Revista Quincas | Edição Loucura

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DEZEMBRO 2015 Edic達o 08_LOUCURA 1



loucura edição 08_ revista colaborativa

Direção de arte_natalia nunes edição_Giovana Moraes suzin capa_Daniel Bruson

DezeMBro 2015


fotografia_Brunno


teto preto editorial_Giovana Moraes Suzin colagem_natalia nunes

Andava apressada e olhando para baixo, como a maioria das pessoas. Já se esquecera de buscar o horizonte, mesmo que fosse para ver o céu poluído e lembrar que atrás dele brilham estrelas, indiferentes. Parou para comprar um jornal: apenas porque achava que o papel não deveria morrer, mas secretamente odiava a todos eles. Talvez o fizesse mesmo para se esquecer um pouco do seu próprio sofrimento; a desgraça alheia sempre lhe caía bem, como um soco no estômago. “Acidente: barragem de mineradora de ferro estoura. Tsunami de lama pode contaminar a água da região”. Covardes!, pensou. A manchete deveria ser “Crime ambiental”. Sua cabeça rodava. Suas próprias contradições teimavam em explodir como granada dentro de si. Seria ela também uma medrosa? “Pela primeira vez na história avistase algo saindo de um buraco negro”. Deixou-se voar. Na periferia de uma galáxia qualquer, surge a vida – ainda que inexplicavelmente – e a evolução culmina em quadrúpedes com telencéfalo altamente desenvolvido e polegar opositor: nós, os únicos seres com consciência da nossa própria existência e morte. Perdidos nesse grande universo preenchido de matéria escura. Como foi que adquirimos essa consciência mesmo? A maioria das pessoas passa a vida sem se perguntar, falou para si mesma, como se a conclusão respondesse a questão. Chegou a seu apartamento próprio, tirou o All Star e se espalhou na poltrona. De repente sentiu nojo: aquele assento a corrompia. Tudo ao redor a corrompia. Queria fugir, mas sabia impossível deixar a si mesma. Uma porta bateu dentro dela. Trancou-se.


Alcimar frazão_(São Paulo SP, 1982)

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É Socialista, Tricolor, Existencialista, metaleiro, desenhista, filósofo de boteco, leitor inveterado e game maníaco. Nas Querelas da história da Arte, considera-se um anticlássico dedicado ao estudo da tradição. Entre uma dose de whiskey e outra, foi interpretado por Clint Eastwood em sua cinebiografia. Aqueles pequenos prazeres do álcool.

lívia aguiar_(Belo Horizonte MG, 1987)

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É mineira de Belo Horizonte, feminista, mochileira, jornalista e especialista em redes sociais - assim, nessa ordem. Estudou comunicação na UFMG, se mudou para São Paulo para trabalhar com revistas e acabou se metendo nesse “negócio que é a internet”. Em 2012, largou tudo para ver o mundo com os próprios olhos e voltou com milhares de histórias que ainda não foram contadas. Gosta de viajar, fotografar, cozinhar, ler contos de fadas, tentar adivinhar o futuro das relações e de escrever sobre todos esses temas. Acredita na inocência dos mamilos, no movimento slow e na capacidade humana de amar, mesmo que o noticiário tente nos provar o contrário. www.eusouatoa.com

Fabio Navarro _(Jahú SP)

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É escritor. Mora na capital há doze anos e possui uma vida literária independente. Seu primeiro livro – Descarrilho Cotidiano – será publicado em 2016 pela Editora Benfazeja. Atualmente escreve seu segundo manuscrito. Finalista e menção honrosa do Festival de Poesia de São Paulo, participou da coletânea Os Reversos – Instrumentalizando a Poesia. Também foi cronista nas revistas Nego Dito e Altnewspaper.

