FEVEREIRO 2015_ REVISTA COLABORATIVA QUINCAS_
Edicão 06_MUDANÇA
MUDANÇA Edição 06_ Revista Colaborativa
Direção de arte_NATALIA NUNES Edição_GIOVANA MORAES SUZIN Capa_MARIANA COAN
FEVEREIRO 2015
ilustração_NATALIA NUNES
FAÇO FRETE editorial_GIOVANA MORAES SUZIN
Doo aceitação e translado alteração de estado. Faço rifa de compreensão e premio com desejo de mudança. Destruo cemitérios e arquiteto jardins. Pinto camadas de sensibilidade sobre paredes de pele, carne e osso. Desenho dinâmicas de movimento e construo estradas libertárias. Abro fosso em permanências. Desentupo veias rotas e removo pensamentos reacionários. Modifico estruturas rígidas, diversifico necessidades, reviro baús de memórias afetivas e permuto por vestes de acolhimento. Planejo metástases de revolução. Reformo corações.
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COLABORADORES
PIETRO LUIGI_(Ponta Grossa PR, 1988)
Desde sempre nutriu um gosto particular por monstros babões de seriados japoneses de baixo orçamento e por dinossauros. Há dois anos mora em São Paulo e tenta desesperadamente ser uma pessoa melhor para sua mulher, seus amigos e sua família. Durante esses 26 anos de sonho e de sangue e de América do Sul, entre perseguições em alta velocidade, amores perdidos, crises e revelações dignas de um filme de ação do Alexandre Frota, inventou de editar uma revista com parte do seu universo, a tal do Banhero Selvagem. Para acompanhar www.bselvagem.xpg.uol.com.br e adquirir www.loja.bselvagem.com.br.
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MESTRE AMÉRICO _(Barro CE, 1972)
É poeta, tipógrafo e encadernador. Nascido no Barro, vive e trabalha na região do Cariri, no estado do Ceará. Cresceu aos pés do avô, Mestre Severino, cantador popular de tradição, conhecedor de fábulas de homens e de bichos e tradutor das coisas que não falam. Aprendeu a ler e a escrever com sua mãe, a costureira Joana da Graça Américo, de quem as primeiras lições foram bordar letras em panos de prato.
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BARBARA SCARAMBONE _(Brasília DF, 1982)
Artista brasiliense que vive e trabalha em São Paulo desde 2006. Inspirada pelas cores nostálgicas do surrealismo, ela cria colagens à mão usando apenas tesouras, cola, revistas antigas, jornais e livros. Para conhecer mais: http://ihardlyknowher.com/babees_ collages.
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MARIANA COAN (Itu SP, 1981)
É caipira e paga as contas com desenhos, pedaços de papel e tesouras. Cuida de plantas e também trabalha como salva-vidas de insetos que caem em piscinas. Seu site é www.marianacoan.com.
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LIE MANUELA SILVEIRA_(Curitiba PR, 1984)
Durante a faculdade de Design de Produto, na UFPR, fez intercâmbio na Alemanha e teve a oportunidade de estagiar na montadora da Volkswagen durante um ano após vencer um concurso de design. Formou-se e começou a trabalhar no estúdio de design da Whirlpool em Joinville, atuando na área de design sensorial. Em janeiro de 2014 resolveu sair do mundo corporativo para criar sua marca de joias – a Liê. Dá para ver mais aqui www.lie-joalheriaartesanal.com.
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BELLÉ JR. (Francisco Beltão PR, 1984)
Poeta nascido no sudoeste do Paraná, crescido na capital e radicado em São Paulo. É a segunda vez que participa da Quincas e publicou em 2014 o livro Trato de Levante (Editora Patuá), sua segunda obra poética. Boa parte do livro foi escrito em 2013, durante duas residências artísticas na Art Farm Nebraska e Yaddo Artists Colony, onde foi condecorado com o Carfield, prêmio para escritores latino-americanos. Em 2010, lançou de maneira independente O sonhador que colhe berinjelas na terra das flores murchas, com não mais que 300 cópias, as quais vendeu por aí, nas ruas e botecos, para amigos e inimigos. Deu vida também ao projeto Reversos, em que diversos artistas musicaram as letras de poetas. http://juniorbelle.com/.
