MAIO 2015 Edic達o 07_SELVAGEM
SELVAGEM Edição 07_ Revista Colaborativa
Direção de arte_Natalia Nunes Edição_Giovana Moraes Suzin Capa_vitor cervi
MAIO 2015
ilustração_Gustavo Gialuca
Lei da Selva editorial_Giovana Moraes Suzin
Num planeta não muito distante, cobras rastejam em busca de uma nova presa. Miram especialmente nos coelhos, esses mamíferos dóceis e alienados que só pensam em se reproduzir. Os chamariam com a promessa de diversão fácil e uma bela maçã, mas dariam o bote apenas na hora certa. Em outro canto da mata, os todo-poderosos porcos se reunem em um chiqueiro de luxo querendo aprovar uma lei para proibir os cachorros de andar livremente em matilhas – nada mais perigoso do que caninos pensando em grupo. Enquanto isso, ursos jogam plantas venenosas perto das raízes das árvores, para que os esquilos se intoxiquem ao comer as castanhas do chão. Tinham raiva porque mesmo sendo bem maiores do que os roedores, não eram capazes de abrir e aproveitar o fruto ali presente. Seu plano consistia em capturar as sementes mais altas e comercializá-las mais tarde, quando estivessem fora de época. Os abutres se mudaram para perto do rio, onde esperam tranquilos a morte dos peixes – afinal todos os serem aquáticos estão sendo contaminados. Os porcos mandaram jogar todos os dejetos não desejados da floresta nas águas. E não se importaram nem um pouco com os apelos dos botos, pois de qualquer forma não gostam de banho e nada daquilo os interessa. Num planeta não muito distante.
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Vitor Cervi_(Botucatu SP, 1982)
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Graduado em Desenho Industrial pela UNESP em Bauru. Viveu e trabalhou em São Paulo como freelancer Motion Designer por sete anos. Atualmente mora entre em Estocolmo e Paris, investindo cada vez mais em seu outro interesse visual: a fotografia. Sua jornada está focada na busca por uma beleza assombrosa, normalmente em cenários da natureza. Foi para a Nova Zelândia nessa procura em sua última expedição, onde fez as fotos que integram essa edição. http://vitorcervi.tv
aline castro_(São Paulo SP, 1983)
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Escritora, feminista, marxista e cigana Romani de corpo e de alma. Nascida em 30 de agosto de 1983, em São Paulo, percorreu muitos lugares do mundo para renascer. Formada e pós-graduada em Comunicação Social (PUCSP), atualmente é professora universitária e pesquisadora na área de Ciências Sociais com estudos voltados às questões de gênero e sexualidade. É também militante em movimentos sociais. Quem não luta, aceita o que vier ! Seus escritos mal escritos podem ser encontrados no www.prosacigana.blogspot.com www.theskyprojectbrazil.tumblr.com.
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Publicou o livro de manifestos poéticos “ContraBandos”, pelo selo Edith, e a novela em verso “Selva”, pela editora A Oficina do Santo. Participou das antologias de contos “Granja e Maus Escritores”, e teve poemas publicados em revistas literárias de Londres e Paris.
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escola de Paris Belleville, desenhista e fotógrafo. Thomas é fascinado com as capacidades da mão. Formado na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo e também na Escola de Comunicações e Artes (FAU / ECA USP), atualmente é gerente de projeto no escritório de arquitetura ReadyMake e pesquisador na área de Urbanismo, com estudos sobre as “Representações das cidades” e a “Água como um recurso e um objeto de integração social”. Aficionado pela descoberta de outra cultura, outra maneira de fazer, de ver e de pensar. www.thomas-drault.tumblr.com
Gustavo Gialuca (Rio Claro SP)
Mora em São Paulo e passa o dia com o cachorro. Um desenha e o outro dorme. Faz capas de discos, pôsteres de shows, desenhos para livros, revistas e agências de publicidade. Participou de exposições e publicações no Brasil, Argentina, Uruguai, Paraguai, Colômbia e Turquia.
>27 Bruna Castro_(São Bernardo do Campo SP, 1988) Nascida prematura. Trabalha como redatora publicitária em horário comercial. Em horário não-comercial, escreve em seu blog Abra a Janela (www.abrajanela.com.br), mantém seu projeto de fotografia/linguagem Bonito Português www.bonitoportugues.com.br) e o Feel the Butterfly (sobre amor, claro > www. feelthebutterfly.com). Além disso, escreve cartas e e-mails gigantes, já que estes não tem a maldita opção “mensagem visualizada”.
