volto a contar a mesma história, a história de Rosa que se apoiava ao meu peito para se defender dos fantasmas que queriam roubar-lhe a criança, uma criança sadia que tanto amava. Na Secretaria de Turismo, uma moça me está contando como a prova de Direito Tributário foi um fracasso... Esforço-me para escutá-la, mas a dor dela parece-me não ter sentido. O que é o fracasso de uma prova de Faculdade em comparação com a loucura, com o desespero de Rosa, que deixei lá como morta, numa maca? Mais uma vez sinto em mim o tormento dela. Quem sou eu, o homem que fala línguas, o homem culto que correu o mundo, respeitado e honrado? Só um baque, uma besteira qualquer, um vírus invisível e eu também entrarei na mesma vereda, correndo atrás de fantasmas, falando absurdas obscenidades, querendo bater, morder, feito bicho. .. A viagem terminou. Alguém me dirá que eu não áevia fazer isso, podia acontecer uma desgraça. É verdade. Mas Deus quis que eu não me desse conta do perigo. E foi bom, porque a experiência deste dia, para mim valeu mais que uma novena, um retiro, uma reciclagem. Nunca senti na minha vida que eu fazia o bem, como quando carregava o corpo inerte de Rosa: tive a impressão de carregar o Cristo morto.

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O caboclo, quando fica doente , se encolhe na rede tomando chá de erva doce. Desta vez o garoto teve sorte: no cminho do desespero encontrou o Projeto Rondon

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QUANDO DEUS PRECISAR DE VOCÊ - Cuidado, Giovanni, este dregau tá fraco... Estou subindo com todo cuidado, já conheço os meus limites. No embarque e desembarque, assim como entrando nas casas, sempre estou em dificuldades; nunca fui um craque em equilibrismo. Hoje não somente esta casa caneluda está em equilíbrio instável; o chefe de família está entre a vida e a morte, num equilíbrio dramático. A mulher do doente me conta tudo. - Começou assim. Só um carocinho de nada. Uma besteirinha. Cresceu desconforme, olha só! E o doente, devagar, tira o paninho da face para exibir a doença em toda sua chocante identidade: câncer, um tumor volumoso que está tomando conta do pescoço, do rosto, espicha as raízes na cabeça e no capo todo. - O médico em Belém foi muito legal. Nos desenganou. Disse para ele: volte para casa, para tomar um chá, esperando o dia em que Deus precise de você: - Isso mesmo! O doente confirma, abanando a cabeça. A mulher lhe ajeita a bandagem. A conversa se desenrola sobre o mesmo assunto, como se fosse uma dissertação metafísica, o relatório de fatos afastados no tempo e no espaço. Sem revolta, porém sem disfarçar a secreta esperança de que o azeite de copaíba faça o milagre; neste meio tempo o doente troca a rede pela esteira, na procura de um alívio que não vem. A sentença de morte proferida pelo médico pode chocar, pode até provocar revolta, porque parece ferir a ética profissional, desvendando uma atroz realidade com assombrosa clareza, quase com cinismo. Não fico chocado, pelo confraria Gostaria de encontrar este médico desconhecido, para apertar-lhe a mão. Se ele não é filho do povo do interior, com certeza é dotado duma percepção psicológica extraordinária. Ele sabe que o senso da morte para o caboclo marajoara e, em muitos casos para o povo humilde do Brasil, ainda não foi fagocitado pelo nivelante progresso da sociedade de consumo. Lembro-me de uma experiência de uns anos atrás. Foi na Suíça, em Dornach, na cidadela dos Anthroposophen de Rudolf Steiner, na clínica do Goetheanum. 251


MARAJÓ - A DITADURA DA ÁGUA Estou falando com um doente, um engenheiro italiano com metástese cancerosa que pipoca no corpo todo. Com voz embargada, ele me conta: - Já fiz o tratamento com a bomba de cobalto, agora estou testando outra experiência. Todos aqui estão com câncer, só eu não... Encontro-me entre os olhares cruzados do doente que está esperando a confirmação da mentira e da mulher, receosa de que eu deixe escapulir a verdade. O meu amigo, morador da beira do rio, e o engenheiro que reforçava as ilusões com as tisanas dos Anthroposophen, todos dois foram embora. O caboclo encarando a morte que estava se aproximando já está dando passamento nele, dá besteiras, com serena tranquilidade que não é fanatismo: Deus é bom, ele sabe o que está fazendo. O engenheiro, tonto de entorpecentes, sonhando com as praias da Riviera e as pistas de St. Moritz. Dois moribundos, duas visões antagónicas da morte e da vida. O suíço Jean ZJegier fez um estudo muito interessante sobre os vivos e a morte, partindo do contraste entre a cultura do negro brasileiro e cultura industrial do Ocidente, onde o homem é vítima do canibalismo mercantil, vira cobiçada mercadoria dos tanatócratas que exploram a morte em proveito do produtor-consumidor. A morte de fato representa o ponto alto do contraste entre culturas. No Ocidente superdesenvolvido o morto não fica em casa. É entregue à firma competente que o leva para o necrotério, lava-o, enfeita-o, seqúestra-o num box esterilizado e refrigerado: os interessados podem contemplá-lo atrás de uma vidraça, na hora do expediente. O homem-objeto aparece desmascarado. Uma vez, ainda na Suíça, a Polícia pediu minha colaboração para identificar uma vítima do tráfego. Cheguei atrasado no Burger-Spital de Basileia. O acidentado já tinha morrido, estava lá, no porão, engavetado, com um papelzinho amarrado no dedão do pé, marcando hora e local do atropelamento: um triste pacote postal sem destinatário. No Marajó é difícil distinguir se naquela casa há um morto ou é aniversário. Sempre é uma festa. As crianças rodeiam o defunto, ficam apreciando e participando, descontraídas, risonhas. Os amigos, os vizinhos chegam trazendo uma vela, uma flor, um dinheirinho. Para todos, café, bolacha, mingau de arroz, chocolate. "Os homens das obscuras cavernas do Monte Carmelo uns quarenta mil anos atrás, cavavam as suas primeiras sepulturas e ali instalavam seus mortos (adultos) em posição sentada, tornozelos e pulsos unidos, como fetos à espera, a quem foi prometida uma segunda vida". Os nossos mortos são colocados com os pés para a porta da rua para ir e nunca mais voltar. O morto não é aniquilado, destruído, simplesmente ele vai-se embora, desaparece, mas fica ligado com a gente, com uma certa saudade e vontade de voltar, ou ... pelo menos 252


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de levar alguém consigo... O caixão ãeve ser feito na medida certa, se for maior, outra pessoa da família vai logo atrás. Para evitar este perigo, na hora do enterro é Pom jogar uma pedra na cova. Uma vez, no cemitério, a gente estava contando estarias de mortos... - No enterro de Fulano, aquele camarada levou para casa um torrão de terra. De noite o morto apareceu, veio buscar... O comentário é unânime: - Claro, o torrão era dele!. Os mortos e os vivos conservam uma inalterável ligação. Até para morrer precisa a colaboração dos que ficam. Há umas orações fortes que ajudam o desenlace: Vai com Deus, a Oração a Nossa Senhora da Conceição. Às vezes nem isso adianta, é porque o moribundo está esperando aquela oração que costumava dizer em vida. Precisa adivinhar, rezando tudo quanto é devoção, na esperança de acertar. Para a despedida, o doente, às vezes, está aguardando a visita de um parente ou somente aquele copo de água que o sustente na caminhada que vai enfrentar. Uma vela na mão ajuda a morrer sossegado. - Fecha os olhos, que não és deste mundo! Começa o ritual consagrado: mãos no peito, um pires com sal em cima da barriga para não inchar nem ficar com mau cheiro, um copo d'água com extrato, talco, flores, velas e Cristo na cabeceira. O velório, a sentinela, fazer carué ou quarto, são sinónimos para indicar a última noite passada juntos. Há quem fale baixinho, dando os pêsames, mas a maioria joga baralho, dominó, conta piadas, charadas, namora, faz algazarra, anarquia. Tendo recursos, a família manda tirar o retrato. Não do morto, mas da família inteira, do clã, todos juntinhos, empertigados, ao redor do ente querido. É melhor suspender um pouco o caixão, para que o morto participe mais ativamente, assim, torto, de meio perfil. Morreu uma moça: o caixão tem que ser branco. Para uma senhora será roxo, aliás igual vestimenta de santos. Antes que o dono do morto carregue a cabeça, é bom dar um último recado no ouvido, sem brincadeira. Contam daquele que pediu um vintém de chuva e caiu uma tempestade, porque lá em cima a água é muito barata. Durante oito dias precisa varrer a casa de trás para frente, sempre para evitar que o morto volte: é gente da gente, mas não é mais deste mundo. Rezar o terço por oito dias ajuda, mas às seis horas da tarde: os números mágicos criam força, a prece será mais poderosa. 253