KLEYSON BARBOSA (Coronel Fabriciano MG, 1983)
É jornalista, fotógrafo e escritor. Desde pequeno, é acostumado com mudanças. No princípio, vieram as mudanças de colégio e de hobbies - da natação e futebol ao ballet, teatro e circo. Depois vieram as mudanças de cidades: Coronel Fabriciano, Belo Horizonte, Ouro Preto, Toulouse, Londres e São Paulo. Teve também a mudança de graduação: do direito para o jornalismo. E, por fim, na mais recente mudança, sentiu que precisava se expressar mais – e melhor. A fotografia, assim como a escrita, foi a forma escolhida para exprimir tais transformações. Atualmente desenvolve trabalhos em artes visuais abordando sexualidade, amor e perdas.
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CAROL RITZMANN (Curitiba PR, 1987)
É fotógrafa com formação em Design de Produto e apaixonada pelo que faz. É fascinada pelo sentimento de nostalgia que a fotografia proporciona e explora a sua criatividade através dos sorrisos, dos momentos sinceros e do amor. Gosta de preservar a atenção aos detalhes, nas imagens espontâneas e com naturalidade. Tem sempre uma xícara de chá ou café na mão, gosta muito de ler Neil Gaiman, de ouvir David Bowie e de desenhar com aquarela. Mais fotos aqui: http://carolritzmann.com/.
texto_BELLÉ JUNIOR ilustração_PIETRO LUIGI
Deposita a última caixa no chão do novo apartamento, um pequeno vaso de madeira onde a mais valente muda de orquídea insiste em crescer, mesmo depois da longa viagem na escuridão de um porta-malas abarrotado. A mudança das coisas havia acabado, mas é claro que a mudança das memórias sequer começara. Ambas precisariam ser organizadas, dispostas da melhor maneira possível naquele quarto-sala, e naquele coração-cabeça. Lucia acende um cigarro e abre a janela: quanta diferença, meu deus. O Largo da Ordem, no centro velho de Curitiba, parecia incrivelmente jovem aos olhos tão paulicelicos e desvairados de Lucia. Por certo a rotina logo trataria de surrupiar-lhe mais esta sensação infantil, que se avoluma em seu peito ofegante sempre que se vê diante de uma paisagem inédita. Calafrios na espinha e uma comichão entre as virilhas, assim Lucia pressentia o futuro de seus vinte e tantos. Mais não falava, não fala, não revela, não tem papo. Podia até ter o coração enrugado, mas a pele não, era macia como pétala de orquídea.
A idade é um segredo entre tantos. A começar pelo fato de que está fugindo, e nenhum fugitivo sai por aí falando a verdade. Fugia de si mesma, daquela Lucia submissa ao patrão e ao namorado, aos padrões e patriarcados, fugia do emprego e da proximidade geográfica dos pais, fugia da falta d’água e com certeza fugia da vista horrorosa de seu ex-mini-apê alugado, de frente pra a janela da vizinha – janela esta que além de emoldurar a vida tediosa de uma sexagenária mal comida e seu filho punheteiro, ainda vinha cercada de um prédio que de tão imenso era maior que sol. Fugia das sombras e das sombras de Santa Cecília fugia ainda mais. Já não era o caso, alivia com uma baforada esfumaçante a lembrança de sua ex-vizinha e avizinha-se à orquídea, tendo a gentileza de apagar o cigarro no beiral da janela e jogar a bagana no chão antes de aproximar-se. Era seu segundo cigarro desde que decidiu começar a fumar: a nova Lucia fumaria mais, beberia mais, foderia mais e se importaria menos. Quando tomou essa
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decisão estava sóbria, com hálito de hortelã e absolutamente seca entre as pernas. Ainda assim, não voltaria atrás de jeito nenhum. Não voltaria! Lucia olha para a flor como se olhasse para um espelho, repara no relevo das folhas carnudas como quem lê o futuro nos traços da mão. As pétalas estão delicadamente roxas, e assim estão também a ponta dos dedos e os lábios, todos ressecados pelo frio da capital mais fria do país.
Lucia e tão excessivo na velha – o que colocava a inóspita realidade da capital paranaense em patamar de igualdade com a idealização que Lucia fazia dela. Mesmo com a frieza que lhe é peculiar, sim, mesmo com o capitalismo convertendo-se na ampulheta impiedosa que promete fazer areia de suas economias caso o tempo passe e as contas cheguem, caso o emprego tarde e os frilas escasseiem. A velha Lucia tinha irresoluta convicção da cagada irreversível que seria deixar tudo pra traz sem sequer um plano, sem uma única garantia senão a sorte. (Tudo, para a velha Lucia, significava emprego estável, noivado papaimamãe e feriados em Ilhabela). A nova Lucia, no entanto, achou o maior barato estar vendada quando - horas depois de mandar o chefe a merda e apenas minutos depois de mandar o namorado a merda - atirou o dardo decisivo que perfurou Curitiba no mapa. Lucia sentia-se capaz.