<22 >29 Estudante em arquitetura e urbanismo na
Thomas Drault (Paris, França, 1989)
Raphael Gancz_(Rio de Janeiro RJ, 1981)
Bruna carvalho_ (Sorocaba SP, 1984)
Formada em Design Gráfico pela UEMG e pós-graduada em pós-produção para Cinema, TV e Novas Mídias na UNA, trabalha nas áreas de design, ilustração e vídeo. Também atua como professora de design numa escola em BH (INAP). Fez o Curso Abril de Jornalismo em 2010 e juntamente com sua equipe ganhou o prêmio Abril do ano de 2011 na categoria Vídeo Online. Na vida real, gosta de pular, dançar e cantar por aí. Faz alguns trabalhos experimentais com dança e pratica circo. www.behance.net/brunacarvalho
ilustração_Gustavo Gialuca
colaboradores
RIOS, RUGIDOS E MUSGO poesia_raphael gancz
ilustração_Gustavo Gialuca
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Às 7 da manhã o selvagem acorda ao som de um toque tecnológico Veste o terno da semana e, combinando cores, escolhe um par de privações O selvagem entorna o café forte, bate firme a porta e segue o rastro da cidade – elétrica, pulsante, como coração de enguia O selvagem, se pudesse, teria dormido mais O bastante para concluir seu sonho – convidado penetra do dia O selvagem pega o trem lotado, entra pedindo licença, cotovelos colados ao corpo É identificado não pela foto no crachá, e sim pelo cordão que corre ao redor do pescoço O selvagem recebe instruções precisas para um trabalho inútil Pacato, acata De suas narinas, escorrem rios, rugidos e musgo O selvagem caminha curvado, sem nenhum motivo aparente; mas carrega no bolso da frente toda a floresta Amazônica.
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Hoje não tem poesia – só atropelamento Hoje, só criança-zumbi vagando perdida sem voltar nem atravessar a rua A testa sem rumo na altura da roda Hoje, só bracinhos e perninhas chacoalhando elétricos fios desencapados feitos de carne moída e ossos despedaçados Hoje, só estômago de aço Hoje, só corpinho fundido ao asfalto Tapete de pele puído com rastros de sangue alcalino (espasmos pedem passagem) Hoje não tem poesia Só tórax partido Olhinhos revirados alheios às leis às letras
da placa que surge e some nos quilômetros da estrada O choro, o escapamento abafa Hoje não tem retorno nem sinal vermelho nem faixa de pedestre Hoje não tem freada brusca - no máximo, uma leve derrapada – Não tem freio de mão Nem cavalo de pau Hoje não tem rodeio nem revolta Não tem velocidade de cruzeiro Não tem mão na buzina nem carona contemplativo sentado tranquilo no conforto do banco de couro Hoje não tem poesia Hoje, só omissão de socorro.