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Apesar de tudo, o morto pode voltar, para pedir uma Missa: é o último recado, depois fica conformado. No dia de Finados a gente se encontra, lá no cemitério, para acender cera. Antigamente era só de noite, agora o dia todo, uma quermesse cheia de folclore e serenidade, um piquenique caipira. As famílias se reúnem, os filhos voltam de longe para cumprir sua obrigação. Na véspera, a cruz foi pintada de novo, branca, lançando a letra com astuciosas manobras, para que nomes compridos possam entrar em pouco espaço. Todos juntos, sentados em cima do túmulo, contando os casos da vida, chupando chope, vendendo cocada: o padeiro está lá, na entrada, em posição estratégica. O vento é o grande inimigo, mas a boa vontade não esmorece. Alguém trouxe uma esteira, outro uma caixa de papelão, um plástico, uma mica. O reto do casco dá para armar uma casa de emergência, não para se agasalhar, mas para defender a cera: deve ser consumida até o fim pelo fogo, para não fazer desfeita. Morte e vida no mundo caboclo conseguiram um modus vivendi sem choque, sem contrastes violentos: uma forma bem acertada de simbiose. O povo tem medo e não tem medo do morto, tem medo e não tem medo das almas só fora de hora. A pesquisa mais atenta não consegue desvendar o segredo escondido: talvez o segredo esteja aqui, nesta alternância pendular de sentimentos primitivos, que fazem parte integrante do patrimônio popular. - Fui me consultar com médico famoso, professor na Faculdade. Me tratou que nem pai. Estou sentindo alguma melhora, mas eu sei que quem manda é Deus. Quando Deus quer, nem Professor de Faculdade tem vez. - Padre, rápido: Dona Maroca já está repuxando! Encontro a moribunda rodeada pela alegre turma dos visitantes. Chamam-me a atenção os cachorros: acompanharam os donos e, agora, perdidos naquela selva de pernas, vão farejando desconfiados. Tenho a impressão de que a doente não está passando tão mal: a confirmação vem já, já. Uma comadre se aproxima de mansinho, tira o cigarro e o coloca na boca da moribunda. Esta fecha os olhos e dá um trago. A comadre olha para mim, radiante: - Ela gosta, sabe? Com a ajuda de Deus, vai aguentar!

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TODO MUNDO ENROLANDO

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ue o atual sistema de pesca na bacia do Arari esteja desatualizado é uma verdade que fura os olhos; não precisa ser técnico no assunto nem morador do lugar para descobri-lo. Aprofundando um pouco mais esta impressão superficial, a gente depara um estado de alta tensão latente que está se aproximando ao ponto crítico. Não é uma certa tendência ao desastrismo ou ao sensacionalismo que me leva a fazer este diagnóstico: é a realidade nua e crua, analisada nas suas múltiplas facetas. As estruturas estão mudando. O Marajó com movimentos vagarosos e umas vezes desajeitados, está procurando nova colocação dos seus recursos vitais. A pecuária precisa de uma restruturação básica para enfrentar, com uma certa garantia, os riscos do futuro e a concorrência da estrada. A hidrovia Belém-Macapá, em fase de realização, já é um grande passo à frente. Hoje vamos focalizar o problema da pesca. Deixemos num canto as estatísticas, os relatórios oficiais, as pesquisas enfeitadas de diagramas e equações para bater a chapa desta indústria pesqueira artesanal. Com certeza esta análise poderá oferecer novos elementos de avaliação não somente aos órgãos competentes como a SUDEPE, a Secretaria de Agricultura, às autoridades em geral, mas também ao público profano que se pode interessar pela pesca simplesmente como freguês ou como pessoa sensibilizada aos problemas humanos. A primeira constatação se refere ao meio ambiente. A fartura dos bons tempos antigos (só uma geração atrás), já era. Muitas espécies desapareceram, as sobreviventes diminuíram consideravelmente em número e tamanho. Esta consideração vale para os peixes como para a fauna em geral. O búfalo bravo está ligado às lembranças do lendário caçador Procópio... os ninhais de pássaros estão se afastando cada vez mais, as feras estão adaptando o seu instinto às exigências de uma arriscada sobrevivência. O morador de Jenipapo e Santa Cruz, que antigamente podia contar com duas safras (a pesca no verão e a caça no inverno) encontra-se agora imprensado: nada caça e pouco pesca. A caça já está confinada às fazendas onde ele não tem mais acesso. Precisa frisar que é bom que seja assim: ninguém pense que pelo fato de pretender ser eu o porta voz do pescador indefeso, seja obcecado por uma visão unilateral e absolutista. É bom que seja assim, porque se abrissem mão, num inverno, o pescada, o caçada, o barcedeiro, acabariam com tudo quanto é bicho no Marajó, queimando e massacrando. O nosso caboclo não tem dinheiro na mão, larga o serviço. O consignatário no fim da safra desaparece e não paga o saldo. 257


MARAJÓ - A DITADURA DA ÁGUA O geleiro tenta o pescador com um cigarro de maconha em troca de uma arataca de peixe. O pescador, na hora crítica, deixa o geleiro sem carga. O pescador agride a natureza, usando redes predatórias, pescando na desova, poluindo a água, colocando a malhadeira nas grotas quando o peixe está baixando para o rio. E a natureza, maltratada, muda os seus quadros e castiga o pescador. O pescador entra nas propriedades das fazendas e o fazendeiro exige pagamento também do peixe que não é dele. O fazendeiro não quer deixar passar o pescador, fazendo tapagens sem autorização da SUDEPE e o pescador arromba a represa de água para o gado. O vaqueiro sente-se prejudicado pela presença do pescador que veio de longe e o pescador aguenta calado a exploração do vaqueiro que todo dia vem buscar a provisão para a bóia e a salga. Eu vi mais de um vaqueiro cara de pau, que só escolhia do melhor e do mais graúdo, como se fosse direito dele, sem dizer nem um obrigadinho. E o pescador calado: se por acaso, vai depenar algum patinho, pode até considerar o fato como legítima compensação. Mas há também vaqueiro que espera a hora da safra para tirar o xerimbabo do vizinho: assim papagaio come milho e periquito leva a fama. E para sobremesa: o pescador engana a si mesmo gastando na festa do sábado o lucro da semana. Termina a safra e ele fica olhando, triste, mais uma vez escravizado pelas dívidas. Então, neste quadro de recíprocas explorações vamos encontrar os sinais de uma guerra funesta? Nada disso... por enquanto. O relacionamento é amável, a convivência pacífica, não existe mal estar, recriminações, pesadas investidas, luta de classe... por enquanto. Tudo continua como sempre e ninguém se dá conta de que não é possível continuar assim. Dentro de uns anos, se não forem tomadas providências radicais, todos vão entrar em crise, desde o lanceador ao poderoso consignatário: e lá em cima vai dar muita, muita dor de cabeça. Organizar uma cooperativa, com novas estruturas, novas técnicas, novos financiamentos, é do interesse de todos. Esperando aquele belo dia, todo mundo continua alegre e despreocupado, todo mundo continua enrolando.

