AGOSTO 2014_REVISTA COLABORATIVA QUINCAS_Edic達o 03_CICATRIZ
CICATRIZ Edição 03_ Revista Colaborativa
Projeto Gráfico_NATALIA NUNES Edição_GIOVANA MORAES SUZIN Capa_GABRIELA PORTILHO
AGOSTO 2014
colagens_NATALIA NUNES
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TREMA editora de Quincas_GIOVANA MORAES SUZIN
Sofri um seqüestro e fui expurgada. Não devo mais ser encontrada com freqüência entre linhas e orações. Antes, era uma insígnia de distinção, sinônimo de independência em qualquer argüição. Era como uma cicatriz, que não permite jamais o esquecimento. Por conseqüência, quem antes omitia, comigo não podia mais calar. A eloqüência ficava mais eloqüente. A cada cinqüenta anos, dez qüinqüênios felizes. Até o enxágüe no banho era melhor. Mas os reformistas não me agüentaram. Apagaram meu rastro. Tremo só de pensar. Eu, que só queria formar autos-relevos de tinta em cada página talhada de significados. Minha tranqüilidade acabou. Virei delinqüente.
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COLABORADORES TOFU VERDE_(Bauru SP, 1982) André Luiz Massayuki Ota é mais conhecido pelo codinome de Tofu Verde. Formado em Desenho Industrial pela Unesp de Bauru, é filósofo de banheiro que mais retweeta porque não sabe escrever. Desde pequeno é desenhista de parede e tinha mais de um amigo imaginário e por isso não tinha tempo para os “reais”. Site: www.behance.net/tofuverde.
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JÉFERSON DANTAS_ (BAGÉ RS, 1973) É historiador e doutor em Educação pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Professor no Departamento de Estudos Especializados em Educação do Centro de Ciências da Educação da UFSC. Dedica-se também à construção de materiais didáticos e formação de professores, além de ser letrista e compositor, com um CD gravado de forma independente. Para saber mais, conheça o http://clioinsone.blogspot.com.br/.
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FERNANDO MENEZES_(Marília SP, 1984) Fernando desenha desde pequeno. Formado em Desenho Industrial, atua no mercado há 10 anos – mas ultimamente tem se arriscado na área da fotografia e da caligrafia. Ilustrações e quadrinhos sempre fizeram parte de seu universo e são fontes de inspiração para seus trabalhos. Faz uso de diversas técnicas, da aquarela a pintura digital, sempre à procura de resultados surpreendentes. http://redcapstudio.tumblr.com
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BRUNO MANFRA_(LINS SP, 1981) É caipira do interior de São Paulo, mas vive em Florianópolis há 7 anos. Não acredita em futebol, mas é torcedor do Clube Atlético Linense, o Elefante da Noroeste. Ganha o pão como funcionário público, atuando na promoção dos direitos humanos dos trabalhadores. Cavalga nuvens como poeta e compositor. Está finalizando as gravações de seu primeiro álbum. Mais em https://soundcloud.com/manfra.
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BRUNA CASTRO_(São Bernardo do Campo SP, 1988) Nascida em São Bernardo, às 22h45, prematura. Trabalha como redatora publicitária em horário comercial. Em horário não-comercial, escreve em seu blog Abra a Janela (www.abrajanela.com.br), mantém seu projeto de fotografia/linguagem, o Bonito Português (www.bonitoportugues.com.br) e ainda o Feel the Butterfly (sobre amor, claro www.feelthebutterfly.com). Além disso, escreve cartas e e-mails gigantes, já que estes não tem a maldita opção “mensagem visualizada”.