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HOJE, SÓ ATROPELAMENTO poesia_raphael gancz
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assombro fotografias_vitor cervi
savage conto_aline castro
ilustração_Gustavo Gialuca
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Nascera fuligem, dispersão coloidal de partículas finas. Negra, negra. Aquela cor escura tão sem cor. Corpo. Tudo era ebulição. Nos idos de outras décadas, amava-se clandestinamente nos porões do centro junto aos ratos e baratas, pisando o salto alto nas poças de esgoto, fazendoos ressoar. No entrevir da madrugada, confundiam-se as silhuetas bem delineadas de sua negritude com a de outras moiçolas do baixo meretrício, entre um gemido e outro, podia ouvir-se as risadinhas dos transeuntes. A noite ela sempre nascia. “Savage” - dizia a negra, em bom tom. “Sou a sombra semi-homem que dá vida à sagrada primavera, colorindo o quadrilátero da Rego Freitas ao Largo do Arouche”. De fato, cocotes desfilavam bocas avermelhadas nas esquinas, derradeiros prólogos do vermelho selvagem que a acompanharia até o fim. Damas sem dono, sem nome, amorfas, transitáveis, fluídas em sua liquidez de sombra. A calçada, uma selva despovoada brotando bárbaros forasteiros a procura de ardilosa fruição. Incivilizados transitavam vestes florais e estamparias multicor. Vestidos diminutos marcavam seus corpos lânguidos e longilíneos, animus e anima misturados em vasos consistentes, inquebráveis. Não há banto, nem quebranto que tirasse Savage de sua vida, para além dos muros das normas consagradas sem sua presença vil. “Sou Savage!”. Nem aqui, nem ali. Sou a interlocução de deuses anacrônicos subindo aos céus da viração. Que de tão humano-primata-boçal, desceu aqui na Rego Freitas e dominou seus prados. Sua beleza foi surrada. Seu destino foi traçado: vai ser puta, travesti! Nos domínios deste reinado serás rainha, serás mulher! Neste quadrilátero os caçadores ficam à margem, desarmados, dominados por seus instintos primários de prazer. Deixam as armas nas gavetas trancadas de seus escritórios, nas conversas íntimas
com seus iguais, nas palavras jocosas com seus familiares, nas posições políticas que assumem, no lindo amanhecer preso no trânsito. Preso. E a prisão fica muito longe daqui. “Aqui somos selvagens” - gritava a negra na rua, meio torta-torpe-tépida. Gritava a plenos pulmões aos fardados que faziam a ronda. “Cala a boca, bicho” retrucava o outro lado. Quando a rua ficava silenciosa no quase amanhecer, suas meninas contavam anedotas da infância, dos trejeitos que embaraçavam as pobres mães, dos devaneios ao tocar a maquiagem, os sonhos de princesas… “Rainhas! É o que somos.” De fato a altivez com que carregavam badulaques, unhas postiças, cílios, silicone, e, mais ainda, a altivez com que carregavam um corpo que veio errado, seu destino e sua coragem de encontrar saída ao sagrado espírito feminino que domava suas almas sem a mesma exatidão com que seus corpos foram concebidos. Esse desencaixe da própria existência materializada em semi-homens, semi-mulheres, humanos inteiros libertos na noite selvagem. Traveco sem vergonha! Bicho miserável! - bravejou o homem fardado. Hoje era dia de caça na selva. As moças corriam desgovernadas para dentro das casas de luz vermelha, inferninhos que abriam as portas sem purgatório ou juízo final. “Deixai, ó vós que entrais, toda a esperança!”. Mas a negra carregava em si a esperança. Quando saiu de casa pequena, de pés descalços e sem cruzeiros, decidiu que haveria para si uma vida digna naquela selva. “Não fiz nada, doutor” - Disse, Savage ao homem fardado que lhe apontava a carabina. Selvagem, a negra silenciou a noite em um único disparo. Morrera fuligem, dispersão coloidal de partículas finas. Negra, negra, negra. Subiu aos céus como estrela. Brilhou. Não era mais semi-homem, semi-mulher. Era inteira. Uma constelação inteira.
outro desenhos_Thomas Drault
Anhangava prosa poética_bruna castro
ilustração_Gustavo Gialuca
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gostava era de andar nu e com pés descalços corria entre rios e riscos de ser pés no chão. ora pisava em espinhos, ora em terra molhada achava que o amor mata e que pelo amor, se mata. tudo pelo amor que mata adentro selvagem. selvagem que só em sua selva de pedra coração mole, pedra dura tanta lágrima até que fura. tomou banhos de água fria e queimou-se no asfalto diziam que era um bicho do mato.
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femme desenhos_Bruna carvalho
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edicão_GIOVANA MORAES SUZIN (Vacaria RS, 1987) É jornalista e historiadora e trabalha no Almanaque Abril, em São Paulo. É curiosa, insone, exagerada e coleciona pequenos prazeres - seus e alheios. Nascida gaúcha, tem o coração catarinense, mas seus pés são ciganos e não gostam de acomodação. Gosta de gente, de se perder em viagens e em sonoridades múltiplas. Escreve sobre música e outras pirações no blog http://pandorga.mus.br/
direção de arte_NATALIA NUNES (Macatuba SP, 1984) É designer de formação, gosta de sítio, grama, mato mesmo, cachorro. De bicicleta gosta muito também. Cuida da Quincas, sua filhota. E cuida de ser designer e ter bons amigos. Mantém alguns blogs para juntar referências que acha atraentes, como o http://fuckmeproperly.tumblr.com/
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