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POLÍTICA CASEIRA

DE

FABRICAÇÃO

Neste momento, o Brasil é um imenso caldeirão onde estão fervendo os mais variados ingredientes que deveriam dar como resultado a formação dos novos partidos. Os analistas afinam os instrumentos de pesquisa para focalizar todos os elementos que entram em jogo: a evolução da consciência popular, o influxo do exterior, a incidência do custo de vida, as greves, as pressões de todo tipo. Também a gasolina ajuda a complicar as coisas. Acho que poucos se preocupam em analisar a situação do povo do interior, isto é do povo que mora fora das grandes cidades, o homem do mato, da cabeceira do igarapé. Geralmente se acredita que seja suficiente fazer uma pequena adaptação na escala dos valores, chegando a considerar a política do interior como uma miniatura, uma simples cópia em ponto pequeno do que é a política em geral. Nem vale a pena gastar muito tempo, não compensa: o peso deste eleitorado é insignificante, seja pela baixa densidade demográfica, seja pelo alto índice dos não-votantes. Mas tamPém este é Brasil: o Brasil da medicina da terra, o Brasil da pajelança, o Brasil de Nossa Senhora com as fitas amarradas e os foguetes soltos. É o meu Brasil, o Brasil do Marajó, o Brasil que muitos não conhecem. Vale a pena dizer duas palavrinhas para desvendar uns segredos e desmanchar alguma ideia pré-fabricada e sem fundamento. Até ontem os partidos eram dois. De agora em diante serão mais; o número ainda é indefinido, assim como o perfil ideológico dos mesmos. Esta evolução não afeta o caboclo. Os partidos podem ser dois ou dez: branco, preto, vermelho, cor de rosa ou laranja, pouco importa. O conteúdo ideológico, o programa, as ligações históricas com este ou aquele movimento, simplesmente não interessam. O AI-5, o pacote de Abril, a lei Falcão e outros elementos marcantes da nossa história política, são incompreensíveis como uma dissertação soPre os buracos negros do universo, a espiral dialética de Kruschoff ou o cálculo diferencial. Fica assim delineado o primeiro traço da política interiorana: a ideologia, por enquanto, não interessa. São abstrações, sutilezas, malabarismos, que nem despertam a curiosidade. Somente uns poucos termos, como subversivo, comunista, greve, estão assumindo uma fisionomia definida, geralmente distorcida. A política para o caboclo, não é uma posição intelectual, programática, é outra coisa. Vamos ver o que é, analisando historicamente uma certa mudança da mentalidade popular. 261


MARAJÓ - A DITADURA DA ÁGUA É universalmente conhecida a metamorfose do voto popular no Nordeste, que, em certo sentido, pode ser aplicado a todo o povo simples do interior. No tempo dos Coronéis, coronéis no sentido de chefe político, evidentemente e não de oficial do exército, o voto recebeu uma definição característica: o voto-cabresto. Nem precisa de muita explicação: o chefão mandava e Zé Povinho, manso que nem jumento, vinha atrás. E assim o Coronel podia manifestar o seu poderio criando governadores, prefeitos, deputados, vereadores, criando um governo guiado com o cabresto do eleitor e do representante do Executivo. No Marajó, por evidentes razões sociais, não existiu o típico Coronel nordestino, mas este tipo de voto foi também realidade. O fazendeiro com o seu grande influxo moral e económico determinava o movimento em bloco da sua massa eleitoral. Como a fazendeira muito católica podia pressionar a moça que fizesse o casamento no padre, o fazendeiro podia dirigir este outro tipo de operação. Mas o mundo vai rodando. A velocidade depende da marcha engatada, porém a evolução é um fato inevitável. A rotação levou a uma mudança substancial e qualitativa. O caboclo, como o sertanejo, a um certo ponto descobriu não ser tão miserável como ele acreditava e lhe davam a entender. Até mulher, filhos, afilhados, parentes e amigos podiam se converter em arma e riqueza. O caboclo, dono de nada, descobriu ser dono do seu voto, o voto que podia ser cobiçado pelo doutor que escreve no jornal, pela Excelência que mora na cidade: isso mesmo, porque o voto dele que malmente sabe desenhar o seu nome, tem o mesmo peso e valor do voto do Professor da Faculdade. Foi uma descoberta assombrosa, a descoberta do voto-mercadoria. E o caboclo cresceu, aos olhos do fazendeiro, do deputado em missão eleitoral, sobretudo a seus próprios olhos; tomou consciência desta força, desta inesperada fonte de riqueza. O caboclo não conhece uma programação a longo prazo. Interessa-ihe o dia de hoje, a safra deste ano, só. Não guarda o dinheiro para o inverno, nem preserva as espécies para as safras futuras. Esta visão pessoal, transferida no campo político, leva a uma consequência prática de capital importância. O voto será objeto de troca, não por um programa a longo prazo, mas por algo concreto, real, imediato, palpável e visível: é a regra do oportunismo individualista e imediatista. Para fazer este tipo de transação precisa de intermediário entre a cúpula do partido e o eleitor: é a vez do cabo eleitoral. É o pivô de toda a história. O que vale não são os argumentos, as provas, é o prestígio pessoal. E o prestígio pessoal é construído com todas as armas, lícitas ou não, com uma certa preferência para as segundas. Às vezes mais vale uma mentira do cabo eleitoral do que um prédio em concreto. Mas tudo sempre na base da troca. 262


GIOVANNI GALLO - Eu fava preso, juro sobre a cabeça dos meus filhos, eu não tinha feito nada. Ele me tirou do xadrez. O meu voto e da minha família são dele, é obrigação. E o coitado não sabe que foi o cabo eleitoral, o seu magnânimo benfeitor quem o mandou prender, para ter a chance de dar uma demonstração da sua potência protetora. Esta é pura verdade, eu garanto; uma verdade porém que nunca será provada num tribunal, porque não existe Delegado tão tolo que vá confessar ter entrado nessa travanca. Ele, aliás, é consciente da sua posição de delegado-joguete, de delegado-instrumento, com os dias contados. Quando não aguentar mais a exploração política será cuspido como bagaço inútil. O voto vale uma vaga no Grupo Escolar ou de diarista na Prefeitura. Melhor ainda se à vaga não corresponde a serviço adequado: o camarada só vem para assinar o ponto, na hora de receber o salário. O voto vale a promessa de tábuas para fazer a puxada da casa, um Habeas Corpus na hora do apuro, uma passagem de graça, uma extração de dentes, uma cama no hospital, uma aposentadoria facilitada. Ou simplesmente, o voto em troca do Título Eleitoral. Começa assim uma reação em cadeia, num crescer espantoso e descontrolado. A Política domina a vida do povo, a política é como um polvo de mil tentáculos que chega em toda parte, com carinho ou com ameaça, com promessas e cheques sem fundo. Um posto médico, uma escola onde é que vão sair? Onde precisa? Não, pelo amor de Deus, a gente não estraga assim o dinheiro do Governo. Será lá onde mora o cabo eleitoral ou a prima dele. Vai assumir um cargo não quem tem capacidade, mas quem amanhã pagará com o voto dele e da família. O sistema é errado. Tem que ser mudado? Claro que sim. Pode ser mudado? Infelizmente eu acho que não, por enquanto. Para uma mudança radical muitos conceitos deveriam ser trocados e o nosso povo por enquanto não tem condições de fazer esse passo. Quando reparei que aqui o vencedor tira da jogada todos os representantes da oposição, fiquei horrorizado e dei graças a Deus quando encontrei casos de generosa tolerância. A realidade me abriu os olhos: o que eu condenava, às vezes, aparece como a única solução viável. Os que são do contra não conseguem imaginar uma oposição serena e imparcial: o que é dos outros está errado sempre e por princípio, o que o próprio chefe político faz sempre está certo. O médico entrou na política? Errado, ele deve estar por fora. Assim eu pensava, mas vi que estava errado. Porque, se ele quiser estar alheio, será a vítima das especulações dos outros, de todos. Tocar para frente só armado de ideal, levando a bandeira do juramento de Hipócrates, é utopia. O mesmo acontece com o padre. Eu dizia: só entro na política nos assuntos de justiça e direitos humanos. Mas a política é sempre justiça e direitos humanos, porque vai mexer com 263