Daniel Bruson_(Sorocaba SP, 1983)

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É diretor de animação, artista gráfico e designer. Formado em Design pela Unesp Bauru, trabalha desde 2008 como freelancer para cinema, publicidade, videoclipes, projetos de teatro, artes plásticas e música, produzindo paralelamente seus projetos autorais. Já teve seu trabalho exibido em diversos festivais pelo mundo. www.dogday.tv


colaboradores cínthia santana_(Ituverava SP, 1984)

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Formada em Artes Plásticas, se aventura por diversas superfícies bidimensionais. Seus trabalhos questionam conceitos como o tempo, o espaço e os objetos. Interessa-se pelas palavras soltas e pela tipografia despretensiosa. Cata folhas e conchas e gosta do som da poeira que se acumula na agulha da vitrola. www.cinthiasantana.carbonmade.com

daniel mendonça_(São Paulo SP, 1982)

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Bacharel em Comunicação Social pela Unisul e mestre em História pela Udesc, vive desde 2002 em Florianópolis, onde trabalha como revisor de textos e escritor. Escreve principalmente sobre cinema, música e esportes, incluindo sedentários, como pôquer (publica crônicas na revista Card Player). É ateu não praticante e gostaria de ter sido Nelson Rodrigues.


cinzas pintura_daniel bruson


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foi estranho caminhar conto_Lívia aguiar colagem_natalia nunes

É bizarro caminhar. Bizarro. Simplesmente bizarro. Tão bizarro quanto bizarro pode ser. De repente, estou consciente de todos os músculos, ossos, nervos e outras merdas necessárias para dar apenas um passo. É bizarro, mas agradável. Dá pra entender? Eu me sinto conectada e inteira, um ser completo em movimento - e sobrevivendo. Obrigada cogumelos, cogumelos mágicos, por me fazerem me sentir assim. Estou consciente, desperta. Conectada ao meu corpo como sempre deveria ter sido. Nós somos o um conjunto, afinal. Respirar. Meu deus, res-pi-rar. Respirar é booooooooooom. Paro de andar e respiro fundo, aproveitando cada momento, prestando o máximo de atenção. E agora outra inspiração, mais profunda. Uma meditação. Caminhar é bizarro, sim e sim. Como nós conseguimos coordenar o corpo todo desse jeito, uau, mas respirar... respirar é explodir e voltar. Expandir pulmões e mente. Ouvir o oxigênio chegando em grandes goles. Eliminar o dióxido de carbono sem pressa. O vazio do corpo depois disso – só para começar de novo, procurando a vida em cada expansão do peito. Dez passos e cinco fôlegos depois que os cogumelos começaram a bater sem misericórdia. Acho que estou pronta para

reabrir meus olhos. Sim? Sim. PÃ! O poder da luz me faz cair na grama. E não vejo mesmo nenhuma necessidade de me mover daqui. Ver é bizarro, mais bizarro do que caminhar ou respirar. Ver. Não olhar. Note a diferença. Olhar nós olhamos todos os dias, sem realmente ver as coisas ao nosso redor, só absorvendo a luz como se ela não importasse. Mas vendo, agora realmente vendo, com olhos e cérebro apropriados, eu absorvo tudo. Ok, eu acabei de perceber que estou viajando em um cemitério. Um cemitério mexicano, sim, cemitério brilhante, colorido e florido, um cemitério cheio de bons e velhos espíritos de pessoas festeiras, um cemitério nada assustador. Falo para mim mesma que eu não tenho nenhum medo desses espíritos mexicanos, abuelitos e abuelitas felizes em compartilhar sua sabedoria e calma. Eu consigo senti-los, nós nos respeitamos e continuamos com nossas vidas. Decido considerar que esse cemitério é um jardim bem cuidado, cercado pelos bosques de pinheiros em montes alegres mexicanos. Não é assustador, não é sagrado, só um lugar com pessoas enterradas embaixo. Olhando após as tumbas e suas cores, a floresta ao meu redor é mais verde, as árvores se movem como se fossem um