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GABRIELA PORTILHO_(São Paulo SP, 1986) É paulistana crescida no interior, de onde vieram algumas das suas cicatrizes – já se mudou de casa mais de 17 vezes. Jornalista, escreve sobre ciências e astronomia, mas pira mesmo é em astrologia. Com a fotografia, tem um caso de amor. É do time dos fotógrafos amadores, os fotógrafos por amor. Nas horas vagas, faz parte do projeto The Smell of Dust, e do coletivo paulistano Socionautas. Muda de humor a cada lua, sonha com água quase todos os dias e anda apaixonada pela palavra “mistério”. Para ver mais: http://gabiportilho.com/
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ANDY CORTE_(Santos SP, 1983) Se envolveu no mundo do grafite quando tinha 13 anos, no bairro da Mooca em São Paulo. Ele e mais um amigo começaram a decorar o bairro com formas e cores, apresentando o grafite a pessoas que não tinham acesso à arte na década de 90. Ao longo dos anos, Corte veio trabalhando e aperfeiçoando técnicas e estilos. Atualmente usa formas geométricas que representam a cidade, como uma extensão da arquitetura urbana, porém com cores. A ideia é contrastar o colorido com o cinza.
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CASA, COZINHA E BANHEIRO hq_TOFU VERDE
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VOZES CICATRIZADAS prosa poética_JÉFERSON DANTAS Dias de portas fechadas e um bilhete na mesa contando da ausência. Lembro-me da carta última, da doçura do beijo que fizeste questão de registrar como algo bom de nossa turva intimidade. Dias de mastins furiosos, cheiros aziagos pela casa; por certo roupas e louças sujas num concerto nauseabundo a infestar quartos e a pequena sala semimobiliada. Um toco de cigarro na sacada. Acendo-o e firo os dedos amarelecidos. Três baforadas. Está amanhecendo na cidade-ilha. Pássaros em sinfonia combinam arranjos sonoros com grilos e sapos próximos de um fétido córrego que carrega os túrgidos pensamentos. *** (Voz um): “Preciso ser amada e idolatrada e rejeito o teu amor piedoso. Tua piedade é escape e rota de fuga. Vontade de não encarar tudo o que macula tua rasteira verdade”. (Voz dois): “Preciso ser amado. Você se contenta com flores arrancadas da garganta. Eu necessito de todo o sangue e de toda entrega sem limites”! *** Dei-me conta tardiamente que ela amava as flores arrancadas da garganta e os destinos da perversidade. Abandonamos o leito há muito tempo e o amor se transformou em retilíneo esquecimento. Nenhuma fábula cavalheiresca seria capaz de nos desnudar como nos tempos das promessas pueris. O meu espírito inquieto só conseguia desfrutar as excentricidades da mente.
Mas, evidente que não fui capaz de esquecê-la. Joia de precipícios e os seios de fogo que brincavam em minha boca como brincadeira de frescor perfeito. O costume do gozo era a nossa dádiva depois de cada fim de dia ordinário. E aquele bilhete foi a véspera de uma solidão eterna. A história se acabara... e eu com os reflexos passados, fábulas de vento que não dormia... O esquecimento é pior do que a morte. No fundo de nossa ruína este foi o elevado preço do mergulho de nossas vozes. O esquecimento é a última etapa de um auto-abandono. Aos poucos tudo é terra arrasada. Antes, nossas bocas despertavam muito antes da aurora e os nossos corpos se impregnavam de sinfonias angélicas sob as peles incandescentes. E olhávamos para o empíreo e tínhamos certeza de que o catarro da discórdia dava vazão para um firmamento verde-esmeralda... e esse era o pulmão do mundo imaginado... uma transcendência límpida que ardia nossos olhos e lacrimejávamos como se estivéssemos na dimensão infante dos primeiros desejos. Tudo se desmanchava diante dos horários fixos de raros prazeres. O despertar do transe era de uma violência singular. Ficávamos grudados e não queríamos sair do leito. Os exploradores só existem para nos deixar com essa cara de vira-latas abatidos... Os teus olhos eram rochas despencando... e a arte era covarde para expressar todo o martírio... portas batendo...vazios e giletes dilacerando o peito...