MARAJÓ - A DITADURA DA ÁGUA tudo e com todos. Até jardim de infância pode ser objeto de exploração política. Acontecem coisas engraçadas lá no interior: até casos de espionagem, um inócuo documento de ordinária administração pode sumir (e de fato sumiu) da gaveta do Jardim para aterrizar na Secretaria de Educação do Estado, e ser apresentado como ridícula e mesquinha peça de acusação: uma caricatura de Watergate. Foi arrombamento ou suborno? Não, foi política. Muitas coisas são erradas, mas erradas até um certo ponto porque são consequências necessárias de um certo sistema errado. O Prefeito está em Belém, quando seria sua obrigação morar no Município. Mas está em Belém para desmanchar as travancas da oposição, que está interessada em preparar as próximas eleições e não a promover o Município. Mas também em Belém ele pode traPalhar em favor da sua comunidade, porque a casa dele é como a sala de espera da Rodoviária, onde todo mundo vai receber alguma coisa. É também uma tábua de salvação: se ele estivesse na sede, toda ora alguém exigiria coisas impossíveis, como tirar do xadrez o filho que bagunçou o coreto naquela festa. Exigiria, isso mesmo porque a retaliação está lá, pendurada como a espada de Dâmocles: ou você faz isso pra mim, ou perde o voto, o meu e de toda a minha família. Voto-mercadorias, voto-marretagem, voto em troca de privilégio ou dos seus direitos: é o segredo que abre o cofre da política interiorana. Infelizmente, porque política, no sentido legítimo, é outra coisa. O caboclo, para que consiga viver a política como promoção humana, participação democrática na vida de comunidade, deve subir intelectualmente. Eu costumo dizer que lá precisamos mais de escola que de igreja. Eu não sou herético, não, porque eu sei que para ser cristão eu devo ser gente. E quem se deixa levar pelas mentiras não é homem, é bicho, é jumento. Pior ainda é mercadoria. No processo evolutivo o voto-cabresto passou a ser promovido a voto-mercadoria. Promoção ilusória, porque de fato quem vira mercadoria não é o voto, aquela cédula que deve ser riscada, mas o homem do interior. E' ele que é mercadoria, objeto de troca e de marretagem, ele, quer dizer o eleitor que chega de longe na montaria, o Delegado de Polícia que veio só para fazer o papel do palhaço, a servente do grupo que vive num pesadelo contínuo, porque sabe que a qualquer momento pode ouvir o grito fatal Rua! se não aceitar a continuar aquela jogada na qual os mais poderosos têm interesses empenhados. Na ilustração desta página aparece o desfile do Dia da Pátria no nosso município, um desfile que alguém, por motivos políticos, não queria que se realizasse. Eu disse: o desfile do nosso jardim sai; se for preciso, os moleques se apresentam na igreja com bambolê e o cartaz do Casulo, não quero que eles percam a alegria deste dia, não quero que sejam mercadoria 264


GIOVANNI GALLO nas mãos dos políticos. Mas graças a Deus o desfile saiu, com o Prefeito à frente, levando a nova Pandeiro do Município. No Jenipapo nós temos uma visagem permanente, um grupo escolar acabado, funcionando com cinco salas, mais água e luz, faz muitos anos. Mas é visagem, só uma atracação, o esqueleto do que morreu antes de nascer. Esta escola-fantasma está no programa de certa política que precisa de um povo burro e tapado, eterno objeto nas mãos dos demagogos. E' bom que quem está lá em cima abra os olhos, antes que seja tarde demais. Quem semeia vento, colhe tempestade. A recente história do Delegado de Santa Cruz do Arari é o mais valioso comprovante. Infelizmente também Delegado de Polícia é mercadoria nas mãos de políticos.

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UM ROMEIRO DO CÍRIO DE SANTA CRUZ DO ARARI Santa Cruz, cinco da tarde. A banda da Polícia Militar toca o Hino de Nossa Senhora de Nazaré Vós sois o lírio mimoso, disparam os foguetes, a procissão sai do arraial. Começou o Círio, estamos fazendo a Trasladação, a Santa vai até Jenipapo, amanhã a gente estará de volta. Nos outros anos eu costumava acompanhar a berlinda até o igarapé, depois pegava o jipe ou ia montado; este ano, porém, quero ser romeiro de verdade. Estou preparado psicologicamente. Procurei libertar-me do meu modo de pensar e de crer, para ter condições de fazer esta caminhada junto com o meu povo. Quase entrei na máquina do tempo: esta procissão para mim é voltar à Idade Média. Estou bem pertinho da Santa. Deixo que Cassiano tome conta da procissão e, quando é a minha vez, eu também carrego a berlinda. A poeira morde os olhos, as primeiras sombras descendo apagam as silhuetas das coisas. Lá no céu apareceu a lua, uma fatia pequenina, só para enfeite. Eu fico pensando. Neste alvoroço de sons e de vozes eu me sinto sozinho, perdido no caminho da vida. Isso mesmo, este Círio que estou fazendo cabisbaixo, esquecendo todos, pensando só em mm mesmo, parece o símbolo da vida. A gente sai na alegria dos cantos, da música, das luzes: tudo belo, tudo fácil. Mais adiante a caminhada se complica, um estrepe no pé, a poeira pega na garganta e tira o fôlego. A reza esmorece, quase não tem mais sentido. A banda começa mais uma vez, com entusiasmo. Um barril de chope, ninguém diria que a toada é litúrgica, porém ajuda a caminhar e aqui caminhada é oração. Eu digo: - Senhor, ajuda-me a crer, como este povo, como antes. Não dá para voltar atrás, demasiadas coisas apareceram na minha vida, lavando, filtrando, deformando a paisagem do mundo, do meu mundo. Eu não posso mais ser o mesmo. Senhor, que eu possa entender este povo que acompanha a Santa. De repente alguém segura meu braço: - Oi, Giovanni, que saudade! Eu vim pagar promessa. Que foi? Você está magrinho, ficou até bonito! De fato, é a moça que é bonita, de uma beleza condenada a murchar cedo. Foi para cidade, morar naquelas ruelas, numa triste profissão, até botou dentadura. Agora voltou para rezar a Nossa Senhora, do jeito dela. Eu acho que a reza dela vale mais do que a minha, ela mesmo deve ser melhor do que eu. 266