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grupo de adolescentes que são populares demais para serem minhas amigas. Mimadas, coquetes, sensuais, mas nada interessantes e nem se interessam por mim. Whatever. Vou viver uma vida melhor se eu não me preocupar em agradá-las. Pra cima, pra cima, para as estrelas agitadas e além delas. Olho para cima e me sinto confortável. O mundo é tão pequeno e eu sou ainda menor, deitada no meu berço chamado Terra. Toda vez que olho para as estrelas, me lembro de como somos pequenos, como nossas vidas devem parecer desimportantes para a sabedoria do universo. Olho para as estrelas e desejo ver alguns de seus mistérios, sabendo que isso nunca irá acontecer. Primeiro: elas estão muito longe daqui, muito ocupadas queimando todos aqueles gases, para que a minha viagem seja bem sucedida. Isso se eu algum dia for autorizada a ir até lá pela NASA ou outra organização astronômica. Mas, mesmo se isso fosse possível, eu nunca conseguiria dar nem uma espiadinha nos seus segredos, então essa é uma viagem inútil. Eu não consigo nem resolver os segredos da grama, das árvores, animais, segredos da humanidade, segredos que eu posso ver, sentir, inspecionar. Se eu tivesse sorte e nunca parasse de viajar: quando da Terra eu conseguiria ver? 1/1.000.000.000. Talvez. Quando dos seus mistérios eu iria realmente aprender? Nenhum. Nada. E mesmo se houvesse viagem espacial e os cientistas dissessem que é mais ou menos seguro e se eu pudesse tentar conseguir por mim mesma, eu não iria. Não estou procurando pela realidade de conhecer as estrelas. Eu nunca poderia ir. Eu preciso de ar, oxigênio, dióxido de carbono, hidrogênio e toda essa merda. Eu preciso disso em abundância, eu me esbaldo em ar. Eu não consigo mergulhar também; os segredos

do mar são legais, mas estão muito nas profundezas. Olhando para as estrelas da minha distância segura, respirando como uma rainha, sentindo as minhocas debaixo de mim e não prestando nenhuma atenção nelas, eu vejo o universo se mover e estou contente. Deitada na grama, meu corpo só um peso sobre as folhinhas pequenas, um peso respirante, um peso explosivo. Eu olho para cima, para mais longe do que qualquer ser humano jamais esteve, bilhões de anos para trás em luz. Eu vejo o passado e ele se move para me mostrar o futuro. As estrelas e planetas falam em uma língua que eu não consigo entender – mas está tudo bem, estou satisfeita com o fato de que elas prestam pelo menos alguma atenção em mim. Ou talvez elas não prestem, talvez elas estejam se movendo para outra pessoa, por causa de outra coisa. Eu não ligo, eu só ouço ao ver com as lentes apropriadas (lentes psicodélicas) e eu sou falada pelas estrelas. É um luxo, sério, ter a oportunidade de sentir as estrelas falarem e tentar decifrar sua língua – sem nenhum sucesso concreto, é claro, só sensações. Eu estou deitada no chão e converso com elas, nenhuma resposta que posso entender com palavras, talvez nenhuma resposta e eu só estou viajando (possível). Nós conversamos sobre as dores que sofremos, estrelas e humanos, sensações viajam em tempo e distância em um só instante e nós trocamos soluções para seguir vivas e brilhantes, eu e elas. Será que um dia voltarei a ter uma percepção normal das coisas? Eu preciso voltar? Por quanto tempo continuarei me sentindo assim? Somente o necessário, eu me acalmo. Somente. O. Necessário.

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baque poesia_Fabio Navarro colagem_natalia nunes

Três horas e nada sono sem alma mais um cigarro Escarro sono sem nada 3 horas sem calma calam Mais um baque Ache Três horas sem sua alma calma nada Outro cigarro deparo com a alma entalada Calma três horas sem nada Quero remédio saída sem alma Três horas de baque sem cigarro sem alma sem nada...