Curitiba seria sua redenção, cria nisso como quem cria uma verdade, uma resolução de vida, uma certeza que no espírito de Lucia teve o irresistível efeito das primaveras: a fazia desabrochar e se abrir para novos amigos, outros amantes, para ideias estranhas e experiências inexplicáveis. A experiência, aliás, é o que afiança um fato científico: apenas com novos amigos, uma nova cidade é capaz de ser redentora. Inconscientemente, era uma certeza – algo tão raro nesta nova
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ROMPIDO ilustrações_MARIANA COAN
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FRAGMENTOS DO PROCESSO designer de joias _LIE MANUELA SILVEIRA fotografias_CAROL RITZMANN ourives_JOテグ SOBRINHO
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FLAVORS CHANGE colagem_BARBARA SCARAMBONE
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As imagens dessa série captam pouco mais de oito meses em um único frame. Elas foram instaladas no dia que descidi parar de fumar. De 8 de maio a 28 dezembro de 2014, registrei a incidência de luz do Sol na cidade onde nasci e onde moro atualmente por um período de tempo que vai além do que podemos perceber com a nossa própria visão. Nas fotografias dessa série, vemos os caminhos do astro em Coronel Fabriciano (MG) e São Paulo (SP).
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VENDO O SOL PASSAR
O SOL, QUE AQUI BRILHA, TAMBÉM BRILHA LÁ. solarigrafias_KLEYSON BARBOSA
Vista do terraço da casa dos meus pais | Coronel Fabriciano MG
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Vista da janela do meu apartamento | S達o Paulo SP
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Vista do port達o da empresa dos meus pais | Coronel Fabriciano MG
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MORADA NORDESTINA poesia_MESTRE AMÉRICO
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* para Marcelino Freire
Muito trabalho eu sempre tive lendo as bulas de remédio da velha avó, da mãe e da tia e de um pai com muitos netos Muitas dores comparti nas noites doídas da vida vendo a lida salgada do dia ser na lida da noite escorrida O choro em sal transformando nas bocarras da noite um ruído e ver sair delas um grito em abafado gemido virando Nestas noites de fastio em que a vida fica ferida nem esparadrapo nem remendo se formam em casca encardida Vê-se o avesso do bicho e vê-se um ser humano de quatro andando vê-se um calcanhar se derrubando ao atravessar o mundo atrevido Tentei esquecer o ouvido deixar não lido o que é sem nome querendo encontrar nesta fome imenso horizonte infinito Sem dentes mordendo braços sem lobo uivando pra lua sem cão vira-lata de rua pisando num chão de mil cacos Na ânsia de não ser encontrado na beira do mar me deixei a ir e a ir sem ser levado tentando acertar onde errei
Do sertão eu sertanejo desejei, depois, me afogar no imenso azul que é o desejo total comunhão que é o mar Quis então um só peito encontrar onde sem dor mamar eu pudesse vendo o amor onde o amor se fizesse e do prazer o prazer desfrutar De dores em dores fui lendo de bulas em bulas, cartazes e placas de carros e rotas rumando à cidades selvagens Da dor e do prazer levando descontrolada a carruagem devendo tudo o que encontramos a quem se deixa em viagem Das rodas rodando me lembro mais das bulas que cartazes mais da poeira que da areia mais do sertão que os sargaços Das rodas rodando me lembro menos dos gozos que saudades menos das glórias e paisagens menos do agora que a memória Tendo girado o mundo em dores lembro das dores mais meninas que as tive e as tenho ainda no seio de minha família Da vida tecendo e girando lembro da noite como dama da minha avó gemendo em cama mais que o sorriso dos rapazes *
edicão_GIOVANA MORAES SUZIN (Vacaria RS, 1987) É jornalista e historiadora e trabalha no Almanaque Abril, em São Paulo. É curiosa, insone, exagerada e coleciona pequenos prazeres - seus e alheios. Nascida gaúcha, tem o coração catarinense, mas seus pés são ciganos e não gostam de acomodação. Gosta de gente, de se perder em viagens e em sonoridades múltiplas. Escreve sobre música e outras pirações no blog http://pandorga.mus.br/
direção de arte_NATALIA NUNES (Macatuba SP, 1984) É designer de formação, e o que mais gosta de fazer é se envolver em propostas como a Quincas. Adora mesmo, pararia todo o resto do que está fazendo para se debruçar em projetos atraentes. Mantém alguns blogs de referências, os quais também acha atraentes, como o http://fuckmeproperly.tumblr.com/
ilustrações_NATALIA NUNES
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