GIOVANNI GALLO A música recomeça com a marcha do filme Aponte do Rio Kway. Nada de marcial no nosso passo. Pincel está segurando a berlinda na frente e todo o peso cai em cima de mim. É dura a minha caminhada, mas dentro da minha alma desce um conforto, a sensação física de estar fazendo uma coisa boa, uma homenagem a Nossa Senhora. Já é noite. Alguém liga a lanterna, uma mulher acende umas velas. Eu sou mesmo pateta e quero sempre dar palpites: - Desculpe, com este vento não dá... A mulher me olha com dois olhos tristes (Deus sabe o que ali está escondido), não responde, se encolhe debaixo da berlinda, quase no desespero de que se apaguem. Eu fico olhando, desconfiado. Dona Amélia compreende que eu não compreendo e me diz num cochicho: - Se Deus ajuda... Agora entendo, é promessa. Aquela mulher, com as suas velas, juntas num feixe, para que se ajudem uma à outra, dentro dum chapéu, continua tropeçando, dando topadas, mas aguenta porque Deus ajuda. Os outros vão à frente com a liberdade dos filhos de Deus, cantando, rezando, rindo, conversando, de braço dado, a passo de dança. Estamos chegando ao Jenipapo. O pessoal está à espera, os foguetes já anunciaram a nossa marcha. Um bêbado, cambaleando, se empurra para frente e coloca uma nota de dez cruzeiros entre as flores da berlinda. E o vento a leva... alguém hoje vai encher a cara, em honra da Padroeira. Ninguém conta mais os foguetes, parece uma barragem de fogo. Seu Hinton trouxe uma surpresa. Enquanto seus ajudantes disparam o foguetão que dá aquele estrondo, ele tem fogos de verdade: aquelas estrelinhas se abrem num leque fabuloso, para transformar-se numa chuvinha fina. Todo mundo olha para lá, com ciúme. Eu não, eu só gostaria de atirar uns pobres foguetes baratos, mas a minha pólvora está molhada. Domingo, dia maravilhoso, a gente quase apalpa a alegria que invade tudo e todos: a Santa volta para Santa Cruz. O que ontem era uma procissão, hoje é um rio sarapintado, feito de devotos, de música, de foguetes, de gritos, de crianças, de cachorros que farejam seu dono, de cavalos em toda parte. Eu, quietinho, atrás da Santa, repito: - Oh! Nossa Senhora, eu quero ter a fé deste povo, que sente a presença de Deus na maresia do lago, que a sente mesmo nas suas mãos com as fitas, com cera, com os foguetes. Quero a fé de Boimbom que vai ao meu lado com a mortalha que não usou, a fé daquele pai que leva no colo um anjinho. Na praia, Roberto e seus companheiros, galopando, afastam os búfalos que poderiam estra267


MARAJÓ - A DITADURA DA ÁGUA nhar e avançar em cima da procissão. Seu Oscar me oferece o cavalo. Agradeço e toco para frente, ouço Carlos Augusto cochichando: - Não pode, está pagando promessa. Chegamos a Santa Cruz. Ninguém conta os cavalos que recebem a Santa em frente de Casa Concórdia. Uma guerra de foguetes, alguns caem no chão, o capim torrado pega fogo, um estoura perto do meu rosto e me queima a mão. Aí está a igreja nova. Dom Ângelo, o Bispo, vem ao meu encontro para dar aquele abraço, mas eu não deixo: sou uma máscara de poeira. O Sargento Viegas dá o sinal e a Banda da Polícia Militar toca Vós sois o lírio mimoso.

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DESPEDIDA Entrevista concedida por Pe. Giovanni Gallo ao Jornal "O Estado do Pará" Edição de 23 de março de 1980 O ESTADO: Nesses dias o Marajó e o Arari voltaram a ser notícia. Como vão Jenipapo e Santa Cruz? PE. GIOVANNI: Como de costume, quer dizer mal. Espero que você me entenda. Não é pessimismo meu, é a denúncia objetiva de uma realidade que fura os olhos. E estou repetindo esta história até enjoar, mas tenho a impressão de que todo mundo me olha sem jeito, como se contasse besteiras. A SEPLAN, A SUDAM, solicitadas pela Associação Rural, nesses dias, estão mandando alimentos para lá. Até que enfim abriram os olhos, descobriram a calamidade que não é uma emergência, mas o nosso pão de cada dia. Jenipapo e Santa Cruz estão em crises por causa de um mal-estar crónico que agora vai entrar na fase aguda. O ESTADO: Em que consiste esta crise que você está denunciando? PE. GIOVANNI: Há sete anos moro em Jenipapo. Cada ano a situação vai para o pior, não por acontecimentos extraordinários, como seria a enchente de agora, nem por problemas de imigração, mas porque a estrutura atual não tem mais condições de sustentar a comunidade. Por um complexo de fatores que não posso analisar aqui, a proverbial fartura de peixe do Arari já era. Sobrou pouco e este pouco não dá para viver. O ESTADO: A diminuição do peixe é um fato comum no mundo inteiro! PE. GIOVANNI: Eu sei, mas para a nossa gente tem um sentido especial. Praticamente a pesca é a única fonte de sustento. Os pescadores começam a ganhar uma nota no Anajás, nos Mocoões, no começo de Julho. Vão lá antes, mas só para segurar o ponto, comer farinha, esperando a água baixar. Nem vão todos. A safra termina em dezembro, quando a SUDEPE fecha a pesca e as geleiras vão embora. Tirando os dias de espera entre uma safra e outra, praticamente os meses de pesca lucrativa são cinco ou pouco mais de quatro, Me diga, qual é o operário ou o executivo que possa se permitir sete ou oito meses de férias por ano? Na entressafra só consegue pegar a Póia, quando consegue. O ESTADO: Se é difícil pegar o peixe de inverno não deve ser um fato exclusivo de agora. PE. GIOVANNI: Mais ou menos: com a fartura antiga a gente vivia bem. Mas o antigo morador não tinha as mesmas exigências, não pagava certidão de nascimento, não comprava pilha, desodorante. Tem mais. Na jogada entra agora um fator novo, determinante. Antigamente havia duas safras, do peixe no verão e de caça no inverno, capivara, jacaré, muçuã. Agora a caça praticamente desapareceu e o pouco que sobra fica nas fazendas onde o pescador não 271


MARAJÓ - A DITADURA DA ÁGUA tem mais acesso. O ESTADO: E por que não pode? PE. GDVANNI: Porque fazendeiro não deixa. Se por acaso o pescador é abusivo, um invasor, pega alguma pele de jibóia, de sucuriju, mas depois não consegue furar a fiscalização do Batalhão de Polícia Rural do Estado que se instalou, faz pouco, na Cachoeira. O ESTADO: E você acha isso errado? PE. GIOVANNI: Esta pergunta me põe em sinuca: qualquer resposta me vai criar problema, de um lado ou de outro, mas eu digo o que penso, aceitando o risco de ser mal entendido e atacado. Acho bom, porque aquele marisco que o pescador abusivo estava fazendo nas fazendas não podia mais resolver os problemas dele. Não compensa. Eu fui ao barcedo, passei semanas num casquinho atrás de capivara, jacaré, pirarucu, uma vida de índio bravo; a gente às vezes passa vinte e quatro horas sem comer e no fim daquelas andanças de lago em lago, ganha um salário de fome. E não esqueça, que fui mariscar nas Matinadas com a autorização da fazenda, a gente trabalhava à luz do dia, mas o gebrista geralmente tem que passar o dia enfocado lá no aningal, no arumazal, só de noite sai atrás da bóia. Quem vai gritando bor aí que o fazendeiro deveria abrir as portas a todo mundo, sabe que está dizendo mentira, sabe que diz isso só para bancar amigo do pobre, enquanto de fato quer continuar a escravizá-lo. Abrir as portas quer dizer acabar tudo num ano, abalando mais um pouco o sistema ecológico. Mata mais cobras e o Marajó vai virar a terra dos ratos. E sem resolver nada, só prolongando uma agonia. O ESTADO: Tenho a impressão de que o problema está ficando cada vez mais complicado, sem resposta. PE. GIOVANNI: A resposta existe. Em teoria é fácil, difícil é traduzí-la em prática. Mudou o ambiente, as estruturas não aguentam mais, então vamos criar novas estruturas para a nova realidade. Em lugar de espalha boatos de que a polícia vai matar o gebrista e entará-lo no mondongo, eu vou dizer à SEPLAN, a SEDUC, ao Comandante da PM, ao Governador, que nos ajudem a resolver os problemas deste povo. Vamos criar as bases para o futuro. Deste jeito não dá mais e não por causa desta chuvinha, destes quatros palmos de água que estão lavando as nossas casas... O ESTADO: Você tem algum dado concreto nas mãos, de que estamos chegando ao ponto crítico? PE. GIOVANNI: Tenho. Todo mundo sabe que o roubo de gado é o mal crónico do Marajó. As reses roubadas não são dezenas, são centenas. Até agora, a meu ver, foi um fenómeno de exploração da pobreza: o pobre roubava sob encomenda, porque um safado de comer272