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Máquinas silenciosas ilustrações_CINTHIA SANTANA









Loco Abreu: incandescente e ensandecido texto_Daniel Mendonça colagem_natalia nunes & Lívia aguiar

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Nos instantes cruciais da tragédia é que as representações da loucura se mostram mais vivas. Se no mundo terreno a ventura do louco é cômica, sua alma tem essência trágica, pois institui no espaço controlado da vida ordinária uma camada espessa de inquietude, assombro e descrença. A loucura é um desvão da realidade que rompe com a linguagem fingida da vaidade, o pudor constrangido dos bons costumes, a encenação ligeira e asséptica da humanidade. Da centelha que desmorona a edificação da normalidade, o gesto de loucura precipita-se no abismo.

imaginando ingenuamente que um louco deixa de ser louco só porque está num jogo decisivo de Copa do Mundo. Para Loco Abreu, eis a oportunidade de lançar ao mundo a catarse de seu espírito desarrazoado, de evocar como um deus o delírio coletivo da vitória homérica. Para choque dos incrédulos, El Loco dribla a covardia, aplica sua lendária “cavadinha de Deus” e toda a sua loucura é perdoada, antes mesmo que a de Oswaldo Montenegro. El Loco, o craque de poucos gols e muita alucinação, encarna nesse instante O Assinalado de Cruz e Sousa:

Flashback: É quartas de final da Copa do Mundo de 2010, África do Sul. Gana e Uruguai em campo. Após um empate improvável, em que o guerreiro uruguaio Luis Suárez, no último segundo da prorrogação, salva com as mãos o que seria o gol da derrota, a disputa de pênaltis surge no horizonte. Essa breve e trágica peleja de chutes a gol, ponto de inflexão da narrativa futebolística, é o evento que pinta a cara do cobrador com as gloriosas tintas do triunfo ou a indelével graxa do fracasso. A cobrança final está aos pés de Sebastián, o Loco Abreu.

Tu és o Louco da imortal loucura O louco da loucura mais suprema A terra é sempre a tua negra algema Prende-te nela a extrema Desventura. Tu és o Poeta, o grande Assinalado que povoas o mundo despovoado, de belezas eternas, pouco a pouco. Na Natureza prodigiosa e rica toda a audácia dos nervos justifica os teus espasmos imortais de louco!

“O homem forte digere os atos da sua vida (inclusive os pecados) como digere o almoço”, diz um texto de Waly Salomão. Mais ainda: atravessa as fendas do cotidiano como se rachaduras fossem pontes. Nesse momento Loco Abreu, acostumado bater pênalti com “cavadinha”, percebe o temor e o assombro nos olhares arredios dos compatriotas.

Toda loucura que viermos a testemunhar num campo de futebol, daquelas que desconcertam a autoridade aborrecida da razão, nos fará lembrar, com discreto sorriso de reverência, de Sebastián Abreu e seus espasmos imortais de louco.

“Será que ele vai ser tão louco assim?”, pergunta o incauto narrador da tevê, descrendo do poder cósmico da loucura,

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edicão_GIOVANA MORAES SUZIN (Vacaria RS, 1987) É jornalista e historiadora e trabalha no Sesc em São Paulo. É curiosa, insone, exagerada e coleciona pequenos prazeres - seus e alheios. Nascida gaúcha, tem o coração catarinense, mas seus pés são ciganos e não gostam de acomodação. Gosta de gente, de se perder em viagens e em sonoridades múltiplas. Escreve sobre música e outras pirações no blog http://pandorga.mus.br/

direção de arte_NATALIA NUNES (Macatuba SP, 1984) É designer de formação, gosta de sítio, grama, mato mesmo, cachorro. De bicicleta gosta muito também. Cuida da Quincas, sua filhota. E cuida de ser designer e ter bons amigos. Mantém alguns blogs para juntar referências que acha atraentes, como o www.whenibrokemyfoot.tumblr.com

Todos os direitos reservados aos autores

Publicação Independente


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