ilustração_FERNANDO MENEZES
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SERPENTES DA NOITE poesia_BRUNO MANFRA ilustração_FERNANDO MENEZES
Da noite o pouco que sobra às cobras no chão invadindo os pensamentos Que o vento não levou ficou um rasgo na pele da mordida desta temida traiçoeira a marca o resto o que sobrou o que não vai não sai não cai no esquecimento por mais que tento o vento não leva de jeito nenhum de forma nenhuma e a forma não é vazio é frio é frio é frio do calafrio do veneno desta intrusa residente permanente no lar de uma cabeça pensante não-triunfante não-esquecente que não deixou passar o que o que ficou ficou ficou fincou os dentes em fila como um pente de pontas agudas e venenosas injetou o veneno o veneno do não-esquecimento do lamento residente na mente na mente na mente como uma culpa absurda e suja gravada no hiperespaço do hipocampo o veneno o veneno o veneno O que sobra da noite a culpa a culpa de não ter feito tudo tudo ou o oposto não ter deixado nada nada nada nada negligenciado um estalo me veio agora como se visse uma criança que chora quando descobre o mundo não mudo e deixa o veneno derramar depois de tanto o guardar em barris de carvalho envelhecendo dentro da cuca da cuca da cuca e de fato derrama e some e volta toda a fome sem nome do tudo no mundo.
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PROFUNDO texto_BRUNA CASTRO ilustração_FERNANDO MENEZES decidimos que passaríamos a noite juntos, pela primeira vez. quando tirou sua camiseta, havia uma cicatriz que atravessava do peito até a barriga. ele era praticamente um desconhecido para mim e a intimidade veio, primeiro, em forma de sexo. mais tarde, já cansados, acomodei minha cabeça no seu ombro, e fiquei tentando imaginar como ele havia se machucado. parecia tão profundo. tão logo, ele mesmo contou que seu coração foi transplantado. duas vezes. o primeiro, seu corpo rejeitou. fiquei em silêncio e me acomodei nele para escutar sua história. mas, no fundo, eu estava concentrada escutando suas batidas. era outro ritmo e outra intensidade. eu e essa mania de escutar o coração do outro, ao mesmo tempo em que conto as minhas batidas no pulso. sempre acho que se tiver batendo ao mesmo tempo, é um bom sinal. eu não conseguia parar de pensar que aquele homem do meu lado teve em seu corpo o coração de outras duas pessoas. era um sobrevivente. irônico. só eu sei o quanto eu quis dizer que eu também tinha uma cicatriz tão profunda, coincidentemente, também causada por um coração fraco. só era invisível aos olhos de um desconhecido.
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CICATRIZES fotografias_GABRIELA PORTILHO
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CRATERAS, bactérias sobre pele, São Paulo, 1998
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FERIDA ABERTA, lascas de epiderme sobre carne, S達o Paulo, 2014
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ACIDENTE, chão áspero sob pele, ilha de Koh Phangan, Tailândia, 2012
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TATUAGEM, tinta sob epiderme, S達o Paulo, 2011
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RACHADURAS, compressão de dentes sobre língua, Marília, SP, 1956
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FERIDA ABERTA, lascas de epiderme sobre carne, S達o Paulo, 2014
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ANEURISMA, catéter intra-arterial, São Paulo, 2011
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UMBIGO, queda natural de cord達o umbilical, 1985
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PEITO ABERTO, bisturi à frio com ruídos espirituais, verão, 1989
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CORTE grafite_ANDY CORTE
edicão_GIOVANA MORAES SUZIN (Vacaria RS, 1987) É jornalista e historiadora e trabalha no Almanaque Abril, na Editora Abril, em São Paulo. É curiosa, insone, exagerada e coleciona pequenos prazeres - seus e alheios. Nascida gaúcha, tem o coração catarinense, mas seus pés são ciganos e não gostam de acomodação. Gosta de gente, de se perder em viagens e em sonoridades múltiplas. Escreve sobre música e outras pirações no blog http://pandorga.mus.br/
direção de arte_NATALIA NUNES (Macatuba SP, 1984) É designer de formação, e o que mais gosta de fazer é se envolver em propostas como a Quincas. Adora mesmo, pararia todo o resto do que está fazendo para se debruçar em projetos atraentes. Mantém alguns blogs de referências, os quais também acha atraentes, como o http://fuckmeproperly.tumblr.com/
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