GIOVANNI GALLO ciante ou canoeiro mandava o coitado no fim do mundo a passar eletricidade no gado e em troca dum garrote de estimação lhe dava uma saca de farinha e uma garrafa de cachaça. Agora não, vai ser diferente. O roubo vai ser uma necessidade física, o único recurso para a sobrevivência. O ESTADO: Então que vamos fazer deste povo? Que quer dizer mudar as estruturas? Deixar que ele roube à vontade? PE. GIOVANNI: Primeira coisa: vamos mudar o sistema de pesca, não só inventando novos apetrechos, novas iscas, novos métodos, o nosso é pré-histórico, para dizer pouco. Usando uma rede de arame, por exemplo, se evitaria passar dias preciosos consertando os estragos das piranhas. Mais importante ainda é mudar toda a máquina. Eu já analisei neste Jornal a situação precária da nossa pesca, que sobrevive num equilíbrio instável, baseado na exploração mútua. Todos, desde o lanceador até o homem da balança, para sobreviverem, tem que enganar um ao outro. Fazer do consignatário o único bode expiatório, é fácil, mas também é injusto. Esta armação está no ponto de cair. O mais fraco, o pescada, já caiu, já está enforcado pelas dívidas que passam de uma safra para outra. Se ele vende por Cr$ 3,00 o tamuatá que, no Ver-O-Peso vale Cr$ 30,00, só pode ser assim. Estou me batendo por uma Cooperativa, quero criar um núcleo da Coopenorte com a SUDEPE. Mas o caboclo marajoara não é japonês. Para ele, cooperativismo é palavra à toa. O ESTADO: Em concreto, você já conseguiu alguma coisa? PE. GIOVANNI: Eu acho que sim. Foi a experiência da Vigia. Foi um negócio bem bolado. Antes, fiz duas viagens com a SUDEPE, para estudar a estratégia. Já sabia que a nossa embarcação não aguenta a maresia, que as nossas reáes não prestam, a nossa técnica também (outros peixes, outra fundura, o jogo das marés). O nosso pescador é uma fera no mato, mas tem medo da baía e acha que vai ficar porre. A resposta só poderia vir de um teste. Com a ajuda da Colónia e do Dr. Wagner da Emater. Cada um de nós entrou numa embarcação de lá. O ESTADO: Você foi também? PE. GIOVANNI: Eu fui, claro. Armei minha rede junto com eles no galpão da Colónia e fui o primeiro a sair para o mar, eu sou um pescada que trabalha pouco, mas também come pouco e ganha nada. O primeiro dia, como os demais colegas enjoei, baldeei e vi que o medo, se existe, pode ser superado. Um dia pegamos uma maresia feia mesmo, dei-me conta de que a gente podia ir para o fundo, mas não fomos graças a Deus. Depois foi uma beleza, até deu para filmar. Todos concordamos que a pesca de lá é mais fácil do que a nossa, cansa menos... Dos 15 da turma só dois falharam, os outros estão lá, uns já levaram as famílias. Depois da Páscoa outros farão o mesmo. 273


MARAJÓ - A DITADURA DA ÁGUA O ESTADO: A finalidade desta experiência seria então mudar o povo de Jenipapo para Vigia? PE. GIOVANNI: Não é isso. Vigia foi um teste para aPrir uma nova fronteira, mostrar ao pescador que é possível ganhar dinheiro também no inverno. É uma utopia pensar mudar em massa o povo de Jenipapo. Eu, se fosse pescador, não iria deste jeito, levado pelos outros. Ele fará a sua escolha. Meu programa é equipar o pescador para pescar no Arari no verão e de inverno na contracosta, no Pacoval. O entreposto flutuante deveria servir de apoio nesta operação: num dia o pescador poderia voltar a casa, passando pelo Tartaruga. Tem algum problema para deslocar o Entreposto, mas Deus é grande e vai dar um jeito. Talvez o Projeto Marajó vá abrir logo outro caminho. Com a Cooperativa bem organizada a vida vai mudar. O ESTADO: Você mencionou o Projeto Marajó. Se não estou errado, você já fez nas páginas deste Jornal uma certa crítica. Você fica nas mesmas posições? PE. GIOVANNI: Fico. O que escrevi foi fruto de ponderada consideração, para não dizer bobagens consultei técnicos e caboclos. Acredito que naquela fase o Projeto Marajó não tinha sido aprofundado adequadamente... Uma certa improvisação, os resultados confirmam. Agora mudou muito, acho. O DNOS está demonstrando-se muito sensível às exigências das comunidades como também a CORDAS. A pista de avião em Santa Cruz é uma bênção do Céu. Este ano abriram a barragem de Jenipapo: a piracema passou, a vida ficou mais fácil. Tenho certeza de que nestes dias vão abrir também o Tartaruga, que está fechado por razões técnicas. Esta nova saída vai aliviar muito a pressão das águas no Jenipapo e também os fazendeiros vão ficar alegres. O ESTADO: Considera positivo o Projeto Marajó? PE. GIOVANNI: Evidente, vai abrir um novo capítulo da história do Marajó. Se a nova hidrovia que estão fazendo já estivesse acabada, com a rede secundária de escoamento, o Anajás Grande e os Mocoões não conheceriam a tragédia destes dias, não haveria a atual mortandade de gado. É evidente que um projeto desse tamanho trás consigo o risco de turbar o equilíbrio ecológico, mas por outra parte o equilíbrio natural primitivo já não existe mais. Desapareceu o jacaré, o pirarucu, que passando conservam abertos os caminhos de escoamento das águas, que agora estão assoreando... Tenho certeza que o DNOS tomará em consideração as propostas que estamos estudando com a comunidade, para que o Projeto Marajó não pense somente no gado e no peixe, mas também na gente. O Governo não pode mandar todo ano toneladas de mantimentos aos flagelados do Arari. É mais barato e mais produtivo criar uma rede de canais, para abastecer os criatórios de peixe e possibilitar o transporte; não adianta criar peixe se depois não conseguimos transportá-lo. A perspectiva de criar rãs, muçuãs e porque não jacaré? Não são fantasias minhas. Com a ajuda da SUDAM, da SUDEPE, da SEPLAN é possível garantir um 274


GIOVANNI GALLO futuro para todos. O dia em que o turismo descobrir a pérola do Arari será um boom. Para a gente será bom e será mal, porque correremos o risco de ser engolidos. O ESTADO: Você se considera um homem realizado? PE. GIOVANNI: Quem pode dizer isso, com tranquilidade de consciência, hoje? Talvez alguém irresponsável. Já sou meio velho, tenho mais de cinquenta anos, já passei por muitas maresias. Fui criado na base da filosofia Scolástica: tudo se encaixava numa certa gaveta da verdade. A gente sempre definia as coisas como certa, provável, mais provável, menos provável, muito provável, quase certa... Todas as dificuldades se resolviam distinguindo, fazendo a autópsia de todos os pensamentos. Passaram uns anos e os grandes desobedientes de então, agora são chamados de profetas carismáticos... Já fiz na minha vida obediências heróicas que agora considero tolas, só que naquela época eu estava mais apegado d estrutura que à verdade; entre o sistema e Jesus Cristo escolhia o sistema. Reciclando a teologia, encontro a cada passo colocações tão esquisitas, que fico questionado. Não me atrevo a definir-me realizado, quando estou passando por esta caminhada de revisão e aggiornamento. Demasiadas verdades que antes eram inatacáveis, agora ficam abaladas. Para mim nunca foram elementos sobrepostos à minha existência, eram parte do meu ser, da minha vida. Renunciando a eles, devo renegar parte da minha vida, de forma que se me falta parte, não sou mais íntegro, não posso considerar-me realizado no sentido verdadeiro. O ESTADO: O que está dizendo reflete a sua posição de homem, de Padre em geral. O que você acha do seu trabalho no Marajó? PE. GIOVANNI : A resposta é mais difícil porque se refere à experiência mais difícil da minha vida. Não falo, evidentemente, de dificuldades físicas, determinadas pela pobreza do ambiente. Falo do meu trabalho. Sempre me atormenta uma certa angústia: será que escolhi o caminho certo? Todas estas obras sociais que estou realizando ajudam a comunidade a crescer ou simplesmente distorcem a imagem do Padre, criando a ideia do Padre rico, do Padre barão? Há sete anos que estou morando aqui, sete anos em que estou afinando a pontaria, retocando, corrigindo à procura de uma tranquilidade que jamais alcanço. Estou pesquisando folclore, gíria, tradições, tudo o que se refere ao povo, mas reparo que jamais consigo largar completamente a casca do homem que veio de longe, que conheceu Europa toda, do homem que carrega no sangue uma herança estranha que não pode casar com esta realidade cabocla. O ESTADO: Talvez um exemplo pudesse ajudar a compreender melhor o seu pensamento. PE. GIOVANNI: Mais que dar um exemplo concreto, eu deveria questionar a colocação da experiência humana, diria a visão da realidade, do mundo. Eu sou italiano, por enquanto. Quando voltei à minha terra, encontrei um povo que passa bastante bem mas que está in275


MARAJÓ - A DITADURA DA ÁGUA satisfeito. Morei oito anos perto de Basileia, na Suíça; lá encontrei o máximo de bem-estar, mas descobri atrás daquela fachada de riqueza uma preocupação que envenena o que eles têm na mão. Depois da Suíça fui destinado a Suécia, mas eu consegui trocar Estocolmo por Jenipapo. Numa viagem que fiz lá, fiquei chocado encontrando só gente se queixando: Aqui só tem gelo e imposto! Acredite-me, no Jenipapo, apesar da pobreza, apesar da vida difícil, o povo vive mais feliz. O âmago da problemática está aqui: faço bem ou faço mal em levar este povo ao bem-estar, à vida organizada, a subir na escada do desenvolvimento, quando todo mundo agora está constatando que o milagre desta sociedade de consumo é o produto mais decepcionante da história humana? O ESTADO: Renunciar ao progresso não seria voltar a um conformismo medieval, a uma aceitação passiva duma realidade injusta? PE. GIOVANNI: Não é bem isso, porque eu não escolhi este caminho ou melhor eu não me conformo com a realidade atrasada e injusta. Eu luto para o progresso e o desenvolvimento. Porém sinto que este caminho tem uma fraqueza, uma intrínseca contradição. Movido pelo zelo da justiça posso conscientizar o caboclo a defender certos direitos, mas a sociedade não permite, agora, que estes direitos sejam realizados. Conclusão: transformo um homem tranquilo e satisfeito num ser inquieto e revoltado, só. Amanhã, os filhos deles, os netos, chegarão ao fim da caminhada, só eles gozarão dos frutos desta vitória, supondo que seja vitória de verdade. É mais gente o caboclo da beira do rio ou o homem de paletó e gravata, estressado, poluído, nevrótico, que precisa de psicanalista para sobreviver? Como vê, estamos entrando num círculo viciosa O ESTADO: Trocando Estocolmo para viver no Jenipapo, você se considera um herói, um homem sacrificado ou simplesmente um homem pobre? PE. GIOVANNI: Acho que um padre nunca pode ser pobre no sentido autêntico. Pode bancar o pobre, brincar de pobre, mas ele sabe que no dia em que adoecer os colegas o levam ao Rio ou a Europa. Se ele fosse pobre de verdade ficaria encolhido na rede tomando chá de erva doce. Pobreza é incerteza, é falta de segurança na vida: o Padre tem o seguro duma estrutura maciça que lhe garante assistência. Até poucos anos atrás o meu raciocínio terminava aqui: agora descobri que é falho, consequentemente errado. A razão depende do fato de que eu pretendo identificar-me com o caboclo, quando eu não sou caboclo. Estudei Aristóteles, Kant, posso ler Kafka ou Schopenauer, o caboclo não lê nada. A falta de segurança do futuro para mim é um pesadelo, para o caboclo não é nada. Exato, nada é a palavra certa, porque não existe, não está nas perspectivas dele. Ele gasta tudo hoje sem pensar no amanhã, porque o amanhã não lhe interessa, não existe. Amanhã, na hora da fome, não sente remorso; de fato todos os anos 276


GIOVANNI GALLO repete a mesma experiência. O ESTADO: Estas considerações, que são válidas no plano social, como se aplicam à realidade religiosa, no campo específico do seu trabalho de padre? PE. GIOVANNI: Estou consciente de ter escolhido um caminho diferente da maioria dos meus colegas: muitas vezes, eles até olham desconfiados. Um Padre que passa uma safra na beira do rio, no galho do pau... sem rezar a Missa todos os dias, que vai salgar peixe, passa semanas no mondongo, que é convidado a ser Presidente da Colónia dos Pescadores... que, porém, só faz 1,333 casamentos por ano, que quase não tem comunidades de base, quando no quintal dos meus colegas as comunidades crescem mais depressa do que o juquiri. Todas as obras sociais que eu escolhi são mesmo comunitárias, quer dizer de todos, não de elites: o Posto Médico, os Jardins de Infância, o cemitério, o trapiche... Quem pisa na ponte ou vai tomar vacina, não sente obrigação de vir à Igreja. Quando estava embalsamando piranhas me assustei, constatando que todas as trabalhadoras vinham a Missa todo dia. Acabou a piranha, acabou a Missa. Descoberta a fórmula secreta: só mudar o estilo de trabalho e eu teria uma paróquia modelo. Será que adianta? Não tenho clube de jovens. Comecei quatro vezes, em quatro estilos diferentes, e sempre fracassei: no bairro de Fé em Deus, em São Luís do Maranhão, o Clube, depois dum ano era uma beleza. Lá o Conselho paroquial nasceu depois de três meses: aqui consegui montá-lo depois de sete anos. No Marajó quem está com pressa fica doido ou morre. Já fui professor do Mobral: tinha um aluno só, mas aguentamos o ano todo. Estou convencido de que o meu trabalho é válido, claro, senão o largaria na hora. Mas ele tem o compasso do Marajó, sem forçar a mão, sem querer avançar a maré, ou meter a cara na maresia. Precisa paciência. Agora estou neste ritmo. Se os meus Superiores têm esta paciência não sei, o problema é deles. Se não gostam, que me tirem do time: será um pouco difícil que outro colega possa ou queira juntar todas as peças que eu espalhei no meu caminho. O ESTADO: Podendo entrar na máquina do tempo e voltar atrás de sete anos, você escolheria de novo o Marajó, Jenipapo? PE. GIOVANNI: Considero impossível uma resposta honesta, porque agora é impossível para mim ver o mundo como o enxergava sete anos atrás. Agora sou (quase) um filho daqui, aqui dei tudo o que tinha, passei por alegrias e tristezas, humilhações e ameaças. Estas coisas estão cravadas no meu espírito. Ninguém as tira, não posso mais fazer uma abstração. Na viagem à Europa dei um pulo até Basileia e aproveitei para visitar a Mustermesse: sou curioso, gosto dessas coisas. Quando me encontrei naqueles pavilhões, senti-me perdido, senti-me mal, não era o meu ambiente. O homem das palafitas, de Jenipapo, não podia entrar em sintonia com a eletrônica. Tive que sair, às pressas. O mesmo me aconteceu na 277


MARAJÓ - A DITADURA DA ÁGUA rua, diante do distribuidor automático de passagens do bonde. Conhecia tudo isso, compreendia a língua... (as línguas), tinha apertado aquele Potão mil vezes... Foi uma luta... Repito, agora sou outro homem. Não sou ainda marajoara, mas tamPém não sou mais o homem da Suíça ou da Itália. Apesar de não poder ser imparcial, eu digo: claro, eu escolheria de novo o Marajó, sem a mínima incerteza, não trocaria Jenipapo por Estocolmo. E não por heroísmo. O ESTADO: E você faria as mesmas coisas que você fez? PE. GIOVANNI: Tendo a possibilidade de desfrutar a experiência de agora, acho que não. Fiz muitos erros, muitas ingenuidades, aborreci-me a toa, pretendendo de mim e dos outros o que eu e os outros não podiam dar. Este processo de revisão e de mudança, que estou fazendo do meu trabalho, acho que nunca acabará. O ESTADO: Uns meses atrás você interrompeu a série de reportagens sobre o Marajó para o nosso Jornal. Pretende continuar? PE. GIOVANNI: Pretendo sim. Estou simplesmente atrasado no cronograma. Tenho compromissos demais. No Jenipapo e em Santa Cruz temos equipes Pem estruturadas que assumem responsabilidades, mas no fim tudo cai em cima de mim: Jardins, posto, cursos de artesanato, atividades pastorais. Se pudesse encontrar três irmãs que aceitassem trabalhar lá, eu seria um homem boiado, mas ninguém quer... estou cansado de mandar retratos, relatórios, programas e convites. Agora estou curando a publicação de um livro com a seleção dos artigos que já publiquei sobre o Marajó: vou escolher uns trinta ou quarenta de interesse geral. Depois do lançamento quero entrar na peleja outra vez. Já tenho muito material quase maduro. Agora quero focalizar a vida do vaqueiro. O ESTADO: Existe alguma coisa que gostaria de fazer e ainda não conseguiu? PE. GIOVANNI: Gostaria de publicar um livro sobre o Marajó, um livro de fotografias em preto/branco e cores. Também no livro que estou preparando sairão umas fotos para criar a atmosfera. Mas este livro, que está nos meus sonhos, deveria ser só fotos, com um comentário telegráfico, só umas dicas, umas poucas reflexões para ajudar o leitor a entrar na minha linha de pensamento. O título já tenho prontinho: O Meu Marajó, porque quero apresentar um Marajó descontraído, risonho, feito de espaços, de silêncios de por do sol, de água, de lama, de criancinhas, de meninas bonitas. Não quero crianças barrigudas com a ferida no canto da boca e a mosca que chupa os olhos, velhos cadavéricos e aborrecidos. Vai ter a morte com a sua majestade, a devastação da piranha, a sofrida caminhada dos pescadores, mas tudo naquela atmosfera autêntica que eu bem conheço. Ainda hoje procuro olhar para a realidade com a ingenui278


GIOVANNI GALLO dade da descoberta do primeiro dia, quando perguntava: Que bicho é esse? Por que você está fazendo assim? O ESTADO: E qual é a dificuldade? PE. GIOVANNI: Preciso encontrar uma gráfica à altura do compromisso. É fácil publicar um catálogo com Poas fotos. Um livro de fotos é outra coisa: ou as fotos são perfeitas ou só prestam para rótulo de carne enlatada. E depois precisaria arranjar alguém que financie, que entenda do produto. No Marajó precisa-se de paciência, saber esperar, mas tenho medo de que os filmes se estraguem: O Marajó é o paraíso dos fotógrafos mas é o inferno do material fotográfico. Mas se Deus quiser, o meu Marajó vai aparecer.

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E A VIDA CONTINUA Marajó, a ditadura da água é o retrato falado de quase dez anos da minha vida no Marajó. Para mim foi a gratificante descoberta de um mundo novo, empolgante, acompanhando os pescadores na safra do mato, vivendo com eles no galho do pau ou numa pequena embarcação na Imensidade do mondongo, sobretudo um mergulho no passado, participando da vida comunitária na paisagem vislumbrante das palafitas como os nossos mais remotos ancestrais. Sempre preocupado em querer compreender este novo mundo, para melhor aculturar-me a fim de viver uma comparticipação total. Fazendo a revisão do texto para a terceira edição, tive a impressão de estar relembrando experiências que pertencem a um passado remoto, diria pré-histórico. Não falo do meu Marajó que mudou, mas nem tanto: é até díficil dizer se estas mudanças foram todas conquistas. Fui eu que mudei, pelo menos por fora. Não é possível fazer aqui um diagnóstico desta nova experiência. Achei porém que esta breve chamada, um pouco sibilina, fosse necessária para não deixar a Impressão de que eu pretendo continuar explorando as glórias do meu passado. Quem quiser saber mais, pode ler a minha autobiografia lançada no ano passado pela Secretaria de Estado da Cultura. Só o título, O homem que implodiu, cria um certo arrepio ou mal-estar, deixando intuir que não foi um final feliz. “O padre Giovanni é um bravo! A página dos apelidos é notável, Ele entra no âmago, tira a semente. É um padre voltado para o ser vivo, que não teme o diabo e aceita o desamparo de Deus". "Quanto ao lago Arari, o padre está no auge: informa, pesquisa, revela, mostrando a condição do povo e da terra, Do jacaré desaparecido. Do pirarucu... mas o que espanta é a constância da pobreza e das dificuldades do Marajó. E o povo continua". "O padre mergulhou a fundo nos problemas. O padre vai bem. Sente o Marajó dentro do peito e a sua cultura lhe apura a sensibilidade". "Como me vejo em Marajó, como me vejo entre os mururés gordos lambendo os esteios da nossa casa cercada de água. A foto das crianças de Jenipapo me comove, são meus netos marajoaras, alegres apesar da miséria, apesar da dura condição em que vivem". 281


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"Excelente a reportagem do padre sobre os mestres de ofício. Tenho uma grande admiração por esses mestres que desafiam a tecnologia sofisticada". "O padre Giovanni é corajoso, sim senhor, tocando em feridas velhas, na área Jenipapo e Santa Cruz do Arari. Feridas que sangram em meu romance "Marajó". O que me surpreende é que as coisas lá não mudam, ao contrário, se agravam. O padre Gallo, com muita ênfase e jeito, confirma e denuncia. Não estamos tão distantes um do outro". OBRAS DO MESMO AUTOR - Motivos ornamentais da cerâmica Marajoara, modelos para o artesanato de hoje, SECULT, 1996. - O Homem que implodiu, SECULT 1997. ENCOMENDAS Smith Produções Gráficas Ltda. Av. Pedro Álvares Cabral, 55 - Marambaia Fone/Fax: (091) 231.4908 - CEP: 66.613-150 - Belém-Pará

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Giovanni Gallo nasceu na Itália em 1927, agora é naturalizado brasileiro. Fez os estudos e foi ordenado sacerdote na Companhia de Jesus. Como Jesuíta começou a sua atividade na Espanha e depois na ilha de Sardenha (Itália), sempre em contato com a classe mais humilde. Em 1962 foi enviado à Suíça alemã como capelão dos emigrados e fundou a Missione cattolica Italiana dei Birseck, perto de Basileia, no período mais quente do movimento contra os estrangeiros. Em 1970 optou pelo terceiro mundo, na América Latina. Chegou ao Brasil depois de muita luta, recusando Estocolmo como alternativa. Depois de dois anos no bairro da Floresta em São Luis do Maranhão, foi destinado a Ilha do Marajó, MARAJÓ A DITADURA DA ÁGUA é o retrato falado de quase dez anos de vida participada em todos os níveis, acompanhando os pescadores na pesca do mato, vivendo com eles no galho do pau ou numa pequena embarcação na imensidade do mondongo. Bichos, visagens, pajelança, medicina da terra, experiência pastoral são os ingredientes da vida deste padre no Marajó que os brasileiros não conhecem. E a coleção e a seleção dos artigos publicados em "O Liberal" e "O Estado do Pará". Esta é a terceira edição, fato que testemunha a boa aceitação dos leitores. Com novo projeto gráfico e revisão de texto, eliminando uns poucos trechos desatualizados, procura o público do Brasil a fora, já que as outras edições foram esgotadas em Belém.


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